8. Lírio-baunilha
Lírio-baunilha
Significado: Embaixador do amor
Sowerbaea juncea | Austrália Oriental
Planta perene com raízes comestíveis, encontrada nas florestas de eucaliptos, bosques, charnecas e prados subalpinos. As folhas assemelham-se a relva e têm um forte odor a baunilha. As flores têm a textura do papel e vão do rosa-lilás ao branco, com um aroma doce a baunilha. Voltam a brotar depois de queimadas.
June abriu a porta de rede. O silêncio abateu-se sobre o grupo de mulheres. Ela voltou-se e fez sinal a Alice para que a seguisse.
– Meninas, esta é a Alice. Alice, estas são as Flores.
Os cumprimentos murmurados das mulheres vibraram sobre a pele da menina. Beliscou os punhos, tentando distrair-se da sensação de desconforto que sentia na barriga.
– A Alice é… – June fez uma pausa. – Minha neta. – Ouviram-se sons de regozijo e entusiasmo. June aguardou um momento. – Vem juntar-se a nós, aqui em Thornfield – declarou.
Alice estava curiosa quanto à mulher de cabelo azul, se estaria presente, mas não suficientemente curiosa para olhar diretamente fosse para quem fosse. Ninguém falou. Harry sentou-se em cima dos pés da menina, inclinando o corpo contra ela. Alice fez-lhe uma festa, visivelmente grata.
– Ok. – June quebrou o silêncio. – Vamos lá comer. Ah, não, esperem. – Perscrutou o grupo das mulheres. – Twig, onde está a Candy?
– Está mesmo a acabar. Disse para irmos comendo.
Alice seguiu a voz; vinha de uma mulher esguia, com uma auréola de cabelo escuro e um rosto claro e aberto. Sorriu para Alice de uma forma que lhe aqueceu a pele como se estivesse ao sol.
– Obrigada, Twig. – June assentiu. – Alice, esta é a Twig, é ela quem cuida das Flores e dirige Thornfield.
Twig sorriu e acenou. Alice esforçou-se por lhe devolver o sorriso.
June continuou com as apresentações, dando a volta à mesa. Sophie era a dos óculos excêntricos. Amy, a das penas na cabeça. Robin, a do batom vermelho. E Myf, a da tatuagem dos azulões sobre a pele pálida do pescoço; quando sorriu e acenou para Alice, as asas mexeram-se. Alice foi ouvindo os nomes das outras Flores. Algumas – Vlinder, Tanmayi e Olga – ainda não tinha visto. As restantes – Francene, Rosella, Lauren, Carolina e Boo – pareceram-lhe familiares de histórias que ouvira. Boo era a pessoa mais velha que Alice jamais vira; a pele parecia pergaminho, gretada e engelhada como se fosse uma página viva arrancada de um livro antigo.
Assim que June terminou as apresentações, indicou a Alice o seu lugar à mesa. À volta dele estava uma bonita grinalda de flores amarelas, cada uma delas também em forma de coroa.
– As campainhas amarelas dão as boas-vindas a um estranho – disse June, tensa, enquanto se sentava ao lado de Alice. As mãos dela pareciam nunca parar de tremer. Alice enfiou os pés debaixo da cadeira. – Bom proveito, Flores – disse June, com um aceno que fez harmonias com as pulseiras.
Às suas palavras, o terraço ganhou vida. Taças e tigelas passadas de mão em mão, cubos de gelo a tilintar nos copos. O bater de talheres nos pratos, pinças a beliscarem fatias de beringela – tudo isto com os ocasionais latidos entusiasmados do cãozarrão. Por entre as bocas cheias, o alegre tagarelar do grupo de mulheres. Veio à mente de Alice a imagem de um bando de gaivotas na areia molhada a lançarem-se sobre um festim de crustáceos.
Manteve sempre o olhar baixo, vagamente ciente de que June falava para ela ao mesmo tempo que a servia de um pouco de tudo. Alice estava demasiado preocupada com a grinalda de flores amarelas para pensar em comer. Boas-vindas a um estranho. June era sua avó e guardiã, mas ela era uma estranha. Não obstante o calor, a menina sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Certificou-se de que ninguém estava a olhar e arrancou umas quantas florinhas da grinalda, que enfiou no bolso das calças.
