25. Carvalho-do-deserto

Carvalho-do-deserto

20170913_F022

Significado: Ressurreição

Allocasuarina descaisneana | Austrália Central

Kurkara (Pitjantjtjara) é uma árvore com uma casca profundamente enrugada, semelhante à cortiça, que retarda o fogo. Cresce devagar, mas desenvolve rapidamente uma raiz primária que consegue alcançar água em profundidades que ultrapassam os dez metros. As árvores adultas têm uma copa ampla e frondosa. Muitas das kurkara encontradas no deserto central têm mais de mil anos.

Por meados da primavera, quando os arbustos-menta deixaram de florir e as ocasionais chuvas da estação começaram a dar sinal, Alice já tinha aprendido a lidar com as súbitas mudanças de humor de Dylan – do mesmo modo que aprendera, muito anos antes, a interpretar as marés. Desde que se mantivesse atenta, consciente e recetiva, os dois viviam profundamente felizes.

Depois de uma semana de chuva ininterrupta, as estradas de terra e os trilhos pedestres de Kililpitjara transformaram-se num verdadeiro lodaçal vermelho, perigosamente movediço. No quadro de informações da sede surgiram alertas para eventuais perigos de desabamentos e atoleiros. Alice leu-os com atenção, mas isso não evitou que, numa das suas patrulhas a Kututu Puli, se atascasse na lama avermelhada. Os pneus giravam sobre si próprios, e o carro não se movia um metro que fosse. Tentou escavar um pouco à volta das rodas, meter a marcha atrás, mas nada parecia resultar. Acabou por ter de pedir ajuda via rádio.

Thugger foi o primeiro a responder, e conseguiu tirá-la de lá com uma cinta de reboque. De volta à sede, juntaram-se aos outros guardas-florestais que petiscavam lá fora.

– Toma uma bebida – sugeriu Thugger a Alice. – Bem mereces.

– Pinta-Pinta – disse-lhe Ruby, acenando-lhe de debaixo de um carvalho-do-deserto, onde todos se haviam instalado à volta de uma mesa de plástico, desfrutando de canapés e bebidas. – Junta-te a nós.

Alice esforçou-se por sorrir a Thugger e acenar a Ruby. Dylan não estava presente. Talvez viesse a caminho. E, assim sendo, o melhor seria ficar por ali, ou corria o risco de ele ficar chateado, caso ela fosse para casa sem ele. Mas… e se ele não viesse? Ignorou as preocupações que lhe assombravam a mente e juntou-se ao grupo. Decidiu que ficaria apenas uma hora.

Ruby estendeu-lhe uma cerveja.

– É tão bom ver-te, Pinta-Pinta.

Alice também adorava estar de novo com Ruby. Ofereceu-lhe um sorriso radioso, sentando-se ao lado dela.

– Também acho, amiga, não te temos visto ultimamente. Nem sequer foste ao Baile Anual… – comentou Nicko.

Thugger deu-lhe uma cotovelada, provocando um silêncio desconfortável em torno da mesa. Alice sentiu-se corar.

– Bom… – disse Thugger, quebrando o silêncio embaraçoso. – À nossa! – Ergueu a cerveja, com um sorriso amarelo.

Todos o imitaram, quase aliviados, fazendo tilintar as cervejas umas nas outras. Alice deu um longo gole na sua. O álcool descontraiu-lhe os ombros e desfez-lhe o sobrolho carregado. Sentiu-se mais leve e solta, vendo na calorosa receção do grupo um verdadeiro bálsamo.

Ao fim da terceira cerveja, Alice olhou finalmente para o relógio. Susteve a respiração ao constatar que já tinham passado mais de duas horas.

Despediu-se apressadamente de toda a gente, e acelerou até à casa de Dylan. Quando chegou ao portão, constatou que estava fechado a cadeado. Estranhou, já que ele nunca o fazia. Chamou-o, mas a voz foi abafada pelo vento forte. E Pip? Estaria com Dylan, onde quer que ele estivesse?

Alice percorreu de carro Parksville e as redondezas, acabando por estacionar em frente a casa. Há tanto tempo que não passava lá uma noite que fosse, que já nem se sentia em casa ali. Do lado de lá do portão surgiu Pip, saltitando de alegria ao vê-la. Dylan devia ter passado por lá a deixá-la. Alice abriu a porta de casa e entrou.

