16. Tojo de ervilha-amarga
Tojo de ervilha-amarga
Significado: Beleza Cruel
Daviesia ulicifolia | Em toda a Austrália
Arbusto espinhoso com deslumbrantes flores-de-ervilha amarelas e encarnadas. Floresce no verão. A semente propaga-se facilmente após a escarificação. As sementes permanecem viáveis por muitos anos. Inimigo dos jardineiros por ser demasiado espinhoso, representa um excelente refúgio para aves pequenas, protegendo-as dos predadores.
Alice estava de pé no terraço das traseiras, vendo o céu da tarde escurecer sobre os campos de flores. Enterrou o rosto nas voltas da echarpe. Aos vinte e seis anos as tempestades deixavam-na tão assustada como quando tinha nove.
Fevereiro era um mês extremamente cruel para todas quantas habitavam Thornfield. Ventanias quentes de verão sopradas de noroeste causavam estragos, ameaçando devastar os campos de flores e danificar as hortas e os politúneis. Dias e dias de calor seco e vendavais fortíssimos eram quase insuportáveis; levantavam o pó e as cinzas de coisas há muito esquecidas, reabrindo feridas antigas e despertando histórias há muito silenciadas em cantos esquecidos, sonhos e livros por acabar. Nas noites sufocantes, os pesadelos eram frequentes. Em meados de fevereiro, nenhuma mulher de Thornfield fora poupada.
Para Alice, o pior de tudo era o vento que uivava por entre os campos de flores, chamando por ela. O tempo errático trazia-lhe sempre de volta aquele dia fatídico em que entrara na cabana do pai.
Retirou o medalhão de dentro da camisa de trabalho. Os olhos da mãe fixaram os seus, num preto e branco granulado. Alice ainda se recordava bem da cor dos olhos dela: o modo como mudavam consoante a luz; como se iluminavam quando contava histórias; quão distantes se tornavam quando estava no seu jardim, enchendo os bolsos de flores.
Alice sacudiu as botas enquanto via os campos de flores serem fustigados pelos ventos fortes. Disse a si própria que jamais sairia de Thornfield, o sítio onde a mãe encontrara consolo e segurança, onde aprendera a falar com as flores. O local onde os seus pais se tinham conhecido e, Alice gostava de acreditar, onde se tinham amado com a mesma intensidade com que ela amara Oggi.
Já quase que por instinto a jovem enterrou dentro de si os pensamentos sobre Oggi. Não se permitia perguntar «e se?». E se tivesse decidido ir atrás dele quando ele não apareceu no rio naquela noite? E se tivesse ido sozinha até ao Vale das Rosas? E se o tivesse encontrado e juntos tivessem definido um plano completamente diferente? E se ela tivesse ido para uma universidade no estrangeiro, como Oxford, por exemplo – onde lera que os edifícios eram feitos de arenito da cor do mel – e não para uma escola por correspondência, fazendo exames na mesa da cozinha de June? E se, quando fez dezoito anos, tivesse dito que não a June, que não queria ficar a gerir Thornfield? E se nunca tivesse entrado na cabana do pai? E se a mãe tivesse deixado o pai e criado Alice em Thornfield, com Candy, Twig e June? Com o irmão mais novo de Alice?
E se, e se, e se?
Alice viu as horas. Na véspera, June e algumas das Flores tinham ido aos mercados das cidades vizinhas e regressariam naquela tarde, mas se Alice ficasse à espera delas para ajudá-las a descarregar, corria o risco de encontrar os correios fechados. O negócio estava a melhorar, depois do Natal, e havia uma imensidão de encomendas para aviar; as jóias de June estavam mais populares do que nunca.
Alice atravessou a casa e parou no vestíbulo para enfiar o seu Akubra. Uma nuvem de poeira subia em remoinho no fundo dos degraus do alpendre. Abriu muito lentamente a porta de rede.
– Pó do diabo – sussurrou.
A espiral de poeira pairou ali por alguns momentos, atingindo praticamente a altura de um homem, depois dispersou e espalhou-se. Alice soltou um suspiro exasperado, lembrando a si própria que era fevereiro – uma época em que o passado soprava e os fantasmas pairavam por todo o lado.
