19. Arbusto Pérola

Arbusto Pérola

20170913_F018

Significado: O meu mérito oculto

Maireana sedifolia | Austrália do Sul e Território do Norte

Muito comum em desertos e ambientes salinos, este arbusto baixo alberga um fantástico ecossistema de tesouros quase ocultos: osgas, carriças, fungos e colónias de líquenes. Resistente à seca, tem uma folhagem perene cinzento-prata que forma uma densa cobertura do solo, retardadora de fogo.

Alice desceu apressadamente a Main Street, com a mente cheia de estrelas cadentes e flores cor-de-sangue com centros vermelho-escuro. Verificou o nome do café que escrevera nas costas da mão, lembrando-se das orientações de Merle. Descer a Main Street, virar à esquerda. Procurar esplanada com plantas, e mesas todas diferentes. Estava quinze minutos atrasada.

O café The Bean ficava num pequeno beco recuado, com cadeiras coloridas e mesas todas diferentes, sarapintadas de tinta. Entre cada mesa, uma mini-selva de plantas envasadas. Oferecia um refúgio fresco e exuberante em pleno deserto.

Moss estava sentado a uma mesa, debaixo de uma árvore-de-guarda-chuva envasada, passando os dedos pela grade metálica de uma pequena transportadora de animais.

– Bom dia – disse a jovem, olhando de relance para ele. Moss endireitou-se, o rosto espelhando um alívio nítido. Pip agitou-se na transportadora, reagindo à chegada de Alice. Pareceu-lhe gordinha, fofa e com os olhos límpidos. A jovem engoliu em seco.

– Não tinha a certeza se virias – disse ele.

Uma rapariga com rastas no cabelo veio registar os pedidos, deixando à sua volta um rasto forte a Patchouly.

– Cafés?

– Para mim um expresso com umas gotas de leite, por favor – disse Moss. A empregada assentiu e olhou para Alice.

– O mesmo, obrigada – disse ela. A rapariga tomou nota dos pedidos e desapareceu lá para dentro.

– E então… – disse Moss. Alice disfarçou, brincando com a cadelinha por entre as grades. – Como tens andado?

Ela cerrou os lábios, assentindo rapidamente com a cabeça.

– Bem – respondeu, deixando que Pip lhe mordiscasse os dedos.

– Não voltaste a desmaiar?

Alice recostou-se e encontrou o olhar dele. Pareceu-lhe genuinamente preocupado. Negou com a cabeça. A empregada regressou com os cafés.

Moss sorriu e mudou de tática:

– Bom, a Pip está ótima, como vês. Dei-lhe uma dose forte de antibiótico.

Alice assentiu:

– Obrigada.

– Queres pegar-lhe?

– Sim, por favor. – O rosto de Alice iluminou-se.

Ele abriu a transportadora. A cachorrinha deixou-se pegar, visivelmente encantada, lambendo-lhe o queixo e farejando-lhe as orelhas.

– Ela não ia sobreviver se não ma tivesses trazido quando a encontraste – disse Moss. – As necessidades dos animais são muito como as nossas. E na maioria das vezes o amor e o carinho podem revelar-se medicamentos poderosos.

Uma série de rostos surgiram na mente de Alice antes que ela conseguisse evitá-lo: o sorriso malandro de Candy; a passada calma e ponderada de Twig; as mãos trémulas de June.

– Este ar quente e seco é um inferno – murmurou Alice, limpando os olhos com a mão. Fechou-os por um momento, imaginando-se a si própria através de uma vista aérea, um ponto indistinguível perante a imensidão do deserto.

– Alice? – Moss chegou-se à frente, tocando-lhe no braço. Alice sobressaltou-se, chegando a cachorrinha ao peito. Ela não era fraca. Não precisava de ajuda.

– Não preciso que me salvem – disse calmamente.

Uma estranha expressão ensombrou o rosto do veterinário. Olhou para trás dela, para a Main Street – onde as lojas se espalhavam sob a sombra das árvores.

