21. Ervilhas-do-deserto-de-Sturt

Ervilhas-do-deserto-de-Sturt

20170913_F025

Significado: Tem coragem. Acredita.

Swainsona formosa | Interior da Austrália

As malukuru (Pitjantjatara) são plantas famosas pelas suas flores vermelho-sangue em forma de folhas, cada uma com um centro bulboso preto, que provavelmente dará o sentido literal ao seu nome indígena – olho de canguru. Representam uma arrebatadora visão no deserto: um ardente mar de vermelho. Sendo as aves os seus polinizadores mais comuns, florescem inclusivamente em zonas áridas, mas são extremamente vulneráveis ao apodrecimento das raízes, o que dificulta a sua propagação.

Pouco antes do amanhecer, Alice e Pip caminharam por entre os arbustos até ao portão preto da casinha que agora habitavam. Quando Alice o abriu, a cadela abanou a cauda, feliz por poder explorar as redondezas, farejando freneticamente o ar. Subiram uma duna e desceram-na até ao outro lado, entrando nos trilhos de fogo – como Aiden lhe disse chamarem-se as veredas em redor de Parksville. São corta-fogos, dissera-lhe ele. Impedem as chamas de se propagarem, em caso de incêndio. Alice concordara com um aceno de cabeça, esforçando-se por parecer interessada, mas sentiu as entranhas gelarem-lhe. Bebera o resto da sua cerveja de um trago só, tentando afogar as memórias do fogo e do fumo.

Conversar com Aiden enquanto Lulu fazia o jantar revelara-se encantador, e Alice sentiu-se feliz na companhia deles e no aconchego da sua casa: o riso rouco de Lulu, o fritar dos tacos, os frasquinhos de aloé vera e malagueta verde, as estantes repletas de livros e os autorretratos emoldurados de Frida Kahlo. Sentiu saudades, sem saber dizer de quê. O regresso à sua nova casa, praticamente vazia e a cheirar a lixívia, revelara-se algo triste. Deitou-se a pensar em paredes coloridas, frasquinhos pintados à mão e livros que lhe enchessem as prateleiras despidas.

Alice e Pip passaram por uma ala de carvalhos-do-deserto e chegaram ao anel viário. Atravessaram-no, entrando numa zona de mato e seguindo o trilho que ziguezagueava pela encosta da cratera acima, perdendo-se de vista lá no topo.

– Vamos, Pip.

O céu começava a acordar. As botas dela esmagavam o cascalho.

Quando chegaram à plataforma de observação, o colarinho da t-shirt de Alice estava ensopado de suor. Pip seguia muito juntinho a ela, ofegando fortemente. Um enxame de moscas pretas zuniu em volta do rosto da jovem. Enxotou-as, observando os arredores. De ambos os lados da plataforma surgiam paredes ocre que se erguiam em torno e por cima delas – uma onda circular de rocha arrancada da terra por um violento impacto. No centro da cratera, e num círculo perfeito, estendia-se um jardim selvagem e florescente de ervilhas-do-deserto, ondulando sob a brisa. Um gigantesco coração de mãe, um mar de vermelho. Do chão da cratera brotava um surpreendente manto de relva cor-de-lima. O Kututu Kaana era bem mais impressionante do que Alice imaginara; representava todas e cada uma das histórias que ela alguma vez lera, ouvira falar, ou sequer imaginara, sobre os oásis no deserto.

Tem coragem. Acredita.

A força da saudade da mãe, da avó, e das mulheres que deixara para trás, arrebatou-a sem aviso ou misericórdia. Arquejou com a dor, mordendo o lábio com força até sentir o sabor a sangue.

Mais tarde, já em casa, Alice tomou um duche e arranjou-se para o seu primeiro dia no novo emprego. Vestiu-se com particular cuidado e atenção, olhando no espelho a sua nova farda verde de ranger, demorando-se nas insígnias cosidas nas mangas da camisa. Passou os dedos pelas ervilhas-do-deserto no centro da bandeira indígena. Era muito diferente do seu avental de Thornfield. Nunca tinha sentido tanto orgulho em envergar uma farda que conquistara por seu próprio mérito.

Atou as botas novas, pegou na mochila e no chapéu.