Por fim, dedicou-se a estudar as mulheres sentadas em torno das mesas. Algumas tinham olhares tristes que humedeciam quando falavam. Outras, poucas, tinham o cabelo grisalho, como June. Sempre que cruzavam o olhar com o de Alice, sorriam e acenavam-lhe – como se a presença dela as deixasse felizes, como se Alice fosse algo que tivessem perdido e reencontrado. Observá-las, o modo como interagiam, tão em sintonia umas com as outras, era como ver uma coreografia encenada milhares de vezes. Alice lembrou-se de uma história que ela e a mãe tinham lido juntas sobre doze irmãs dançarinas que todas as noites desapareciam do seu castelo. Sentada no terraço, no meio daquelas mulheres que usavam a tristeza como se fosse um bonito vestido de baile, Alice sentiu que tinha adormecido e acordado dentro de uma das histórias da mãe.
Depois da mesa levantada e limpa, as Flores regressaram ao trabalho. June e Alice ficaram sozinhas no terraço das traseiras. A tarde melosa cheirava a terra quente e dura, e a protetor solar de coco. À distância, ouvia-se o trinado das pegas e o cacarejar das kookaburras. Harry estava esparramado no chão, ao lado delas, empanturrado com os restos do almoço.
– Anda daí, Alice – disse June, esticando os braços preguiçosamente. – Vou mostrar-te a propriedade.
Alice seguiu-a pelos degraus em direção às fileiras de flores. Ao nível dos olhos eram mais altas do que pareciam vistas lá de cima. A sensação era muito semelhante à de estar no meio dos canaviais; de tal forma que Alice parou, momentaneamente confusa.
– Estes são os nossos jardins de flores – June apontou para a frente. – Na sua maioria são nativas. A economia de Thornfield sempre se baseou nisto, no comércio de flores nativas. – O discurso dela soou tenso e cáustico, como se falasse com uma fatia de limão na boca.
June caminhou até ao outro extremo dos campos, apontando para as estufas e os politúneis das traseiras, e para uma grande cabana de madeira no lado oposto, onde as Flores trabalhavam mais à tardinha para evitarem o calor.
– Para lá da quinta há uma mata que se estende até ao rio. O rio é… – A voz de June falhou.
Alice olhou para cima.
– O rio é outra história. Um dia destes conto-te. – Virou-se para Alice, que ficara subitamente distraída com a ideia de haver água por perto. – Tudo isto faz parte de Thornfield. Pertence à minha família há gerações e gerações. – Fez uma pausa. – À nossa família – corrigiu.
Numa tarde quente de verão, Alice sentou-se aos pés da mãe, entretida com um livro de contos de fadas, enquanto Agnes fazia o jantar. Os contos tinham já ensinado à criança que, relativamente à família, as coisas nem sempre eram o que aparentavam ser. Reis e rainhas perdiam os filhos como se fossem meias sem par, e só os encontravam muitos anos depois, já adultos, se os encontrassem. As mães podiam morrer, os pais desaparecer, e sete irmãos podiam transformar-se em sete anões. Para Alice, a família representava a história mais curiosa de todas. Por cima da sua cabeça, uma nuvem da farinha que a mãe peneirava caiu sobre as páginas do livro aberto. Alice olhou para cima e cruzou o olhar com o da mãe. Mamã, onde está o resto da nossa família?
Agnes ajoelhou-se ao lado dela, encostando-lhe imediatamente os dedos aos lábios. Os seus olhos dardejaram até à sala de estar, onde Clem ressonava baixinho. Somos só nós os três, Coelhinha, murmurou. E sempre foi assim. Ok?
Alice apressou-se a assentir. Conhecia demasiado bem aquela expressão no rosto da mãe, e sabia que não devia voltar a fazer a pergunta. Mas a partir desse dia, sempre que se via sozinha na praia com os pelicanos e as gaivotas, imaginava como seria se uma daquelas aves se transformasse de repente numa irmã há muito perdida. Ou numa tia. Ou numa avó.
