24. Parakeelya de folha larga
Parakeelya de folha larga
Significado: Vivo e morro pelo teu amor
Calandrinia balonensis | Território do Norte
A Parkilypa (Pitjantjatjara) é uma planta suculenta que cresce nos solos arenosos das regiões áridas, com folhas verdes e frescas, e vibrantes flores púrpuras que brotam sobretudo no inverno e na primavera. Em épocas de seca, as folhas representam uma fonte de água; a planta pode ser cozinhada e consumida.
A partir daquela noite passaram todos os minutos livres um com o outro. Alice tinha a noção de estar a negligenciar os outros amigos, sobretudo Lulu, mas a verdade é que não queria estar com mais ninguém.
À medida que o inverno foi passando, Alice e Dylan acendiam fogueiras e dormiam lá fora, na tenda dele, debaixo das estrelas. Pip aproveitava sempre para se enroscar entre os dois.
– Devias mudar as tuas escalas – disse-lhe ele uma noite, vendo-a aninhar-se na prega do seu cotovelo e olhando para o céu. – Tenho demasiadas saudades tuas aos fins de semana, quando um de nós trabalha e o outro está de folga. Quero ver-te com mais frequência.
Que bálsamo para os ouvidos de Alice: ele queria estar mais vezes com ela. Ergueu os olhos para ele com um sorriso doce, ébria do cheiro da sua pele, a fresco e a terra. Dylan retirou o braço suavemente e soergueu-se. Desatou os nós das pulseiras de cabedal e pegou-lhe nas mãos. Ela sorriu, assentindo ao vê-lo atar as pulseiras no pulso dela.
– Ngayuku pinta-pinta – disse ele com a voz rouca.
Ao sentir-se puxada para ele, a voz de Lulu surgiu inadvertidamente na mente de Alice: ficarias tão vulnerável quanto a rapariga do conto de fadas que vagueia num bosque escuro.
– Ngayuku pinta-pinta – murmurou ele de novo, as mãos rodeando os pulsos dela. – Minha borboleta.
Alice encaixou o corpo no dele.
Enquanto aguardava pela autorização de mudança de turnos, Alice centrava em Dylan a sua vida no deserto. Se tinham ambos a seu cargo os turnos do crepúsculo, percorriam juntos os trilhos do fogo, com Pip sempre presente, saltitando entre ambos. Alice enchia os bolsos de flores silvestres, para mais tarde colar nos seus cadernos, enquanto Dylan se dedicava a fotografá-la sob a fundente luz vermelha. Quando Alice estava escalada para a patrulha noturna e acabava tarde, ia direta para casa dele e encontrava-o quase sempre à sua espera, com o jantar feito ou um banho de espuma preparado. Nessas noites, Dylan e Pip sentavam-se junto à banheira, encostados à parede, enquanto ele lia em voz alta para Alice que relaxava na água tépida. Sempre que tinham um dia de folga juntos, dedicavam-se à jardinagem, banhados pelo calor do sol, até um deles se distrair com uma zona nua e quente da pele do outro; Alice contara-lhe que, em criança, costumava ajudar a mãe na horta, e um dia chegou a casa do trabalho e deparou-se com a surpresa de um terreno arado, pronto a acolher sementes. À noite, enroscavam-se um no outro no sofá, com o aquecimento ligado e a televisão sintonizada na BBC, assistindo a filmes e documentários antigos. Nas raras ocasiões em que o céu de inverno surgia enevoado e não havia sol, ficavam na cama. Esses dias passaram rapidamente a ser sinónimo de panquecas: Alice preparava uma pilha gigantesca delas e levava-as para a cama para ambos devorarem.
Numa tarde fria, depois de um festim de panquecas, deixaram-se ficar na cama, vendo as partículas de pó flutuarem na luz cinzenta através de uma fresta da cortina. Às tantas, Dylan suspirou e desembaraçou-se do corpo dela. Tinha estado agitado e inquieto o dia todo, praticamente sem olhar para ela, nem mesmo durante o sexo lânguido e sonolento.
Alice não sabia o que se passava. E também não sabia por que razão estava tão relutante em perguntar-lhe.
Desenhou círculos sobre o estômago dele, o peito, o pescoço, o rosto. Ele não reagiu.
– O que é que se passa? – sussurrou-lhe. O seu amor por ele resolveria tudo. O que quer que fosse. Ele não respondeu. Ela esperou. Voltou a perguntar.