– Não brinques com cobras, ok? – Deu um beijinho no nariz de Pip, fechou-a na garagem de grades, e entrou na carrinha. Atravessou Parksville em direção à central. O céu tinha a cor do lápis-lazúli, e a luz da manhã era amarelo-limão.

Quando Alice estacionou na central do parque, sentiu o coração descompassado. Respirou lenta e profundamente, tentando abrandá-lo.

– Wiru mulapa mutuka pinta-pinta – disse uma voz suave à janela dela.

– Desculpe? – Alice pôs a mão em pala sobre os olhos. Uma mulher, com a camisa igual à sua, estava junto à carrinha. Usava um lenço preto, vermelho e amarelo debaixo do seu Akubra de abas largas. Ao pescoço trazia um colar de sementes brilhantes vermelho-sangue. Vestia umas calças brancas, com periquitos-australianos estampados nas mais variadas cores – numa visão tão viva e alegre que Alice não conseguiu deixar de sorrir.

– Sou a Ruby. – A mulher estendeu-lhe a mão. Alice saiu da carrinha e cumprimentou-a. – Estava a dizer que adoro as borboletas da tua carrinha.

– Oh! – Alice sorriu nervosamente, olhando de relance para os autocolantes das portas e pensando em tudo aquilo que eles escondiam. – Obrigada.

– Sou a Ranger Sénior de cá, e esta manhã vou dar-te formação. À tarde sais para o terreno com os outros rangers. – Ruby dirigiu-se a um utilitário do parque. – Guias tu – disse, atirando as chaves a Alice.

– Ah, ok – Alice apanhou as chaves no ar. Dirigiu-se ao carro e abriu a porta do passageiro.

Ruby entrou.

– Boa, vamos lá a isto. Segue para o anel viário.

– Ok.

A postura de Ruby era parecidíssima com a de Twig, pensou Alice. Tentou lembrar-se de qualquer coisa para dizer, mas as palavras secaram-se-lhe na boca, como o pó vermelho.

– O meu trabalho consiste basicamente em formar novos rangers, como tu – disse Ruby, passado um momento. – Ensinar-te as histórias que contamos aos turistas. E também sou poeta, e artista. Represento o Conselho das Mulheres do Deserto Central, e vivo entre o parque e Darwin. A minha família…

– Isso deve ser um contraste incrível – interrompeu-a Alice, desejosa por uma oportunidade de contribuir para a conversa. – Viveres aqui e na cidade. – Fez uma pausa para respirar. – Então és poeta? Eu sou louca por livros. Adoro ler. E sempre gostei de escrever histórias, mas há muito que não o faço, praticamente desde a adolescência. – Para seu desespero, os nervos faziam-na falar sem parar, algo nada habitual nela. Por uma estranha razão, não conseguia calar-se.

Ruby dirigiu-lhe um educado aceno de cabeça e calou-se. Voltou-lhe as costas. Alice mordeu o lábio, cada vez mais nervosa.

Não a devia ter interrompido. Deveria pedir-lhe desculpa? Tentar mudar de assunto? Estaria Ruby à espera que ela lhe fizesse perguntas sobre o parque? E se sim, o quê? E que perguntas é que não lhe devia fazer?

Alice tentou concentrar-se na condução. Quando se aproximavam do parque de estacionamento principal, ouviram-se ruídos do rádio.

Parque nacional dezanove. Dez-nove. Daqui setenta e sete. Sete-sete. Escuto.

O timbre de Dylan atingiu Alice como um murro no estômago. Cravou os dedos no volante. Ruby chegou-se à frente e desligou o rádio, com uma expressão o mais casual possível.

– Estaciona aqui – a mulher apontou para o estacionamento. Uma dúvida terrível instalou-se na mente de Alice. Teria sido demasiado óbvia? Estaria Ruby a pensar que ela estava mais interessada em Dylan do que em prestar um bom serviço no seu primeiro dia de trabalho? E não seria verdade? Por favor, para, implorou a si mesma.

Ruby abriu a porta e saiu do carro. Alice seguiu-a. Deteve-se no início do trilho para ler uma série de painéis informativos. Ruby parou ao lado dela.

– Isto quer dizer que os turistas sabem que o Jardim do Coração é sagrado e que lhes é pedido que não arranquem flores de modo a preservá-lo? – quis saber Alice, apontando para os painéis.

