Conto do livro Tentativa, editado em São Paulo pela Revista dos Tribunais, em 1941. Prêmio Academia de São Paulo, julgado pela Academia Paulista de Letras.
(Segunda excursão pela vaidade humana)
Moro numa pensão lá na rua Maria Paula. Não direi o número, pois seria indicação preciosa aos credores e fila-boias. Ao invés de um moço que está estudando canto (como na conhecida canção carnavalesca), há na vizinhança uma Casa dos Espíritos. Trata-se, por sinal, de espíritos bem barulhentos e irrequietos. Fazem uma vitrola antediluviana espancar os ouvidos da gente com árias italianas desde as nove da manhã e entregam-se ao delicioso esporte de rachar lenha.
Contudo, isso é outra história, como diria Mr. Rudyard Kipling... Resolvi aproveitar a oportunidade. Na fria e ventosa noite de São Pedro e São Paulo, em lugar de soltar bombas ou balões, deliberei ter uma conversa mediúnica com Machado de Assis. Dirigi-me para a Casa dos Espíritos. Topei logo de início com uma sala, tendo em cima da porta de entrada um nome arrevesado: Gabinete de Metapsíquica. Eis aí uma coisa que a gente não alcança entender bem, condição essencial à crença e à devoção. Lá no fundo, vi alguém, não podendo dizer logo se era homem ou mulher, pois estava metido numa espécie de escafandro guarnecido de molas, fios em espiral, válvulas, lâmpadas e outros apetrechos da familiaridade dos engenheiros. Juntas à parede, no sentido do comprimento, sucediam-se dezessete cabines. Cheguei ao camarada do escafandro e perguntei:
– Por obséquio, pode fazer-me uma ligação com o Sr. Machado de Assis?
Voltou para mim a intrincada aparelhagem que trazia na cabeça, indagando:
– Machado... de quê?
– De Assis...
– Ah! Machado de Assis... Conheci um pedreiro chamado Belizário de Assis, que morreu há uns dois anos. Seriam parentes?
– Não sei não, senhora. (Já não tinha dúvidas quanto ao sexo de meu interlocutor. Revelara-o sua voz esganiçada e, em segundo lugar, a bisbilhotice palreira com que remexia nas escabrosas questões de parentela.) Acho, porém, muito difícil, porquanto o Assis de que lhe estou falando nascia há precisamente cem anos. É tido como o maior escritor brasileiro...
A mulher do escafandro deu de ombros à minha explicação. Pouco se lhe dava que fosse um escritor ou um futebolista, desde que não se tratava de parente do tal pedreiro Belizário.
– O senhor vai esperar um pouco. Vou pôr-me em comunicação com o Posto Metalocutório do Além. Sente-se Sr. ...?
– Sílvio Miranda, para servi-la.
– Miranda?... Miranda?... Sua família pertencerá ao ramo dos Miranda de Bragança?
– Não, senhora, apressei-me em responder secamente. Nossos parentes todos, sem exceção nenhuma, estão no Amazonas (instintivamente me ocorreu o nome desse estado distante).
– O senhor veio de longe...
– Felizmente, interrompi distraído.
A mulherzinha compreendeu que eu não sou forte em matéria de genealogia. Sentei-me a um canto, sossegado. Daí a uns cinco minutos, se tanto, ouvia de novo sua voz gritante:
– Sr. Miranda, cabine quinze. Espere pela sua vez, pois a linha está ocupada. Minha colega lá do Posto Metalocutório do Além me disse que, de uns dois meses para cá, esse Machado de Assis não tem tido descanso. Os chamados são um em cima do outro.
Caminhei para a cabine quinze (bom palpite para o jacaré) e pus-me à espera. Não tardou muito, meus ouvidos, aparvalhados, escutavam uma voz pacata, levemente alterada pela impaciência:
– Alô! Que quer de mim?
Respondi num atropelo:
– Alô! É com o Dr. Machado de Assis que tenho a honra de falar?...
– Machado de Assis, simplesmente Machado de Assis... Poupe-me essa designação de doutor, hoje em dia mais desmoralizada do que a de capitão ou coronel, no meu tempo. Usam-na os farmacêuticos, os veterinários, os guarda-livros, as parteiras, até os advogados e médicos.