– Nada – lançou-lhe ele num tom irritado, afastando-se dela. – Desculpa. – Abanou a cabeça. – Desculpa, Pinta-Pinta. – Sentou-se, repousando os cotovelos nos joelhos.
Ela levantou-se lentamente e ficou sentada ao lado dele. Sentiu um buraco no estômago, estranhamente familiar, que a deixou desconfortável. Escolheu as palavras cautelosamente, para não o deixar ainda mais perturbado.
– Podes contar-me – incitou-o, num tom doce. – Seja o que for. – Carinhosa, estendeu a mão, hesitou por um instante, e depois pousou-a nas costas dele. Ele reagiu ao toque dela.
– Desculpa – murmurou, voltando-se para enterrar o rosto na curva do ombro de Alice. – Desculpa. Não vou dar cabo disto tudo, desta vez.
Ela afagou-lhe o cabelo.
– Eu sei – sussurrou-lhe. – Eu sei.
– Vai ser melhor – disse ele, como que para si mesmo. – Eu vou ser melhor. – Beijou-lhe o pescoço, o rosto, a boca, num sentimento de urgência cada vez mais forte enquanto a tomava nos braços.
Alice fechou os olhos com força, entregando-se ao beijo. Que queria ele dizer com melhor? Ele ia ser diferente de quê? Como? Sentiu um peso no peito.
– Eu amo-te – murmurou-lhe Dylan, instalando-se entre as pernas dela. Sussurrou-lhe a mesma frase uma e outra vez.
Alice absorveu as palavras dele, apagando definitivamente as dúvidas que lhe surgiram na mente.
O inverno começou a esmorecer. As manhãs tornaram-se cada vez mais quentes, os tentilhões começaram a voar e a deixar os ninhos, e a vida de Alice com Dylan prosperava.
No entanto, à medida que o seu amor por ele se tornava mais e mais intenso, era difícil para Alice ignorar a tensão crescente na sua amizade com Lulu. Poucos dias depois de ver satisfeito o seu pedido de mudança de turnos, Alice viu Lulu a olhar para o quadro de informações na sala de convívio. E pela expressão dela ao ler os novos turnos, algo de muito errado se passava.
– Olá, Lulu – disse Alice alegremente, tirando duas canecas lavadas do lava-loiças. – Vai um café e fofocas antes da patrulha da tarde?
O olhar inexpressivo da outra não vacilou. Passou por ela e saiu da sala sem uma palavra.
– Provavelmente sente-se excluída – alvitrou Dylan, mais tarde, nessa noite. – Tu não a conheces há muito tempo, eu sim. É todo o género de ter ciúmes e inveja deste tipo de coisas.
Alice mexeu o risoto de legumes que estava a fazer. Fazia sentido. Que outra razão poderia haver para Lulu se mostrar tão fria com ela? Mas a verdade é que a história de Lulu com Dylan continuava a chateá-la. Deu um gole no copo de vinho branco e lançou um olhar a Dylan.
– O que é? – perguntou ele.
Ela deu outro gole e não respondeu.
– Vá, diz lá – disse Dylan, sorrindo. – Consigo ler o teu rosto como se fosse um livro, Pinta-Pinta.
Encorajada, ela devolveu-lhe o sorriso.
– Tu e a Lulu alguma vez… – A voz falhou-lhe.
– Eu e a Lulu? – perguntou Dylan em tom de gozo, abanando a cabeça. – Acho que ela teve um fraquinho por mim há uns anos, quando nos conhecemos, mas nunca deu em nada. – Chegou-se a ela, abraçando-a por trás, em frente ao fogão. – Não te rales com isso. Aquilo passa-lhe, vais ver.
– Ok – disse Alice, voltando-se para beijá-lo.
Assim que se viram a trabalhar nos mesmos turnos, Alice e Dylan tornaram-se completamente inseparáveis. Saíam juntos para trabalhar, almoçavam juntos, regressavam juntos a casa. Ela embalava piqueniques que acabavam por não ser comidos, porque preferiam escapulir-se à hora do almoço para sítios secretos, no utilitário dele – sempre com o rádio ligado para eventuais serviços inesperados – dedicando exclusiva atenção um ao outro. Depois do trabalho partilhavam cervejas, viam o céu mudar de cor, cozinhavam na braseira do quintal e deitavam-se a ver as estrelas, com Pip enroscada entre ambos. Alice nunca ia para casa – e até evitava olhar para ela, sempre às escuras, através do quintal dele.
