15. Orquídea-Rainha
Orquídea-Rainha
Significado: Consumida pelo amor
Thelymitra crinita | Austrália Ocidental
Orquídea perene que floresce na primavera. As flores são de um azul intenso e em forma de delicadas estrelas. Não precisa de fogo para estimular a floração, mas pode ser abafada por outra vegetação, daí que sejam benéficas queimadas periódicas que restrinjam o crescimento de arbustos mais altos.
Naquele ano, que seguia a passos largos para o 18º aniversário de Alice, Twig viu algo que mais ninguém em Thornfield viu. Noite após noite, sentada no escuro, via a porta de rede das traseiras abrir-se, e Alice, com o longo cabelo solto ondeando atrás de si, atravessar pé-ante-pé o alpendre, descer os degraus e desaparecer nos campos de flores sob a luz do luar. Twig deixava-se ficar a fumar, muito depois da silhueta prateada da jovem desaparecer pelo meio do mato. Mesmo sabendo que June queria que a neta fosse diferente, que fosse imune, a verdade estava cravada no trilho que ia dar ao rio, diante de quem quisesse ver: Alice estava profundamente, perdidamente, cegamente envolvida nas malhas do seu primeiro amor.
Na noite em que Alice completou dezoito anos, depois do magnífico assado e do bolo de anos que Candy preparou, enfeitado com lírios-baunilha, toda a gente foi para a cama levemente inebriada pela caixa de Moët que June encomendara especialmente para a ocasião. Twig sentou-se no terraço de trás, enrolando um cigarro, grata pelo silêncio das estrelas de inverno. As coisas estavam a mudar. Sentia-se-lhes o cheiro no ar, como uma nova estação. Alice andava inquieta. Assim como Twig, à conta das mentiras que lhe dizia sempre que a jovem lhe fazia perguntas sobre a família. Ainda que se tivesse sempre manifestado contra a desonestidade de June, Twig sabia que ela própria era cúmplice; também ela escondera segredos de Alice durante anos a fio.
O relatório que ela tinha preenchido e devolvido aos serviços de adoção do estado, não dera em nada. Tinha voltado a vasculhar as Páginas Amarelas e feito novas chamadas. Deu ao primeiro investigador privado que a atendeu o nome da mulher referida por Agnes no seu testamento, bem como o nome da terra onde Alice crescera. Passaram-se alguns meses. Pouco depois de Alice começar as aulas, o relatório do detetive privado chegou pelo correio. Twig teve de dar um longo passeio até ao rio para se acalmar o suficiente antes de o ler. O irmão mais novo de Alice estava ótimo; vivia com a mulher que Agnes designara como tutora dos filhos, caso June não tivesse condições para criá-los. Alice e o irmão viviam afastados, e sem saberem da existência um do outro. Teria acontecido o mesmo a Nina e Johnny? Contrariamente à crença comum, Twig sabia que nem mesmo Thornfield conseguia salvar uma mulher do seu passado. Tinha tido uma boa vida ali, ajudando a criar Candy, e dedicando-se a Clem de alma e coração. Cuidara de Agnes e das restantes Flores, gerindo a quinta e administrando um negócio próspero. Mas a verdade é que não havia segundas oportunidades suficientes, nem mesmo em Thornfield, para mudar o passado – por mais que June o desejasse. A relação de Twig com June nunca mais fora a mesma desde que ela regressara a casa com Alice. Eu sou a executora testamentária, Twig, sibilara-lhe várias vezes ao longo dos anos, mais vezes do que as que Twig conseguia contar. Tomei uma decisão difícil tendo em conta os interesses de todos. Twig escondera o relatório do detetive juntamente com uma cópia do testamento de Agnes numa das casas das sementes. Esperou nove anos até chegar o momento certo de entregar aqueles documentos a Alice. E contudo, eles permaneciam escondidos no mesmo sítio, por entre as sementes de ervilha-do-deserto.