– Nunca achei que precisasses – disse ele, assumindo o mesmo tom calmo. – Mas sei o que é virmos aqui parar, completamente sozinhos. – Entrelaçou os dedos sobre a mesa. – Não sei se já ouviste, mas costuma dizer-se por aqui que os brancos acabam no Red Centre por duas razões: ou estão a fugir da lei, ou de si próprios. E de certeza que…

– Eu não estou a fugir – interrompeu-o Alice, sentindo-se corar de indignação. – De nada nem de ninguém. – Esforçou-se para não deixar que o queixo lhe tremesse. Não queria que ele a visse chorar. – Tu não me conheces, Moss. Não preciso de proteção. Não preciso… – Calou-se antes que o nome de June lhe saísse da boca. – Não preciso de ajuda – declarou, assertiva.

Moss ergueu as mãos, como que pedindo desculpa.

– Claro. Tu é que sabes. – O olhar dele perdeu o brilho. Por que motivo não a confrontava? Porque raio não iniciava uma discussão? Ela parecia mais do que disposta a isso.

– Eu não pedi ajuda – disse ela. Pip ganiu nos seus braços e Alice apercebeu-se de que estava a apertá-la demasiado.

– Não estou a perceber esse tom de acusação, ou por que estás tão chateada. Tu apareceste na minha clínica e desmaiaste no parque de estacionamento, Alice. Que tipo de pessoa não te ajudaria?

A emoção reprimida soltou-se do corpo de Alice num único suspiro. Esgotada, passou um dedo pelos padrões do revestimento de fórmica da mesa, seguindo as ondas marmoreadas do branco até ao azul. Acossou-a uma memória agridoce: o pai ziguezagueando na sua prancha em direção ao horizonte.

Sem mais uma palavra, Moss deixou uma nota de dez dólares em cima da mesa e arrastou a cadeira para trás. Alice não o seguiu com o olhar quando ele se afastou, mas quando ele já estava quase no fim do beco, não conseguiu evitar chamá-lo. Moss voltou-se.

– E no teu caso fugiste de quê? Da lei ou de ti próprio?

Moss baixou o olhar por um momento, as mãos bem enfiadas nos bolsos. Quando o ergueu tinha uma tristeza profunda estampada no rosto, que agrediu Alice como uma estalada. Dirigiu-lhe apenas um meio-sorriso e afastou-se sem responder.

Alice ficou onde estava, olhando o espaço que ele deixara vazio. Só quando Pip a mordiscou num dedo é que se apercebeu de que Moss não lhe tinha cobrado o tratamento.

Nessa tarde, Moss correu até lhe doerem os músculos, no seu habitual jogging vespertino. Abrandou até passar a uma marcha rápida, percorrendo o trilho que escalava a escarpa do Bluff.

Queria muito ter-lhe contado, para honrar a promessa que fizera a Twig. Mas quando Alice chegou ao café, primeiro tão cautelosa e depois tão frágil, não conseguiu dizer-lhe. Moss não ia ser como aquele médico que, num corredor de hospital, cuspira as palavras que lhe fizeram as pernas ceder. Não queria ser esse tipo de pessoa com Alice – a pessoa de quem ela sempre se lembraria por lhe ter comunicado em primeira mão a morte do seu único familiar vivo.

Vieram-lhe à cabeça as palavras de Twig: foi o próprio coração que a matou. Depois das inundações, a June sofreu um ataque cardíaco fortíssimo. Mesmo não conhecendo June, aquelas palavras doeram-lhe. A June e a Alice tiveram uma relação conturbada, mas eram a única família uma da outra. A voz de Twig falhara-lhe naquela parte. A Alice está bem? perguntara. Moss nem hesitou em garantir a Twig que Alice estava ótima e em segurança. E sim, dadas as circunstâncias, evidentemente que ia pedir a Alice que lhe ligasse. Evidentemente que lhe diria que Twig precisava que ela regressasse a casa.

Chegado ao cume, Moss parou de correr, esforçando-se por respirar enquanto olhava para a cidade. Que ideia fora aquela de ligar para Thornfield? Por que raio se deixara envolver daquela maneira na vida de uma estranha?