– Por que não vamos até ao ateliê? – Sugeriu June. – Para veres as Flores a trabalhar.
Enquanto caminhavam por entre as fileiras de flores, Alice apercebeu-se de que havia muitas que ela não reconhecia. Até que, mesmo à sua frente, deparou-se com um arbusto de patas-de-canguru escarlates. E, um pouco mais à frente, campainhas brancas. Alice correu por entre as flores, procurando. Ali estavam elas, à sua direita; as cabeças fofas das florinhas do mirto-de-limão. Alice quase conseguiu sentir o cheiro a algas marinhas e ao açúcar verde dos canaviais. Sentiu um formigueiro nas pontas dos dedos só de recordar a superfície brilhante da sua secretária, sob o toque dela. O cheiro a cera e a papel sempre que abria o tampo, revelando as suas caixas de lápis de cera, lápis de cor e cadernos de exercícios. A mãe a passar diante da janela, afagando as suas queridas flores, falando naquela linguagem secreta que as unia: Dolorosa lembrança, Amor desamparado, Prazeres da memória.
Perguntas emaranhadas de recordações. A ansiedade de acordar todos os dias sem saber o que encontraria dentro de casa: a mãe alegre e bem-disposta, cheia de histórias para contar, ou o farrapo humano que não conseguia sequer levantar-se da cama. O medo, opressivo como a humidade, nos momentos que antecediam o regresso do pai a casa, o comportamento dele, tão imprevisível como uma tempestade ocidental. E depois, a expressão sorridente de Toby. Os olhos grandes, o pelo fofo, as orelhas espetadas e surdas. De repente, assomou-a uma pergunta que ainda não lhe ocorrera.
Teria Toby morrido?
Ninguém falara sobre Toby. Nem a Dra. Harris, nem June. O que lhe teria acontecido? Onde estaria o seu cão, exatamente? O que é que acontecia aos animais quando morriam? Restar-lhe-ia alguma coisa de tudo o que ela mais amava? Teria sido tudo culpa dela? Por ter acendido aquele candeeiro a petróleo na cabana do pai…
– Alice? – June chamou-a, protegendo os olhos do sol vespertino.
Um enxame de mosquitos esvoaçou em torno do rosto da menina. Ela enxotou-os com a mão, olhando para June, a avó que nenhum dos pais alguma vez mencionara. June, a sua guardiã, que a levara para longe do mar e para aquele seu estranho mundo de flores. Ela avançou para Alice e agachou-se, ficando ao nível dos olhos dela. Um bando de catatuas-de-peito-rosado guinchou por cima delas.
– Então?… – A voz de June soou terna, carregada de genuína preocupação.
Alice inspirou grandes golfadas de ar, tentando respirar normalmente. Doía-lhe o corpo todo.
June abriu os braços para ela. Sem a menor hesitação, Alice avançou para o calor do seu abraço. June pegou-a ao colo. Tinha uns braços fortes. A menina enterrou o rosto no pescoço da avó. A pele dela cheirava a sal, tabaco e hortelã-pimenta. Lágrimas grossas escorreram pelo rosto de Alice, vindas de um lugar dentro dela tão profundo e assustador como os sítios mais escuros do mar.
Enquanto June a levava ao colo de volta ao alpendre, subindo sem esforço os degraus de madeira, Alice olhou por cima do seu ombro. Desde os campos até à casa, viu um rasto de florinhas colhidas, caídas do bolso dela.