Lá dentro cheirava a bafio. Alice vagueou pela casa e deparou-se com um rato morto, preso na ratoeira que deixara debaixo do fogão. Deitou-a no lixo, combatendo um vómito. Abriu a porta e escancarou todas as janelas, lavou o queimador de óleos essenciais, e rapidamente o cheiro a sândalo e gerânio-rosa encheu o ar. As estantes estavam cobertas de uma fina película de pó vermelho. Limpou-as, passando os dedos pelas lombadas dos livros há muito esquecidos. Abriu o armário que servia de despensa e pegou numa lata de feijões cozidos. Depressa percebeu que lhe custava comer, dando a tigela praticamente cheia à cadelinha. Ligou várias vezes a Dylan ao longo da noite, mas ele nunca atendeu. Lá fora no pátio, tremendo de frio e iluminada pelas luzinhas decorativas, olhou através das dunas para a silhueta da casa dele, iluminada pelas estrelas.

Sentiu um buraco no estômago. Ele estava a castigá-la. Por não ter ido logo para casa. Por não lhe ter perguntado primeiro se podia ficar a beber um copo com os colegas. Por não ter tido a atitude mais correta. Ela já o conhecia muito bem.

Entrou em casa e fechou a porta. Tomou um duche rápido para tentar desfazer os nós que sentia nos ombros e deitou-se. Pip aninhou-se junto dela, ressonando baixinho.

Quando estava prestes a adormecer, um ruído junto à janela do quarto sobressaltou-a. O quebrar de galhos sob o peso de pés. Correu para a janela e afastou a cortina, sentindo a pulsação ensurdecê-la. Quando os olhos se ajustaram à luz das estrelas, reparou que o quintal das traseiras estava cheio de sombras. Mas nenhuma que ela reconhecesse como sendo a dele.

Na manhã seguinte, só conseguiu dar alguns goles num café. Foi a tremer todo o caminho até à sede. Assim que lá chegou, ele apareceu a saudá-la, todo sorrisos, beijando-a ternamente no rosto. Receosa, ela perscrutou-lhe o olhar, mas nada viu senão ternura. Dylan beijou-a e acariciou-lhe o rosto.

– Tive uma enxaqueca horrível ontem à noite. Tomei uns analgésicos e apaguei completamente – disse-lhe ele. – Devia ter-te deixado uma mensagem, ou um bilhete… Desculpa, querida. Então e tu? Divertiste-te muito com a malta?

Alice assentiu lentamente, sentindo-se subitamente estúpida. Que raio se passava com ela, afinal?

Era tudo da sua cabeça.

Estava a fazer do homem um monstro.

Os dias foram-se tornando mais longos, cada crepúsculo mais dourado que o anterior. A noite em que Alice ficara na sede a beber uns copos com os colegas nunca voltou a ser mencionada. Nem a ideia de eles socializarem com outras pessoas. Quando estavam só os dois, tudo corria lindamente. E não fazia mal.

Muitas pessoas não sabiam, ou não gostavam, de socializar. Cada manhã em que acordava envolta nos braços dele era a manhã perfeita. Tinham os seus altos e baixos, mas as relações não eram sempre um mar de rosas, dizia Alice a si própria. Era natural que existissem confrontos de vez em quando, à medida que se iam conhecendo.

Num dia particularmente radioso, Alice foi a primeira a chegar a casa do trabalho. Nessa manhã, ela e Dylan tinham combinado dar um longo passeio juntos, quem sabe levarem umas cervejas e sentarem-se numa duna a assistir ao pôr do sol. Tinha acabado de descalçar as botas e enfiar os chinelos quando o telefone tocou.

– Vou atrasar-me um bocado, Pinta-Pinta – disse Dylan com um suspiro. – Tive uma avaria no motor. Vou tentar ser o mais rápido possível, mas duvido que chegue a tempo do nosso passeio.

– Não faz mal, querido – disse ela docemente, esperando conseguir disfarçar o desapontamento na voz. Andava há horas a ansiar por aquele passeio, depois de um dia inteiro enfiada nos escritórios. – Fico por aqui à tua espera com a Pip, e vou pensar num jantarinho bom para nós.

Mas, pouco depois de ter desligado, Alice reparou que a cadela insistia em arranhar a porta de rede. Lá fora, a tarde apresentava-se magnífica. Em breve as dunas surgiriam cor-de-rosa à luz do entardecer. A jovem mordeu o lábio. Já não levava Pip num longo passeio a duas desde que ela e Dylan tinham começado a namorar. A imagem das ervilhas-do-deserto vermelho-vivo sob o crepúsculo invadiu-lhe a mente inquieta. Tinha acabado de dizer a Dylan que ficaria em casa à espera dele. Mas estava uma tarde tão boa… De certeza que ele não ia querer que ela ficasse fechada em casa.

– Anda daí, Pip – disse ela à cadelinha. – Vamos lá dar uma voltinha de meninas!

Excitada, Pip desatou a correr em círculo, tentando apanhar a cauda. Alice pôs-lhe a trela e saíram, subindo e descendo as dunas até à cratera.