Baixou-se, pousou as mãos nos joelhos e tentou respirar pela boca – tal como o psicólogo do hospital lhe pediu que fizesse, na altura. Era a primeira viagem de férias da família. Lucas ia sentado na cadeirinha de bebé, agarrado ao balde e à pá. Clara tinha um vestido de verão novo, de cores vivas. Moss tirou os olhos da estrada por uns segundos apenas, mas os pneus resvalaram na gravilha solta. À velocidade a que seguiam, a tração às quatro rodas falhou. Acabou com alguns pontos e um colar ortopédico. Tem muita sorte em estar vivo, dissera-lhe o médico. E a Clara? E o Patrick? Moss gritara até ser sedado.

Com razão ou sem ela, Moss não podia ser – não iria ser – o portador daquele tipo de notícia na vida de Alice.

O telefonema chegou dois dias depois.

– Telefone para ti – disse Merle, da entrada do quarto de Alice.

– Quem é? – quis saber a jovem, dando um passo atrás.

– Amiga, eu faço muitos serviços neste sítio, mas secretária pessoal não é um deles.

– Claro – murmurou Alice. – Desculpe. – Fechou Pip no quarto e seguiu Merle escadas abaixo.

– Merle?… Obrigada por me deixar ter cá a Pip – disse a jovem quando entraram no escritório.

– Tudo bem. O Moss fica a dever-me uma – disse a outra com um piscar de olho. Apontou para o telefone, em cima da secretária. Assim que ela saiu, Alice atendeu.

– Estou? – disse, nervosamente.

– Alice? É a Sarah Covington, recebi a tua candidatura ao lugar de ranger. Obrigada.

Alice respirou de alívio, feliz por não ser ninguém de Thornfield.

– Alice?

– Sim, Sarah, estou aqui. Desculpe.

– Ah, ótimo. Pois é, fiquei muito impressionada com o teu currículo. Gerir uma quinta de flores não é coisa pouca. E como a vaga que temos cá é para um contrato temporário, não precisamos de te entrevistar. O que quer dizer que o lugar é teu se o quiseres, Alice.

A jovem esboçou um grande sorriso.

– Estou?

– Desculpe, desculpe, Sarah, estou a dizer que sim com a cabeça! Obrigada, claro que aceito!

– Ótimo. Quando é que podes começar?

– Que dia é hoje?

– Sexta-feira.

– Que tal já na segunda?

– Tens a certeza? Não precisas de mais tempo para fazeres as malas e te organizares?

– Não.

– Então, combinado. Segunda-feira. Encontramo-nos na central do parque. Peço ao Posto de Controlo que me avise pelo rádio quando passares por lá, para te ir esperar.

– Posto de Controlo?

– Perceberás quando lá chegares.

– Ok. Posto de Controlo. Central do parque. Kililpitjara. Segunda-feira. Lá estarei.

– Vou gostar de te ter cá, Alice.

A chamada desligou-se. Alice pousou o telefone.

Pela primeira vez não desejou que o coração abrandasse.

A segunda-feira amanheceu límpida e quente. Alice e Pip percorreram o leito seco do Bluff pela última vez, com ela a guardar nos bolsos as folhas em forma de asas de morcego da árvore-de-coral. Cura para as dores do coração, lembrou-se, e escreveu isso mesmo mais tarde, no seu caderno de notas, colando na página todas as folhas menos uma. Enfiou os seus escassos pertences dentro do saco e, depois de uma última olhadela ao quarto, deixou o hotelzinho do pub que lhe servira de lar por uns tempos.

– Vamos voltar a ver-te? – perguntou-lhe Merle, enquanto esperavam pelo recibo do pagamento. Rasgou o papelinho da máquina e estendeu-o a Alice, assim como o cartão. Alice recebeu-os com um gesto de agradecimento e enfiou-os no bolso. Nunca tinha imaginado que algum dia viesse a gastar o dinheiro que poupara para conhecer o mundo com Oggi naquela sua nova vida no deserto – completamente sozinha.

– Nunca se sabe – respondeu a jovem, saindo para o parque de estacionamento sem olhar para trás.