A cozinha de Thornfield encheu-se do canto das cigarras e da luz do crepúsculo. Candy Baby parou de lavar a loiça e debruçou-se sobre a janela para inspirar o ar do outono que trazia o aroma aguado a musgo e juncos, vindo do rio vizinho. Sentiu um forte arrepio na pele. June contara-lhe que provavelmente teria sido por volta daquela altura do ano que Candy nascera, mas onde e de quem, ninguém sabia. A data em que celebrava o aniversário correspondia à noite em que June e Twig a encontraram abandonada, enrolada num vestido de baile azul, flutuando dentro de um berço, numa charneca alagada de lírios-baunilha entre o rio e os campos de flores. Estavam ambas em casa e tinham acabado de deitar o pequeno Clem, na altura com dois anos, quando ouviram os berros dela. Quando o feixe da tocha de June a encontrou, e Twig se agachou para lhe pegar, Clem sorriu e bateu palminhas. Nessa noite o ar cheirava tanto a baunilha que June decidiu chamar-lhe Candy Baby. Quando, mais tarde, June e Twig se tornaram oficialmente suas tutoras legais, já se tinham habituado ao nome, por isso decidiram mantê-lo.
Mergulhou de novo as mãos no lava-loiça, olhando o céu riscado de índigo. Dentro das paredes de madeira e argamassa de Thornfield, os canos resmungavam sempre que se abria a água quente. Candy esvaziou o lava-loiça e secou as mãos num pano. Dirigiu-se à porta da cozinha e espreitou para o corredor. June estava sentada no chão, encostada à porta da casa de banho, com a cabeça para trás, os olhos fechados, os braços pousados nos joelhos, os dedos entrelaçados. Sob a luz pálida e ténue, as bochechas molhadas brilhavam como prata. Harry estava sentado ao seu lado, com uma pata por cima do pé dela, como sempre fazia quando a via triste ou preocupada.
Candy recuou para dentro da cozinha. Poliu as bancadas até ficarem resplandecentes. Enquanto as outras cuidavam das flores lá fora, a cozinha era o seu jardim – de onde floresciam festins e banquetes. Aos vinte e seis anos, não conseguia imaginar-se a fazer outra coisa senão cozinhar. Mas nada de muito requintado, claro, nada de pratos elaborados, em doses minúsculas. Candy cozinhava para alimentar a alma. O sabor e a quantidade eram de igual importância. Tornou-se a cozinheira residente de Thornfield assim que acabou o liceu e conseguiu convencer June de que era seguro lidar com facas. Está-te no sangue, dissera-lhe Twig, depois de uma dentada no primeiro bolo de mandioca que ela fizera, acabadinho de sair do forno. É o teu dom, observara June quando Candy lhe serviu os primeiros rolinhos chineses com chutney de manga caseiro, feito de fruta, ervas e vegetais cultivados na propriedade. E era verdade; quando ela cozinhava, era quase como se um conhecimento profundo e oculto lhe tomasse as mãos, os instintos, as papilas gustativas. Candy prosperava na cozinha, estimulada pela ideia de que talvez a mãe tivesse sido uma chef famosa, ou o pai um pasteleiro de renome. Cozinhar parecia suavizar a ferida interior que lhe ardia sempre que pensava que isso eram coisas que ela jamais viria a saber.
A casa estremeceu quando os canos se calaram. Candy deixou de polir. Inclinou-se sobre a bancada, à escuta. Ouviu barulho no corredor e, segundos depois, o som da porta da casa de banho a abrir.
Era sempre difícil quando chegava alguém novo: outra mulher a precisar de um lugar seguro para dormir desenterrava pó e dolorosas memórias em todas quantas habitavam Thornfield. Mas aquela era diferente. Aquela era a filha de Clem. Que não falava. E pior, era da família de June – quando a história que todas conheciam de cor e salteado era que June não tinha família. As flores são a minha família, ouviam-na dizer frequentemente, com os braços abertos na direção dos campos e das mulheres sentadas à sua mesa.
Mas agora, o mito que rodeava a família de June fora desfeito. Uma criança tinha regressado.
Para enorme alívio de Alice, June deixara-a sozinha a tomar banho. Deixou que a água lhe escorresse pela cara. Desejou profundezas para onde pudesse imergir; água para mergulhar, suficientemente salgada para lhe fazer arder os lábios e fresca o quanto baste para lhe acalmar os olhos. Ali não havia mar para onde ela pudesse correr. Lembrou-se do rio e ansiou encontrá-lo. Seria na primeira oportunidade que tivesse, decidiu. Só a perspetiva já a animava, por pouco que fosse.
