Moralidade

Capítulo do livro Rompendo o cerco, de Ulysses Guimarães, publicado pela Editora Paz e Terra, em 1978.

DECÁLOGO DO ESTADISTA

1) Coragem – O pusilânime nunca será estadista. Churchill afirmou que, das virtudes, a coragem é a primeira. Porque sem ela, todas as demais, a fé, a caridade, o patriotismo, desaparecem na hora do perigo. Há momentos em que o homem público tem que decidir, mesmo com risco de sua vida, liberdade, impopularidade ou exílio. Sem coragem não o fará. César não foi ao Rubicon para pescar, disse André Malraux. Se Pedro I fosse ao Ipiranga para beber água, suas estátuas não se ergueriam nas praças públicas do Brasil. O medo tem cheiro. Os cavalos e cachorros sentem-no, por isso derrubam ou mordem os medrosos. Mesmo longe, chega ao povo o cheiro corajoso de seus líderes. A liderança é um risco; quem não assume não merece esse nome.

2) Vocação – O estadista nasce, é encontro de um homem com seu destino. O estadista é um animal político. Fora da política é um frustrado, um ressentido, um infeliz, embora possa ter êxito em outras atividades. Ainda que pagando o preço ingrato de percalços, perigos e sofrimentos, confirma o acerto da definição de Alphonse Karr de que o segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer.

Político é como gato, está gemendo, mas está gozando.

3) Talento – Não há estadista burro. Há de ser talentoso, embora possa não ter cultura. Tiradentes e Juarez não tiveram cultura, mas foram estadistas, porque tiveram talento político. Como o samba, o talento não se aprende na academia. A pessoa é gratificada com o talento. Talento é o dom de acertar. A política é a arte do bem-estar e da salvação popular. Político é aquele que tem talento para consegui-lo.

4) Caráter – Na conceituação de Mílton Campos, o estadista tem “a posição de suas ideias e não as ideias de sua posição”. Não é um oportunista, o que se serve da política em lugar de servi-la, o que só pensa nas eleições futuras e não no futuro do país. Há democratas tão furiosos na oposição quão intolerantes no governo. Político de caráter é fiel às ideias, não à carreira. Pode perder o poder, o emprego, a liberdade, mas não renega as ideias, não perde a vergonha.

Galileu foi grande físico, porém como estadista não entraria na História. Quem por medo se retrata, não é estadista.

5) Sorte – Azarado não pode ser estadista. Como o general, embora tenha todas as qualidades, se perde a batalha, não ganha estátuas. Antes de lhe entregar o bastão de general, Napoleão investigava se seu soldado tinha sorte.

Por falta de sorte, por obra da fatalidade ou de morte prematura, carreiras políticas frustraram-se no Brasil, como as de Carlos Peixoto e Júlio de Castilhos.

Com a morte de Lênin, disputavam o comando bolchevista, o burocrata Stalin e o doutrinador Trotsky. Este foi no inverno caçar patos. Apanhou pneumonia, que o afastou temporariamente do proscênio político, ensejando a ascensão do rival. Há sujeitos tão caiporas que caem de costas e quebram o nariz, como zombou Chamfort. Não servem para político. Este é um eleito da fortuna.

6) Esperança – Estadista é o arquiteto da esperança. Não é coruja que só pia agouro, nem Cassandra de catástrofes. Sua legenda é a do herói francês: “Estou cercado. Eu ataco”. O estadista é o salvador. O povo desama a palavra não. O político iconoclasta desestabiliza sua carreira com o não sistemático.

Os Dez Mandamentos, estruturados à base do não, são tão temidos quão desrespeitados.

São Lucas é o evangelista mais querido, porque amoroso, não é apocalítico; é o profeta da esperança, o poeta silvestre de “Olhai os lírios do campo”.

No avião que nos levava de Brasília para São Paulo, véspera de quando partiu para a morte, Juscelino Kubitschek com saudade e entusiasmo discorria sobre política perorando transfigurado: “A política é a esperança”.

7) Paciência – A impaciência é uma das faces da estupidez. Paciência é a competência para fazer a hora, não se precipitar, seguindo a receita genial do Geraldo Vandré: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

O estadista tem a paciência de escutar, não é falastrão. Saber escutar é um dom político. “Deus deu ao homem dois ouvidos e uma boca, para que ouça o dobro do que fala”, eis o provérbio árabe favorito do rei Faiçal.

A santa paciência de escutar! A misericordiosa paciência de ouvir os redescobridores da roda, os inventores da quadratura do círculo, os chatos que “não o deixam ficar só e não lhe fazem companhia”, como lamentava o filósofo Benedetto Croce. Isso é que dá enfarte e úlcera no duodeno.

Como o peixe, o mau político apodrece pela cabeça, morre pela boca. Um jovem desejoso de se dedicar à política foi aconselhar-se com Sarmiento: “Coma-se la lengua”, recomendou o estadista argentino. Em política deve-se evitar ao máximo proferir palavras irreparáveis.

O estadista fala e diz, fala para agir, sua voz é comando, é toque de clarim seguido de avanço.

8) “Não servirás a dois senhores” – A política não divide o tempo, a ocupação e as preocupações com nenhuma outra atividade. É incompatível a simultaneidade do político e médico, político e advogado, político e industrial. O político do ramo é um obcecado, é o samba de uma nota só e leva a política até para a cama, para a mesa, para os domingos e feriados.

