Crônica

Artigo para o jornal Folha de S.Paulo de 18/11/1991.

O FIO DO BIGODE

Para nossos avós, o fio do bigode garantia a palavra empenhada. Não precisava de tabelião, firma reconhecida e testemunhas. Depilou, negócio fechado.

Os bigodes rarearam, a palavra não.

A terra é filha da palavra, reza o Gênesis. O Evangelho segundo São João recorda: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”.

Padre Antônio Vieira tem na agulha bala certeira: “Palavras sem obras são tiro sem bala: atroam, mas não ferem. A funda de Davi derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra”.

Para os súditos confiantes “palavra de rei não volta atrás”. O adágio prevalece para os presidentes da República, que são reis de plantão durante os respectivos mandatos. O fraco rei faz fraca a forte gente, secularmente adverte Camões.

Houve um rei, poderoso para destruir o mundo, que foi destruído pela palavra desonrada. Nixon, quando sua copa e cozinha grampearam Watergate, sede do Partido Democrata, foi destruído porque mentiu.

Quando o Senhor quis castigar a arrogância dos homens, confundiu-lhes a língua na Torre de Babel.

Presidente Collor, esse negócio de palavra é fogo. Com fogo não se brinca, principalmente, chefe de governo. O presidente Collor proclamou urbi et orbi: sou parlamentarista. Prelecionou: é o regime da modernidade, da eficiência, que profissionaliza e agiliza a administração. Para que o presidente me entenda, traduzo: ele botou a boca no mundo a favor do sistema de Gabinete.

O presidente é poliglota, lançou os estilos soft e hard. Paternal, batizou de enfants gatées os parlamentaristas frustrados pela rejeição da Emenda Richa na segunda votação no Senado. Derrotada, esclareça-se, pela artimanha, não pelos votos. Francês por francês, presidente, devolvo-lhe: antes enfant gatée do que ratée, isto é, desmoralizado.

Traduzo o latinório porque o presidente, como de resto nossa juventude, trocaram a língua mater pela língua imperial. Precavenho-me, contudo, para que o presidente não se escude nas palavras, como o fez o deputado cassado Jabes Rabelo, fingindo não entender o libelo do talentoso relator Vital do Rego, que maldosamente rotulou de alambicado, como também, pejorativamente, Joaquim Nabuco disse de Euclides da Cunha: “Este moço escreve com cipó”.

Perguntei: E a antecipação do plebiscito e a revisão constitucional? Serei neutro, redarguiu. Confesso: o mel adoçou-me a boca.

Como aliado, me deu o mapa da mina.

No Supremo Tribunal Federal, as sondagens resultaram perturbadoras. Foi além: há informações de que o procurador-geral da República, Aristides Junqueira, arguirá a inconstitucionalidade. Quanto ao Supremo Tribunal Federal, informei, andei por lá. Não surpreendi dificuldades.

No que diz respeito ao honrado, talentoso e destemido fiscal do Estado, não acredito que temerariamente pretenda inventar mais uma cláusula pétrea à enumeração exaustiva esgotada no § 4º do art. 60 da Constituição. A Constituição pode ser revista, respeitadas as barreiras erguidas no § 4º de seu art. 60.

As disposições transitórias já cumpridas não podem, é claro, ser modificadas. As demais podem, como todo o corpo estável da Constituição. Seria estapafúrdio engessar pela intocabilidade logo a parte temporal do Estatuto Magno. A Zona Franca de Manaus, por exemplo, mantida por vinte anos pelo art. 40. Além do mais, a interdição é de abolir os núcleos imodificáveis pelo já mencionado art. 60. Abolir não se incompatibiliza com reduzir ou acrescentar.

Não. Não creio que pela hermenêutica pétrea esse “bicho bobão” vá assombrar a Egrégia Corte. Argumente-se, por analogia, que os tratados internacionais, depois de solenemente negociados, assinados, promulgados e depositados, podem ser unilateralmente denunciados, se calamitosos, por qualquer das partes pactuadas, com base jurídica na cláusula rebus sic standibus. Mudaram as circunstâncias, muda a lei.

Mas voltemos aos ziguezagues governamentais. Depois e antes de mim, houve a revoada dos tucanos ao Olimpo. Entre outros, os pajés: o ex-governador Tasso Jereissati, o senador José Richa, acompanhado do maior jurista do Congresso Nacional, Nélson Jobim. O senador Fernando Henrique, às vésperas da votação, deu mais uma tucanada telefônica ao presidente Collor. Mais mel. Traduza-se por: nada de novo no front.

O líder do governo no Senado, o sertanejo Nei Maranhão, na sessão do Congresso Nacional, no dia anterior à votação repetida da antecipação plebiscitária, sentou-se a meu lado para testemunhar, com sua fala rústica e franca: “Passei uma hora com o presidente. Tudo OK. O Marco Maciel não age no episódio em seu nome. Como presidencialista vou surrá-los. Quanto antes melhor”. Acrescentou com exagero bélico: “Garanti ao presidente que o senhor e os parlamentaristas sinceros defenderão seu mandato com armas na mão”.

Agora era pura ambrosia. Suavizei: Com armas, não. Lutei contra a ditadura, suas metralhadoras, cachorros e asseclas sem um canivete no bolso. Nunca matei um passarinho.

Por falar em passarinho, o ministro Passarinho, homem público competente, experiente e culto, derrapou. Cabe-lhe a terrível advertência de Chesterton: “O que há de terrível no erro é que tem seus heróis sinceros. Os inquisidores acreditavam ir para o céu mandando para as fogueiras suas vítimas”.

Reafirmei: porei em defesa da incolumidade do mandato de Collor minha palavra e os riscos que corri para restaurar a democracia. A nação ouviu nosso compromisso. Parlamentarismo não é pé de cabra para forçar as portas da legalidade. Ouviu, mas, à última hora, o presidente ingenuamente preferiu acreditar nas intrigas de seus adversários, embuçados ou declarados.

Quando garatujo estas linhas, estoura no mundo a notícia de que Mitterrand, presidente da França, do Palácio Eliseu, anunciou a redução do mandato presidencial de sete para quatro anos. Referendo-o para priorizar os poderes do Parlamento, o voto distrital misto alemão, a democracia direta dos cidadãos contra decisões do Executivo e do Legislativo, por intermédio do Conselho Constitucional. O radialista entrevistador congratulou-se com a nação: “Viva a Sexta República!”

Enquanto isso, no Brasil, o presidente contemporiza com o presidencialismo apodrecido e genocida. O mel virou vinagre. Que pena que Fernando não tenha Mitterrand como sobrenome! A derrota da antecipação do plebiscito sepultou os emendões, emendinhas e emendaços.

Na referida entrevista, Collor brindou-me: “Tenho pelo senhor respeito e carinho”. Correspondo agora: Tenho-lhe carinho, presidente. Livre-se dos meliantes. Meliantes não são Lula nem Meneghelli. Meliantes são a inflação e a incredibilidade. Livre-se deles, presidente. Só assim se salvará e salvará a República.