Alice esperou até ver a pele engelhada e só então fechou a torneira. O toalhão era grande e felpudo. Vestiu o pijama que June lhe dera e escovou os dentes. A escova era cor-de-rosa com princesas dos desenhos animados. A pasta tinha brilhantes. Eram ambas tão bonitas que, por um momento, Alice não teve a certeza se seriam reais ou de brincar. Lembrou-se da sua escova de dentes branca e com as cerdas gastas, guardada num frasco vazio de Vegemite, ao lado da da mãe, na prateleira da casa de banho. Aquele recanto fundo e sombrio que havia dentro dela abriu-se de novo, e as lágrimas vieram. Quanto mais chorava, mais acreditava que tinha de facto parte do mar dentro de si.
Depois de pronta, saiu da casa de banho e seguiu June escada acima. Harry passou-lhes à frente, galopando alegremente.
– Eu sei que aparentemente o Harry só faz palhaçadas, mas não te deixes enganar – disse-lhe June com um piscar de olho. – Ele tem um poder mágico muito especial. Consegue farejar a tristeza.
Alice parou à porta, vendo o cão trepar para os pés da cama.
– Aqui, toda a gente trabalha, e o trabalho do Harry é esse; cuidar de quem estiver triste e ajudar essa pessoa a sentir-se de novo segura. – A voz de June adoçou. – E ele também tem uma linguagem secreta, sabes. Por isso, se por alguma razão ele não perceber que precisas de ajuda, podes dizer-lhe que sim, que precisas. Queres aprender essa linguagem?
Alice mordiscou a pele junto à unha do polegar. Assentiu.
– Ótimo. Vai ser esse o teu primeiro trabalho, então. Aprender a falar na linguagem do Harry. Vou pedir à Twig ou à Candy que te ensinem.
A menina endireitou-se ligeirissimamente. Tinha uma tarefa!
June percorreu o quarto a fechar as cortinas que dançavam como saias esvoaçantes.
– Queres que te aconchegue os cobertores? – perguntou June, apontando para a cama de Alice. – Oh! – exclamou. Alice seguiu o olhar dela.
Na almofada da menina estava um pequeno tabuleiro retangular com um resplandecente cupcake, decorado com uma flor de açúcar azul-claro. Presa ao bolinho, uma estrela de papel dizia COME-ME. Ao lado, um envelope amarelado com o nome dela.
Um sorriso esgueirou-se por entre as dores interiores de Alice e subiu-lhe até ao rosto, aquecendo-lhe as bochechas. Correu para a cama.
– Boa noite, Alice – disse June, já da porta do quarto.
A menina dirigiu-lhe um breve aceno. Assim que a avó desapareceu, abriu ansiosamente o envelope. Lá dentro, numa folha a condizer, estava uma carta escrita à mão:
Querida Alice,
Aqui estão três coisas que eu tomo como certas.
1. Quando eu nasci, alguém – gosto de pensar que foi a minha mãe – envolveu-me num vestido de baile azul.
2. Existe neste mundo uma cor com o nome da filha de um rei, que usava sempre vestidos exatamente desse mesmo tom de azul.
As histórias que ouvi sobre ela fazem-me, por vezes, desejar ter sido sua amiga; fumava em público (numa época em que as mulheres não fumavam), uma vez saltou completamente vestida para dentro de uma piscina com o comandante de um navio, andava frequentemente com uma jiboia à volta do pescoço, e outra vez disparou contra postes telegráficos de um barco em andamento.
3. A minha história preferida é assim: era uma vez, numa ilha não muito longe daqui, uma rainha que subiu a uma árvore para esperar que o marido regressasse de uma batalha. Amarrou-se a um ramo e jurou ali ficar até ele voltar. Esperou tanto tempo que acabou por se transformar numa orquídea, que era a réplica exata do padrão do vestido azul que trazia.