Ruby assentiu:

– Está tudo devidamente explicado nos panfletos, nos guias turísticos e na informação ao visitante. Convidamos os turistas a conhecerem o parque e a aprenderem as histórias deste sítio, mas pedimos por favor para não apanharem flores.

Alice lembrou-se da conversa que tinha ouvido na noite anterior.

– Mas mesmo assim, eles colhem-nas?

– Sim. Deitam a mão a tudo o que podem – disse Ruby, afastando-se, com as mãos atrás das costas.

Caminharam em silêncio. O trilho de terra vermelha seguia pela parede exterior da cratera, passando por campos de spinifex e alas de acácias e carvalhos-do-deserto, tão altos quanto finos. Passado algum tempo, chegaram a um gigantesco rochedo vermelho – exposto como uma porta aberta à entrada de uma pequena gruta. Ruby rodeou-o e entrou. Alice seguiu-a, arquejante, ainda pouco habituada àquele calor sufocante.

– Trouxeste kapi? – Ruby olhou-a sob a luz ténue da caverna, o sobrolho franzido.

Alice olhou-a sem expressão, ajustando os olhos à semiobscuridade.

– Kapi. Água.

Alice corou, lembrando-se que deixara na carrinha junto à central a mochila com a garrafa de água, bem como o seu chapéu. Praguejou mentalmente contra si própria, sentindo-se estúpida. Abanou a cabeça.

– Vais ter de andar sempre com água, daqui para a frente. – Ruby abanou a cabeça e ergueu o olhar para o teto da caverna. Alice revirou os olhos perante a sua própria estupidez. Que tipo de idiota é que anda no deserto sem água?

Alice seguiu o olhar de Ruby para o teto da caverna, e ouviu-a sussurrar. A toda a volta dele surgiam pinturas na rocha – em cores que iam do ocre ao branco, passando pelo vermelho.

Ruby explicou-lhe os símbolos que as mulheres foram pintando ali ao longo de milhares de anos, contando histórias sobre mães, filhos, ervilhas-do-deserto e estrelas.

– Esta terra representa o lugar para onde as mulheres da minha família trouxeram as suas histórias. Para prestarem testemunho. Para se lamentarem. Para honrarem tudo aquilo que amaram. É um lugar pesaroso. E é por isso que não vivemos aqui.

Alice aproximou o olhar das pinturas.

– O trilho até Kililpitjara segue um percurso cerimonial à volta do Kututu Kaana, onde a planta malukuru cresce do interior do coração da estrela-mãe. – Ruby mantinha um tom de voz baixo. – É por isso que pedimos às pessoas que não apanhem flor alguma. Cada uma representa um pedaço dela.

Seguiu-se um momento em que nenhuma das duas falou. Ruby despediu-se do lugar com um aceno de cabeça, virou-se e saiu. Mas Alice deixou-se ficar, fascinada pela arte exibida na rocha, grata por ter tido a oportunidade de conhecer Sarah, em Agnes Bluff.

Acabou por apanhar Ruby um pouco mais adiante, e deu por si a perguntar-se como se sentiria Ruby por ter constantemente de lutar para proteger um local e a sua história – uma história fulcral para a cultura da sua família, há milhares e milhares de anos? Onde arranjaria ela forças para continuar a lutar? E quem era aquela gente que ignorava a vital importância daquele sítio, a sua cultura e tradição, arrancando displicentemente da terra as ervilhas-do-deserto, e negando, ainda assim, estar a destruir os pedaços do coração da estrela-mãe? Havia cartazes espalhados por tudo quanto era canto. Ninguém podia alegar desconhecimento.

Ruby caminhou à frente dela, e Alice seguiu-a. Insegura de si própria e do seu lugar, deixou todas as perguntas por fazer.

O caminho pedestre cruzava-se com o anel viário num lugar chamado Kututu Puli, onde um tanque de água e um banco de jardim protegido por um toldo ofereciam uma excelente visão da parede da cratera sobressaindo dramaticamente da terra: uma cascata de pedras vermelhas e rochedos cobertos por líquen prateado e cor-de-menta. Por um momento, Alice sentiu-se enfeitiçada – literalmente. Até que se lembrou que tinha sede, e bebeu do tanque de água até ficar saciada.

