10. Caixa de espinhos
Caixa de espinhos
Significado: Adolescência
Bursaria spinosa | Austrália Oriental
Árvore pequena ou arbusto com casca cinzenta escura sulcada. Ramos lisos, mas com armações interiores espinhosas. As folhas, quando esmagadas, libertam uma fragrância a pinho. As flores são brancas, em forma de estrela e de aroma adocicado, e florescem no verão. Fornece néctar às borboletas e constitui um abrigo seguro para pequenas aves. A sua intrincada arquitetura de espinhos é muito procurada por numerosas espécies de aranhas para a construção de teias.
Alice protegeu os olhos do sol. Embora o outono tivesse já arrefecido as noites, os dias continuavam abrasadores. Candy afastou a hera, trancou a porta do ateliê e deixou que as folhas verde-escuras caíssem de novo sobre a porta. No terraço de trás, as Flores tinham acabado o lanche da manhã e dedicavam-se agora a levantar a mesa. Candy chamou Myf, a da tatuagem dos azulões, e perguntou-lhe as horas. Quando esta respondeu, voltou-se para Alice com a expressão alterada. A menina sentiu um baque no coração.
– Oh, ervilhinha, desculpa. Já é muito mais tarde do que eu pensava. Ainda tenho de tratar do almoço, as Flores não passam sem ele. Mas eu levo-te ao rio noutra altura, sim?
Alice perscrutou-lhe o rosto.
– Não, não olhes para mim assim. Por favor. Não posso deixar-te ir sozinha.
Alice manteve o olhar fixo nela.
– Raios… – murmurou Candy entredentes. – Ouve, mas tens de me prometer que vais ter o maior cuidado do mundo. Do. Mundo. – Franziu a testa. – E só se me prometeres que voltas num instante. Dás uma olhadela ao rio e corres para casa. Estou a falar a sério.
Alice assentiu com veemência.
– E mais uma coisa: não podes contar à June nem à Twig que eu te deixei ir ao rio sozinha, e logo na primeira vez que fiquei a tomar conta de ti.
Alice ergueu as sobrancelhas.
– Ah, claro. Isso não vais fazer. – Candy cruzou os braços. – Ok, Alice Blue – rendeu-se, sorrindo na mesma. – Podes ir sozinha até ao rio e explorar as redondezas. Mas não me desiludas, ok? As segundas oportunidades não abundam por estas bandas.
Alice correu para Candy e abraçou-se à cintura dela. Confio em ti.
Durante os dez minutos seguintes Candy repetiu-lhe uma e outra vez o caminho até ao rio: vais até ao trilho que há no fim dos campos de flores. Segue-lo sempre, pelo mato e até ao rio. Não saias do trilho. Não entres no rio. Não tentes atravessar o rio. Não faças nada que não seja seguir o trilho até ao rio.
Depois de Alice ter assentido, palavra por palavra, três vezes, Candy deu-se por satisfeita.
– Ok, pronto – disse. – Vou tratar do almoço. Até já, ervilhinha.
Alice hesitou, nem acreditava que estava autorizada a ir até ao rio. No último degrau do alpendre, Candy voltou-se. Vai, articulou com um sorriso, enxotando Alice com as mãos.
E lá foi ela, na direção dos campos de flores, com as orientações de Candy retinindo-lhe nos ouvidos. Não parou, não olhou para trás, nem hesitou. Se a voz dela funcionasse, teria lançado a cabeça para trás e soltado um grito de triunfo. Não tirou os olhos do trilho branco e poeirento do extremo do jardim, que cortava para o interior da floresta. Para o rio, cantou para si mesma. Para o rio.