Eis outra coisa que eu tenho a certeza de que é verdade:
No dia em que a June nos contou que ia ao hospital buscar-te, eu estava no ateliê a prensar orquídeas azuis. Sempre as adorei por terem os centros da minha cor preferida: o mesmo tom de azul do vestido onde um dia me embrulharam. E também a cor favorita da filha rebelde de um rei. Uma cor chamada Alice Blue.
Bons sonhos, ervilhinha. Vemo-nos ao pequeno-almoço.
Com amor,
Candy Baby
A mente de Alice encheu-se de imagens de bebés recém-nascidos, mulheres rebeldes e vestidos azuis que se transformavam em flores. Subitamente esfomeada, pegou no cupcake, retirou o rebordo do papel de pasteleiro e cravou os dentes na deliciosa massa com sabor a baunilha.
Adormeceu com migalhas na cara, abraçando a carta de Candy junto ao coração.
Candy encheu de água uma velha lata de tomate para regar o recanto das ervas aromáticas atrás do lava-loiça. A fragrância a coentros frescos e manjericão envolveu a cozinha. Depois, levou quatro canecas para junto da chaleira. A tijela da sopa que June gostava de chamar de chávena de café, a caneca de campismo de esmalte lascada de onde Twig insistia em beber o seu chá, e a sua própria chávena de porcelana, com o respetivo pires, que Robin tinha pintado para ela com lírios-baunilha. A quarta caneca era lisa e mais pequena. Só de pensar no rosto de Alice, marcado pela dor, Candy ergueu o olhar para o teto, perguntando-se se a menina já teria encontrado o seu cupcake.
Estava a pendurar os panos da loiça quando June desceu as escadas e entrou na cozinha. O foco de luz que entrava pelo exaustor rodeou-lhe o rosto de sombras.
– Obrigada, Candy. Pelo cupcake. Foi a primeira vez que a vi sorrir. – June esfregou rudemente o maxilar. – É espantoso – disse ela, numa voz embargada pelas lágrimas –, como ela consegue ser tão parecida com os dois.
Candy assentiu. Fora precisamente por essa razão que ela própria ainda não se tinha sentido preparada para conhecer Alice.
– Amanhã podes voltar a tentar. Não é isso que sempre nos dizes?
– Não é assim tão fácil, pois não? – murmurou June.
Candy apertou-lhe o braço antes de sair da cozinha. Enquanto se dirigia ao quarto, ouviu atrás de si o rangido do armarinho das bebidas alcoólicas a abrir-se. Não se lembrava de ver June beber tanto desde que a polícia lhe viera trazer as notícias de Clem e Agnes. As pessoas arranjavam subterfúgios onde quer que fosse para encontrarem alívio; June encontrava o dela no fundo de uma garrafa de whisky. A sua própria mãe, Candy calculava, encontrava-o numa charneca de lírios-baunilha. E Candy aprendera da pior maneira que a sua escapatória era a cozinha de Thornfield.
Fechou a porta do quarto e acendeu o candeeiro da mesa de cabeceira, iluminando o compartimento com uma luz difusa. Praticamente tudo o que amava estava ali. O longo assento de janela, debaixo de dois grandes vidros. Os esboços botânicos de Twig, emoldurados na parede, todos com os lírios-baunilha como tema. Estavam todos datados, o primeiro era da noite em que Twig e June tinham levado Candy da charneca para casa. A um canto, a cadeira e a secretária, repleta de livros de cozinha. A cama, coberta pela colcha em croché, toda em folhas de eucalipto, uma prenda de Ness, uma antiga Flor, por altura do seu 18º aniversário. Alguns anos antes tinha chegado a Thornfield um postal, vindo de uma terreola algures no norte, onde Ness se dedicava a uma pequena plantação de bananas e anunciava ter comprado uma casa. Algumas mulheres, como Ness, chegavam a Thornfield, demoravam-se o tempo necessário para reunir forças, e depois partiam. Outras, como Twig e Candy, sabiam ter encontrado ali a sua casa permanente. Sentou-se na cama e abriu a gaveta da mesinha de cabeceira, procurando o colar que tirava sempre que cozinhava. Enfiou-o pela cabeça e aproximou o pendente da luz. Um leque de petalazinhas de lírio-baunilha, preservadas em resina, com o rebordo de prata esterlina, numa bonita corrente entrançada em espiga. June fizera-a especialmente para lhe oferecer no seu 16º aniversário, pouco antes de Candy ter aberto a janela do quarto, numa noite de lua nova, esquivando-se pelas sombras, na esperança de conseguir fugir da perda que lhe despedaçara a alma.