Arrumou o saco na parte de trás da carrinha, abriu a porta, assobiou a Pip e esperou que ela saltasse lá para dentro. Sentou-se ao volante, tirou do bolso a última folha da árvore-de-coral e prendeu-a no retrovisor. Cura para as dores do coração. Quando arrancaram, a cadelinha sentou-se com um ar muito atento, ladrando para a estrada aberta à frente delas – o que deu uma ideia a Alice. No semáforo seguinte, desceu a rua onde ficava a clínica veterinária. Mas assim que viu a carrinha dele estacionada à porta, perdeu a coragem e pisou com força o acelerador.

Nos arredores da povoação, a estrada surgia iluminada pelo sol matinal. Atrás dela, Agnes Bluff ia diminuindo à distância. Chegada a um cruzamento, a jovem seguiu para oeste, bem para o interior do deserto. Abriu o vidro, repousou o braço na janela e deitou a cabeça para trás. Imaginou que o calor seria bem capaz de esturricar-lhe as memórias, tal como o sol da Austrália Central fizera com as carcaças de gado espalhadas pela terra árida. Deixando na paisagem nada mais que ossos brancos e pó.

Alice conduziu durante três horas, percorrendo o deserto ermo até encontrar uma estação de serviço. Atestou o depósito e deu de beber à cadelinha. A zona estava apinhada de caravanas de campistas, veículos todo-o-terreno e camionetas de turismo. Alice recordou a conversa que tivera com Moss. Os brancos acabam no deserto por duas razões: ou estão a fugir da lei, ou de si próprios. Apressou-se a enfiar a cadela na carrinha. Não tinha cometido nenhum crime, mas também não era exceção.

Olhou em volta e perguntou-se o que pensariam as pessoas se a observassem. Uma rapariga na sua carrinha, com o seu cão, sabe-se lá com que destino? Esperou que não fosse demasiado óbvio o facto de não fazer ideia do que estava a fazer. Esperou que ninguém conseguisse perceber como se esforçava por acreditar que era possível fugir de qualquer coisa, desde que o desejo de o fazer fosse suficientemente forte.

Enquanto observava as famílias, os mochileiros e os grupos de turistas, Alice sentiu um poderoso surto de esperança em relação ao sítio para onde ia. Se conseguisse reconstruir a sua vida num local onde um coração desfeito embatera no solo para se transformar em flores, talvez tudo o que deixara para trás também pudesse transformar-se em algo assim tão bonito.

A paisagem rochosa e vermelha transformou-se paulatinamente em solo limpo e arenoso. Já só lhe faltavam cerca de cem quilómetros para chegar a Kililpitjara. Para se distrair, entreteve-se a estudar os padrões imaculados das dunas. A mais próxima avolumava-se à sua frente, uma pirâmide intocada de areia vermelho-vivo, ondeada pelo vento. Limpou o suor do rosto à t-shirt. As pernas colavam-se-lhe ao banco de vinil. O sol estava alto, a luz ofuscante e ardente. Pip desceu do banco e enroscou-se no chão da carrinha, fugindo ao calor. Alice pisou o acelerador.

– Estamos quase lá, Pip.

Finalmente, após uma ligeira subida, Alice deparou-se com uma penumbra púrpura mesmo à sua frente, bem longe no horizonte. Piscou os olhos várias vezes para ter a certeza de que não era uma miragem. Enquanto se aproximava, inclinou-se para a frente, descolando as coxas do assento de vinil. Atrás das dunas ondeantes, foram surgindo topos de edifícios. Algumas velas brancas. Camionetas de turismo. Uma estrada que saía da via rápida, com sinais iguais de ambos os lados: Bem-vindos ao Earnshaw Crater Resort. Alice seguiu pela estrada até surgir um cartaz anunciando o Posto de Controlo do Kililpitjara National Park. Passou um portão e parou junto à janela de uma pequena casinha de tijolo e chapa ondulada – onde uma mulher a esperava, vestida com a mesma farda que Sarah envergava quando se conheceram.

– Olá. – Alice inclinou-se para a frente para falar pelo intercomunicador. – Chamo-me Alice Hart.

A mulher percorreu com o dedo a lista de uma prancheta, depois sorriu-lhe.

– Avança, Alice. A Sarah está à tua espera – disse-lhe através do intercomunicador e carregando num botão que fez abrir a cancela.