Subiu para a carrinha, aliviada com a calma do seu interior. Olhou para o lugar do passageiro, sentindo a falta da companhia de Harry. Enquanto Alice tentava adaptar-se à enormidade da sua ausência, para June a morte de Harry traduziu-se no constante recurso à sua garrafinha de whisky, procurando consolo sem contenção ou secretismo.
June tinha chegado a um ponto crítico. À medida que envelhecia mostrava-se cada vez mais agitada, fervia em pouca água, quer fosse pelo atraso na chegada do correio, uma ventania inesperada, ou o murchar das pequenas flores numa acácia baileyana. De vez em quando, Alice ouvia-a murmurar o nome de Clem, enquanto fazia as suas joias a partir de flores que apenas contavam histórias de perda e de luto. Cada vez com mais frequência os olhos de June focavam-se em algo longínquo, algo que Alice não conseguia enxergar. O que estaria ela a recordar? Estaria finalmente a fazer o luto pelo filho? Sempre que a jovem pensava em fazer aquele género de perguntas a June, acabava a optar pelo silêncio, por ser mais fácil. Silêncio e flores. Às vezes deixava-as na bancada da avó. Um punhado de jacintos-dos-bosques cor de malva: sinto a tua bondade. E June deixava sempre a sua resposta na almofada de Alice. Um raminho de estrelas-de-Belém: não há quem não te ame.
Deixou-se ficar sentada na carrinha, olhando os eucaliptos manchados, a casa, o ateliê coberto de hera, as espigas secas de trigo, as flores silvestres que cresciam nas fendas por entre as pedras. Thornfield tornara-se a sua vida. Toda a sua vida. A linguagem das flores era aquela em que ela mais confiava.
Suspirou profundamente e ligou a ignição. O céu começava a escurecer. Quando arrancou, ficou a olhar pelo retrovisor, vendo Thornfield desaparecer ao fundo.
Alice ouviu o ribombar de um trovão no momento em que estacionou e começou a descarregar as caixas das encomendas. Serviu-se de um carrinho para levá-las até aos correios, onde as despachou e recolheu a correspondência de Thornfield. Quando saiu, a luz da tarde assumira um arrepiante tom esverdeado. Um relâmpago rasgou os céus, levando Alice a correr para a carrinha. Ligou a ignição, tentando abstrair-se dos seus temores, vasculhando a pilha de correspondência. Extratos bancários, contas de telefone, faturas e publicidade. E um envelope escrito à mão. Endereçado a ela. Alice voltou a carta. O remetente era da Bulgária.
Rasgou o envelope com as mãos trémulas. Deu uma vista de olhos rápida ao texto, absorvendo apenas uma palavra aqui e ali. No fim, o nome dele, escrito pela própria mão. Oggi.
Com um longo suspiro começou a lê-la, obrigando-se a ler devagar para absorver cada palavra.
Zdravey Alice,
Já perdi a conta a quantas vezes tentei escrever-te esta carta. Encheria uma caixa inteira com as minhas tentativas, cartas cheias de coisas que não tenho coragem de te dizer. Mas o velho clichê é verdadeiro: o tempo faz qualquer coisa à dor que nada mais consegue. Agora tenho a sensação de já terem passado anos suficientes. E esta é a carta que eu te vou escrever e enviar.
Para ser sincero, não me sais da cabeça desde a noite em que combinámos encontrar-nos no rio. Vi na Internet que assumiste as rédeas de Thornfield, e que o negócio vai de vento em popa sob a tua orientação e cuidado. Também tenho visto todas as tuas fotos de perfil, atualizadas a cada ano. E nos teus olhos consigo ver a miúda de que me recordo.
Mas isso já foi há muitos anos. Agora somos pessoas diferentes. Com vidas diferentes.