Quando a porta de rede se abriu, Twig encolheu-se no escuro, enquanto Alice se imiscuía pelos campos de flores, deixando atrás de si um ligeiro odor a champanhe. A jovem tinha bebido flute atrás de flute ao jantar. Algo se passava com ela, Twig pressentia-o tão bem quanto uma mudança de tempo.
Contou em silêncio um minuto inteiro, para se certificar de que Alice não lhe ouviria os passos, até se apressar a segui-la pelo trilho que ia dar ao rio.
Oggi estava à espera dela na margem, ao calor de uma pequena fogueira acesa junto ao eucalipto gigante. Tinha estado demasiado calado ao jantar. Twig agachou-se atrás de umas árvores baixas. Alice lançou-se nos braços dele como se não o visse há anos, a pele assumindo um tom bronze à luz da fogueira. Beijaram-se ternamente. A expressão no olhar de Oggi quando viu Alice deixou Twig de olhos humedecidos. Ela também já tinha amado alguém assim, em tempos. Lembrava-se bem da sensação de ser assim profundamente vista e percebida por outra pessoa, de se sentir tão inteira.
– Conta-me outra vez o teu plano – pediu Alice, envolta pelos braços dele.
– Amanhã encontramo-nos precisamente aqui, à meia-noite. Trazemos uma mala cada um. Mais nada. Não podemos levar muita coisa. – Beijou-lhe a têmpora, o rosto, o pescoço. – Apanhamos o primeiro autocarro para o aeroporto e levantamos os bilhetes. O voo é tão longo que vais achar que nunca mais acaba, mas eventualmente chegaremos a Sófia. Vamos para casa dos meus avós, bebemos rakija e comemos shopska salata, dormimos até nos livramos do jet lag, acordamos, e apanhamos o teleférico que sobe ao Monte Vitosha. Visitamos o lago de pedras e vemos o mundo lá de cima. E de manhã vamos passear as cabras. Os sininhos das coleiras delas soam melhor que o dia de Natal. Aos fins de semana, pegamos na carrinha do meu avô e atravessamos a fronteira até à Grécia, onde podemos nadar no mar e comer azeitonas e queijo derretido.
– Oggi … – sussurrou Alice, imbuída no sonho, voltando-se para ele. – Tens aí o teu canivete?
Gravaram os nomes no tronco do eucalipto e envolveram-se num novo abraço, beijando-se com a fome da adolescência. A criança que chegara a Thornfield, tão calada, tão tomada pelo medo, estava mais viva do que Twig jamais a vira.
Twig levantou-se silenciosamente e esticou as pernas para aliviar as cãibras. Depois retomou o caminho de regresso à quinta. Entrou na casa das sementes, desenterrou a mica de plástico com os documentos amarelados que continham a verdade sobre a vida de Alice, e foi para casa esperar que ela voltasse.
Sentou-se no sofá. Pensou em fazer um café. Fechou os olhos só por um minuto.
Twig carregaria aquele remorso até ao fim da vida; o de ter adormecido tão profundamente que não ouviu o ranger das tábuas do soalho quando Alice chegou a casa.
Na manhã seguinte, Alice tinha ido à vila atender uma encomenda quando June desceu. A meio da manhã Twig foi à cozinha fazer um chá e voltou-se para oferecer um a June, mas mudou logo de ideias. June estava à porta da cozinha com o diário de Alice aberto nas mãos.
– June? – disse Twig olhando para o diário, as páginas cheias dos arabescos da caligrafia de Alice.
Sem dizer uma palavra, June saiu para as traseiras. Sentou-se no terraço a olhar para os campos de flores. Twig pousou uma chávena de chá ao lado dela. Um bando de catatuas guinchou por cima das suas cabeças. June manteve-se em silêncio.
Durante o resto da manhã, Twig entreteve-se com as Flores, mantendo-as a todas longe da vista de June. Até Harry preferiu ficar longe dela. De vez em quando, Twig espreitava para o terraço para ver como ela estava. Quer tivesse ou não feito as pazes com o passado, a verdade é que June mudara para sempre desde a chegada de Alice a Thornfield, ainda em criança. A neta agora já estava crescida, a caminho da independência, e apaixonada; e June sabia perfeitamente que nada havia de mais ameaçador no mundo do que uma mulher com a cabeça no lugar.
