9. Beladona violeta

Beladona violeta

20170913_F008

Significado: Fascinação, feitiçaria

Solanum brownii | Nova Gales do Sul

Um elemento da família da beladona, frequentemente venenosa. No folclore, é geralmente associada à morte e a fantasmas. O nome em latim vem de solamen, que significa «acalmar» ou «confortar», referindo-se às propriedades narcóticas de certas espécies. As larvas de algumas borboletas e traças alimentam-se delas.

De um salto, Alice ergueu-se na cama, com convulsões. Tinha a pele alagada em suores frios. No seu sonho, cordas de fogo tentavam sufocá-la. À medida que sentiu o calor na cara abrandar, deitou-se para trás sobre a almofada húmida e apertou os olhos para protegê-los da luz da manhã. A carta de Candy estava ao seu lado, amarrotada. Alice pegou nela e deslizou o indicador pela bonita caligrafia em espiral. O sonho de fogo daquela vez fora diferente. Era azul. A cor do nome dela, do cabelo de Candy, e do vestido de uma mulher cuja dor transformara numa orquídea.

Tentou estancar as lágrimas, mas elas teimavam em sair, o que não passou despercebido a Harry. O cão entrou no quarto com a coleira a tilintar e encostou o focinho molhado ao joelho da menina. A enormidade do tamanho dele fazia-a sentir-se segura.

A menina fechou os olhos e pressionou-os com a ponta dos dedos, com força, até doer. Quando os abriu, tinha a visão turva e cheia de estrelas negras. Enquanto recuperava a nitidez, notou que alguém tinha estado no quarto e deixado na secretária um conjunto de roupas lavadas e um tabuleiro. Harry lambeu-lhe a cara. Alice sorriu-lhe e levantou-se.

Nas costas da cadeira estavam uns calções e uma t-shirt. Na secretária, alguns pares de meias e cuecas cuidadosamente dobrados. E as botas arrumadinhas no chão. Também teve direito a um chapéu de abas largas e a um pequeno avental – igual aos que as Flores usavam – com o seu nome bordado no bolso a azul-celeste. Passou o dedo pelas letras bordadas. Eram da cor que imaginara o vestido da rainha, na história favorita de Candy. A ideia de alguém esperar tanto tempo pelo regresso de um amor ao ponto de se transformar noutra coisa, fez-lhe doer a cabeça.

Pegou numa fatia de pêssego do tabuleiro e meteu-a à boca. O sumo doce fez-lhe doer as bochechas. Depois de comer outra fatia, limpou a mão às calças do pijama e pegou na t-shirt. Era daquele tipo de algodão que parecia já ter sido usado milhares de vezes. A mãe tinha uma muito parecida, e Alice adorava vesti-la para dormir, principalmente porque tinha o cheiro da mãe.

– Bom dia.

June surgiu à porta do quarto. Harry fungou alegremente. O cabelo de Alice tapava-lhe a cara mas ela não fez qualquer gesto para o colocar atrás das orelhas enquanto June retirava – mais uma vez – os lençóis molhados da cama, levando-os para baixo sem dizer uma palavra. Voltou a entrar pouco depois, levemente ofegante, trazendo uma muda de lençóis lavados. Alice sentiu a vergonha ruborizar-lhe as faces. Encostado a ela, Harry lambeu-lhe as lágrimas. Os joelhos de June estalaram quando ela se acocorou junto da menina.

– Não vai ser assim para sempre, Alice – descansou-a. – Prometo. Sei que estás a sofrer, e sei que tudo para ti é novo e assustador. Mas este sítio vai cuidar de ti, se lhe deres uma oportunidade.

Alice levantou a cabeça e olhou para June. Pela primeira vez os olhos da mulher não estavam distantes, perdidos no horizonte. Estavam ali, próximos e completos, focados nela.

– Sei que neste momento tudo te parece horrível e estranho, mas vai melhorar. Aqui estás segura, ok? Não voltarão a acontecer-te coisas más.

Quanto mais tempo Alice olhava para June, mais rápido lhe batia o coração. Fechou os olhos com força. Sentia cada vez mais dificuldade em respirar.

– Alice? Sentes-te bem? – A voz de June começou a soar longe, cada vez mais longe. Nervoso, o cão começou a andar em círculos à volta delas, ladrando.

Alice abanou a cabeça. As memórias começaram a separar-se, bem no fundo do seu ser. Antes de Thornfield, antes do hospital, antes do fumo e das cinzas. Mais para trás, mais para trás…

Dentro da cabana do pai.