Alice entrou no parque, fascinada pela visão da cratera mesmo à sua frente. Parecia saída diretamente de um sonho, mudando de forma a cada curva da estrada. Ostentava uma beleza estranha, hipnotizante, elevando-se como uma pintura ocre e vermelha recortada no azul do céu. As dunas de areia – pontilhadas com arbustos de spinifex e conjuntos de acácias e carvalhos-do-deserto – pareciam não ter fim, desmedidas e arrebatadoras. Após semanas no deserto, Alice sentiu-se pequena, desconhecida e deslocada – mas curiosamente, gostou da sensação. Era como se pudesse, a qualquer momento, recriar-se completamente; sem que ninguém se apercebesse. Podia ser quem muito bem desejasse.

Vinte minutos depois, estacionou junto a uma casa em enxaimel, rodeada de árvores e arbustos sob a gigantesca presença da cratera. Desligou o motor. Ficou a ouvi-lo arrefecer. Voltou a limpar a cara transpirada à t-shirt. Ao ver uma torneira numa das paredes do edifício, colocou a trela na coleira de Pip e saiu da carrinha. Em seguida, prendeu a trela à torneira, abriu-a, e ficou a ver a cadelinha beber água, feliz da vida. Atrás dela, abriu-se a porta de rede da casa e Sarah saiu de lá, com um sorriso caloroso.

– Alice Hart. Sê muito bem-vinda!

– Obrigada – sorriu-lhe a jovem de volta. De súbito, apercebeu-se de que ter um cão num parque natural poderia revelar-se problemático. – Sarah, não lhe disse na altura, mas eu tenho uma cadela…

– Tudo bem, há mais guardas florestais que têm cães por aqui. O teu quintal está protegido por uma vedação. – Sarah fez um gesto para que Alice a acompanhasse. – Anda daí. Tens um contrato para assinar, temos de tratar da tua farda, e depois eu mostro-te onde vais ficar instalada.

Alice seguiu-a, ligeira e satisfeita, para o interior da casa de madeira. Talvez as coisas pudessem mesmo ser tão simples quanto deixar tudo para trás e recomeçar de novo.

Com uma pilha de fardas verdes no banco ao lado dela, Alice saiu do parque de estacionamento e seguiu Sarah por um anel viário que rodeava a cratera. A enormidade da sua parede exterior era enganadora, como se fosse a encosta de uma cadeia de montanhas; mais uma sucessão de cumes do que uma enorme cratera circular de rocha. Qualquer coisa nela fez Alice estremecer: o tamanho, a idade, o impacto do meteorito a embater na terra. Pip bocejou, no banco ao lado de Alice.

– Tens toda a razão, Pip – murmurou Alice. Tinha a mente demasiado cansada. Estava um calor quase insuportável. Não estava em condições de se pôr a contemplar geologia celestial.

Pouco depois, Sarah saiu do anel viário e entrou numa estradinha que curvava por entre uma clareira de acácias. Alice espreitou pelo meio das árvores, distinguindo alguns edifícios e um campo de futebol poeirento. Chegaram a uma rotunda e seguiram pela primeira saída. Passaram por uma ampla zona de trabalho vedada, dentro da qual se via um barracão de alumínio, bombas de gasolina, e várias garagens gradeadas cheias de maquinaria e veículos com o logotipo do parque. Quando por lá passou, Alice viu dois guardas-florestais dentro do recinto. Um usava chapéu e óculos de sol, e falava com a colega por cima do capô de um coupé utilitário. Ainda que não lhe visse os olhos, Alice apercebeu-se de que ele a seguira com o olhar.

Passaram uma duna, depois uma curva apertada, parando finalmente em frente a uma casa de tijolo pintada de branco, com uma garagem gradeada e uma vedação fechada a cadeado. Alice perguntou-se qual seria a razão para tanta segurança, tantos cadeados e vedações. Sarah saiu do seu utilitário e fez um gesto a Alice para que estacionasse na garagem gradeada vazia.

– Não tens mais bagagem? – perguntou-lhe, pegando no saco e na caixa dos livros. Pip saltou da carrinha para explorar as imediações.