– Este sítio é muito árido – concordou Ruby. – Foi onde o coração de Ngunytju pegou fogo, ardendo completamente ao embater na terra. É isso que estas pedras representam, pedaços do seu coração em chamas. O líquen é de onde o fumo ainda se ergue das cinzas, manchando a parede da cratera.

Alice não olhou para Ruby, temendo que ela lhe visse os olhos marejados de lágrimas – e decidisse de uma vez por todas que ela não passava de uma idiota lamechas e inútil.

– Também vives em Parksville? – disse Alice, agarrando-se à primeira coisa que lhe ocorreu. Porque não lhe fazia mais perguntas sobre a história da cratera para poder fazer bem o seu trabalho? Amaldiçoou-se em silêncio.

– Uwa – assentiu Ruby. – Mas só quando estou cá a dar formação. Venho de propósito ensinar-vos a nossa cultura. Como te disse, a minha família não vive aqui. É um sítio triste, pesaroso. Não é um local para se viver. – Ruby sacudiu o pó das mãos. – Estás pronta para prosseguirmos?

– Sim – respondeu Alice, ansiosa por lhe perguntar por que razão os rangers viviam ali, se não era um sítio para se viver.

Fizeram em silêncio o restante caminho que rodeava a cratera. Um grupo grande de turistas passou por elas, seguindo na direção contrária, a caminho do parque de estacionamento principal. Alice olhou-os com uma expressão desconfiada; teria algum deles colhido uma ervilha-do-deserto? Um bando de andorinhas sobrevoou-as, cantando. O sol caía em farripas através das copas dos eucaliptos. Às tantas, o trilho fazia uma curva acentuada e começava a subir a parede da cratera: Alice reconheceu o percurso que tinha feito naquela manhã com Pip. Protegeu o rosto do sol. Ainda nem estavam a meio da manhã, mas com o sol a cair a pique sobre elas dava a sensação de estarem no mínimo uns quarenta graus.

Chegadas à plataforma de observação, Ruby sentou-se para recuperar o fôlego. Alice fez o mesmo, deixando-se cativar pelo coração das ervilhas-do-deserto.

– Kungka, agora vou contar-te toda a história deste local – começou Ruby.

– Oh, sim, por favor – exclamou Alice, encantada com a ideia. – Eu… bom, li na Internet sobre o coração daquela mãe que caiu aqui, depois de o bebé dela ter caído à Terra, numa outra cratera de impacto próxima desta. – Não se conteve a disparar tudo o que sabia.

Desta vez, Ruby nem sequer olhou para ela. Olhou em frente por alguns segundos, levantou-se e deixou a plataforma, seguindo o trilho descendente da cratera.

Sem saber o que fazer ou pensar, Alice viu-a afastar-se, estupefacta com a sua própria estupidez. Porque é que não te calas de uma vez? gritou para si própria. Nunca quisera tanto impressionar alguém como Ruby. Mas os seus nervos e a sua tagarelice estavam a estragar tudo.

Levou as mãos à cabeça. A verdade é que nunca tinha passado por uma entrevista de emprego nem tido uma formação como aquela. No fundo, nunca tinha saído de debaixo do olhar protetor de June. Aquela era a sua primeira grande oportunidade de fazer algo por si própria, sem a ajuda de ninguém. E pelos vistos tinha acabado de a destruir.

Tem coragem. Acredita.

Levantou-se. Alisou a farda. Assentiu para si mesma, firme e determinada, e seguiu Ruby até Kututu Kaana.

A temperatura no interior da cratera era irrespirável. Saíam ondas de calor diretamente da terra. Bandos de pássaros verdes esvoaçaram por cima delas.

– Estes tjulpu – riu-se Ruby, acenando aos pássaros. – Cuscos atrevidos!

À medida que se aproximavam das flores, Ruby apontou para elas e preparou-se para falar. Desta vez, Alice ficou calada.

– Os minga vêm cá por causa da nossa história, mas assim que cá chegam ficam surdos. Querem conhecer a história, mas não a ouvem. Só ouvem se puderem levar um pedaço com eles. – A voz de Ruby soou triste, mas forte, carregada de sotaque. – Tantas pessoas que insistem em seguir fora do trilho pedestre… representam um perigo para as raízes. Estas malukuru, estas flores, são fortes. Crescem aqui, e têm milhares de anos. Mas as raízes… As pessoas agridem as raízes, deixam-nas doentes, e tudo isto pode morrer. Verdade. Pedimos-lhes que não o façam, mas continuam a ir para dentro do círculo. Para apanharem flores. Para levarem consigo um pedaço do coração de Ngunytju. Fazem adoecer as raízes. E se estas raízes adoecerem, todas nós adoecemos.