No Brasil, quando nasce uma criança, os pais já sabem: será doutor ou funcionário público, se não for as duas coisas a um só tempo. Depois, o fato de falar comigo nunca deu honra a ninguém. O que me dá, a mim, é um pouco de incômodo...
Eu ensaiava um jeito de cair nas suas boas graças dizendo-lhe alguma coisa agradável, a fim de amainar a tempestade do mau humor.
– Desculpe, mestre... E acrescentei melífluo: Como vai passando D. Carolina?
– A vida, cá por cima, é bem diversa da que levamos aí na terra. Nunca se poderá dizer se se vai bem ou mal, porque sempre se está da mesma forma. Nem alegre nem triste, nem bem nem mal... Os homens ainda não entenderam que a temporariedade e as imperfeições são elementos intrínsecos da felicidade. Mas deixemo-nos de filosofias... É bom você ir dizendo, sem mais demora, ao que vem, pois já fui avisado de que me esperam outros pedidos de comunicação.
Convenci-me de que nada adianta badalar os espíritos: a eternidade é couraça invulnerável às lisonjas. Como trazia minhas perguntas engatilhadas, desfechei-lhe a primeira:
– Está satisfeito, mestre, com as homenagens póstumas que lhe vêm sendo prestadas por ocasião do primeiro centenário de seu nascimento?
– Também não posso dizer-lhe se estou ou não satisfeito. Você se esquece de que os espíritos não têm coração. Este maravilhoso músculo, deixei-o na terra, entregue à voracidade dos vermes. E com ele lá se foram os sentimentos... Voltemos, contudo, às homenagens. Ao que me parece, elas constituem fato inédito no Brasil. Em nosso país, os homens de letras só são lembrados, via de regra, por aqueles que lhes surripiam deslavadamente a obra ou para serem covardemente caluniados. Apesar de não poder esquecer que exceção tão promissora tenha recaído sobre minha pessoa, não posso deixar de fazer certas restrições... Como tudo mais que se realiza no Brasil, não se foi além da superfície, da generalização apressada. Contentamo-nos em conhecer os fatos pela rama. Nossa terra, nós a conhecemos por meio dos aforismos e lirismos. Tomamos frequentemente o galo pela aurora. Somos partidários incondicionais do fogo de artifício e do foguete... Mas que fazer, se a tara indígena e africana influi tanto no sentido de que amemos os estrondos e as cores? Destarte, as comemorações em torno de minha obra e vida confirmaram a regra. Hipertrofiam-se quanto à extensão. Duma hora para outra, sem nenhuma preparação, todo o mundo se pôs a falar em Machado de Assis. Tornou-se assunto da moda, como já o haviam sido a grandeza do nosso território e dos nossos rios, “a beleza sem par de nossas matas”, a glutonaria de D. João VI, os amores de D. Pedro I e, mais para os nossos dias, a sabotagem do petróleo e a ameaça de imperialismos colonizadores. Não houve ginasiano ou empregado de comércio que deixasse escapulir o ensejo de escrever seu artigozinho ou arriscar seu palpite. Não demorará muito para que surjam marcas de cigarros, dentifrícios, sabões e loções contra calvície tendo por nome Machado de Assis. Está acontecendo comigo o mesmo que com Proust na França: sou mais citado do que lido e mais lido do que compreendido.
– O mestre concorda que seu temperamento seja esquizoide ao invés de gliscroide, nele preponderando as características esquizotímicas sobre as ciclotímicas?
– Não entendo patavina disso, respondeu agitado. Pelo arrevesado das palavras está me cheirando a medicina. Em qualquer mortal que se haja distinguido no terreno das artes ou da ciência, faz-se mister que se descubra uma doença ou anormalidade. A inteligência e o talento entraram para o rol das doenças. Viva o século XX! Como é cruel a vingança da mediocridade! O homem comum, roído de inveja, só dessa forma consente em justificar a superioridade que tanto o molesta. Todo gênio há de ser um enfermo, assim como na época romântica todo poeta digno de tal nome havia de morrer tuberculoso. Enfim, é preciso tolerar a cada século suas manias. Ao que me disseram, quem mais tem contribuído para que se divulgue essa história de gliscroide e esquizoide é um Sr. Peregrino Júnior.