Quando agradeci a inauguração de meu retrato na galeria dos ex-presidentes da Câmara dos Deputados, confessei, citando autor espanhol: “Quanto à minha vida pública, pública pode ser, porque vida certamente não o é”.

Quem paga o mais injusto e cruel preço é a família: seu chefe está sempre fora de casa. Nas intermináveis viagens está ausente e ausente continua quando no lar, invadido pelos correligionários, pelos eleitores, pelos telefonemas, pelos repórteres.

Mora, minha mulher, costuma brincar: “Sou viúva de marido vivo”.

Agamenon Magalhães recomendava: “Político não compra nem vende”. Creio que não se referia apenas aos aspectos morais, mas principalmente à concorrência de trabalho e de dispêndio de energia que os negócios acarretam.

Quando Jesus convocava discípulos para o serviço da salvação da humanidade, impunha como condição que abandonassem pai, mãe, mulher e filhos. É o duro evangelho do “Não servirás a dois senhores.”

O estadista é um monstro do trabalho. Não há estadista preguiçoso. Como o craque de futebol, o estadista sua a camisa que veste. Thomas Edison irritava-se quando atribuíam à inspiração suas descobertas: “Devo-as à transpiração, custaram muito suor”, corrigia.

9) Autoridade – A autoridade é um atributo inato. É consubstancial ao político. A competência funcional é dada pelo cargo, a autoridade é pessoal, o homem público é gratificado por ela. É imantação misteriosa e sedutora, irresistível, temperada de respeito e admiração. Homem iluminado pela autoridade é visto por todos, ouvido por todos, onde está é polo de atração.

Quando o presidente de Portugal, Craveiro Lopes, visitou o Brasil, sua senhora me disse que em concorrida recepção no Palácio São Bento, em Lisboa, de repente sentiu, embora não visse, que na sala entrara alguém: “Era o presidente Juscelino Kubitschek que acabava de chegar”.

Líder da oposição ao governo de Ademar de Barros, em São Paulo, fui ao Rio falar com Marcondes Filho, presidente do Senado. A seu convite, fomos ao Catete. Quando saiu do gabinete do presidente Café Filho, estava furioso: “Já disse ao Café Filho”, explicou-me, “que a Presidência da República também é ritual. Ele não pode admitir a liberdade que se deu o senador Georgino Avelino, dependurando-se em seu ombro. Com o Getúlio Vargas ninguém teria essa ousadia”.

Pouca gente tratava Getúlio Vargas de “tu”, creio que só o Osvaldo Aranha, Flores da Cunha e João Neves da Fontoura.

Quando Marcondes Filho foi nomeado ministro do Trabalho de Getúlio, perguntaram a Agamenon Magalhães sua opinião: “Não acredito que o Marcondes dê bom ministro. Ele se emociona quando vai falar com o presidente”. Reverencial, não poderia ser o conselheiro franco e independente.

Nereu Ramos irradiava autoridade. Apenas assumia a Presidência da Câmara dos Deputados, o Plenário, de mar revolto, se aquietava em plácido lago.

É o poder de comandar com o olhar. A autoridade promove a pessoa em personalidade.

Se algum dia escrever minhas memórias já tenho o título: “Muitos episódios e poucos personagens”. Sim, testemunhei muitos acontecimentos políticos, cruzei com muitas pessoas, mas admirei poucas personalidades.

10) Ordem – São Tomás de Aquino disse que a ordem são as coisas no seu lugar. Para isso é preciso hierarquizar e selecionar. É a capacidade de escolher. Quem confunde as coisas desconhece prioridades, não tem senso de ordem. O estadista discrimina o essencial e o urgente para praticá-los. Exemplo prático de decisão que não é de estadista: a ponte Rio-Niterói. Isolada é importante, mas no contexto de outras, angustiosas e inadiáveis, desrespeitou a hierarquia e a ordem; por saber disso, é que Kennedy afirmou que “governar é dirigir pressões”. Todos pressionam, todos querem, cabendo ao governo o difícil e ingrato dever de atender poucos e descontentar muitos.

O estadista não atende para agradar, mas porque é justo. E tem a coragem de descontentar até amigos e parentes.

É claro que a política não é o ofício da bagatela, a pragmática da ninharia. Quem cuida de coisas pequenas acaba anão. É síntese da ordem o provérbio oriental “Como meu pai negociava com poeira foi destruído por um golpe de ar”.

Quantos governantes negociaram com poeira e só são lembrados pelos bustos na galeria dos palácios!

Quando falo que o estadista é a ordem, refiro-me à ordem como conceito filosófico e não exclusivamente à ordem como segurança. O estadista quer a ordem justa, não a ordem imposta, guarda pretoriana de privilégios.

As coisas não estão em seus lugares, portanto há desordem, quando há as discriminações da fome, da doença, do analfabetismo, de elitista distribuição de renda. Contemplando os milhões de despossuídos e injustiçados, Charles Maurras exclamou: “O que me espanta é a ordem, não a desordem”.

O estadista se antecipa à rua na solução dos problemas sociais. Está com a rua, mas não na rua.