Maravilhada, Alice foi descobrindo pequenos tesouros: margaridas sempre-vivas em tons pastel de rosa e amarelo, trilhos de penas esquecidas, brancas e cinzentas, ramos de eucaliptos carregados de botões floridos. Inspirou profundamente, deixando-se inebriar pelo cheiro a terra quente. Admirou o céu azul raiado de púrpura – que a fez lembrar-se dos caranguejos-soldados e das conchas das amêijoas-listadas. O deserto é um antigo sonho do mar. Alice sorriu ao lembrar-se das palavras de Dylan, no seu primeiro pôr do sol a dois. Enquanto subia a encosta da cratera com Pip colada aos calcanhares, retomando o percurso que tantas vezes tinham feito juntas quando chegaram a Kililpitjara, Alice sentiu o peito encher-se de nostalgia. Na altura, a paisagem revelara-se-lhe tão estranha, fazendo-a sentir-se insegura de quem era ou do que fazia ali. Mas agora tinha um emprego que adorava, e um homem que a amava como ninguém a amara antes.

Quando chegaram ao topo da parede da cratera, e Alice pôde ver Kututu Kaana – o Jardim do Coração – numa extasiante explosão de vermelho, deitou a cabeça para trás e fechou os olhos de contentamento. Finalmente tinha vindo para casa, para uma vida totalmente sua.

No regresso a casa, brincando com Pip e pensando no que ia fazer para o jantar, Alice parou ao ver o utilitário de Dylan estacionado à porta. Ficou imediatamente tensa,

os nervos à flor da pele. Foi com mãos trémulas que abriu o portão, esforçando-se por estabilizar a respiração. Não tinha noção de quanto tempo tinha estado fora. E esquecera-se de lhe deixar um bilhete. Entrou em casa. Não faças dele um monstro.

A casa estava escura e silenciosa.

– Dylan? – Chamou Alice. – Já cheguei. – Tirou a trela a Pip e descalçou-se. – Dylan?

Mais tarde, quando tentou lembrar-se do que aconteceu e como aconteceu, tudo lhe pareceu ter ocorrido em simultâneo: os ganidos agonizantes de Pip; o grito dela quando viu Dylan pontapear a cadelinha nas costelas; o brilho colérico no olhar dele ao avançar para ela.

– Onde é que andaste, porra?! – Agarrou-a pelo braço. – Com quem é que estiveste? Com quem? Diz-me!

A visão dela toldou-se de negro. A garganta ardeu-lhe quando ele a abanou violentamente pelo pescoço. Sentiu a espinha estalar de alto a baixo.

– Diz-me!

Ele abanou-a com tal violência que lhe levantou os pés do chão. Depois, o som explosivo da porta do quarto a bater, as dobradiças a saltarem dos gonzos com o impacto. Alice deixou-se resvalar para o chão.

Dobrada sobre si própria, tentou desesperadamente respirar. A sua mente pareceu sair-lhe do corpo, como se ela fosse uma mera espetadora, e não um sujeito participante na cena. Olhou fixamente para as bolas de pó e pelo acumuladas nos rodapés. Deixou-se fascinar por elas. Estavam ali, mesmo à frente dos seus olhos, e nunca tinha reparado nelas. Como é que nunca as tinha visto antes?

Um gemido próximo fê-la olhar para debaixo da cama. A cauda da Pip espreitava no escuro.

– Anda cá, bebé – sussurrou-lhe Alice, num fio rouco de voz. Sentiu pontadas agudas e dolorosas nas costas. Teve de chamar docemente a cadela várias vezes, até conseguir que ela saísse do esconderijo. Alice envolveu a cadelinha nos braços, enquanto apoiava as costas na parede. Embalando Pip para trás e para a frente, a jovem afagou-lhe as orelhas e os flancos, pressionando-lhe suavemente as costelas para tentar perceber se estariam partidas. Ainda que tremendo que nem varas verdes, a bichinha não parecia estar em sofrimento. Ao sentir-se afagada, lambeu o queixo de Alice.

Ela fechou os olhos, tentando centrar-se apenas na respiração. Tinha dores no corpo todo, sentindo os hematomas a formarem-se debaixo da pele.

O tempo passou. Em redor dela, a casa parecia sossegada. O zumbido do frigorífico. O tic tic do telhado a arrefecer do calor do dia.

Até que ouviu algo vindo da sala. Susteve a respiração para ouvir melhor.

Era ele, a chorar.

Alice suspirou de alívio. Lágrimas queriam dizer que tinha acabado.

Levantou-se tremulamente. Pip correu a esconder-se debaixo da cama.

Dylan estava sentado no sofá com a cabeça entre as mãos. Ao senti-la aparecer, olhou para cima. Tinha o rosto arrepiantemente pálido e manchado de lágrimas.