As figuras esculpidas de uma mulher e de uma criança com flores.

Os lábios de June moviam-se, mas Alice não a ouvia. Tudo lhe soava como se estivesse debaixo de água, flutuando e afundando-se ao mesmo tempo, olhando para cima, para June, através do filtro do mar. O rosto da avó pareceu nadar na visão de Alice, à exceção de um momento fugaz em que lhe surgiu perfeitamente nítido.

Finalmente Alice reconheceu-a.

June: as expressões, o cabelo, a postura, o sorriso. Alice já os tinha visto antes.

Respirou com dificuldade.

June era a mulher que o pai esculpira uma e outra vez na sua cabana.

No vestíbulo, June tirou o seu Akubra do gancho, enfiou-o na cabeça e pegou nas chaves que estavam em cima do aparador. Correu lá para fora, desceu os degraus do alpendre, os olhos reagindo à luz forte da manhã, enquanto se apressava para a carrinha. Abriu a porta e ficou espantada por ver Harry já lá dentro. Ainda há segundos estava lá em cima com Alice, mas agora ali estava ele, sentado no seu lugar, atento, com a cauda enrolada entre as pernas da frente, olhando-a fixamente.

– Más tu és mágico ou quê? Pareces o Houdini – murmurou June, incrédula. – Nunca paras de me surpreender. – Afagou-lhe as enormes orelhas. Ao entrar para a carrinha, sentiu uma onda de suores frios ao recordar a expressão no rosto de Alice, lá em cima; o reconhecimento estampado bem no fundo dos olhos da menina. Tentou acalmar-se, controlar o tremor das mãos, e só ao fim da terceira tentativa é que conseguiu enfiar a chave na ignição. Levou a mão ao bolso do casaco e sacou da garrafinha de whisky para um gole rápido.

– June! – ouviu Twig chamá-la da porta da frente.

Guardou rapidamente a garrafa no bolso. O whisky queimou-lhe as entranhas.

Twig correu para a carrinha e ficou em frente à janela de June, aguardando. Não tinham trocado mais do que umas frases, curtas e de circunstância, desde que Alice chegara. June suspirou, preparando-se para a eterna e recorrente discussão – que já se tornara numa daquelas que, das duas uma, ou acabava uma relação ou a fortalecia. Tinham tido já uma série de arrufos ao longo dos anos, e ali estavam elas, a um passo de outro, mas sempre unidas. Como é suposto acontecer numa família.

Quando June abriu a janela, Twig deu um passo para trás e amaldiçoou-se por não ter consigo pastilhas para o hálito.

– Ela está bem – disse Twig, passado um momento. – Está a descansar na sala de estar, com a Candy.

June assentiu.

– Liguei para o hospital.

– Claro, estava-se mesmo a ver – disse June, mal-humorada.

Twig ignorou-a.

– A enfermeira, uma tal de Brooke, disse que tudo indica ter sido um ataque de pânico. A Alice precisa de descansar, de companhia e de um olho atento. E também precisa de terapia, June. – Twig apoiou as mãos na janela aberta. – Ela precisa de falar com alguém.

June abanou a cabeça.

– Toda a gente precisa de um lugar a que chame seu, e de alguém a quem pertencer, June. – A voz de Twig mal se ouviu, sob o rugir do motor da carrinha.

June sorriu com ar de troça, mas Twig sabia o que estava a fazer, repetindo as mesmíssimas palavras que June lhe dissera anos atrás, quando ela própria chegara a Thornfield. Mas June não se deixava manipular. Engatou a primeira.

– Vou matriculá-la na escola. Esse é o lugar a que pertencem as meninas da idade dela – declarou. Twig recuou, apanhada de surpresa.

Ao afastar-se, June sentiu-se esmagada pelo peso das palavras de Twig. O que raio estava ela a fazer, afinal, assumindo a responsabilidade pela filha do seu próprio filho? Quem era ela senão apenas a familiar mais próxima num formulário? Aquela centelha de reconhecimento nos olhos da menina, naquela manhã, não lhe saía da cabeça. E a pergunta não deixava de a atormentar: como é que Alice reconhecera a cara dela?