Assim que se sentiu envolvida e protegida pelos arbustos, Alice abrandou a passada. Uma luz sarapintada caía pelo arvoredo e espalhava-se aos seus pés. Grilos e ferradores cantavam numa sinfonia à qual se juntava o ocasional coaxar de uma rã. Alice olhou para os eucaliptos nodosos por cima dela, ramos e folhas sussurrando ao vento. Borboletas-monarca esvoaçavam sobre arbustos de algodão selvagem. Parou para observar as rochas cobertas de líquen, os caracóis peludos dos botões das samambaias, os canteiros naturais de flores silvestres de aroma adocicado. O ar estava impregnado de um cheiro a terra seca, baunilha e eucalipto. Quase se esqueceu ao que vinha, até que o ouviu. Parou e ficou à escuta. Lá estava ele, leve, mas inequívoco; o barulho da água chamando-a tão vividamente como se fosse a voz da mãe. Alice correu para o rio, o cabelo esvoaçando atrás de si.
O trilho chegou ao fim numa clareira situada nas margens de um rio verde e largo. Não se enrolava, não rugia, nem batia como o mar; era calmo, uma canção contínua e fluída. Alice sentiu-se logo atraída para ele, como tudo o resto ao seu redor parecia ser. As raízes das árvores chegavam ao rio, assim como fiadas de musgo, longas e finas, que se agarravam a pedras semi-submersas.
Não entres no rio.
Alice dirigiu um silencioso pedido de desculpas a Candy enquanto descalçava as botas. Tinha acabado de tirar as meias quando reparou num trilho estreito, perpendicular à margem do rio.
Ficou curiosa. Não havia referência a um segundo trilho nas indicações de Candy. As segundas oportunidades não abundam por estas bandas. Confio em ti. Alice avançou lentamente em direção ao trilho. Ia só espreitar. Mas, para sua desilusão, o trilho não ia dar a lado nenhum. Terminava abruptamente, praticamente onde começava, num pequeno recanto circular, à sombra, próximo do rio e onde não cabiam mais do que duas pessoas. Alice esfregou os pés no trilho poeirento, suspirando de desilusão. Mas quando se preparava para regressar ao rio, algo lhe chamou a atenção: o contorno dourado de algo suficientemente grande para tapar o sol. As suas sobrancelhas ergueram-se quando viu o tamanho do gigantesco eucalipto. O tronco da árvore era mais largo do que a altura dela. Alice olhou para os ramos da árvore, tão alta que não se lhe via o topo. Só de se imaginar a trepá-la ficou com as mãos suadas. Os ramos estavam carregados de botões de flores, e folhas longas e perfumadas em forma de meias-luas. As raízes estendiam-se até ao rio, criando bolsas ao longo do caminho que se enchiam de bolotas de eucalipto, folhas e flores. Era a rainha das árvores. Mas o que mais fascinou Alice foi a zona do enorme tronco com uma lista de nomes gravados.
Ainda que começassem acima do nível dos olhos da menina, bastou-lhe pôr-se em bicos de pés e esticar o pescoço para os conseguir ler. Reconheceu o nome de Ruth Stone, mas nenhum dos outros. Até ler os dois últimos.
June Hart.
Ao lado do nome de June havia uma incisão profunda, onde Alice calculou ter existido outro nome gravado. Debaixo do nome da avó, o nome do pai: Clem Hart. E, ao lado, outro sulco semelhante, onde em tempos existira outro nome.
Alice tentou interpretar a lista, como se se tratasse de uma linguagem secreta – como a das flores – mas não conseguiu. Ruth Stone, Jacob Wyld. Wattle Hart, Lucas Hart. June Hart. Clem Hart. E mais dois, entretanto raspados do tronco.
O berro estridente de uma catatua fê-la dar um salto. Qualquer coisa nos nomes apagados e respetivas áreas em branco deixava-a nervosa.
Quando a catatua gritou de novo, Alice correu para a clareira junto ao rio e deixou-se ficar ali, um breve momento, arquejante, tentando abrandar as batidas do coração. A corrente suave e constante do rio conseguiu acalmá-la. Sentiu na pele o calor e a humidade. Uma gota de suor desceu-lhe pelas costas. Promete que voltas para casa depois de dares uma rápida olhadela ao rio. Direta para casa.