Alice aguardou um momento antes de falar:

– Apodrecimento das raízes – disse. – As ervilhas-do-deserto-de-Sturt são vulneráveis ao apodrecimento das raízes. Se as raízes forem danificadas, as flores têm mais propensão para morrer disso do que da seca.

Ruby olhou-a com uma expressão que revelava ao mesmo tempo surpresa e satisfação.

– Eh! – disse ela, dando uma palmadinha amigável no ombro de Alice. – És um bocado ninti pulka no que respeita às nossas flores-coração, não és, kungka? – Sorriu-lhe. – És bastante esperta, hã?

Alice expirou de alívio, deixando finalmente que os ombros se descontraíssem.

– Tu és boa gente, kungka. – Ruby soltou uma risada, dando um pontapé numa pedra. – Só precisas de fechar mais a boca e abrir mais os ouvidos. Acalma lá esses pensamentos que tens na cabeça, que são como os tjulpu atrevidos. – Apontou para os pássaros das calças. – E vais ver que aprendes melhor a história deste sítio.

Alice assentiu, incapaz de a olhar nos olhos.

Ruby apontou para a manga da camisa de Alice.

– Ouve, quando exibes a nossa bandeira nos braços, és responsável por contares a verdadeira história deste sítio a todos os mingas que vêm dos quatro cantos do mundo. – Uma lufada de ar quente soprou à volta delas, fazendo agitar levemente o círculo de ervilhas-do-deserto. – Este é um local de pesar. Um local sagrado, para o amor, a tristeza, o descanso e a paz. Contém as histórias de culto das nossas mulheres, desde há milhares de anos. Das minhas antepassadas, que criaram os seus bebés e cuidaram desta terra, assim como esta terra cuidou delas. E estas flores, as malukuru, são o que mantém vivas estas histórias. Temos de trabalhar todos juntos para protegê-las. E agora, isso também é responsabilidade tua. – Ruby apontou para Alice. – Palya, Kungka Pinta-Pinta?

Alice olhou para ela.

– Ok, Menina Borboleta? – traduziu a outra, sorrindo.

O que é que queres ser quando fores grande, Coelhinha? A mãe de Alice tinha as mãos enfiadas num balde de fertilizante e estava ajoelhada junto aos tão amados fetos do seu jardim. Tinha o rosto ensombrado por um chapéu de jardinagem. Alice não precisou de muito tempo para saber a resposta. Uma borboleta, ou então escritora, respondera, sorridente. Qualquer coisa que a mantivesse perto do jardim da mãe, ou por entre as páginas dos livros.

– Palya, Kungka Pinta-Pinta? – Ruby voltou a perguntar.

– Palya – respondeu Alice.

Ruby assentiu, sorrindo-lhe. De mãos atrás das costas, tratou de seguir pelo trilho em torno das flores, e para fora da cratera. Alice lançou um último e prolongado olhar às ervilhas-do-deserto, antes de lhes voltar as costas.

Depois de um almoço de sanduíches e sumos na cafetaria do centro dos visitantes, Ruby chamou Alice à parte. Tinha uma expressão estranha no rosto.

– Antes de saíres para a formação desta tarde, há uma coisa que te quero mostrar.

Alice seguiu-a por um lance de escadas, subindo a um sótão do centro dos visitantes que servia de armazém. Estava atulhado de tralha, quente e abafado, e cheio de prateleiras com grandes caixas de plástico. Ruby tirou uma delas para baixo. Abriu-a e fez um gesto a Alice para que olhasse para o interior. Estava cheia até acima com cartas, umas impressas, outras escritas à mão. Dentro de cada uma delas estava uma ervilha-do-deserto seca e prensada.

– Flores de arrependimento – explicou Ruby. – Estas cartas são todas de pessoas que as colheram como recordação, levaram-nas para casa, lá para os países de onde vêm, e depois começaram a acreditar que o azar que foram tendo na vida não passava de uma maldição por terem ignorado a nossa cultura. – Apontou para as prateleiras cheias de caixas semelhantes.