Nas primeiras folgas conjuntas de quatro dias, Dylan acordou-a com um café e beijos pelo rosto todo.
– Anda comigo – disse-lhe docemente, enrolando-a no edredão e conduzindo-a até à porta da frente. Alice esfregou os olhos e beberricou do seu café, vendo-o abrir a porta de rede com um floreado teatral. A manhã surgia cristalina. Alice piscou os olhos sob a luz do sol. O velho jipe dele estava parado à porta, cheio de tralha no banco de trás e uma tenda amarrada ao tejadilho.
– Vamos pirar-nos daqui? – indagou ele, de sobrolho erguido.
– Para a costa oeste? – exclamou Alice, encantada.
– Bom, duvido que conseguíssemos ir e vir em quatro dias – brincou ele. – Mas eu conheço um sítio que é quase tão bom.
– Uma viagem romântica – murmurou Alice, abraçando-o e envolvendo-o com o edredão.
Dylan sorriu-lhe, puxando pelo edredão para a deixar exposta, completamente nua, aos olhos dele.
– Mas ainda temos um tempinho antes de partirmos…
Alice sorriu e deixou-se perseguir para dentro de casa.
Duas horas mais tarde, Alice, Dylan e Pip percorriam a via rápida no meio de um borrão de areia vermelha, campos dourados de spinifex, e carvalhos-do-deserto seculares. Tinham as quatro janelas abertas. Pelo retrovisor, Alice divertiu-se a ver a língua da cadelinha abanar ao vento. De quando em vez, a paisagem ondulante estabilizava, proporcionando uma belíssima vista de flores silvestres florescendo na primavera. A jovem deixou-se enfeitiçar pelos vastos campos amarelos, laranja, roxos e azuis. Dylan beliscou-lhe suavemente a coxa, sorrindo. Ligou o rádio e cantarolou, rouco e desafinado. Alice fechou os olhos, inacreditavelmente feliz.
A meio da tarde, Dylan abrandou e saiu da via rápida, entrando numa estrada não assinalada, ladeada por arbustos baixos e floridos. Por um instante, Alice questionou-se como saberia ele da existência daquele caminho. Dylan esperou que as rodas aderissem ao piso antes de acelerar, soltando nuvens de pó vermelho. Percorreram a estrada aos solavancos, até chegarem a uma ampla planície de deserto. A profunda solidão e total isolamento deixaram Alice emocionada. Perguntando-se para onde iriam, olhou para Dylan com uma expressão curiosa – mas ele limitou-se a sorrir.
Pouco depois, viraram num trilho estreito e quase indistinguível que escalava um cume. Dylan meteu a tração às quatro rodas e subiu o trilho pedregoso, desviando-se dos ramos mais baixos das árvores. Em redor deles os afloramentos vermelhos surgiam pontilhados por amplos cachos de flores silvestres. Troncos branquíssimos de eucaliptos gigantes agitavam os seus ramos verde-menta. O céu ostentava um belíssimo tom de azul-safira. Ocasionalmente, sobrevoava-lhes a silhueta escura de um falcão.
– Pinta-Pinta… – Dylan sorriu-lhe, apontando para a crista da cumeeira à sua frente. Depois de lá chegarem, desceram pelo outro lado, chegando a um desfiladeiro vermelho e rochoso, adornado por acácias e eucaliptos-mallee, e com um amplo riacho verde-chá correndo por entre os bancos de areia branca.
– Que sítio é este? – perguntou Alice, boquiaberta.
– Espera só até veres o pôr do sol – disse-lhe ele. Encostou numa clareira enclausurada por carvalhos-do-deserto, e Alice deu por si a pensar que ele não tinha precisado de mapa algum para encontrar o seu destino.
– Como é que descobriste este sítio?
– Antes de trabalhar no parque, fui guia turístico – respondeu-lhe. – E um dos meus colegas mais velhos, com quem trabalhava muitas vezes, trouxe-me cá. Era a terra dos avós dele, um local feliz onde a família se reunia e partilhava bons momentos. Quando me vim embora, ele disse-me que eu devia cá voltar sempre que pudesse. – Puxou o travão de mão. – Disse-me que trouxesse a minha família comigo. – Os olhos dele expressavam uma ternura imensa.