Alice deitou-se no sofá em frente às janelas e ficou a ouvir o barulho do motor da carrinha a afastar-se. Estava ainda a tentar reunir todos os pedaços de informação: as estatuetas na cabana do pai eram de June. June era a avó dela, mas era também a mãe do pai. Por que razão Alice nunca a conhecera antes? Não podia ser por o pai não amar June; que outra razão haveria para ele passar tanto tempo a esculpir estátuas dela? Alice suspirou, afundando-se mais no sofá. O canto estridente de uma pega entrou pela janela. A menina fechou os olhos e ficou a ouvir. O tiquetaque do relógio do avô. O lento bater do seu coração. A respiração regular.

Depois de June a ter levado ao colo até à sala, deixando-a aos cuidados de Twig, saíra de casa e não voltara a entrar. Twig preparara-lhe uma bebida doce que a fizera sentir-se como chocolate deixado ao sol. Os olhos insistiram em fechar-se, e quando a menina os abriu de novo, Twig já lá não estava. Mas, no lugar dela estava Candy Baby, com o seu longo cabelo azul – como ondas de fios de lã do reino das fadas.

– Olá, ervilhinha – disse Candy, com um sorriso radioso.

Alice deixou-se maravilhar pela visão do cabelo dela, o gloss brilhante nos lábios, o verniz verde-menta já meio lascado, e os brincos de esmalte em forma de cupcakes que lhe pendiam das orelhas.

– Gosto muito de ver uma corzinha nessa cara bonita, minha flor. – Candy pegou-lhe na mão e apertou-a levemente. Sem saber como reagir, Alice manteve o olhar fixo nela. – Estou a fazer biscoitos – prosseguiu a mulher do cabelo azul. – São para o lanche da manhã, mas preciso de alguém que os prove antes de os servir. Será que me podes ajudar?

Alice assentiu com tal vigor que Candy não conteve uma sonora gargalhada vinda da barriga.

– Ena, ena, que coisa mais linda, esse sorriso! – Candy pôs uma mecha de cabelo de Alice atrás da orelha. – O mais bonito que eu já vi em Thornfield – acrescentou. Alice estremeceu. A mãe era a única pessoa que lhe dizia que o seu sorriso era bonito.

Enquanto esperava pelos biscoitos, Alice tamborilou com os dedos na barriga. A luz do sol era espessa, feixes luminosos insinuavam-se por entre a manta de retalhos formada pelas gigantescas folhas tropicais junto à janela. O odor a tabaco misturava-se com baforadas doces vindas da cozinha. De vez em quando, o suave cantarolar de Candy flutuava até à sala.

Por fim, Alice ouviu passos vindos da cozinha, trazendo com eles uma lufada quente com aroma a melaço. A menina esforçou-se por se endireitar.

– Não, ervilhinha. Descansa. – Candy arrastou até ao sofá uma pequena mesa de apoio onde pousou um prato de biscoitos Anzac e um copo de leite gelado. – Descanso. Com um miminho.

Alice pegou num biscoito acabado de sair do forno. Apertou as extremidades entre o polegar e o indicador. Firme. Pressionou o centro da mesma maneira. Fofo e húmido. Olhou para Candy, maravilhada.

– Oh, mas é claro! Estaladiços por fora, fofos por dentro. É assim que devem ser, digo eu – comentou Candy com um gesto firme de cabeça. Nesse momento, Alice adorou-a. Deu a maior dentada que conseguiu no biscoito.

– Tens as bochechas tão cheias que pareces um hamster – riu-se Candy.

A porta de rede abriu-se e ouviram-se os sons de alguém a entrar e a esfregar as botas no capacho do vestíbulo. Um momento depois, Twig apareceu na sala de estar, o sobrolho franzido de preocupação. Assim que viu Alice e Candy, o seu rosto relaxou.

– Chegas na altura certa, Twiggy Daisy. És servida? – Candy estendeu-lhe o prato. Twig olhou para Alice com uma expressão interrogativa. Ao vê-la assentir com um sorriso tímido, comentou:

– Quem sou eu para recusar um convite destes? – Serviu-se de um biscoito e saboreou-o. – Hmm… És uma alquimista, Candy.

Alquimista. Alice tomou uma nota mental para procurar a palavra no dicionário.

– Estou a ver que o chá de camomila e mel fez milagres, Alice. Sentes-te melhor, não? – perguntou-lhe Twig com um sorriso carinhoso. A menina respondeu que sim com a cabeça. – Ótimo. Isso é muito bom.

– Onde foi a June? – perguntou Candy, mas logo a seguir desejou não o ter feito.

– A June… ah… foi à vila tratar de umas coisas. – Twig lançou um olhar assassino à amiga e mudou rapidamente de assunto. – Está tudo pronto para as Flores virem tomar o lanche da manhã?