Atualmente vivo em Sófia com a minha mulher, Lilia. Há cinco anos tivemos uma filha. Chama-se Iva. É muito parecida contigo quando eras criança. É rebelde e aventureira, sensível e sonhadora, e adora livros. Sobretudo contos de fadas. O seu livro favorito é uma história búlgara muito conhecida acerca de um lobo ingénuo e uma raposa astuta e atrevida. A moral da história é que as pessoas engenhosas vão sempre tentar abusar da tua fraqueza, se as deixares. A Iva pede-me que lhe leia esta história vezes sem conta. E eu leio-a as vezes que consigo suportar. A Iva sofre sempre pelo lobo. Pergunta-me por que é que ele não consegue ver como a raposa é astuta. E eu nunca sei o que lhe responder.
Depois de tantos anos, escrevo-te agora para fechar a ferida. Quero muito que sejas feliz. Depois de tudo o que se passou, desejo-te uma ótima vida.
Cuida de ti. Cuida de Thornfield.
Vsichko nai-hubavo, Alice. Tudo de bom.
Oggi
Alice trincou o lábio inferior e gritou de dor. Largou a carta. Inclinou-se sobre o volante e viu os relâmpagos rasgarem as nuvens de tempestade. Um bando de catatuas-de-peito-rosado guinchou de dentro da coroa verde-prata de um eucalipto. A estrada à frente dela acenou-lhe, seguindo para fora da vila. Como desejava saber até onde a poderia levar… E se decidisse segui-la até ao fim, sem parar? O fardo dos seus sonhos fracassados pesava-lhe nas costelas, arrasadas pelo peso dos seus suspiros. Imaginou cada um deles como se fosse uma flor prensada, cada uma esmagada ainda em pleno florescimento, uma lembrança daquilo que poderia ter sido. Deu um forte pontapé na porta, limpou as lágrimas e meteu a primeira. A verdade é que ela era a única culpada no meio de tudo aquilo. Por não ter ido atrás de Oggi. Por não ter partido quando tivera oportunidade. Por que motivo resolvera ficar? Aquela era a vida que construíra; dedicando-se de corpo e alma à terra que guardava da mesma maneira segredos e flores. Terra essa que um dia seria sua; uma terra de que não queria nem um centímetro quadrado.
Pegou de novo na carta, gemendo de dor sobre as suas linhas. Nos teus olhos consigo ver a miúda de que me recordo. Mas isso já foi há muitos anos. Agora somos pessoas diferentes. Com vidas diferentes.
Antes sequer de se aperceber do que fazia, Alice pisou com força o acelerador, levantando pedrinhas do chão. Num mero capricho, em vez de virar para casa, seguiu pela direção oposta, descendo a Main Street. Fez uma curva acentuada à esquerda e entrou na estrada poeirenta, sombreada pelos arbustos. Aventurou-se pela densa vegetação que ladeava a alameda de eucaliptos até chegar à antiga casa de Oggi. Tinham-se passado oito anos desde a última vez que ali estivera.
Assim que se viu na clareira, Alice arquejou. Saiu da carrinha debaixo da forte tempestade. As bravias roseiras Ognian tinham consumido parte da casa. Trepavam desenfreadamente pelas paredes, cobrindo-as, bem como grande parte do telhado. Para onde quer que Alice olhasse, só via arbustos silvestres em pleno florescimento; uma casa sufocada por um fogo de rosas. A fragrância era quase intoxicante.
Alice gritou a plenos pulmões. Disse o nome dele em voz alta, dirigido a ninguém. O vento chicoteou-lhe o rosto. Andou de um lado para outro, para a frente e para trás. Ao longo daqueles oito anos ele sabia onde ela estava, e o que fazia da vida. Demorou oito anos a conseguir escrever-lhe. Mas continuava sem lhe dar respostas. Porque não fora ter ao rio naquela noite, como tinham combinado? O que é que aconteceu? Por que razão esperou tanto tempo para contactá-la? O que é que não tivera coragem de lhe dizer na altura? Como suportava viver com outra mulher a vida que tinham planeado juntos? Por que raio falou tanto do conto de fadas preferido da filha? Ele sabia onde ela estava durante todo aquele tempo, mas ela não sabia nada dele, nem sequer se estava bem; ao longo de todos aqueles anos, Alice procurara o nome dele na Internet, mas sem sucesso. Para Alice, Oggi não passava de algo que ela tinha sonhado.