– Pinta-Pinta – murmurou, a voz quebrada. – Eu… eu… lamento tanto… – Olhou-a nos olhos. – A Pip está bem? Eu… não sei o que é que me deu… A sério, não sei mesmo. – Esforçou-se por recuperar o fôlego. – Fiquei tão preocupado quando cheguei a casa e tu não estavas…

– Fui só passear com a cadela. – Alice lembrou-se subitamente de Toby, do som do corpo dele a embater contra a máquina de lavar.

– Tu não sabes! – gritou ele, abalado. – Não percebes! Há por aqui muitos gajos melhores do que eu. Tu não vês como eles olham para ti. Mas eu vejo! Eu vejo perfeitamente, Pinta-Pinta. E se resolveres ir passear por aí sem mim e um deles te vir e… começarem a conversar depois do trabalho… como fazias comigo? – Fungou. – Como é que eu fico, se isso acontecer?

Alice sentia a mente a mil à hora, extremamente confusa. Seria possível que ele não soubesse o quanto ela o amava?

– E se começares a passear e a conversar com um deles… e ele… se apaixonar por ti? – insistiu Dylan.

– Não teria a menor importância, Dylan – interrompeu-o Alice, num tom implorante. – Não percebes isso? Eu não tenho espaço dentro de mim para mais ninguém.

Ele levou as mãos trémulas ao rosto.

– Tudo o que eu sempre quis foi impressionar-te – chorou. – E vê só o que o amor que eu sinto por ti me faz! Eu… só não quero perder-te. Passo-me quando não estamos juntos! Tudo o que eu quero é estar ao pé de ti, e perco o tino quando não estou. És o amor da minha vida, Alice. O amor da… – A voz falhou-lhe: – … merda da minha vida!

Alice desatou a chorar.

– Eu jamais te bateria! Tu sabes isso, não sabes? – As lágrimas rolaram-lhe pelo nariz. – Jamais te bateria, Pinta-Pinta.

Era verdade, pensou ela. Ele não lhe tinha batido. Tinha apenas deixado que o medo tomasse conta dele.

– Eu amo-te – disse ela, enfatizando a palavra por entre soluços.

Ele puxou-a para si.

– Preciso que me ajudes. Não podes fazer este tipo de coisas, deixares-me sem saber de ti. Podes fazer isso por mim? Por nós?

Ela procurou-lhe o rosto, perdendo-se na súplica do seu olhar. Assentiu.

– Nunca mais voltará a acontecer. Nunca mais. – Beijou-a com lábios trémulos. – Nunca, nunca mais.

Os lábios dela pegaram fogo ao encontrarem os dele.

Mais tarde nessa noite, após horas de conversa e chorosos pedidos de desculpa, e depois de Alice verificar uma e outra vez o estado da cadela, e varrido o pó da casa, acabou por deixar que Dylan a levasse até à casa de banho. Ele encheu a banheira e despiu-a ternamente. Ela deixou-se ficar sentada na água quente enquanto ele lavava cada centímetro do corpo dela com gestos lentos e suaves. Murmurou-lhe o seu amor e pedidos de desculpa como se fossem orações. Passado um momento, despiu-se e juntou-se a ela. Alice relaxou nos braços dele, quase renascida, quase capaz de esquecer o que tinha causado a dor que ele agora tentava sarar.

Na manhã seguinte, Dylan deixou uma caneca com café bem quente na cabeceira de Alice, juntamente com um bilhete. Teve de ir trabalhar cedo e não quis acordá-la, sentia-se pessimamente com o episódio da noite anterior, mas amava-a mais profundamente do que nunca.

Alice gemeu de dor quando se sentou na cama. Doía-lhe o corpo todo. Levantou-se e deslocou-se penosamente até à casa de banho, parando ao ver o seu reflexo no espelho. Tinha o pescoço coberto de nódoas negras, as marcas dos dedos dele bem visíveis. Voltou-se de costas para o espelho e abriu as torneiras do duche. Deixou que a água quente lhe acariciasse o corpo e não olhou mais para o espelho.

Pronta para o trabalho, chamou Pip para lhe abrir a porta da rua. A cadela não apareceu. Alice continuou a chamá-la, cada vez mais em pânico, até a encontrar escondida nuns arbustos. Passou cuidadosamente os dedos pelo corpo da cadelinha, mas não lhe encontrou nada de cuidado. Deixou-lhe água e comida na cozinha e apressou-se até à sede; não queria chegar atrasada.

– Não estás a morrer de calor com essa echarpe? – perguntou-lhe Thugger, ao passar por ela na sala de convívio. Ela esforçou-se por sorrir, negando com a cabeça e ajustando mais a echarpe ao pescoço.