– Já está tudo na mesa do terraço de trás: bules de chá e de café e uma travessa de biscoitos – disse Candy.

– Ótimo. Então… – Twig foi interrompida pelo buzinar de um carro, seguido do resvalar de pneus à entrada da casa. Esticou o pescoço para espreitar lá para fora.

– É a Boryana, veio receber. Posso levar-lhe um biscoito? – Twig tirou dois biscoitos do prato, depois mais um que levou entre os dentes, sorrindo. Desapareceu no corredor para voltar um momento depois com as botas calçadas. – Meu Deus, são bons como o pecado, Candy. Vou dizer às Flores para virem comer, sim? – Candy assentiu. Twig voltou-se para sair mas hesitou. – Olha lá, por que não mostras o ateliê à Alice, se ela concordar? – sugeriu. – É melhor agora, enquanto as Flores não estão lá. Vemo-nos mais logo, meninas. – Twig acenou e saiu.

– A Boryana também é uma Flor, a única que não vive cá – explicou Candy a Alice. – Ela e o filho vivem do lado de lá da vila. Mas a Bory vem todas as semanas e deixa Thornfield um brinco. Ela é búlgara e absolutamente fantástica.

Alice perguntou-se o que significaria “búlgara”. Talvez uma espécie de flor?

– Então é assim: eu vou a correr buscar a tua roupa e as tuas botas, depois tu vestes-te e vamos ver o ateliê. O que achas? – perguntou Candy. – E se te apetecer, posso apresentar-te a Boryana.

Alice concordou. Apetecia-lhe fazer qualquer coisa, desde que fosse na companhia de Candy Baby.

Enquanto Candy foi lá acima, Alice dirigiu-se à janela para tentar perceber o que era uma «búlgara». Lá fora, à conversa com Twig junto a um carro velho e cheio de mossas, estava uma mulher com braços fortes e bronzeados, longo cabelo preto e batom vermelho-vivo. Riam-se as duas. Mas não foram as mulheres que captaram a atenção de Alice. Foi o rapaz sentado no banco da frente do carro.

Alice nunca tinha estado tão próxima de um rapaz.

Só conseguia vê-lo de perfil, a maior parte do qual estava tapado por uma melena loirinha e desgrenhada. Caía-lhe para a cara, tal como acontecia com o dela. Olhava para baixo, para algo que tinha nas mãos. A menina perguntou-se como seriam os olhos dele. O rapaz mudou de posição e ergueu o livro que estava a ler, apoiando-o na janela. Um livro!

Como se tivesse ouvido o bater do coração dela, o rapaz olhou para cima – e diretamente para ela. Algo de estranho atingiu o corpo de Alice. Deixou de conseguir mexer os braços e as pernas, como se tivesse ficado congelada ali mesmo. Olhou para ele, de detrás da janela. Lentamente, ele levantou a mão. Estava a acenar-lhe. Embasbacada, Alice ergueu a mão e acenou de volta.

– Estás pronta?

Alice voltou-se de repente. Candy trazia as roupas dela debaixo de um braço e as botas azuis penduradas pelos atacadores. A menina acenou com a cabeça. Sentia-se esquisita por dentro, como se lhe tivessem remexido os órgãos, arrumando-os depois nos sítios errados.

– O que foi? – perguntou Candy, aproximando-se dela. Alice voltou-se para a janela e apontou, mas Boryana já se tinha afastado com o filho no carro poeirento.

– Oh, deixa lá, ervilhinha, podes conhecê-la noutro dia.

Alice pressionou as mãos contra a janela, ficando a ver a poeira assentar.

Alice seguiu Candy, passando pelo dormitório onde viviam as Flores. Quando chegaram ao ateliê, pararam em frente à porta coberta de hera. Candy afastou as folhas para o lado, tirou um molho de chaves do bolso e enfiou uma na fechadura.

– Pronta? – perguntou, sorrindo. A porta abriu-se.

Ficaram ambas à entrada do ateliê. O sol da manhã aquecia-lhes as costas, mas o ar condicionado do interior provocou um súbito arrepio na menina. Esfregou os braços, lembrando-se do rapaz que lhe acenara.

– Mas que grande suspiro – comentou Candy, de sobrolho erguido. – Estás bem?

Alice queria muito falar, mas tudo o que lhe saiu foi outro suspiro.

– Sabes, acho que as pessoas dão demasiada importância às palavras – disse Candy, pegando na mão da menina. – Não concordas?