O vento arrancava as rosas dos seus caules, espalhando-as aos pés de Alice. Ela agarrou num punhado de pétalas e desfê-las em pedaços. Precipitou-se sobre a casa coberta de rosas, arrancando a hera, cortando-se nos espinhos. Arrancou e despedaçou e gritou, tomada por uma onda de fúria, dor e humilhação.
Uma súbita bátega de chuva fria retirou-a do transe. Alice ficou atordoada ao tomar consciência do que acabara de fazer. Correu para a carrinha, completamente encharcada. A chuva batia com força contra o vidro. Deixou-se ficar ali sentada, recuperando o fôlego. Olhou para a casa por entre o movimento do limpa-para-brisas.
Um relâmpago atingiu em cheio um arbusto próximo, seguindo-se um estrondo incrível quando um gigantesco ramo de eucalipto caiu no chão. Arrepiada de frio e de medo, Alice fez inversão de marcha. Seguiu de regresso a casa debaixo de um forte temporal e com pétalas de rosa coladas à pele molhada.
Quando chegou a Thornfield, viu toda a gente agitadíssima, correndo a fechar as janelas, do dormitório e do ateliê, amarrando coisas, e trazendo para dentro de casa tudo o que não estivesse amarrado. A chuva tinha abrandado, mas o vendaval permanecia cortante e impiedoso. A jovem lutou contra o vento, subindo os degraus do alpendre.
– O que é que se passa? – perguntou a June, escondendo os olhos inchados.
– Uma tempestade horrível – gritou-lhe a avó. – Nem sei como conseguimos cá chegar. A meteorologia lançou avisos de cheias ciclónicas.
– Cheias? – Alice olhou para os campos de flores com uma expressão aterrada.
– É o que dizem. Temos de andar depressa, Alice.
Assim que a chuvada recomeçou, não voltou a abrandar. Todas se esforçaram por proteger a quinta, mas não havia praticamente nada a fazer para preservar os canteiros de flores da força do vento, e da chuva que caía em catadupa. A eletricidade foi cortada pouco depois de o sol se pôr. As janelas do dormitório encheram-se da luz de velas e candeeiros a petróleo, bem como a sala de jantar. Candy, Twig, June e Alice sentaram-se à mesa e comeram os restos de um caril de mandioca que Candy aqueceu num pequeno fogão a gás.
– Estás bem, ervilhinha? – quis saber Candy, estendendo-lhe uma taça com coentros frescos picados. – Estás muito calada.
Alice recusou os coentros com um gesto do garfo.
– É por causa desta tempestade. – As palavras de Oggi insistiam em vir-lhe à mente. Algo no conto preferido da filha dele a inquietava. Frustrada, poisou os talheres no prato, fazendo mais barulho do que era suposto. – Desculpem – disse, pressionando as têmporas com os dedos. O vento uivava por debaixo das portas e fazia abanar as janelas. A tempestade piorava a olhos vistos. Estaria Thornfield em perigo? – Meu Deus, custa-me tanto respirar… – Alice arrastou a cadeira para trás. Levantou-se e andou de um lado para o outro.
– Alice? – O rosto de June revelava genuína preocupação. – O que é que se passa?
– Nada – apressou-se a responder num tom irritado. Fechou os olhos com força para evitar que as lágrimas caíssem. Esforçou-se por afastar a imagem das rosas a devorarem a casa de Oggi.
– Não é só por causa da tempestade, e esse nada não nos convence, Alice. O que se passa? – insistiu Twig.
O estrondo do ramo a partir-se e a cair no chão junto à casa de Oggi afluiu-lhe aos ouvidos.
– O que é que vocês não me estão a contar? – lançou subitamente. – O que é que eu não sei?
– O quê? – June empalideceu.
– Não sei. Eu… Não consigo… – Alice abanou a cabeça. – Desculpem. – Respirou fundo e fechou os olhos por uns segundos. – Recebi uma carta do Oggi, assim do nada. E fiquei triste, só isso. – Alice ergueu o rosto na direção das três.