Alice não conseguiu conter-se. Despiu a t-shirt e os calções, deixou-os junto às botas, e desceu até à margem arenosa do rio. Quando a água fresca lhe bateu nos pés, um conforto familiar fê-la estremecer. A última vez que tinha tomado um banho de mar parecia-lhe já tão distante no espaço e no tempo que mal se conseguia recordar do sabor da água salgada. Avançou até a água lhe chegar aos joelhos, embalada pela suave corrente, depois até à cintura, afagando a superfície da água com as mãos abertas. Os ombros relaxaram. Deixou-se enfeitiçar pelos sons mágicos da floresta que a cercava.
Olhou na direção do eucalipto gigante, pensando nos nomes gravados no tronco. O rio é toda uma outra história, dissera-lhe June quando percorreram juntas os campos de flores. Pertence à minha família, há gerações e gerações. À nossa família. Alice olhou para os pés através da água, para o fundo arenoso do rio. Seria um rio algo que se pudesse ter? Não seria o mesmo que alguém dizer que o mar lhe pertencia? Alice sabia que o contrário era verdade. Que quando alguém entrava no mar, pertencia-lhe. Contudo, a ideia de ela poder, de alguma maneira, fazer parte daquele sítio, aquecia-lhe o coração. Por cima dela, o arrulhar de uma kookaburra. Alice assentiu. Já chegava de pensar. Avançou um passo e deixou-se afundar nas águas verdes do rio, deixando à superfície as suas perguntas sem resposta.
A doçura, a total e absoluta ausência de sal na água chocou-a. Os olhos não lhe arderam. Soprou bolhinhas e ficou a vê-las erguerem-se e rebentarem. O coração do rio batia-lhe nos ouvidos. O pai dissera-lhe um dia que toda a água corria eventualmente para a mesma fonte. Uma nova pergunta floresceu: conseguiria ela nadar rio abaixo, através do tempo, e chegar a casa?
Alice ponderou a questão durante tanto tempo que ficou debaixo de água até os pulmões lhe doerem. Cravou firmemente os pés no fundo do rio e projetou-se para cima, emergindo meio aflita e ofegante. Já não lhe doía tanto respirar desde o incêndio. Subitamente, a luz na mata já não lhe parecia acolhedora, nem a água relaxante. Apressou-se para fora do rio, tossindo violentamente, trepando pela margem até terra firme e seca. Tossiu e tossiu, dobrada em duas, as mãos nos joelhos.
– Estás bem?
Alice voltou-se na direção da voz.
Ali estava ele. Na outra margem do rio. O rapaz do carro.
Alice teve outro ataque de tosse, agarrada à barriga, chorando dos olhos e pingando do nariz. Não conseguia parar. Quanto mais tentava, mais tossia. Às tantas a tosse transformou-se em vómito. Atrás de si, ouviu o som forte de um mergulho, seguido, pouco depois, de salpicos de água nos seus pés. O rapaz estava mesmo ao lado dela, completamente ensopado.
– Inspira, pensa para dentro. Expira, pensa para fora. – Ele pôs-lhe a mão entre as omoplatas. Alice olhou-o de relance e seguiu as instruções.
Dentro. Fora
Dentro. Fora
Aos poucos, a tosse foi passando.
Quando se ergueu, apercebeu-se – tarde de mais – de que estava apenas de cuecas. Sentiu-se corar violentamente enquanto se precipitava para os calções e para a t-shirt e, antes de conseguir voltar a olhar para o rapaz, desatou a correr pelo trilho fora.
– Ei! – ouviu-o chamar. Mas Alice não olhou para trás.
Só parou para se vestir quando chegou ao ponto em que o mato dava lugar aos campos de flores. E foi então que percebeu que estava descalça: tinha deixado as botas junto ao rio.