Alice assentiu. Candy deu-lhe um apertão amistoso antes de a largar.

– Vamos. – Manteve a porta aberta para ela passar. – Anda daí ver isto.

Entraram. A primeira metade do ateliê estava coberta de bancadas, pilhas de baldes, uma fileira de lavatórios, e outra de armários-refrigerados encostada à parede. As prateleiras tinham ferramentas, rolos de redes e toda uma parafernália de frascos e pulverizadores. De ganchos nas paredes pendiam chapéus de abas largas, aventais e luvas de jardinagem – debaixo dos quais se exibia uma fileira certinha de botas de borracha – como uma fila invisível de soldados-das-flores, atentos e prontos para a luta. Alice voltou-se para as bancadas. Cada uma tinha ainda mais prateleiras em baixo, cheias de tubos e recipientes. O ateliê cheirava a terra fresca.

– É para aqui que trazemos as flores, depois de as colhermos dos campos. Cada uma delas é minuciosamente verificada antes de sair. Têm de ser perfeitas. Temos encomendas de todos os cantos do mundo; as nossas flores são expedidas para perto e para longe, para floristas, supermercados, estações de serviço e mercados. São usadas por noivas, viúvas, e… – A voz de Candy vacilou. – Recém-mamãs. – Passou as mãos por uma das bancadas. – Não achas mágico, Alice? As flores que nós criamos falam em nome das pessoas que não conseguem exprimir-se através das palavras, em praticamente todas as ocasiões de que te possas lembrar.

Alice imitou os movimentos de Candy, passando as mãos pela bancada. Quem eram as pessoas que enviavam flores em vez de palavras? Como podiam meia dúzia de flores dizer as mesmas coisas que as palavras? Como seria um dos seus livros, composto por milhares de palavras, se fosse feito de flores? Lembrou-se que nunca vira a mãe receber flores de ninguém.

Baixou-se para inspecionar as cubas de aparadores e corta-ramos, novelos de fio e corda, e pequenos baldes cheios de canetas e marcadores de todas as cores, por baixo das bancadas. Tirou a tampa de um marcador azul e cheirou-o. Nas costas da mão desenhou um E. Um momento depois, escreveu: s-t-o-u a-q-u-i. Estou aqui. Ao ver Candy aproximar-se esborratou o que escrevera.

– Psiu, Alice Blue… – Candy espreitou sobre a bancada onde Alice estava agachada. – Segue-me.

Passearam entre as bancadas, passando pelos lavatórios e refrigeradores até ao outro lado do ateliê – que estava montado como um estúdio de arte. Secretárias cobertas por telas brancas, repletas de latas de tinta e frascos com pincéis. A um dos cantos havia cavaletes, bancos, e uma caixa cheia de tubos de tinta. Noutra secretária, rolos de película de cobre, pedacinhos de vidros coloridos e uma miríade de pequenas ferramentas. No momento em que Alice chegou a uma zona isolada nas traseiras do estúdio, já se tinha esquecido do rapaz. Esquecera-se de June e das estátuas do pai. Estava demasiado envolvida em tudo aquilo que estava mesmo ali à sua frente.

– Que tal? – quis saber Candy.

De uma estrutura de madeira, tipo moldura, pendiam dúzias de flores nas mais variadas fases de secagem. Uma longa bancada fora colocada ao lado da parede improvisada. Sobre ela estavam pousadas ferramentas, panos e trapos escurecidos pelo uso, e pétalas secas de flores, espalhadas, descartadas como roupas deixadas à beira-mar. Alice pressionou as mãos sobre a superfície de madeira, lembrando-se das mãos da mãe acariciando as flores do seu jardim.

No extremo da bancada, sobre uma folha de veludo estendida repousavam pulseiras, colares, brincos e anéis, todos decorados com flores em resina prensada.

– Este é o cantinho da June – esclareceu Candy. – É aqui que ela faz magia a partir das histórias sobre as quais Thornfield foi construída.

Magia. Alice ficou em frente às peças de joalharia, cada uma delas captando a luz ambiente.

– É aqui que a June cuida de cada uma das flores. – Candy pegou numa pulseira; o pendente continha uma pétala cor de pêssego. – Ela seca e preserva cada uma das pétalas, molda-as em resina líquida, e por fim sela-as em prata. – Candy voltou a colocar a pulseira no seu lugar. Alice estudou o arco-íris de outras flores, prensadas em pendentes de colares, brincos e anéis. Cada uma delas era selada para sempre; congelada no tempo e, ainda assim, cheia de cor e de vida. Nunca ficavam castanhas, nem se desfaziam. Nunca apodreciam, nem morriam.