Sentada na sua secretária, abriu o correio eletrónico e não pensou duas vezes antes de escrever um email:

Olá, Moss,

desculpa não te ter dito nada mais cedo. Vivo e trabalho em Kililpitjara desde que saí de Bluff. Isto é ótimo e estou muito feliz. Espero que também estejas.

Escrevo para perguntar-te se me podes ajudar: ontem a Pip levou um coice de um cavalo e, ainda que eu não lhe veja nada de mal e não me pareça que tenha dores, continuo preocupada. Noto-a um pouco apática, e pergunto-me se não estará em choque. Podes receitar-me alguma coisa para eu lhe dar, um anti-inflamatório, talvez?

Agradeço-te imenso o teu conselho.

Alice leu e releu o texto, e enviou-o antes que perdesse a coragem.

Algumas semanas depois, Alice e Dylan saíram para trabalhar, cada um no seu carro. Sarah tinha pedido a Dylan que, de caminho, verificasse o estado de umas cercas.

– Vai andando, vemo-nos ao almoço – disse-lhe ele, enquanto se dirigiam aos respetivos carros.

– Tomo isso como um convite – riu-se ela, dando-lhe um beijo de despedida.

Alice ficou a vê-lo arrancar. Já tinham entrado de novo na rotina habitual; ela esforçava-se por se manter sempre atenta aos comportamentos dele, por ajudá-lo sempre que ele lhe pedia, e assim viviam em paz. Felizes.

Moss tinha respondido no mesmo dia ao email que Alice lhe enviara, receitando-lhe um anti-inflamatório para Pip, mas insistindo para que ela a levasse à clínica em Agnes Bluff para um check-up de rotina. Alice tratou de apagar imediatamente aquela troca de emails, e decidiu pesquisar ela própria o medicamento na net. Mas não teve sucesso. No dia seguinte chegou uma encomenda por correio expresso, um envelope almofadado com antibióticos e anti-inflamatórios. Resolveu medicar a cadela com um deles, e respirou de alívio quando a viu recuperada, feliz e descontraída ao fim de dois dias.

Alice sentia-se cada dia mais segura, mais capaz de segurar o barco. O seu pó de ouro parecia manter os cacos bem colados.

Quando chegou à sede nessa manhã, viu os colegas reunidos no parque de estacionamento. O ar pareceu-lhe estranhamente carregado de adrenalina.

– O que é que se passa? – quis saber a jovem, ao sair do utilitário.

– É dia de fogo – esclareceu-a Aiden, apontando para Sarah que saía do gabinete com um maço de folhas na mão.

– Wai. Palya a todos – gritou Sarah, chegando-se ao grupo. – Muito bem. Vamos lá formar equipas. As condições meteorológicas para hoje são bastante propensas a incêndios controlados, por isso vamo-nos concentrar nos cercados à volta da orla meridional. Partam daqui com as equipas já formadas – os chefes de cada grupo devem ser experientes na matéria. Por isso, Nicko, Aiden e Thugger, dividam os grupos entre os três. Quero toda a gente devidamente equipada. Cada equipa leva um camião-cisterna e qualquer outro veículo que esteja disponível. Lembrem-se, malta: a segurança em primeiro lugar. Cuidado com o manuseamento dos queimadores, não brinquem com eles nem os tenham engatilhados. Prestem muita atenção ao vento. Mais importante ainda, sigam as ordens dos chefes de equipa. Tenho aqui mapas para todos, venham buscá-los. Quero que cada pessoa em campo ande com um rádio totalmente carregado. Bom trabalho a todos.

Tratou de distribuir os mapas e deu meia volta para regressar ao escritório.

Enquanto se formavam os grupos, Alice pôs-se em bicos de pés, procurando Dylan. É dia de fogo. Sentiu uma forte descarga de memórias de infância: em todo o mundo as pessoas recorrem ao fogo, dissera-lhe a mãe numa das suas tardes de jardinagem. Uma espécie de feitiço que transforma uma coisa noutra. Sentiu as palmas das mãos ficarem húmidas. Continuou a perscrutar os grupos, procurando o rosto dele. Mas Dylan não estava ali.

– Sarah? – chamou Alice, apressando-se atrás dela.

A outra voltou-se:

– Sim, Alice, diz?

– Desculpa… Eu… Queria saber se… O Dylan está escalado para este serviço? – Envergonhou-se com o tom infantil da própria voz.

– Não, amiga – disse Sarah lentamente. – Preciso de pessoal no parque, e o Dylan já acompanhou centenas de queimadas. – Perscrutou o rosto de Alice. – Ouve, eu não posso mandar ninguém para o terreno que não esteja empenhado de corpo e alma neste trabalho. E escolhi-te a ti porque és muito trabalhadora e demonstras sempre grande interesse no desenvolvimento de novas competências. Mas se estás com a cabeça noutro sítio…

– Não, não – interrompeu-a Alice. – Está tudo bem. Quero muito ir.