Já era fim de tarde quando June se levantou de onde estava. Twig ficou na expectativa, esperando que ela fosse até ao ateliê ou se enfiasse na carrinha. Mas em vez disso, viu-a entrar em casa, dirigir-se ao escritório e fechar-se lá dentro. Twig ainda encostou o ouvido à porta, mas não conseguiu escutar o que June dizia ao telefone. Após uma longa pausa, resolveu bater. Uma vez, e outra, com mais força. Quando não obteve resposta, girou a maçaneta e abriu a porta. Ao vê-la entrar, June desligou o telefone. A expressão nos olhos dela fez Twig deter-se.
– O que é que fizeste? – indagou Twig, sem rodeios.
June voltou-se para olhar pela janela. Alice acabara de chegar. As duas viram Alice e Oggi saírem da carrinha, falando e rindo alto.
– O que tinha de ser feito – respondeu June com uma lágrima a rolar-lhe pela face.
Há anos que Twig não a via chorar. E a total ausência do cheiro a whisky naquela sala deixou-a ainda mais preocupada.
June limpou rudemente as lágrimas da cara e levantou-se.
– Fiz o que tinha de fazer – repetiu. – Está bem, Twig? – Percorreu a secretária e voltou-se de costas, como que a tentar esconder-lhe alguma coisa.
– O que é que se passa? – perguntou Twig novamente, avançando para ela.
Num gesto repentino, June tentou enfiar na gaveta um molho de cartas que estava em cima da secretária, mas conseguiu apenas que caíssem ao chão, espalhando-se. Praguejou baixinho. Twig agachou-se, reunindo as cartas e as fotografias – todas do mesmo rapazinho. Voltou-se para olhar para June:
– Como é que ainda consegues esconder dela estas fotografias? – murmurou.
– Porque sei o que é melhor para ela – respondeu. – Eu sou avó dela.
Twig levantou-se e olhou para a amiga, furiosa, as cartas a tremerem-lhe nas mãos. Sem mais uma palavra, atirou-as a June e saiu, batendo com a porta. O dia estava ventoso. Twig deixou-se ficar no alpendre, inspirando lenta e profundamente, deixando que o fresco do fim da tarde lhe enchesse os pulmões. Alice e Oggi estavam junto à porta do ateliê, provocando-se mutuamente num clima de alegre brincadeira.
Enquanto os observava, Twig levou os braços ao peito para se proteger do vento que lhe sacudia a roupa. Conseguia senti-la nos ossos, aquela súbita ventania de noroeste.
Alice abriu lentamente a porta do quarto e ficou no cimo da escadaria, a ouvir. Os únicos sons que se ouviam na casa eram o tiquetaque ritmado do relógio do avô, e o ressonar abafado vindo do quarto de June. Sentiu um peso súbito sobre o corpo. Lembrou-se da noite em que chegara a Thornfield, sem falar, mal conseguindo levantar a cabeça, vergada sob o peso da dor. June lavara-lhe a cara com uma toalhinha quente. Não vou a lado nenhum, dissera-lhe. E era verdade. Tinha estado sempre ali para ela. No fim de um dia de escola, no meio dos campos de flores, à cabeceira da mesa de jantar, no ateliê, supervisionando os arranjos florais que a neta fazia. A jovem deu por si a pensar nas mãos calejadas da avó, cravadas no volante, acenando ao portão, afagando as orelhas de Harry, abraçando Alice. Num aperto demasiado forte.
Depois de um último olhar em torno do seu quarto, Alice pegou na mala e desceu as escadas em silêncio, como se fosse feita da mesma cepa que os fantasmas das memórias de Thornfield, dos quais tentava tão desesperadamente livrar-se.
Percorreu o corredor em bicos de pés. A coleira de Harry tilintou na sala de estar quando a viu aparecer. Ela ajoelhou-se para lhe beijar a cabeça. Mesmo meio adormecido, ele sabia guardar segredos.