Candy aproximou-se dela.

– No tempo da Rainha Vitória, as pessoas na Europa falavam a linguagem das flores. É verdade. Os antepassados da June – os teus antepassados, Alice – mulheres que viveram há muito, muito tempo, foram trazendo a linguagem das flores através do oceano, vindas de Inglaterra, geração após geração, até Ruth Stone a trazer precisamente aqui para Thornfield. Dizem que durante muito tempo não usou a linguagem das flores, até ao dia em que se apaixonou. Só que a sua linguagem das flores era diferente da original: Ruth só incluía na sua linguagem as flores que o seu amado lhe oferecia – Candy calou-se. Tinha o rosto vermelho e afogueado. – Enfim… – disfarçou.

Ruth Stone. Sua antepassada. Alice sentiu as bochechas inflamarem-se de curiosidade. Apetecia-lhe enfiar um anel em cada dedo, apertar junto ao peito os pendentes dos colares, enfiar as pulseiras nos braços e levar os brincos às orelhas por furar. Queria muito usar aquela linguagem secreta das flores, que dissesse por ela todas as coisas que a sua voz não conseguia.

Na outra ponta da bancada estava um pequeno livro feito à mão. Alice pegou-lhe. A lombada quebrada já tinha sido arranjada várias vezes, cosida com uma série de fiadas vermelhas. A capa estava escrita à mão, numa caligrafia dourada esbatida, e ilustrada com flores vermelhas que pareciam rodas de fiar. A Linguagem das Flores Nativas Australianas de Thornfield.

– A Ruth Stone era a tua tetravó – disse Candy. – E este era o dicionário dela. Ao longo dos anos, as mulheres que descenderam de Ruth foram aprimorando a linguagem à medida que cultivavam as flores, aqui em Thornfield. – Passou a ponta do polegar pelas extremidades das páginas espessas e velhas. – Este livro está na família da June há gerações. Na tua família, aliás – corrigiu.

Alice passou um dedo pela capa. Queria muito abri-lo, mas não tinha a certeza se estaria autorizada. Arriscou. As páginas surgiram-lhe amareladas e salientes em ângulos estranhos. Nas margens, muitas notas escritas à mão. Alice pôs a cabeça de lado. Só conseguiu ler algumas palavras: Escura. Ramos. Ferida. Fragrância. Borboletas. Refúgio. Era o livro mais fantástico que ela já tinha visto.

– Alice – Candy baixou-se para ficar ao nível dos olhos da criança. – Já alguma vez tinhas ouvido esta história? Sobre a Ruth Stone?

Alice abanou a cabeça.

– Sabes alguma coisa acerca da tua família, ervilhinha? – perguntou-lhe Candy, docemente. – Sem perceber porquê, Alice sentiu uma onda de vergonha que a fez virar a cara. Voltou a abanar a cabeça.

– Oh, és uma menina cheia de sorte – comentou Candy, com um sorriso triste.

Alice olhou para ela, confusa. Limpou o nariz às costas da mão.

– Lembras-te da Alice Blue, a mulher de que te falei na minha carta, a filha de um rei?

Alice assentiu.

– A mãe dela também morreu quando ela era muito novinha. – Candy pegou-lhe na mão. – Ficou despedaçada e mandaram-na para longe, para viver com uma tia no seu palácio repleto de livros. Mais tarde, quando já era crescida, a Alice Blue disse que o que a salvou foram as histórias que a tia lhe contou e aquelas que ela leu nos seus livros.

Alice imaginou Alice Blue, uma bonita donzela envergando o seu vestido-assinatura, a ler sob a luz ténue de uma janela.

– És uma menina cheia de sorte por teres descoberto este sítio, e com ele a tua história, Alice. Que sorte teres a oportunidade de saber e aprender de onde vieste e a quem pertences. – Candy voltou a cara para o lado. Um momento depois, limpou o rosto. Ao fundo, ouvia-se o ruído do ar condicionado. Alice observou o velho livro, sonhando acordada com as mulheres que também o teriam lido, quem sabe segurando um molhinho de flores silvestres enquanto adicionavam um novo termo à sua linguagem secreta.

Alice sentiu as pernas contraírem-se por estar parada há tanto tempo. Candy voltou-se para ela e fez-lhe uma pergunta que a inundou de entusiasmo.

– Queres que te mostre o caminho até ao rio?