Alice não se sentiu capaz de falar, com o nó espesso que se lhe formou na garganta.
Dylan chegou-se mais a ela.
– Como é que eu tive tanta sorte? – murmurou.
Ela respondeu-lhe com um beijo profundo. Segundos depois ouviu-o gemer.
– Deixas-me doido, Pinta-Pinta. – Abanou a cabeça e recompôs-se. – Anda daí, temos de montar a tenda.
Dylan saiu do jipe e abriu a porta à cadela, que foi imediatamente para dentro do riacho.
Alice ficou para trás, a ver a cadela nadar e Dylan assobiar alegremente enquanto tirava do carro o fogareiro e a geleira. Aquela era a sua pequena família. Alice saiu do carro para se juntar a eles e apercebeu-se de que nunca se tinha sentido tão inteira em toda a sua vida.
Ao pôr do sol, já tinham montado a tenda, reunido braçadas de gravetos, e dedicavam-se agora a ouvir a música do rádio do jipe, bebendo vinho tinto enquanto esperavam que as espetadas que prepararam – com queijo haloumi, cogumelos, curgete e pimento – assassem na fogueira. O ar cheirava intensamente a lenha e eucalipto. Um bando de catatuas pretas sobrevoou-os, guinchando, e um grupo de pequenos cangurus saltitou ao longe. Alice não conseguia deixar de sorrir. Quando as paredes do desfiladeiro começaram a mudar de cor, Dylan pegou-lhe na mão e levou-a pela margem do riacho até ao tronco de um eucalipto gigante. Sentou-se, fazendo-lhe um gesto para que fizesse o mesmo. Ela aninhou-se entre as pernas dele, encostando-se ao peito.
Dylan mordiscou-lhe a orelha.
– Olha bem para isto.
À medida que o sol se afundava, ia lançando os últimos feixes sobre o desfiladeiro, numa lindíssima tonalidade de caramelo.
– Espantoso – murmurou Alice.
– Mas espera, ainda há mais…
Aninhada nos braços dele, Alice ficou a ver todas as cores do céu a escorrerem pelas paredes do desfiladeiro e a acumularem-se, como uma poça, na superfície vidrada do riacho, refletindo espirais de luz de volta para cima. Abanou a cabeça, incrédula: o desfiladeiro e o riacho formavam um reflexo perfeito um do outro, mergulhados nas cores vibrantes do entardecer. Aquela visão trouxe-lhe à lembrança os seus livros de contos de fadas: o cálice vazio encantado que se enchia miraculosamente; o poço mágico que escondia o céu nas suas profundezas.
Dylan apertou-a mais no seu abraço.
– É preciso ver para crer, não é?
Uma memória invadiu-a como um soco. Há um desfiladeiro perto daqui que tens mesmo de conhecer.
Alice sentou-se, soltando-se dos braços dele. Dylan olhou-a, sorrindo.
– Quantas mulheres já trouxeste aqui? – lançou-lhe ela, visivelmente tensa.
Ele estranhou:
– Desculpa?
Ela sentiu o estômago revolver-se. Tinha quebrado o feitiço. Irremediavelmente.
Ele ergueu as mãos, defensivo.
– Que raio de pergunta é essa agora?
– Não – disse Alice, fingindo leveza no tom de voz. – Não queria dizer mulheres, queria… Bom, já trouxeste a Lulu aqui? – A mente dela era um borrão de disparates e ruído. Não queria chateá-lo, muito menos naquele momento, mas não conseguiu deixar de lhe fazer aquela pergunta. Como poderia Lulu conhecer aquele sítio ao pôr do sol, senão através dele?
Dylan enxotou-a friamente e levantou-se, zangado.
– Não estou a acreditar que ouvi isto – disse-lhe, seguindo em direção ao acampamento.
– Dylan! – Alice chamou-o, correndo atrás dele pela areia suave.
– O que é? – gritou-lhe ele, voltando-se para fixá-la, os olhos plenos de raiva. – Já te disse que eu e a Lulu nunca tivemos nada. Por que raio insistes nisso e estragas o nosso primeiro fim de semana fora? Acreditas nela e nos seus ciúmes imbecis mais do que em mim? A sério?! E que raio queres dizer com «quantas mulheres já trouxeste aqui»? Quem é que pensas que eu sou?