Alice inclinou-se sobre a que tinha aos pés.

– Vê à vontade – disse-lhe Ruby.

Alice vasculhou a caixa, espantada pela quantidade de flores secas colhidas e devolvidas. Os envelopes tinham selos dos quatro cantos do mundo, e continham cartas de pessoas a pedirem perdão, a suplicarem que as libertassem «da maldição». Uma carta manuscrita chamou-lhe a atenção. Quando Alice a abriu, caiu-lhe na mão uma ervilha-do-deserto murcha e enrugada. Leu em voz alta:

«O meu marido ficou doente logo depois de termos deixado o Kililpitjara. Quando chegámos a casa, em Itália, descobrimos que era cancro. Poucos dias depois, o nosso filho morreu num acidente de autocarro. E por fim, tivemos uma inundação em casa. Por favor, aceitem as nossas mais humildes desculpas por não termos respeitado o vosso lindo país quando o visitámos. Por favor, poupem-nos a mais tragédias. Estamos tão arrependidos por termos colhido as flores da cratera; por termos levado connosco o que não nos pertencia. – Alice abriu a boca, absolutamente incrédula. – São todas assim? Cartas a pedir perdão e que os libertem «da maldição»?

Ruby fez que sim com a cabeça.

– «A maldição» não passa de um mito que tem viajado à volta do mundo desde que os mingas começaram a vir para cá.

– Queres dizer que… não é real? – perguntou Alice.

– Não! – Ruby pareceu raivosa. – Claro que não é real. É apenas o remorso a atormentar a mente das pessoas que se sentem culpadas.

Alice pensou de imediato em June, na sua confissão desarticulada na noite em que partira de Thornfield.

– É impossível escaparmos quando fazemos algo de errado – observou a jovem. – Por mais que tentemos enterrá-lo bem nas profundezas do nosso ser. – Ao perceber que Ruby lhe observava o rosto bem de perto, Alice disfarçou. Pôs a carta de volta na caixa e limpou às calças o pó das mãos. – E vocês alguma vez respondem a estas cartas? Dizem-lhes que essa maldição não é real? Que não passa de uma invenção, e que nada tem a ver com a vossa cultura?

– Ora! – disse Ruby, secamente. – Tenho mais que fazer do que andar com os mingas ao colo e ensinar-lhes que deviam ter aberto os olhos e os ouvidos ao que lhes foi ensinado quando cá estiveram. Aquilo que estava mesmo diante dos seus olhos.

Alice concordou com um aceno, deixando que as palavras de Ruby se instalassem na sua mente.

– Mal posso acreditar que sejam tantas – murmurou, voltando a vasculhar as centenas de envelopes.

– É por isto que nos preocupamos tanto com a probabilidade da malukuru ficar em risco de extinção. Pior ainda, há muito mais histórias destas guardadas no sótão da nossa sede. Até já começámos a ter reuniões para tentar perceber o que fazer com elas. Há um casal de universitários que mostrou interesse em catalogar todas estas histórias. Mas vão ter de ser rápidos, já não temos espaço de armazenamento em mais lado nenhum.

Aflorou à mente de Alice uma conversa que tivera com a mãe, em criança: Um fogo pode ser uma espécie de feitiço que transforma uma coisa noutra.

– Que tal queimá-las? – sugeriu a jovem.

Ruby estudou-lhe a expressão, visivelmente agradada.

– É uma ideia.

Quando finalmente chegou a casa nessa noite, Alice mal conseguia abrir os olhos. Entrou, meio cambaleante, e ligou o ar condicionado. Depois deixou-se ficar debaixo de um duche frio durante algum tempo, vendo a água que lhe escorria pelo corpo ficar vermelha do pó.

Depois do almoço tinha estado a trabalhar com Lulu. A Ruby mostrou-te as flores de arrependimento? perguntara-lhe ela, quando andavam a explorar o terreno e Alice lhe descreveu a sua manhã. Alice assentira. Caramba, deves ter feito alguma coisa de muito bom, chica. A Ruby nunca mostra essas flores a ninguém, a não ser que a pessoa lhe agrade.