Os olhos de Candy dardejaram entre June e Twig. Esta repousou os olhos em Alice, calmamente. O rosto de June era imperscrutável.
– O que é que ele te disse na carta? – Twig poisou o garfo.
– Pouca coisa. – Alice abanou a cabeça. – Apenas que queria fechar «velhas feridas» entre nós. Casou e já é pai. Quer que eu tenha «uma ótima vida» … – A voz falhou-lhe. – Mas não disse porque me deixou aqui, ou o que é que o levou a ir-se embora. E eu não compreendo… Não sei como cheguei até aqui, como é que a minha vida se resumiu a isto. – A respiração saía-lhe profunda e irregular. – Não sei quem devo ser, a que lugar pertenço … – Fez uma pausa. – E agora veio a porcaria desta tempestade, e podem seguir-se inundações e estou com medo. Não sei quem sou sem este sítio. O que é que pode acontecer se perdermos os campos de flores? Por que é que não conversamos mais? Sobre seja o que for? Estou farta de tudo aquilo que não dizemos umas às outras. Eu quero saber coisas! Quero muito ter uma conversa real em vez de receber um ramo de flores de cada vez que me revelo… inconveniente. Eu quero saber, June! – Olhou para a avó com uma expressão suplicante. – Quero ouvir as coisas da tua boca. Quero saber tudo. Sobre os meus pais. E de onde venho. Vivo todos os dias com o peso desta sensação de… de… – Gaguejou de frustração, fazendo círculos vazios do ar com as mãos. – De estar à espera de qualquer coisa que nunca virá. Tu disseste-me que quando eu encontrasse a minha voz, June, tu dar-me-ias as respostas… – Os ombros encovaram-se-lhe de desespero.
O rosto de June ensombrou-se.
– Alice – disse, levantando-se e dando um passo na direção da neta. Esta perscrutou-lhe os olhos, esperançada. A chuva zunia lá fora. – Eu não vou a lado nenhum. Tens-me sempre a teu lado – disse ela num fio de voz.
A desilusão queimou-a por dentro.
– Essa é sempre a tua resposta para tudo, não é? – lançou-lhe num tom amargo. – Esquece tudo, porque eu estou aqui. – Ao constatar o que o seu tom agressivo fazia à avó, Alice estremeceu. – Desculpa – balbuciou, tentando recuperar a compostura. – Desculpa, June.
– Não – murmurou June. – Não. Tu tens toda a razão em estares zangada. – Dobrou o guardanapo e saiu da sala. Passado um momento, Twig levantou-se e foi atrás dela.
Alice enterrou o rosto nas mãos. June tinha apenas tentado cuidar dela. Por que é que ela não se limitava a deixá-la fazer isso, esquecendo o resto? Mas outra pergunta impunha-se: por que razão June não lhe contava o que ela queria saber? E, pensando bem, porque é que Oggi não o fizera? Se se tinha dado ao trabalho de lhe escrever passados oito anos, já com uma vida estável e família própria, porque é que insistia em esconder-lhe coisas?
Candy começou a levantar a mesa.
– Desculpem – repetiu Alice.
Candy assentiu.
– A culpa não é tua, ervilhinha. Toda a gente tem as suas histórias tristes. E sem dúvida que é esse o caso aqui, sempre foi. É delas que crescem as nossas flores. – Brincou com os talheres. – E a June tem tantas histórias emaranhadas dentro dela… Creio que ela não sabe mesmo por onde começar.
Alice resmungou:
– Talvez pelas coisas mais simples, não? Tipo: «Alice, foi assim que os teus pais se conheceram», ou «Alice, foi por isto que o teu pai se foi embora», ou «Alice, o teu avô era assim» …
– Eu percebo-te. Mas se ela te contar uma história, sente que terá de te contar outras dez que estão relacionadas. Se puxares por uma raiz, a planta toda vem atrás. E essa ideia deve aterrorizá-la. Consegues imaginar? Seres confrontada com tanta coisa, logo tu que gostas tanto de controlar tudo, tal como a June? – Candy parou à porta da sala com um molho de talheres numa mão e o candeeiro a petróleo na outra. – Deve ser horrível carregarmos o fardo de querermos muito contar uma coisa a alguém, algo que essa pessoa deve saber, mas pensarmos que, para isso, temos de mergulhar bem fundo dentro de nós, a um sítio onde não queremos ir, para encontrarmos essa história que sabemos não poder reescrever.