Enquanto corria para casa, o sol da tarde aqueceu-lhe a pele. O rosto já tinha arrefecido. Não fazia ideia do que fazer em relação às botas, a não ser tentar ir buscá-las mais tarde e às escondidas.
Do lado de lá dos campos ouvia-se o zumbir do ar condicionado do ateliê. As Flores estavam lá dentro, calculou Alice, prestes a dar por terminada a manhã de trabalho. Correu ligeira pelos degraus do terraço das traseiras. As mesas estavam limpas, as cadeiras arrumadas. Não fazia ideia de quanto tempo estivera ausente. Teria faltado ao almoço? Como resposta sentiu o roncar do estômago. Em bicos de pés, abriu a porta de rede.
Dentro de casa não parecia estar ninguém. Talvez Twig e Candy estivessem também no ateliê. Alice relaxou. Foi à cozinha procurar comida e encontrou pão, manteiga e Vegemite, e preparou duas sanduíches.
– Bem, tu hoje estás com um apetite do tamanho do Harry!
Alice paralisou, depois voltou-se, forçando um sorriso tranquilo na direção de Twig, que a olhava da porta da cozinha.
– A Candy disse-me que almoçaste no quarto, ainda há pouco, e que limpaste o prato.
Sem saber o que dizer, Alice limitou-se a um aceno de cabeça. Tinha faltado ao almoço. Tinha estado fora muito mais tempo do que pensara, e afligiu-se perante a ideia de ter arranjado sarilhos ou, pior ainda, ter metido Candy em sarilhos. Mas a mulher do cabelo azul tinha mentido por ela, para protegê-la; e isso deixara-a genuinamente feliz.
– Eu costumo dizer que um bom apetite é tão importante como uma boa atitude – afirmou Twig, saindo para o corredor. Voltou-se para ela antes de sair: – Ah, e por falar no Harry, quando acabares de comer vem até à sala, sim?
Alice soltou o ar que tinha sustido; Twig não pareceu reparar nos pés descalços dela, nem no cabelo húmido.
De pé no meio da cozinha, mastigando as sanduíches, Alice não conseguiu deixar de sorrir. Agora tinha uma coisa, uma coisa de Thornfield que sentia como sua. A sua primeira visita ao rio seria sempre e unicamente sua. À exceção, claro, do rapaz. Só de pensar nele, Alice sentiu-se corar. Poisou a sanduíche na bancada. Subitamente já não lhe sabia a nada.
A sala era arejada e plena de luz. Twig estava sentada no sofá, com Harry aos seus pés, que suspirava de vez quando ao senti-la coçar-lhe as orelhas. Alice juntou-se a eles. Sentou-se no sofá, no mesmo sítio onde estivera de manhã – quando June a levara ao colo e depois desaparecera. Pareceu-lhe que já se tinham passado dias. Ao olhar pela janela, a menina reparou que a carrinha de June estava estacionada junto ao ateliê. Viria ter com elas? A ideia deixou-a nervosa. Esfregou os olhos, sentindo-os subitamente muito pesados.
– Creio que a June já te falou nos poderes especiais que o Harry tem? – quis saber Twig.
Alice assentiu, bocejando.
– Então acho que te posso ensinar como falares com ele, sempre que precisares de apoio.
Ao ouvir o seu nome, Harry ergueu as orelhas sob os dedos massajadores de Twig. Estava encostado às pernas dela, de boca semiaberta, babando-se de vez em quando. Não me parece propriamente um super-cão, pensou Alice.
– O Harry é um cão de assistência. Alguma vez ouviste falar nestes cães, Alice?
A menina abanou a cabeça. Antes de Harry, o único cão que conhecera fora Toby, e ele não era seu assistente. Era o seu melhor amigo.
– Os cães de assistência são treinados para ajudarem as pessoas quando estão assustadas ou com medo. Os cães como o Harry conseguem entender as emoções das pessoas. Sabem confortá-las e distraí-las quando estão tristes, assustadas ou preocupadas. – Twig sorriu quando o cão lhe lambeu a mão. – E quem sabe se o Harry não te deu já algum desse consolo, desde que cá chegaste? – perguntou ela, olhando para Alice.