– Tens a certeza?

– Tenho, claro.

Sarah assentiu.

– Aiden! – chamou ela. – A Alice hoje fica contigo.

– Palya – respondeu Aiden, da porta da cabana onde se guardava o equipamento.

– Segue as instruções dele – disse Sarah a Alice, voltando-se para se ir embora. – E desfruta da tua primeira queimada.

Alice correu para a cabana. Estava tudo bem. Ia correr tudo bem. Sarah tinha-a escolhido para aprender e expandir as suas competências. Era perfeitamente lógico e compreensível. E não era ela que estava a pôr Dylan de parte. De certeza que ele ia entender que Sarah a incumbira de uma missão sem aviso prévio, daí ela não poder juntar-se a ele à hora do almoço. De certeza que ele ia entender. Ia ficar tudo bem.

A caminho dos cercados da orla meridional da cratera, Alice deu por si a imaginar-se a abrir uma cerveja ao fim da tarde, contando a Dylan como ficara feliz por ter sido escolhida para trabalhar num incêndio controlado. Mas, à medida que a paisagem do deserto se estendia a sua frente – com faixas púrpura de parakeelyas em flor – surgiram-lhe imagens do pai, despertando nela um antigo sentimento de puro medo – tão temível quanto familiar.

Estacionaram todos na orla sudeste da cratera.

– Vamos trabalhar em linha, todos juntos – disse Aiden aos colegas enquanto eles preparavam os respetivos queimadores. – É importante lembrarem-se do seguinte, quer esta seja a vossa primeira ou vigésima queimada: não incendeiem terreno à vossa frente. E nunca avancem para um fogo. Queimem o terreno atrás de vocês e afastem-se do incêndio. Palya?

Alice concordou com a cabeça. Sentiu as mãos húmidas dentro das luvas protetoras. Apertou com força o queimador que empunhava, mas o peso do aparelho fez-lhe tremer o braço. O som do líquido combustível no interior da bilha deixou-a ligeiramente enjoada.

– Rádios? – Aiden dirigiu-se ao grupo. Todos exibiram os aparelhos. – Muito bem. Vamos lá a isto!

Um a um, foram-se acendendo os pavios dos queimadores. Alice piscou os olhos ao ver o dela incendiar-se. Sibilava como se tivesse vida própria. A mão tremeu-lhe.

– Certifiquem-se de que têm as válvulas de respiro abertas – gritou Aiden. Voltou-se para Alice: – Vai lançando chamas para o chão atrás de ti, assim… – disse-lhe, baixando o braço de Alice e direcionando o queimador para um círculo de erva atrás deles, ateando-o e afastando-se. Ateava, afastava-se. Ateava, afastava-se. – Afasta-te sempre do fogo – avisou-a de novo.

A terra foi-se incendiando à volta deles, sibilando e crepitando. Alice olhava para baixo, tentando concentrar-se nas suas botifarras, avançando devagar na direção da terra vermelha e dos arbustos, baixando o queimador e lançando pequenas chamas no solo atrás de si.

Um, dois, lançar chama. Um, dois, lançar chama.

Estou, aqui, lançar chama. Estou, aqui, lançar, chama.

A recordação teimava em não deixá-la, surgindo bem visível à sua frente: a terra indistinta debaixo dos seus pés, enquanto ela e Toby se afastavam a correr da cabana do pai. O vento quente no rosto. O relâmpago a estilhaçar o céu em mil bocados. A sua linda mãe a sair de dentro do mar.

– Alice?

Não se tinha apercebido de que tinha parado, deixado de andar.

– Continuem – dirigiu-se Aiden ao resto do grupo. Chamou-a de novo, de fora do cercado, a cerca de cinquenta metros dela.

– Vais dar um passo na minha direção, agora. – A expressão dele estava calma, a voz serena.

Alice olhou para os pés. Recusavam a mover-se.

– Alice, tu consegues. Avança para mim. Agora – gritou-lhe, num tom já mais urgente.

Alice tremia incontrolavelmente: a lata do combustível do queimador parecia-lhe cada vez mais pesada. Os pés não se moviam um centímetro que fosse. O calor da parede de fogo atrás dela era quase insuportável, as chamas perigosamente próximas do seu queimador.

– Alice! – Aiden desatou a correr na sua direção.

Ela não se conseguia mexer.

Ele chegou-se a ela e agarrou-a pelo braço.

– Vou levar-te pelo braço e vamos correr juntos para fora daqui, ok?

Alice nada mais conseguiu fazer senão assentir. Aiden deu-lhe um forte puxão para a frente, forçando-a a correr. Ela sentiu-se estranha, vendo os pés moverem-se ao mesmo tempo que os dele.