Debaixo do chuveiro, e recordando as palavras de Lulu, Alice sentiu-se corar de satisfação. Tinha feito algo de bom.

Mais tarde, a jovem partilhou com Pip o resto dos tacos que Lulu lhe tinha dado na noite anterior, e caiu na cama ainda antes do pôr do sol. O ar cálido que entrava em casa trazia consigo a fragrância rica da terra seca – e do doce fim do seu primeiro dia.

Os sonhos dela encheram-se de visões de June. De cada vez que a avó abria a boca para falar com Alice, saía-lhe dos lábios uma torrente de flores secas, brancas e castanhas.

Ruby estava no pátio de sua casa à hora do pôr do sol, vendo pequenos arco-íris formarem-se à sua frente enquanto pulverizava com água as plantas nos vasos. O cheiro rico a minerais que saía da terra vermelha fê-la regressar à infância. Como uma canção, surgiram-lhe doces memórias da mãe e das tias. O céu exibia uma palete de argila-rosa, ocre e cinzento-pedra. Os seus três cães corriam atrás uns dos outros, felizes, com as orelhitas no ar. Era naquela altura mais melosa do dia que eles ficavam mais tontinhos.

Pendurou a mangueira e pegou no machado de jardinagem, dirigindo-se ao quintal para cortar uns quantos ramos de wanari. Eram ótimos para atear brasas, porque ardiam até ao fim. Empilhou a lenha na braseira do quintal, chupando o sangue de um dedo quando se picou num espinho. Pegou numa braçada de agulhas de carvalho-do-deserto, ramos e troncos finos, e enfiou-os no meio da lenha. Alguns fósforos depois, o lume crepitava.

Ruby sentou-se no toco de um tronco com o seu caderno de notas e uma caneta e relaxou os ombros. Pouco depois, fechou os olhos. Sentiu o peso da família perdida. Desde criança, quando fora retirada à mãe, que a única constante na vida dela era a ausência da sua família. Viu-a nos olhos dos filhos quando eles nasceram, e ouviu-a muitas vezes nos seus sonhos. Era uma visibilidade invisível; tudo o que ela via era quem lhe faltava.

Enquanto o jantar cozinhava numa frigideira sobre as brasas e o céu escurecia, Ruby abriu o caderno de notas e tirou a tampa da caneta com os dentes.

Olhou para as chamas. Aguardou.

As estrelas rodopiaram, os cães deitaram-se a dormitar, a brisa quente do deserto soprou. E ela aguardou.

O novo poema desceu das estrelas, olhando para ela – como acontecia com a maioria dos seus versos. Caíam sobre as dunas de areia fina e esvoaçavam pelo país da sua mãe, trazendo terra, fumo, amor e pesar.

existem sempre sementes que nos tecem

e são levadas pelo vento, separando-nos

será que o vento vem das origens

ou da mãe ou do pai

serão as minhas origens para sempre dispersadas

ou manter-se-ão na distância se eu partir

ficará o vento sem fôlego

ficarei eu deixada para morrer

sem casa e sem família

Ruby pousou a caneta e esfregou as mãos. Estavam trémulas, como sempre ficavam quando os seus antepassados a brindavam com um poema. Passado um momento, pegou de novo na caneta e escreveu Sementes no topo da folha.

Temperou e virou o bife na frigideira, e juntou uma colher de manteiga de alho às batatas fritas. Recostou-se e ficou a ver as chamas bailarem. Espirais de fumo erguiam-se para o céu.

Enquanto se servia do jantar, Ruby deu por si a recordar o momento em que estivera no meio das flores de arrependimento com a rapariga nova. Já tinha visto muitas pessoas como Alice a chegarem e a partirem de Kililpitjara, mais do que os poemas que escrevia no seu caderno de notas. Sabia distinguir as perdidas e sem rumo das autênticas e plenas de expetativas com a mesma facilidade com que catava pulgas dos seus cães. Quando Sarah lhe apresentou Alice, toda trémula e pálida como a cal, Ruby não lhe prestara especial atenção. Mas depois de passarem a manhã juntas, mudou de ideias. Vira algo em Alice Hart; o tipo de coragem que uma sobrevivente identifica noutra. Ruby ainda não sabia o que Alice procurava, mas percebeu que seria vital, ao distinguir-lhe aquele fogo no olhar.