4
Lentamente, como quem sai de um pesadelo, Mino foi recobrando a calma. Sim, podia ser que a janela já estivesse aberta na hora em que ele foi dormir, podia ser que ele não tivesse reparado. Mas o barulho? Bem, não tinha certeza do barulho, pensando bem. E talvez houvesse sido o galho de árvore que o pai vivia dizendo que um dia desses ia cortar e que, quando o vento era mais forte, de vez em quando roçava nas janelas. Mas não estava ventando. E o potinho? Lá estava ele, com o envelope esquisito embaixo. Teria sido a própria Neneca, só para dizer que sua mágica dera algum resultado? Não, não era possível, ela não conseguiria sair de casa àquela hora, embora o dia daí a pouco fosse amanhecer.
Bem, o fato é que o pote estava ali e não havia nada de ameaçador nele, era um potinho simples, de barro vitrificado. Tampouco podia haver perigo num simples envelope, apesar de seu aspecto meio fosforescente — e Mino, sem nem pensar direito no que estava fazendo, pulou da cama e pegou o envelope. Estava endereçado ao “Jovem Mino — Em mãos”. E dentro vinha a seguinte carta:
De: Secretaria Especial de Feitos Mágicos
Superintendência Duendária
Seção de Materialização de Desejos
Para: Mino (cópia p/ Neneca).
Prezado Jovem,
Temos a satisfação de comunicar-lhe que, de acordo com a alínea A, inciso II, parágrafo VIII, artigo 12.896, do Estatuto Mágico-Duendístico, acolhemos a mágica realizada pela jovem Neneca, por se enquadrar rigorosamente nos termos definidos pelas referidas disposições legais.
Cabe-nos, pois, comunicar que a nave submarina projetada por Vossa Juventude se encontra completamente pronta, de acordo com as suas especificações e à sua disposição.
Outrossim, solicitamos a sua compreensão para não termos feito a entrega em domicílio, dada a natureza especial do objeto em questão. Achamos mais apropriado entregá-lo já lançado ao mar, o que foi feito no cais velho, depois do manguezal, por trás da touceira grande, na boca do riacho, local relativamente protegido da curiosidade dos adultos. Um representante nosso estará no local, para oficializar a entrega e cumprir as formalidades de praxe.
Sem mais, no momento, fazemos chegar a Vossa Juventude a manifestação do nosso elevado apreço, bem como nossos votos de grandes êxitos.
Atenciosamente,
J. Blúggus Gandzwinne Brrrops
Chefe da Duenderia Executiva
Mino não entendeu tudo direito, embora tenha gostado muito da palavra “outrossim”, prometendo a si mesmo que ia aprender o que queria dizer, para usá-la na primeira oportunidade. Mas entendeu o suficiente para ficar com o coração batendo forte outra vez e num assanhamento que o fez zanzar de um lado para outro, sem conseguir arrumar as ideias na cabeça. Mas para que arrumar ideias? Estava claro, estava tudo escrito ali, ele conhecia bem o lugar, a mãe não gostava que ele fosse lá, dizia que o mangue tinha areia movediça. Areia movediça nada, era um lugar ótimo de brincar, ali no apicum, na beira do riacho, com aquela caranguejada toda, de todos os tamanhos, uma marezinha mansa e boa para nadar — só que era um pouco difícil chegar lá.
Difícil, mas não impossível, claro. Bastava disposição para passar por cima do cais velho, equilibrando-se sobre suas ruínas, e enfrentar um trechinho com lama até as canelas, só isso. Já ia embora de pijama mesmo, quando se lembrou de que ia sujar as calças na lama, voltou, vestiu uma bermuda velha e saiu de pés descalços e sem camisa, tomando cuidado para não acordar ninguém e ter de explicar aonde estava indo.
O dia já vinha clareando e o sol começou a pôr a cara para fora, bem no momento em que ele chegou ao cais. Fazia tempo que não ia ali e o cais estava ainda mais arruinado do que antes. Em alguns trechos, teve de andar de quatro, para não escorregar nas pedras lisas e irregulares. E o trecho da lama também era maior do que ele lembrava, obrigando-o a andar muito devagar e frustrando a enorme pressa que tinha. Sim, por trás da touceira grande, só pode ser aquela, só tem aquela touceira grande. Nada, não devia haver nada ali, devia ser tudo armação de Neneca — mas, quando ele contornou a touceira, o coração deu um pulo maior do que todos os anteriores juntos, a boca se escancarou, os olhos quiseram sair das órbitas e ele quase gritou, sem acreditar naquilo. Ainda parcialmente oculta pela touceira, mas claramente visível, a proa de uma nave de cores berrantes flutuava na boca do riacho, sua bandeira com o brasão do Centro ondulando na brisa e o orgulhoso nome “Gavião dos Mares” reluzindo abaixo das escotilhas. A nave! A nave!