Alice lembrou-se do cão se ter mantido ao lado dela na carrinha, quando chegara a Thornfield. Só saiu depois de ela própria sair. E também estava lá quando ela acordou dos pesadelos, e até tinha arranjado maneira de a fazer descer as escadas no dia anterior. Olhou para o sorriso dele, para as orelhas com as pontas pretas, para o focinho dourado. Não era Toby, mas Twig tinha razão; havia algo em Harry que a fazia sentir-se melhor.
– A assistência que o Harry presta é muito valiosa, sobretudo quando aparece alguém novo aqui em Thornfield. Por isso, sempre que precisares dele, Alice, sempre que te sentires triste, com medo, ou em pânico, lembra-te que ele está aqui para ti. Como estamos todas, aliás. – Twig sorriu. Afagou as orelhas de Harry e deu-lhe uma palmadinha no lombo. – A grande maioria das ordens que lhe damos são faladas, mas também recorremos a ordens visuais. E são essas que eu te vou ensinar, ok?
Durante o resto da tarde, Alice aprendeu a falar na linguagem de Harry. Percebeu tudo rapidamente. Se estalasse os dedos em frente ao corpo, o cão levantava-se à sua frente – criando uma barreira entre Alice e o que quer que fosse. Se batesse palmas ele entrava numa divisão e acendia as luzes, para Alice não ter de andar no escuro. Essa era a ordem que mais lhe agradava. Ficar a ver o cãozarrão irromper pela sala e pisar o interruptor do chão para acender o candeeiro de pé, divertia-a imenso.
– Ele conhece cada divisão desta casa, Alice, e sabe onde estão todos os interruptores – declarou Twig, em tom sério mas de olhos sorridentes.
A última ordem, erguer uma mão aberta e acenar da esquerda para a direita, fazia com que Harry entrasse a correr numa divisão, farejando-a de uma ponta à outra, à procura de intrusos – e ladrar se encontrasse algum. A possibilidade de ter de usar aquela ordem não lhe agradou.
– Ótimo, Alice, muito bem. Aprendes depressa. E lembra-te: sempre que te sintas sozinha ou aflita, como te sentiste esta manhã, podes – deves – pedir ajuda ao Harry.
Na altura em que a porta do ateliê se abriu e se ouviram as vozes das Flores, que acabavam o seu dia de trabalho, já Alice sabia de cor e salteado todas as ordens de Harry. Caiu no sofá, demasiado cansada para praticar mais.
– A June deve estar mesmo a chegar para jantar – disse-lhe Twig. – Que me dizes a um bom banho ainda antes de comeres para depois te deitares cedinho? Hoje foi um longo dia.
Alice concordou. Ainda que não lhe apetecesse um banho, no tom de voz de Twig tudo fazia perfeito sentido. Enquanto a seguia pelo corredor até à casa de banho, Alice estalou os dedos atrás de si, mesmo não precisando de o fazer. Harry já seguia bem colado aos seus calcanhares.
Twig escancarou a porta de rede e sentou-se nos degraus do terraço das traseiras, desfrutando dos últimos raios de luz do dia. Enrolou um cigarro, acendeu-o, e deu uma longa passa, ouvindo o crepitar do tabaco a arder e deixando que o fumo lhe enchesse os pulmões. Expeliu uma baforada em direção às primeiras estrelas.
Uma luz amarela saía das janelas do ateliê, lá longe, depois dos campos de flores. June estava lá dentro desde que regressara a casa, no início da tarde. Twig tinha estado a trabalhar no escritório, rodeada de papelada, esperando que Alice regressasse do rio, quando ouviu os passos de June nos degraus da frente. Fora até ao vestíbulo para cumprimentá-la, mas June retivera-a, levantando a mão em protesto.