– Meu Deus – gemeu Alice, à beira das lágrimas. Ele tinha razão. Lulu podia estar a referir-se a outro desfiladeiro qualquer, ou mesmo ter ido àquele sem Dylan. Estava a ser ridiculamente insegura. E para quê?
Dylan desatou aos pontapés à fogueira, lançando faúlhas à sua volta.
– Desculpa! Perdoa-me, por favor – implorou Alice, tentando tocar-lhe. Ele ignorou-a. – Podemos esquecer o que eu disse? Por favor? Fui muito estúpida, não sei por que disse aquilo. Por favor, perdoa-me. – Tentou de novo, abrindo os braços para ele. – Deixa-me compensar-te. Eu faço o jantar. Abrimos outra garrafa de vinho. Esquecemos tudo, pode ser?
Ele lançou-lhe um olhar fulminante, antes de lhe voltar as costas e afastar-se.
– Dylan? – disse ela com a voz trémula.
Ele avançou, desaparecendo no escuro.
Sem conseguir parar de tremer, Alice preparou o jantar. Grelhou os legumes e o queijo que restavam, deu de comer a Pip, e encheu dois copos de vinho. Dylan só regressou uma hora depois. O jantar estava frio, o queijo seco e borrachoso. Ele sentou-se e depenicou do prato com um garfo.
– Até conseguiste estragar o jantar. – Deitou para a fogueira o conteúdo praticamente intacto do prato. Serviu-se de mais vinho. A pouca comida que Alice conseguiu ingerir assentou-lhe no estômago como uma pedra gelada. Deixou que a cadela comesse os restos do prato dela.
– Lamento tanto – murmurou por fim, esfregando o joelho no dele. – Desculpa.
Ele limitou-se a olhar fixamente para o lume.
Alice continuou a pedir desculpa – pelo que lhe pareceram horas a fio – até que, finalmente, ele estendeu a mão para a perna dela e afagou-a.
Alice precisou daquela noite e do dia seguinte até ficarem bem. Na viagem de regresso a Kililpitjara, os seus esforços para manter a calma e a complacência pareciam ter trazido Dylan de volta para ela.
Quando chegaram ao portão de casa dele, Dylan inclinou-se e beijou-a antes de sair para abrir o portão. Num instante em que o apanhou de costas, Alice encolheu-se: tinha chupões e nódoas negras da última noite de amor passada no desfiladeiro. Ele mostrara-se mais bruto que o habitual, mas agora, para seu enorme alívio, tudo parecia ter voltado ao normal.
Enquanto tiravam as coisas do carro, Dylan fez uma pausa para beijá-la ternamente.
– Obrigada por um fim de semana fantástico – sussurrou-lhe, procurando-lhe os olhos.
Alice beijou-o, plena de gratidão. De futuro teria apenas de ter mais cuidado e pensar duas vezes antes de falar.
A primavera pintou o deserto central nas mais variadas cores. Os arbustos de grevilea floriram numa explosão de âmbar e amarelo, enchendo o ar de um intenso aroma adocicado. Dragões barbudos preguiçavam, ociosos, sobre as pedras expostas ao sol por entre as ervas altas de spinifex. A pequena horta que Alice plantara no quintal de Dylan começava a dar rebentos. As tardes quentes já pediam gelados e banhos de sol; ela deitava-se no quintal dele, numa toalha de praia estendida sobre a terra vermelha, a cantarolar com os fones nos ouvidos enquanto lia um livro, até Dylan a ver de biquíni. Desejava-a mais do que nunca. O desentendimento durante o acampamento há muito que estava esquecido. Os dias eram cada vez maiores, as estrelas brilhavam mais e mais.
– Devíamos organizar um churrasco – sugeriu Alice um dia, enquanto preparava um chili de pimentão-doce e uma salada verde para o jantar. – Esta casa está a ficar tão gira, e está-se tão bem lá fora…
Dylan não respondeu. Estava sentado à mesa da cozinha, iluminado pela luz de néon do teto. Alice não conseguiu ler a expressão no rosto dele.
– Querido? – chamou-o, tirando a frigideira do lume.
– Claro – respondeu ele. – Acho uma ótima ideia.
– Que bom! – Alice mostrou-se feliz, levando os pratos para a mesa. – Amanhã já desafio a malta toda. – Beijou-o e sentou-se para jantarem. Ele respondeu-lhe apenas com um sorriso breve.