– Sim, mas… e onde é que isso me deixa? O único familiar que me resta não me conta nada sobre a minha família. Tudo o que tenho são histórias em segunda mão, e por mais que eu goste das coisas que tu, a Twig ou mesmo o Oggi me contaram sobre Thornfield e sobre os meus pais, não é de todo a mesma coisa do que ouvi-las da boca da June. Vocês não viveram as mesmas histórias que ela viveu.
– Pois não – disse Candy. – Mas, como eu sempre te disse, pelo menos tens uma história, ervilhinha. Pelo menos sabes de onde vieste. Não desprezes essa dádiva que…
– Não desprezo – interrompeu-a Alice, esforçando-se por não elevar a voz. – Sei que é tudo pelo meu bem, Candy, mas já estou a ficar farta dessa treta de ter de me mostrar grata pela história que conheço, e vê-la como uma forma de evitar lidar com as histórias que não conheço. Histórias que a June prometeu contar-me quando eu era miúda, e que nunca contou.
A sala encheu-se com o som da forte chuvada que caía. Passado um momento, Candy pigarreou:
– Lamento imenso essa história do Oggi.
Alice não respondeu.
Ao sair da sala, Candy levou consigo quase toda a luz que as iluminava.
Nessa noite, Alice viu-se mergulhada num mar de sonhos de fogo. Uma e outra vez tentou gritar pela mãe, que deixara as suas roupas à beira-mar. Uma e outra vez o mar de fogo não se rendia. Na praia ardida, um lobo e uma raposa perseguiam-se mutuamente por entre as dunas com as caudas a arder. Nas águas rasas, um menino largava um barquinho de papel no mar, os vincos incandescentes. Quando acordou, alagada em suor, Alice levantou-se. As têmporas latejavam-lhe de ansiedade e exaustão. Acendeu a lanterna e desceu para preparar uma chávena de chá.
Parou a meio do corredor. Ouviu vozes vindas da cozinha, e o ar tresandava a whisky. Alice aproximou-se mais.
– Estás a um passinho muito pequeno de a perderes, June – sibilou Twig. – É isso que queres? Tens de lhe contar a verdade. Tens mesmo!
– Cala-te, Twig – A voz de June saiu-lhe entaramelada.
Alice percorreu o corredor pé-ante-pé, encostada à parede.
– Pensas que sabes tudo, mas não sabes nada – balbuciou a velhota, arrastando a língua. – Não passas de mais uma que pensa que sabe tudo.
– Não consigo falar contigo assim. Nem percebo o que dizes. Precisas de te ir deitar.
– Eu vejo perfeitamente como tu a amas, ou julgas que não? Achas que eu não sei que tu vês nela a filha que não pudeste criar?
– Cuidado com o que dizes, June.
– Ohh… Cuidado com o que dizes… June – a mulher imitou-a, entre soluços ébrios.
Alice encostou-se à porta.
– Eu salvei aquela miúda – sibilou June, esforçando-se por articular as palavras. – Salvei-a. O Oggi ter-lhe-ia roubado o futuro… ter-lhe-ia partido o coração. Já vimos isso acontecer, Twig, ou não te lembras? O dia em que liguei para os Serviços de Imigração… foi a melhor coisa que pude fazer por ela.
O choque da traição de June reverberou pela jovem como se tivesse sido fisicamente agredida. Recordaria aquela noite como se a tivesse observado através de uma janela, em vez de a testemunhar pessoalmente. O modo como irrompeu pela cozinha, os olhos em chama e as mãos trémulas. O horror e o remorso na expressão de Twig ao aperceber-se de que Alice as ouvira. O sorriso ébrio de June, tentando recuperar a compostura. Os gritos de Alice. Twig a tentar consolá-la. O choro de June. A dor profunda no olhar de Twig enquanto lhe contava a verdade.