Rodeou completamente a touceira e parou extasiado. Igualzinha ao desenho, sem tirar nem pôr, inclusive as duas anteninhas parabólicas, os lança-foguetes, o canhão de laser, os braços mecânicos telecomandados, tudo, tudo, tudo. As escotilhas não estavam bem redondinhas como ele queria, e lamentou não ter usado um compasso, mas isso não passava de um contratempo bobo, em relação àquela incrível vitória. Não seria uma miragem, poderia tocá-la? Caminhou em sua direção e já quase a alcançava, quando uma mão o pegou no ombro e ele quase morreu de susto.
— Uai! Uai! — gritou, quando se voltou e viu Neneca, toda respingada de lama e com um riso deste tamanho no rosto. — Você quer me matar de susto? Você quase me mata de susto! Uai!
— Você é um molenga mesmo. Viu você? Funcionou, eu não disse a você? Não disse?
— É, funcionou, funcionou! Eu nem posso acreditar!
— Cadê o representante?
— Que representante?
— Na carta, dizia que ia ter um representante aqui, para fazer a entrega. Mas não estou vendo representante nenhum, será que dá para entrar na nave sem ele fazer a entrega?
— Não, não dá — falou uma voz atrás deles, e Mino quase despenca de susto outra vez, só não despencando porque, ao voltar-se, acalmou-se ao ver um senhor de cabelos brancos, muito bem-vestido e simpático.
— É... É... É o sss-se-senhor, o repres... O respr... — tentou perguntar Neneca, que também tinha tomado um bruto susto.
— O representante — disse o senhor, sorrindo. — Sim, sou eu.
— O senhor veio por onde? Não tem nenhuma lama em sua roupa.
— Ah, eu dei um jeito. O que interessa é que estou aqui. Você é o jovem Mino, não é?
— Sou, sim, sim senhor.
— E você, a jovem Neneca. Parabéns. Você pela mágica e você pelos desenhos. Muito interessante.
— E a gente vai poder usar?
— Claro, não é essa a intenção?
— É, é. Então vamos entrar?
— Um momentinho só. Você vai ter que assinar aqui um documento, é só para constar, é uma espécie de recibo. Lá na repartição, eles são muito exigentes, querem a comprovação da entrega.
— Mas não tem de assinar com sangue, não, tem?
— Só se você exigir, mas normalmente nós usamos caneta mesmo. Veja aqui: “Declaro que recebi a nave Gavião dos Mares em perfeito estado, de acordo com as minhas especificações, tudo funcionando...”
— E tudo funciona mesmo? Qual é o combustível?
— Dióxido de deutério, naturalmente. Suprimento inesgotável, como você especificou.
— E o sistema de navegação robótico, autotrônico e molecular?
— Perfeitamente.
— E as pílulas alimentícias?
— Claro. Tudo exatamente como você mandou.
— Então eu assino logo. É... Precisa assinar o nome todo? Meu nome de verdade é...
— Não, absolutamente. Só vale o apelido.
Mino assinou e o homem, com um largo sorriso, passou-lhe as chaves da nave. Apertou as mãos de ambos, que ficaram ali parados, achando falta de educação correr para a nave e deixá-lo sozinho, até que Neneca não se conteve e perguntou como era que ele iria embora.
— Sim, é verdade, está na hora de ir, preciso descansar, tive uma noite muito cansativa. Vocês podem não acreditar, mas ontem, logo no dia de meu plantão, seis dessas mágicas tiveram que ser atendidas. É brincadeira? Seis, só aqui no meu distrito! Bem...
— O senhor é duende?
— Sou, sou.
— Mas eu pensava que os duendes eram como nos livros, pequenininhos, barbudinhos e de gorrinho.
— É, podia até ser. Mas chama muito a atenção, nós preferimos aparecer desta maneira mesmo.
— Quer dizer que, se o senhor quiser, o senhor fica baixinho, de gorrinho e barbinha?
— Fico, fico, mas no momento...
— O senhor fica um bocadinho, para a gente ver?
O homem suspirou. Ela fazia questão? Bem verdade que a mágica dava direito a isso, mas... Estava certo, se ela fazia tanta questão. E então bateu palmas e, no lugar onde antes havia um senhor sorridente e gentil, apareceu um homenzinho de uns trinta centímetros de altura, cachimbo na boca e gorro vermelho, que deu uma risadinha, acenou para eles, piscou um olho e sumiu, virando um bolo de fumaça azul que logo se dissipou, restando somente um cheirinho de alecrim no ar. Os dois ainda ficaram parados algum tempo, esfregando os olhos, para terem certeza do que haviam presenciado. Mas tinham certeza, naturalmente, a nave não estava ali? E, com o fôlego apressado, os olhos incendiados e as mãos tremendo um pouco, Mino e Neneca subiram a escadinha e abriram a porta da nave.