– Twig – dissera-lhe, antes que a outra pudesse abrir a boca. Tinha os olhos raiados de vermelho. Harry colocara-se imediatamente entre as duas, quase as deitando ao chão.
– Ela está no rio – apressara-se Twig a dizer. – Vou ensinar-lhe a lidar com o Harry assim que voltar. – Afagou o cão. – Ela vai precisar de ajuda quando voltar a ter outro ataque de pânico.
– Se ela tiver outro ataque de pânico. – O tom de June saíra-lhe cansado. – Já a matriculei na escola. Começa na próxima semana. Vou dizer-lhe logo à noite.
Twig cerrou os punhos. June não tinha sido assim tão teimosa quando criara Candy Baby. Mas Twig percebia a diferença; Candy fora uma bênção. Alice era sangue do seu sangue.
– E a matrícula levou a manhã toda? – Twig olhara para a carrinha de June através da porta de rede. Via-se o canto de uma caixa de avelaneira trabalhada a espreitar por baixo de uma lona verde, na caixa-aberta. Twig ergueu um sobrolho. Sabia perfeitamente onde June tinha estado: no armazém que tinha alugado na vila, a desenterrar velhos fantasmas.
– Calma Twig. Não é o que tu pensas. Foi um dia muito difícil.
– Sim, podes crer que foi – sibilara-lhe a outra. – Sobretudo para a tua neta, mas deixa lá isso… E o teu neto? Sabe-se lá, não é? Já que decidiste deixá-lo para trás, como se fosse uma erva-daninha?
As palavras atingiram June como estilhaços. Assim que Twig viu a expressão de June, desejou apanhá-los do chão e engoli-los um a um. Foi então que June saiu de casa, entrou no ateliê e bateu com a porta. E ainda não tinha voltado.
Twig acendeu outro cigarro. Estava grata a June por ela não lhe ter atirado à cara as suas próprias dores. A raiva que sentia não tinha apenas a ver com o facto de June ter decidido separar os filhos de Clem. Claro que não. Tinha a ver com os seus próprios filhos. Os seus bebés. Estava prestes a fazer trinta anos que as assistentes sociais tinham aparecido lá em casa, num Holden resplandecente, irrompendo por ali dentro com uma ordem do tribunal que a acusava de negligência. Porque não tinha marido. Porque frequentemente deixava Nina e Johnny com Eunice, a irmã, enquanto andava à procura de trabalho. Porque era pobre. Porque os Serviços de Proteção de Menores decidiram que a única oportunidade que os filhos dela teriam de virem a ser australianos decentes passava por serem criados por uma família australiana decente. Uma família australiana branca. Uma das assistentes sociais segurara Twig, enquanto a outra lhe arrancava Nina e Johnny dos braços. As crianças choravam. Twig desatara a cantar alto, tentando acalmá-las, mas elas revelaram-se inconsoláveis, arrancando punhados do arbusto de margaridas do quintal, tentando agarrar-se ao que quer que fosse enquanto eram arrastadas para o carro. Twig deixara-se cair de joelhos junto às margaridas arrancadas, escurecendo e morrendo ao sol; a última coisa em que os filhos tinham tocado. E ali permaneceu até Eunice chegar do trabalho, cantando sob as rajadas de uma súbita ventania de noroeste, e espalhando as flores mortas como se as conseguisse replantar. Twig tentou seguir em frente, crente de que Nina e Johnny acabariam por descobrir o caminho de volta para ela, mas depois de Eunice ter sido dada como desaparecida, uns anos mais tarde, decidiu fugir. Deambulou costa acima, depois pelo interior, à boleia de terreola em terreola. Até que um dia, quando seguia a pé pela via rápida, foi atraída pela estradinha de acesso a Thornfield, primeiro por mera curiosidade e depois pelo som de um bebé a chorar.