– Tenho umas roupas de cama e utensílios de cozinha que comprei antes de vir para cá. Estão na parte de trás da carrinha.

Sarah tirou umas chaves presas ao cinto de trabalho e abriu a porta da frente da casa. Pip correu lá para dentro, à frente delas.

A casa cheirava a limpezas recentes e tinha imensa luz. Alice pousou as coisas em cima da mesa de jantar, encantada com a vista proporcionada pelo vidro da porta de correr das traseiras, plena de acácias, arbustos de spinifex e rosídeas.

– Tens uma chaleira no armário da cozinha e leite no frigorífico, se te apetecer um chá – disse Sarah. – Vou mostrar-te onde se liga o ar condicionado e onde fica o quadro elétrico. – Sarah apontou para um interruptor logo à entrada da porta e ligou-o. Ouviu-se imediatamente o zumbido suave do ar fresco a inundar a sala. – O sistema não permite que desça abaixo dos vinte e cinco graus, mas chega perfeitamente.

Alice assentiu.

– O quadro elétrico fica nas traseiras, junto ao depósito da água. Se a luz for abaixo, é lá que fica o interruptor. E também é lá que passas o teu cartão de energia. Aqui pagamos os nossos consumos de eletricidade. Já tens um cartão carregado com cinco dólares, e podes sempre recarregá-lo na loja de Parksville.

– Parksville?

– É onde estamos – explicou-lhe Sarah. – As habitações e a comunidade do staff. – Fez um gesto largo em torno delas. – Os trabalhadores do parque vivem deste lado da duna – apontou para a duna de areia avermelhada que se via do quintal das traseiras. – Do lado de lá fica um pequeno armazém que vende de tudo um pouco, a receção e o alojamento dos visitantes. A vinte quilómetros daqui fica o resort, onde estão hospedados os turistas. E lá encontras o supermercado, o posto dos correios, o banco, a estação de serviço e uma série de pubs e restaurantes.

Alice assentiu de novo.

O rosto de Sarah encheu-se de compaixão.

– Um passo de cada vez, amiga. E em breve estarás como peixe na água. Já pedi a uma das guardas-florestais que passe por aqui e te faça uma visita guiada pelo parque.

– Obrigada – disse a jovem.

– Bom, vou deixar-te para te instalares à vontade. Vemo-nos amanhã bem cedo, pela fresquinha?

– Claro. E obrigada, Sarah… por tudo.

Enquanto via o carro de Sarah afastar-se, Alice encostou as costas à porta e fechou os olhos. A casa encheu-se de um silêncio que lhe fez latejar as têmporas. Estou aqui. Inspirou. E expirou. Estou aqui.

Pip lambeu-lhe um tornozelo. Alice abriu um olho e espreitou a cachorrinha. Esta pôs a cabeça de lado e Alice sorriu. Estavam na sua nova casa.

Encostada à parede da sala encontrava-se uma estante alta de madeira, e uma robusta secretária cinzenta e respetiva cadeira. Alice sentou-se e passou as mãos abertas sobre o tampo, pensando nos seus cadernos de apontamentos sobre as flores. Olhou para o quintalzinho traseiro, reconfortando-se com a visão das flores nativas. Passaria a escrever ali, decidiu. Vieram-lhe à memória os seus dias de menina, quando escrevia à secretária de madeira de eucalipto feita pelo pai: o tampo liso e brilhante, o cheiro dos lápis-de-cera e do papel. Os fetos verdes e aveludados do jardim da mãe. Alice abanou a cabeça, voltando a concentrar a atenção na secretária à sua frente, e na vista que a porta de vidro lhe oferecia: terra vermelha e poeirenta, arbustos verdes, e uma vedação de arame que separava a casa das dunas que a rodeavam, tudo debaixo de um céu muito azul.

Próximo da secretária, um arco abria caminho para o quarto principal. Alice levantou-se e foi fazer a cama de lavado.

Depois dirigiu-se à janela do quarto e por ali ficou. Ao fundo, a parede de rocha vermelha da cratera resplandecia sob o calor, qual sonho flamejante.