Assim que se viram a salvo da linha de fogo, Aiden tirou a mochila das costas e abriu-a, procurando uma garrafa de água e umas gomas doces.

– Toma – disse-lhe, estendendo-lhe as duas coisas. Observou-a atentamente enquanto ela comia e bebia.

– Obrigada… – murmurou Alice, devolvendo-lhe a garrafa ao sentir-se saciada.

– Já passou? – quis saber Aiden.

Ela assentiu.

– Às vezes a Lulu também tem ataques de pânico. E tenta sempre convencer-me de que são tonturas.

Alice afastou o olhar. Não sabia que Lulu também sofria de ansiedade.

– E como te sentes agora? Precisas que eu chame alguém pelo rádio para te vir buscar?

– Não – respondeu Alice. – Não, eu fico bem. – Cravou os dedos no queimador. – Já estou bem – insistiu, esforçando-se por estabilizar a voz.

Aiden pareceu estudar-lhe o rosto.

– Ok – disse, pondo de novo a mochila às costas. – Mas vamos trabalhar juntos, ok? Com calma e firmeza. Segue as minhas instruções.

À medida que ela e Aiden percorriam o cercado, trabalhando juntos na formação de uma linha de fogo metódica, Alice sentiu os ombros relaxarem e a mão deixar de tremer. Com o apoio dele, e o seu olhar sempre atento, conseguiu cumprir a tarefa que lhe fora atribuída.

Uma hora depois, uma equipa de recolha veio buscá-los em várias Moto 4, levando-os para uma distância razoável dos incêndios controlados. No cimo da duna, pararam para almoçar à sombra dos carvalhos-do-deserto. Alice fechou os olhos e deu um longo gole do cantil. Sentiu as axilas húmidas dos suores frios que o medo lhe provocara.

Enquanto o grupo desfrutava das sanduiches em amena cavaqueira, Alice sentou-se um tanto afastada – de costas propositadamente voltadas para a onda de chamas laranja atrás de si. Quando captou o olhar de Aiden, não conseguiu evitar esboçar um sorriso de gratidão.

Ao final do dia, já de regresso à sede, Alice apressou-se a arrumar o equipamento para poder ir para casa ter com Dylan. Estava prestes a arrancar quando Aiden a interpelou.

– Amiga, fui chamado para ajudar na patrulha do crepúsculo, o que nos deixa com falta de um par de mãos para a verificação de segurança. Não demora muito. Importas-te?

Alice engoliu a súbita onda de receio que a envolveu.

– Claro – disse, disfarçando o nervosismo.

– Pinta-Pinta – chamou-a Ruby, do parque de estacionamento. – Eu dou-te uma ajuda e depois deixas-me em casa, pode ser?

– Ótimo – disse Aiden. – Quantas mais, melhor. Obrigado, Alice. – Voltou-se, mas pareceu mudar de ideias e voltou atrás, abrindo os braços. – Estiveste muito bem, hoje – disse, envolvendo-a num abraço terno. – Parabéns, miúda.

– Obrigada – disse ela com um sorriso tímido. – Gostei muito. E agradeço imenso a tua ajuda.

Assim que Aiden se afastou, Ruby e Alice dirigiram-se à cabana dos equipamentos. Um súbito roncar de motor chamou-lhe a atenção. Sentiu o coração desabar ao reconhecer o perfil de Dylan ao volante do seu utilitário de trabalho, acelerando para longe dali.

Quando Ruby e Alice finalmente entraram no carro para regressarem às respetivas casas, o estômago da jovem estava revirado num nó de pavor.

– Nyuntu palya, Pinta-Pinta? – indagou Ruby, olhando-a com estranheza. – Estás bem?

Alice optou por não responder. Não confiava na sua própria voz. Limitou-se a assentir.

– Os fogos assustaram-te, foi? – quis saber Ruby. Alice assentiu de novo. – Uwa, o fogo pode ser assustador. Mas felizmente também tem coisas muito boas. Pode ser usado como um remédio, por exemplo. Mantém a terra saudável, logo mantém-nos saudáveis também.

– Remédio? – perguntou Alice, distraidamente.

– Aquele cercado que tu hoje queimaste – explicou-lhe a outra –, estava coberto de vagens de sementes que precisavam de fogo para se abrirem e germinarem. Sem estes incêndios controlados, a terra adoece. As nossas histórias adoecem, e nós adoecemos.

– Para mim o fogo nunca foi um remédio – Alice deu por si a declarar. – Cheguei a pensar que sim, em tempos. Mas estava enganada. Para mim, o fogo sempre representou o fim das coisas.

Ruby estudou-lhe a expressão. Os rádios de ambas começaram a estralejar em uníssono, chamando por Ruby. Esta soltou-o do cinto de trabalho e respondeu, voltando a prendê-lo à cintura.