As mãos tremeram-lhe quando abriu a porta de rede. Inspirou profundamente o ar perfumado da noite. Assim que desceu os degraus e pisou o caminho de terra, Alice desatou a correr.
Os arbustos arranhavam-lhe os tornozelos nus enquanto corria por entre os campos de flores, e depois pelo mato que ia dar ao rio. Sentiu lágrimas nos olhos, mas continuou. A noite estava fria e seca. As cigarras cantavam. A luz leitosa da lua envolvia o mundo num fulgor pálido. O futuro brilhava à frente dela, num embrião prestes a tornar-se vida.
Alice chegou ao rio. Pousou a mala. Limpou os olhos. Envolta na escuridão, estudou os nomes das mulheres da sua família gravados no eucalipto; mulheres que tinham estado sentadas precisamente naquele sítio, lançando os seus sonhos ao rio. Passou os dedos pelos novos nomes recém-cravados no tronco, e cheirou-os, inalando profundamente o aroma a madeira recém-cortada. Lembrou-se de quando era criança e viera pela primeira vez ao rio – achando que se o seguisse, chegaria a casa. Mas, em vez disso, o rio trouxera Oggi até ela. E agora ele era a sua casa. A sua história.
Compôs-se, passando os dedos pelo cabelo e alisando a roupa, à espera de ouvir os passos de Oggi. Tirou o medalhão de dentro da camisa e sussurrou Estou aqui, olhando o rosto da mãe. Enrolou a echarpe à volta do pescoço e sentou-se na base do eucalipto, apoiando as costas no tronco.
Inclinou a cabeça para trás, na esperança de ver estrelas cadentes.
E esperou.
O grito de um bando de catatuas-rosa acordou-a. Doía-lhe o pescoço. Sentia a pele húmida e fria. Endireitou-se e estremeceu. O rio agitou-se ao lado dela, sob a luz fria da manhã.
O nome dele aflorou-lhe os lábios. Alice caminhou por entre as rochas e raízes junto à margem. Nenhum bilhetinho deixado entre as pedras, nada amarrado nos ramos baixos da árvore. Talvez ele estivesse à espera dela na quinta. Um cacarejo soou do meio das árvores enquanto as cacatuas ensaiavam o seu coro matinal. Alice deixou a mala onde estava e correu por entre as árvores e ervas altas, esforçando-se por ignorar a onda de medo que lhe tomava o estômago.
Quando chegou a Thornfield, as Flores já estavam de aventais postos, a cuidar das plantas. Alice desatou a chorar. Subiu os degraus e entrou na cozinha. June estava encostada ao balcão, a beber café.
– Bom dia, querida. Queres torradas? Café?
– Ele está aqui? – perguntou ela com a voz embargada.
– Quem? – perguntou June, o rosto sereno.
– Sabes perfeitamente – disse ela, exasperada.
– O Oggi? – June pousou a caneca e franziu o sobrolho, preocupada. – Alice… – murmurou, indo ao encontro dela para a abraçar. – O que é que se passa, Alice?
– Onde é que ele está?! – gritou a jovem.
– Em casa, espero eu, a preparar-se para ir trabalhar, como é o seu dever – disse June, olhando para Alice de alto a baixo e perdendo-se no vestido amarrotado. – O que é que se passa?
Alice livrou-se dos braços dela, tirou as chaves do gancho da parede e correu para a carrinha.
O pânico envolveu-a enquanto acelerava em direção à vila. Virou à esquerda e entrou no caminho da casa de Oggi, fazendo a carrinha derrapar e soltar uma nuvem de pó antes de parar à porta.
No alpendre estavam duas cadeiras, uma de cada lado de uma mesinha onde repousava um vaso com uma rosa acabada de colher – como se, a qualquer momento, Boryana fosse aparecer no alpendre para lhe oferecer um chá.