Na manhã seguinte, Alice chegou à sede entusiasmada. Ela e Dylan andavam tão colados um ao outro, longe de tudo e de todos, que seria ótimo poderem passar algum tempo com amigos e colegas, para variar.
Quando entrou no escritório do pessoal, nem de propósito: Thugger e Nicko, dois rangers que Alice conhecia mal, estavam precisamente a comentar que não tinham nada de especial para fazer no fim de semana de folga que aí vinha.
– Estou a organizar um churrasco. Querem vir? – perguntou Alice, sorridente.
– Fixe! Claro que sim, obrigado – disse Thugger.
– Boa! Conta connosco! – concordou Nicko.
– Ótimo – disse Alice, feliz da vida. – Vai ser no quintal do Dylan, ele é ótimo a fazer churrascadas no carvão! Podemos…
– Oh – interrompeu-a Thugger, trocando um olhar rápido com Nicko. – Sabes, lembrei-me agora que vou ter de ir a Bluff este fim de semana. Tenho de… hum…
– Pois é! – disse o outro. – Porra, esqueci-me completamente, meu. Temos de levar os jipes à revisão, não é?
– Pois…
Alice olhou de um para o outro, estranhando.
– Fogo, ainda bem que nos lembraste, Alice! – observou Thugger, visivelmente aliviado.
– Fica para a próxima, amiga – disse Nicko, falsamente pesaroso.
– Mas obrigado pelo convite – acrescentou Thugger, saindo rapidamente do escritório com Nicko atrás dele.
Depois de eles saírem, Alice foi fazer um chá. Cerrou os maxilares. Não ia chorar. Não ia fazer juízos de valor sobre o que acabara de acontecer.
O dia dela não melhorou, pelo contrário. Fez uma série de asneiras durante o turno, culminando com o martelar de um dedo que a deixou a uivar de dor.
– Volta para a sede e trata desse dedo, Alice – disse-lhe Thugger, libertando-a do trabalho.
Depois de vista e devidamente tratada pelo enfermeiro do parque, Alice foi até à sala de convívio para beber um chá e comer uns biscoitos. Sentia um peso terrível no coração. Lulu e Aiden estavam junto ao fervedor elétrico, de canecas na mão. Assim que Alice entrou, calaram-se subitamente. Ela foi ao armário tirar um saquinho de chá e voltou-lhes as costas. O silêncio tornou-se cada vez mais desconfortável, ensurdecedor. Até que Aiden resolveu quebrá-lo:
– Estás bem, Alice?
Antes de ela poder responder, Lulu esvaziou o resto do chá no lava-loiça e saiu, sem uma palavra. Aiden olhou para Alice, sem saber o que dizer, optando por seguir a namorada.
– Estou ótima – murmurou Alice para si mesma, vendo-os sair.
Os dias seguintes foram correndo sem grandes sobressaltos: Alice desafiou outros colegas para o churrasco em casa de Dylan, e as respostas foram mais do mesmo: desculpas esfarrapadas da parte de todos. No final da semana, Alice apercebeu-se de que Dylan não passava de um mero conhecido, de um colega de trabalho, para o resto do grupo. Não tinha amigos em Kililpitjara. Só a tinha a ela – e Alice não sabia porquê.
Depois do trabalho, quando estacionou à porta dele e saiu para ir abrir o portão, lembrou-se de um dos livros que Dylan lhe lera: uma coletânea de contos japoneses. Um deles contava a história de uma artista de kintsugi, ou «restauro com ouro», uma arte japonesa de reparar cerâmica partida ou rachada com laca misturada com pó de ouro. Havia uma bonita ilustração de uma mulher debruçada sobre uma pilha de loiça partida, empunhando um pincel com as cerdas banhadas em pó dourado. A história encantara-a; a ideia de objetos quebrados e consertados fazerem parte da história, não serem apenas postos de lado ou escondidos.
Alice estacionou ao lado do utilitário de Dylan e saiu, batendo com a porta com renovada determinação. O que quer que o levasse a acreditar que não era suficientemente bom, fosse qual fosse a razão pela qual as pessoas não queriam estar com ele, o que quer que fosse que ele sentisse quebrado, ela estava lá para se derreter em ouro e consertar.
Uns dias depois, o Earnshaw Crater Resort enviou convites para o Baile Anual a todo o staff do parque e agências de turismo.