– Ele foi deportado. – A voz de Twig falhou-lhe. – Ele e a Boryana foram mandados de volta para a Bulgária.
Literalmente em ebulição, Alice olhou para a avó.
– Denunciaste-os? – gritou. June olhou para ela, incapaz de focá-la.
– O que é que se passa? – Candy irrompeu pela cozinha, estremunhada.
Um surto de adrenalina levou Alice a agir. Saiu a correr da cozinha, subiu as escadas aos tropeções e entrou no quarto. Pegou num saco de viagem e encheu-o com todas as coisas de que gostava a que conseguiu deitar a vista. Depois cambaleou escada abaixo, empurrou as mulheres que a esperavam no vestíbulo, e tirou as chaves e o chapéu do gancho. Ao abrir a porta foi literalmente abalroada pela força do vento e da chuva. Cambaleou para tentar recuperar o equilíbrio. Candy e Twig imploraram-lhe que não se fosse embora. Recordar-se-ia da cena seguinte sempre da mesma maneira: lenta e distorcida; voltou-se para olhar para os rostos delas, tão cheios de preocupação. Atrás delas, June cambaleou no escuro.
Alice olhou fixamente para as três mulheres. Após um momento, virou costas e irrompeu pela tempestade, batendo com a porta atrás de si.
As escovas do limpa-para-brisas não eram suficientes para a chuva torrencial que caía sem parar. Alice cravou as mãos no volante, sentindo a carrinha derrapar na estrada lodosa e inundada; os braços tremiam-lhe do esforço de a segurar. Não tirou o pé do acelerador, temendo ficar atolada se o fizesse. Ou pior, perder a coragem e voltar para trás.
Tencionava atravessar a vila, transpor os seus limites e entrar pela estrada do mato, seguindo para leste. Mas depois de uns quantos quilómetros a descer, travou subitamente: à luz fraca dos faróis da carrinha, deparou-se com a estrada completamente inundada, impedindo-a de seguir. O rio tinha subido. Alice estremeceu de medo; os campos de flores seriam totalmente destruídos; as sementes levadas dos seus leitos pela enxurrada.
Estudou a escuridão pelo retrovisor. E se não seguisse na direção da costa, mas para o interior? Para longe da água. Deu uma aceleradela no motor. Outro momento passou. Bem agarrada ao volante, conseguiu inverter a marcha e voltar para trás. Na estrada que cortava para Thornfield, o pé desacelerou sem que ela o quisesse. Irritada, pisou o acelerador a fundo, com as mãos cravadas no volante, seguindo para oeste em plena escuridão.
Por mais que Twig e Candy chorassem e implorassem, June recusou-se a voltar para dentro. Deixou-se ficar ali, cambaleando no escuro, chicoteada pelo vento. Alice ia voltar. June fixou o olhar em frente, para ser a primeira a ver os faróis da carrinha da neta. Alice ia voltar. E June poderia finalmente explicar-se.
O whisky que lhe corria no sangue começou a diluir-se, e ela foi sentindo o frio de gelar os ossos. Quando a rajada seguinte se abateu sobre ela, June caiu de joelhos. A porta da frente abriu-se de rompante e Twig saiu, com um casaco nas mãos.
– Levanta-te, June – gritou-lhe, a voz abafada pelo vento. – Levanta-te e leva-me esse rabo arrependido para dentro de casa! – Twig envolveu June com o casaco e ajudou-a a levantar-se.
– Não! Ela vai voltar para trás, e eu quero estar aqui quando ela vier! – June tremia. – A Alice vai voltar e eu vou explicar-lhe tudo.
Twig olhou-a fixamente. June preparou-se para uma resposta mordaz.
Ficaram ambas assim por um momento, de pé mas sem se tocarem, até que Twig envolveu os ombros de June. E ela deixou. E, com o céu a chorar-lhes em cima, voltaram-se em direção a casa.