Alice correu para a porta de casa, contando que estivesse trancada. Mas não estava; abriu-se sem resistência. Lá dentro, nada de estranho. Nenhum sinal de alerta. Nenhuma evidência de caos, de crise ou de qualquer motivo que o tivesse impedido de encontrar-se com ela no rio. A jovem deambulou pela casa. Estava arrumada e acolhedora, mas havia algo de errado. Parecia demasiado limpa. Ou talvez ela não quisesse admitir uma verdade mais profunda, uma resposta mais óbvia. Oggi tinha levado Boryana de volta para a Bulgária; tinha mudado de ideias e partido sem ela. O vento soprava pelas janelas soltando um assobio sinistro.
Nas traseiras da casa, o jardim de rosas estava lindo, resplandecente. Alice lembrou-se dos vales de rosas nascidos do ouro e das ossadas de reis, do mar de pétalas da cor do fogo. Num ímpeto cego, arrancou as rosas dos seus caules e destruiu-as, fazendo cair uma chuva de pétalas aos seus pés.
Oggi tinha partido sem ela.
Alice continuava no mesmo lugar, rodeada de pétalas de rosas, quando a carrinha de June surgiu no horizonte. Não sentiu os joelhos falharem-lhe. Quando veio a si estava caída no chão, cheia de pó, envolta no abraço de June. Sentiu o cheiro da pele dela, a terra fresca, whisky e pastilhas de hortelã-pimenta.
– Tu desmaiaste Alice. Mas estás bem… Estás segura, eu estou aqui – sussurrou-lhe a avó.
– Ele foi-se embora sem mim… – soluçou a jovem.
June abraçou-a com mais força, embalando-a para a frente e para trás.
Ficaram as duas assim por um longo momento, até os soluços de Alice acalmarem aos poucos.
– Vamos para casa. – June afagou suavemente os braços de Alice. Esta concordou com um aceno.
Ajudaram-se mutuamente a levantar-se, sacudindo o pó das roupas e dirigindo-se cada uma à sua carrinha. Alice conduziu lentamente de regresso a Thornfield, seguida de perto por June.
Assim que chegaram a casa, Alice correu para o quarto. June deixou-a ir. Deve estar exausta. June esforçou-se para afastar do pensamento a visão de Alice esperando a noite inteira por Oggi. Ela fizera o que tivera de fazer para manter a neta a salvo. Era para o bem dela. Era para o bem dela, repetiu para si mesma mais firmemente. Empurrou a porta de rede e deixou que ela se fechasse atrás de si. Estava feito. Alice continuava ali. Estava a sofrer, sim, mas era suficientemente jovem para conseguir ultrapassar. Estava a salvo. Debaixo da sua asa protetora.
June dirigiu-se ao frigorífico e serviu-se de um copo de água com gás. Pegou num limão de uma taça de cima da bancada e fatiou-o, colocando dois pedaços no copo. Dirigiu-se rapidamente ao armário das bebidas alcoólicas e pegou numa garrafa de whisky, vertendo uma boa dose no copo. Mexeu-a com o dedo e deixou-se ficar em frente ao lava-loiças, a beber.
Em breve, Thornfield ficaria a cargo de Alice. Era esse o próximo passo. Uma rapariga de coração partido era tão vulnerável quanto uma cabana de madeira sem um aceiro, na época dos incêndios; a mais pequena faúlha podia consumi-la. Assim como June tinha visto Agnes, também ela órfã, ser consumida por Clem. E eis que surgira Alice, o fruto dos dois. Sempre que June via a neta irritar-se, numa expressão demasiado parecida com a de Clem, corria a afogar a mágoa na garrafinha de bolso, por vezes antes até do pequeno-almoço. Noutras alturas, a natureza delicada e fantasiosa da neta transmitia-lhe a sensação de que a própria Agnes tinha regressado a Thornfield. Para June, tudo aquilo era quase insuportável. Não estava disposta a cometer o mesmo erro duas vezes; não voltaria a perder a sua família. E fizera o necessário para garantir isso mesmo. O que Alice precisava agora era de distração e independência. Uma sensação de utilidade, de propósito e liberdade. E era exatamente isso que June tencionava dar-lhe.
Alice escavou e cortou o tronco do eucalipto do rio até lhe doer o pulso. Durante uma semana, regressara ao rio todas as noites. E quantos mais dias passavam sem respostas, sem que Oggi lhe surgisse com elas, mais amaldiçoada ela se sentia pelo rio e pelas suas histórias secretas. A começar pelo nome no topo da lista cravada no tronco da árvore: Ruth Stone.