Para dar o nome ao filho, June inspirara-se na Clematis, uma flor trepadeira em forma de estrela, e era precisamente isso que Clem representava para Candy à medida que ela ia crescendo – um rapaz cativante como uma estrela, um rapaz por quem se apaixonara perdidamente. Passava a vida atrás dele, e ele fingia-se irritado, ainda que olhasse constantemente por cima do ombro para ver se ela o seguia.
Candy dirigiu-se à janela e deixou que os olhos repousassem no trilho do extremo dos campos – que seguia em ziguezague por entre os arbustos até ao rio. Teria mais ou menos a idade de Alice quando June a deixara ir lá sozinha pela primeira vez. E Candy convencera-se mesmo de que estava sozinha enquanto corria pelo caminho sinuoso pelo meio das árvores. Mas, claro está, Clem jamais a teria deixado viver sozinha uma nova aventura. Assim que ela chegou ao rio, ele surgiu pendurado numa corda amarrada ao enorme eucalipto suspenso, aterrando dentro de água com um estrondo medonho, fazendo-a gritar de medo. Quando recuperou do susto, Clem levou-a para a casinha secreta que construíra a partir de troncos, ramos, paus e folhas, numa pequena clareira junto ao secular eucalipto. Lá dentro tinha um saco-cama, uma lanterna, o seu canivete, uma coleção de pedras do rio e o seu livro favorito. Sentaram-se juntos, os joelhos tocando-se enquanto ele lia para ela, passando o indicador pela ilustração de Wendy a coser a sombra no Peter Pan.
Nós também estamos cosidos um ao outro, Candy, dissera-lhe. E não vamos crescer nunca. Abrira o canivete e olhara-a nos olhos. Jura.
Ela oferecera-lhe a polpa suave da palma da mão. Juro, dissera, arquejando ao sentir o golpe frio e perfurante.
Jura de sangue, dissera Clem num tom solene, golpeando a própria mão e juntando-a à dela, de dedos entrelaçados.
Candy passou a ponta de um dedo pela pequena e quase impercetível cicatriz na palma da mão.
Enquanto ela crescia, Clem foi de facto a mais brilhante estrela no céu de Candy. Mas quando ela fez catorze anos, tinha ele dezasseis, tudo mudou. No dia em que o Exército de Salvação levou Agnes Ivie para Thornfield. Clem empalideceu, tornou-se temperamental e os seus olhos deixaram de seguir Candy; estava totalmente fixado em Agnes. Ela era da mesma idade de Candy, e igualmente órfã. Chegara com raminhos de acácia entrelaçados no cabelo, uma cópia de Alice no País das Maravilhas, e olhos enormes de um azul profundo – que nos seguiam aonde quer que fôssemos, como num quadro. June pô-la logo a trabalhar, e Agnes dedicou-se às suas tarefas como se fossem uma batalha a vencer. Lá fora, nos campos de flores, trabalhava de sol a sol até fazer bolhas nas mãos, e depois até rebentarem e sangrarem. Trabalhava até os braços delgados cederem sob o peso dos baldes carregados com flores acabadas de cortar, transportados dos campos até ao ateliê. Estudou afincadamente o Dicionário de Thornfield. À noite sentava-se no quarto do sino e cantava à lua o que tinha aprendido sobre a linguagem das flores. Candy começou a seguir Agnes por onde quer que ela andasse, observando-a às escondidas enquanto ela trabalhava, estudando a rapariga que Clem mais amava. Seguia-a até ao rio e escondia-se nos arbustos enquanto Agnes pegava numa caneta e escrevia histórias na pele, perna acima, braço abaixo, antes de se despir e nadar nas águas verdes do rio até elas desaparecerem. Quando ouviu um ramo estalar, Candy viu que Clem também observava Agnes, como se estivesse a ver uma estrela caída do céu. Quando Candy reparou que ele tinha gravado os seus nomes, Clem e Agnes, no tronco do eucalipto gigante, percebeu que o tinha perdido. Não lhe restava senão assistir, impotente, enquanto todos em Thornfield caíam no feitiço de Agnes – sobretudo o seu Clem. Agnes parecia ter acordado algo dentro dele, qualquer coisa cruel. Nunca mais voltou a ser o mesmo com Candy.