Seguiram em silêncio o resto do caminho até à casa dela.

Depois de deixar Ruby em casa, Alice fez inversão de marcha e dirigiu-se ao terreno de trabalho. O carro de Dylan estava parado à porta do ateliê. Tê-la-ia visto abraçada a Aiden? Ia haver problema? Com certeza que não, pensou. Não tinham almoçado juntos como combinado, nem se tinham visto durante todo o dia, mas ele certamente entenderia que ela tinha estado a trabalhar. E, tal como Sarah dissera nessa manhã, Dylan já tinha participado em centenas de queimadas. Com certeza não iria criticá-la por querer aprender.

Alice entrou no pequeno ateliê à procura de Dylan, esperando sinceramente que ele não estivesse com ciúmes – de Aiden, ou do dia que ela passara a trabalhar. Ele já lhe dissera várias vezes que ela era o amor da vida dele. Ela tinha de acreditar nisso, de acreditar nele, ou estaria certamente a prestar um péssimo serviço àquela relação. Permitiu-se imaginar o cenário que se poderia desenrolar: Dylan a abraçá-la ternamente e a dizer-lhe o quão orgulhoso estava do trabalho dela. Depois seguiriam para casa, abririam umas cervejas, e ele iria querer saber tudo, com todos os pormenores.

Dylan não ergueu os olhos do computador quando ela entrou. O monitor projetava uma luz doentia sobre o rosto dele.

– Olá – disse ela em tom alegre, forçando um sorriso.

Ele não respondeu, os maxilares firmemente cerrados. Alice esperou.

– Já soubeste? Tive hoje o meu primeiro incêndio controlado – disse-lhe. O sorriso forçado fez-lhe doer as faces. Ele continuou sem reagir.

– Ouvi dizer – respondeu, por fim, de olhos cravados no computador. – Não me admira nada, a queridinha do parque ser escolhida para as queimadas.

O medo bloqueou-a. Quando ele se voltou para ela, os olhos estavam afundados e sombrios, os lábios pálidos.

– Mas tu és mesmo assim, não é verdade? Com esses olhos grandes, e as tuas borboletas, e o teu sorriso… As pessoas nunca se fartam de ti, pois não? E tu adoras usá-las, a merda é essa.

Alice sentiu-se pregada ao chão.

– Conta lá, então… Como é que foi? – Os lábios torceram-se num sorriso cruel. – Vá, conta lá. Com quem é que vieste na moto 4? – Empurrou a cadeira para trás; ela estremeceu. – Em que gajo é que enrolaste as pernas, Alice? – Deu um murro na secretária. – Sim, porque eu estive a verificar a tua ficha e ainda não tens licença de moto 4. Tiveste de vir à boleia de algum cabrão… Quem foi? Com quem é que te enrolaste, porra? E não me mintas! – Dylan tinha cuspo nos cantos da boca. Ela não conseguiu falar.

– Diz-me com quem é que estiveste! – berrou-lhe ele, os olhos chispando de fúria.

Rolaram lágrimas pelo rosto dela. Dylan mexeu-se tão depressa que ela nem teve tempo de se preparar para o que aí vinha. Agarrou-a violentamente por um braço e torceu-lho atrás das costas.

– Diz-me – sussurrou-lhe.

Quando ele a empurrou contra a parede pareceu munido de uma força sobrenatural. Alice não conseguia respirar. Nem ouvir. Cambaleante, conseguiu correr uns passos.

– Ah, pois claro, foge, minha puta! Eu vi-te abraçada ao Aiden. Conheço bem o teu género, vaca. Vá, foge! – A voz dele perseguia-a. – Faz boa viagem, minha porca.

Mais tarde, Alice lembrar-se-ia da forma como o seu corpo se movera, à revelia do cérebro. Correndo aos tropeções para longe dele, e para dentro da carrinha. Alice ligou a ignição ao mesmo tempo que pisou a fundo o acelerador. Mais uma vez, a sua mente pareceu flutuar algures por cima dela, desligada, vendo-a conduzir. Parou junto ao portão da casa de Dylan para trazer a cadela, e seguiu estrada fora em direção a casa.

Quando fez a curva para entrar no trilho de acesso à casa, Alice viu um carro de aluguer estacionado à porta, coberto de pó vermelho. Encostou e dirigiu-se tremulamente ao carro, espreitando pelas janelas. Estava vazio.

Ouviu vozes baixas vindas do quintal de trás; sentiu o aroma rico a fumo de tabaco. Pip correu à sua frente.

Sentia as pernas como chumbo. Avançou lentamente pelo pátio traseiro.

E ali, sob a luz ténue do final da tarde, esperavam-na Twig e Candy Baby.