Chegou até a se dar à pachorra de escrever um livro sobre o que ele chama “minha doença e constituição”. Esse médico, talvez por falta de clientes em seu consultório, trocou o bisturi pela pena e tomou-me como pretexto para pôr no mundo sua complicada terminologia... Para minha tranquilidade, não tenho de arrecear-me pela vida, que tem seu mais ferrenho inimigo nessa casta de cidadãos. Aliás, muito me tem desgostado o empenho sardônico e até certo ponto sádico que muitos de meus biógrafos vêm pondo em insistir na epilepsia, timidez e gagueira que tanto atormentaram minha existência. Extasiemo-nos ante a beleza da pérola, esquecendo-nos da enfermidade da ostra que a produziu. Admiremos o canto do pássaro, olvidando a gaiola de dores que o aprisiona. O que importa é o artista, não o homem. Aquele durará com suas obras; este desaparecerá com a morte.
– O senhor tem toda a razão, concordei entusiasmado. Agora a última pergunta: que me diz da moderna literatura do Brasil?
Ouvi, como primeira resposta, uma risadinha sarcástica.
– Ah, ah, ah... Literatura moderna... Sempre a mesma história a se repetir... Não há literatura moderna nem antiga. O que há é literatura boa ou má, simplesmente. A arte anda ao encalço do belo, que não é de hoje nem de ontem, mas eterno. Arte verdadeira, com A maiúsculo, não é simples função do tempo e do espaço, dos quais desconhece as fronteiras. Superpõe-se às idades e ao lugar em que surgiu. Deve ser particular no assunto e universal na forma. Nossa literatura está por demais subdividida em escolas e grupos. Urge que o nacionalismo unitário também se manifeste neste terreno. E as decantadas escolas literárias então? Não passam de cenáculos em que as vaidadezinhas de seus filiados são turibuladas reciprocamente. Uma espécie de gazua, com que os novos procuram abrir clandestinamente as portas da consagração. Nelas se procura negociar com popularidade, pondo em prática os recursos apregoados pelo sistema cooperativista. O processo mais em voga é apedrejar os escritores já consagrados. Caso consigam também um lugar ao sol, serão pagos na mesma moeda: receberão por seu turno outras tantas pedradas. Quando um menino desanda a xingar, a dizer desaforos e descomposturas, cuidado com ele! Está se candidatando a um cargo na república das letras. Muitas vezes o compadrismo e a bajulação dão-se as mãos e sofisticam as eleições. Pespegam as insígnias de general nos ombros de um coitado que não poderia ir além de cabo. Não faz mal! O travo amargo das derrotas breve o ensinará a ser mais modesto.
Eis uma definição analítica, ainda que simplista, disso que chamamos “escola”. Marino acertou quando disse que a única regra verdadeira em literatura é não ter regra alguma. Todos os gêneros são permitidos, menos o aborrecível, ensina Voltaire. Como vê, embora indiretamente, respondi sua questão. Mesmo depois de morto, continuo a ter medo da terrível suscetibilidade e do ódio rastejante que caracterizam o mau escritor. Deus me livre de enfurecê-los! Podem muito bem comprometer minha popularidade. Acrescentarei apenas que os legítimos valores atuais, e os há bastante, não se preocupam nem levam muito a sério essa bobagem de escolas, torres de marfim, literatura para as massas etc. Vivem arredios da turbamulta feroz e cabotina a que se dá o nome pomposo de gens de lettres. Cito dois exemplos: Monteiro Lobato e Érico Veríssimo. O primeiro teima em procurar enriquecer o Brasil, dando-lhe ferro e petróleo... É ambicioso, pois não se contentou em enriquecer nossa língua com seus melhores contos. O outro é funcionário de uma livraria, onde passa o dia entregue a trabalhos árduos. Não lhe sobra tempo para a parolagem vadia nos cafés ou nas casas de damas ricas, com pretensões a Mecenas. Meu amigo, a verdade é bem outra... Muita gente erra o caminho, fantasia-se de escritor ou poeta a fim de se entregar à malandragem, à bebedeira, à vida boêmia e airada. Felizmente isso já não pega mais.
Uma pessoa pode escrever belos livros e ser, ao mesmo tempo, exemplar chefe de família e cidadão de hábitos morigerados. Já está em tempo de pôr ponto final em nossa conversa. Até cá pela eternidade, meu caro... Eu bem sei que os homens só voltarão a se interessar por mim quando for da comemoração do segundo centenário. E então você também já entregou a carcaça às minhocas.