Uma onda de riso vinda do dormitório interrompeu-lhe os pensamentos. Twig limpou os olhos à camisa. Tinha pedido a Candy que servisse o jantar às Flores no dormitório; se June pretendia explicar a Alice que ela ia para a escola dali a dias, iam precisar de privacidade. Isto se June tencionasse sair do ateliê, evidentemente.
Como que respondendo a uma deixa, a porta abriu-se. Twig escondeu a beata do cigarro e sentou-se muito direita, encoberta pela sombra, enquanto via June percorrer o caminho de acesso à casa. Se a viu, não o demonstrou. A porta de casa abriu-se e fechou-se. Na sala de jantar, a porta do louceiro rangia à medida que June ia pondo a mesa. Mais ao fundo, no corredor, gorgolejavam os canos enquanto a banheira esvaziava. A porta da casa de banho abriu-se. Passos leves percorreram o corredor até à cozinha. O suspiro do forno a ser desligado. O murmúrio da voz de June. Cadeiras a arrastar no soalho de madeira da sala de jantar, enquanto Alice e June se sentavam. O barulho dos talheres nos pratos enquanto jantavam.
Alice devia estar esfomeada depois de ter ido e voltado do rio. Twig sabia exatamente onde ela tinha estado quando se encontrou com a menina na cozinha, nessa tarde. Tinha a camisa mal abotoada, o cabelo molhado e cheio de folhas, e os pés descalços e com areia. Mas tinha também um brilho nos olhos e duas rosáceas nas faces que mantiveram Twig em silêncio. Ela sabia demasiado bem que Thornfield arranjava todos os meios e mais alguns de consertar as almas despedaçadas que lhe chegavam e lhe chamavam lar. Para já, era o rio que mantinha Alice em paz. Para Twig, desde o momento em que chegara a Thornfield, esse papel reconfortante coubera sempre a June.
Alice deitou-se na cama – ainda com a cabeça à roda da notícia que June lhe dera ao jantar. Estava matriculada na escola local. Começava as aulas na semana seguinte.
– Fui hoje falar pessoalmente com o diretor – dissera-lhe June. – Ele sugeriu que o Harry te acompanhasse, para teres um amigo contigo desde o início.
A escola. Alice tinha lido sobre ela. Professores e salas de aula, secretárias, lápis e livros. Crianças, recreios, sanduíches, ler, escrever, e trabalhos de casa. E podia levar Harry consigo.
Alice rebolou na cama. Resolveu desviar os pensamentos para o rio. Como ele soava abaixo da superfície, e a estranha sensação que sentira quando o rapaz lhe pusera a mão nas costas para ajudá-la a respirar.
Sentiu uma brisa debaixo do queixo. Sentou-se na cama. Uma das cortinas brancas do quarto esvoaçou na escuridão. Ela não se lembrava de ter aberto a janela. Estendeu a mão para o candeeiro da mesa de cabeceira e acendeu-o.
No chão, aos pés da cama, estavam as suas botas azuis.
Dentro de uma delas, um ramo de flores silvestres que cheiravam a baunilha.
Twig estava a enrolar outro cigarro quando ouviu a pancada seca vinda de um dos lados da casa. Susteve a respiração para escutar melhor. Ouviu passos a esmagarem o caminho de terra que ia dar aos campos de flores, até que viu o rapaz. Semicerrou os olhos. Expirou lentamente. Com o cigarro por acender numa mão e o isqueiro na outra, esperou para ver se ele olhava para trás. Mesmo antes de o caminho virar para a floresta, Twig viu-lhe o rosto sob o luar.
Ali estava ele, o filho de Boryana. Com os olhos tão fixos na luz da janela de Alice que Twig duvidava que ele a visse mesmo que ela estivesse a arder.
Pouco depois, quando o viu desaparecer na floresta, Twig acendeu o cigarro e deu uma longa passa para acalmar os nervos. Já tinha visto aquilo acontecer. Quando Agnes Ivie era a criança no quarto da torre. E Clem Hart o rapaz que trepava à janela dela para lhe oferecer flores.