Quando Alice sugeriu irem juntos, Dylan mostrou-se evasivo e pouco interessado.
– Não passa de uma enorme seca – disse ele com uma careta.
– Sim, mas será divertido se formos os dois, certo? – disse ela, entusiasmada, prendendo o convite com um imã no frigorífico. Já não iam a uma festa desde o aniversário dela. E andava a namorar um vestido dourado que tinha visto na Internet; a ideia de finalmente ter um motivo para se aperaltar deixava-a feliz e entusiasmada. Assim como terem um pretexto para saírem juntos e socializarem.
– A sério que fazes mesmo questão de ir? – perguntou Dylan atrás dela, interrompendo-lhe os pensamentos.
Ela voltou-se para ele:
– Sim, gostava de ir. Muito, mesmo. Já tenho saudades de beber uns copos e dançar um bocado. – Alice abraçou-o e pressionou os lábios nos dele. – Ficar alegre… – Provocou-o, pondo-se em bicos de pés para beijar-lhe a curva do pescoço. – Fazermos amor ao nascer do sol… – Decidiu ali e naquele momento que iria surpreendê-lo com o vestido novo. E talvez experimentar um penteado diferente. Usar batom e umas gotas daquele seu perfume que ele tanto adorava. – Podemos fingir que é um encontro de namorados – disse-lhe docemente, fixando-lhe o olhar.
– Queres um encontro comigo, Pinta-Pinta? – Ele fechou os olhos, louco de desejo.
– Sempre – respondeu ela, estremecendo ao sentir que ele lhe pegava ao colo e a levava para a cama. Ia ser fantástico, disse para si mesma. Ia ser a melhor noite de sempre para os dois.
No dia do Baile Anual, Alice correu para casa mais cedo para tomar um duche. Abriu o fecho do seu novo vestido dourado, abusou do batom e do rímel, e enfiou as botas novas de cowboy, enfeitadas com borboletas douradas nos saltos. Quando Dylan entrou em casa, Alice corou de excitação. Esperava-o, com uma cerveja fresca na mão, e «esquecera-se» de usar cuecas – algo que ela sabia que o deixava doido.
Assim que ele a viu, quase tropeçou. Ficou parado à entrada de casa.
– Pronto para uma noite a dois? – perguntou-lhe ela com um sorriso sensual. Rebolou-se levemente dentro do vestido.
Dylan esvaziou calmamente os bolsos na cómoda da entrada e dirigiu-se à cozinha, sem uma palavra.
O seu silêncio glacial deixou-a sem reação. Ouviu-o vasculhar o armário dos medicamentos e tirar dois comprimidos de uma embalagem.
– Amor? – chamou-o ela, esforçando-se por disfarçar o desapontamento. – Estás bem?
Ele não respondeu. Alice entrou na cozinha.
– Querido? – chamou-o de novo.
Ele manteve-se de costas voltadas para ela.
– Que vestido é esse? – perguntou-lhe num tom gélido que a arrepiou.
– O quê?
– Para que é que estás vestida assim?
Alice baixou o olhar para o vestido novo. O dourado pareceu-lhe subitamente berrante ao invés de mágico.
Dylan voltou-se para ela com um olhar sombrio:
– Para que é que foste comprar um vestido novo para a noite de hoje? – A voz tremeu-lhe. – Para que é que te embonecaste toda dessa maneira? Para os gajos te comerem todos com os olhos?
Alice sentiu-se ficar rígida dos pés à cabeça enquanto ele caminhava à volta dela com um olhar desdenhoso. Doeu-lhe ao respirar.
– Responde-me – disse ele, calmamente.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Não teve como lhe responder. A voz quebrou-se-lhe totalmente.
Ruby sentou-se junto ao lume, no quintal de trás, o caderno de notas aberto no colo, a caneta na mão – aguardando. Pouco lhe interessava o baile anual. Desde que se levantara que tinha sentido um poema a chegar. E não queria correr o risco de perdê-lo.
Sobre as dunas, atraiu-a um movimento à entrada do portão de Dylan. A cadelinha de Alice apareceu e desapareceu por detrás de um eucalipto. Lá dentro, a silhueta de Dylan andava de um lado para o outro, iluminada pela luz débil que saía das janelas de casa.
Ruby observou-o atentamente. Respirou fundo e levou a caneta ao caderno com a mão trémula.
A estação está a mudar
Há algo de amargo no ar.