Ao longo dos anos, Alice ficara apenas a saber o que Candy lhe contara sobre Ruth; que fora ela a trazer para Thornfield a linguagem das flores; que criara uma quinta de flores nativas australianas apenas com as sementes que o seu malfadado amante lhe ia trazendo. Sempre que Alice pedia a Candy ou a Twig que lhe contassem mais coisas, elas sugeriam-lhe sempre que perguntasse a June – mas quando Alice confrontava a avó, esta mostrava-se evasiva. A Ruth Stone representa o modo como Thornfield sobreviveu, dizia, ou algo parecido e igualmente críptico, do tipo: É por causa da Ruth que um dia vais herdar esta terra. Alice tinha uma vontade intrínseca de lhe responder que isso era ridículo, pensar que quem quer que fosse pudesse considerar-se dono de terras, árvores ou flores. Ou do rio. Mas acabava invariavelmente por se deixar tomar por um pensamento mais persistente: Então e o meu pai? perguntara um dia a June. Ele devia ter herdado Thornfield de ti, certo? Mas June não lhe respondera.
Na carta que escreveu à neta quando ela fez dez anos, June dizia que se ela encontrasse a sua voz, June dar-lhe-ia respostas; a verdade é que a avó nunca lhe falou de Clem. Ou de Agnes. Ou de como eles se conheceram, e por que razão partiram. Tudo o que Alice conseguiu perceber sobre os pais e o que acontecera entre June e Clem eram meias-verdades. Ela sabia que a história da sua família estava enterrada na mesma terra de onde June arrancava flores que diziam as coisas mais difíceis de pronunciar; se ao menos Alice soubesse onde escavar… Só depois de chatear as Flores até à exaustão é que conseguiu desencantar uma única e simples verdade: nem mesmo June se revelara imune no que respeita ao amor e ao destino. Um e outro tinham devorado partes da sua vida, e cuspido os restos que faziam dela a mulher que era. O pai de June morreu quando ela era muito nova, e tanto o amante como o filho tinham-na abandonado. Sempre que June amou um homem, acabou com o coração partido. Alice estava ligada a June por laços de sangue – e de dor – e, agora, pelo triste fado de esperar por uma promessa, apenas para a ver ser quebrada junto ao rio.
Alice apoiou-se no eucalipto com o canivete na mão, raspando raivosamente o nome de Oggi do tronco. Arrancou as letras do nome dele, bem como o seu sorriso, o bom coração e a generosidade. Quando acabou, atirou o canivete ao rio, seguido de uma boa braçada de seixos.
Deixou-se cair no chão e abraçou os joelhos, soluçando. Jamais voltaria a permitir que o amor a enganasse daquela maneira.
Através da janela, June viu Alice regressar do rio. Caminhava pesadamente, carregando aos ombros a sua dor, a expressão tão extenuada como quando tinha nove anos e June a trouxera para casa, vinda do hospital. Mas pelo menos estava ali. June não a tinha perdido.
Alice entrou na cozinha pela porta de trás e a avó apressou-se a disfarçar, preparando uma caneca de chá.
– June… – começou a jovem, sem terminar a frase.
A avó voltou-se para olhar para ela. Abriu-lhe os braços. Alice pareceu estudá-la, como que a ponderar alguma coisa antes de se deixar envolver pelo seu abraço.
Enquanto amparava a neta nos braços, June lembrou-se de uma entrada específica no seu tão amado Dicionário de Thornfield: a da ervilha-do-deserto: Tem coragem, acredita, escrita na bonita caligrafia de Ruth Stone. June tinha aprendido com a mãe e com os livros tudo o que havia para saber sobre a ervilha-do-deserto. Como era frágil e difícil de se propagar, apesar de crescer descontroladamente em algumas das paisagens mais agrestes da Austrália. Mas também o modo como, nas condições certas, acabava sempre por florescer, linda e radiosa.