Quando Clem e Agnes deixaram Thornfield, o despertar da fúria violenta nele e a enormidade da sua ausência, dilaceraram Candy. Andou com lascas nas mãos durante um mês, tal a violência com que raspou o nome de Agnes do velho eucalipto. Mas nada lhe atenuava a dor. Nem mesmo ter ela própria deixado Thornfield.
As memórias da noite em que fugiu eram ainda viscerais: o ardor nas pernas enquanto corria sob a luz do luar pelo meio dos arbustos até à estrada, seduzida pelas palavras de um amante que jurara estar ali à espera dela. Candy já se tinha escapulido até à vila algumas vezes para se encontrar com ele, desde aquela tarde em que ele encostara o carro à berma da estrada, quando ela ia a passar, vinda da escola. Oferecera-lhe vodca e cigarros. Contara-lhe histórias do lugar de onde vinha, um autêntico paraíso junto à costa. Ia na viagem de regresso para lá quando decidira parar na vila. Perguntara-lhe se queria ir com ele. Prometera ensiná-la a nadar em pleno oceano, e arranjar-lhe uma casa com o seu próprio jardim. A sensação de liberdade que Candy experienciou na noite em que foi ter com ele à via rápida foi inebriante. Entrou no carro, ele acelerou e seguiram pela noite prateada, com destino a um sítio onde a dor dilacerante da ausência de Clem não chegaria. Mas, poucos meses depois, Candy percorreu o trilho de entrada de Thornfield com nada mais do que a roupa que tinha no corpo e a florinha do lírio-baunilha pendurada ao pescoço. June e Twig estavam sentadas no alpendre. Levaram-na para dentro, puseram um terceiro prato na mesa e não disseram uma palavra. O seu quarto estava exatamente como ela o deixara; Candy ficou literalmente esmagada por dentro ao vê-lo na mesma. June e Twig sabiam que ela se tinha comportado como uma idiota e que voltaria; viram o erro dela ainda antes de ela o cometer, pensando ter encontrado uma forma de escapar à dor.
Candy olhou para o teto, pensando de novo em Alice, a filha silenciosa de Agnes e Clem, apanhada no seu próprio mundo de recordações, peneirando-as, tentando entender o que acontecera à sua vida. Uns dias antes, Candy tinha ouvido inadvertidamente June contar a Twig a história da menina: Clem espancara-a até à inconsciência e o corpo prenhe de Agnes revelara hematomas que denunciavam uma história semelhante. Que tipo de cobarde seria capaz de uma coisa daquelas? Em que tipo de besta ele se transformara? E o que seria feito do filho bebé de Clem, o irmãozinho de Alice?
Afastou as perguntas da sua mente. Passou o polegar pelo pendente, centrando-se no significado do lírio-baunilha: embaixador do amor. Desde que a bisavó de June, Ruth Stone, criara um horto a partir de um terreno de terra seca, no século XIX, o lema de Thornfield nunca se alterara: Onde brotam flores silvestres. Era a única coisa que Candy e todas as mulheres que vinham ter com June sabiam ser uma verdade absoluta.
Enquanto se preparava para dormir, Candy questionou-se se Alice já teria percebido, ainda que levemente, que independentemente do lugar de onde vinha e do que quer que lhe tivesse acontecido, aquela era a sua casa.