26. Arbusto-lanterna

Arbusto-lanterna

20170913_F023

Significado: A esperança pode cegar-me

Abutilon leucopetalum | Território do Norte

Tjirin-tjirin (Pitjantjatjara) é uma planta que habita regiões secas, sobretudo regiões rochosas do interior. As folhas têm uma base em forma de coração. As flores amarelas, muito parecidas com hibiscos, surgem normalmente no inverno e na primavera, mas por vezes florescem ao longo de todo o ano, exibindo tons vibrantes. As crianças Anangu utilizam-nas como pequenos dardos de brincar.

Candy não controlou a emoção. Precipitou-se sobre Alice e acariciou-lhe o rosto, os olhos marejados de lágrimas.

Twig foi mais comedida. Lançou a beata para o chão e esmagou-a com o pé. Assim que Candy se afastou de Alice, deu um passo em frente e abraçou-a.

Enquanto preparava o chá, Alice não conseguiu evitar que as mãos lhe tremessem. O vapor colava-se-lhe à pele, ao cabelo. A fúria de Dylan persistia em assombrá-la. A repugnância estampada no rosto dele. O poder maléfico da sua força.

Levou três canecas de chá para a mesa da cozinha, onde Twig e Candy se haviam instalado, tão familiares e, ao mesmo tempo, tão fora do contexto na paisagem do deserto. Trémula, pousou as canecas.

– Estás bem? – quis saber Candy, pousando a mão na de Alice.

A jovem sentou-se, fechou os olhos um instante e assentiu.

– Como é que me encontraram? – murmurou.

Elas trocaram um olhar.

Twig deu um gole no chá, antes de responder:

– Através do Moss Fletcher.

– O veterinário? – exclamou Alice, incrédula, com a mente a mil. – De Agnes Bluff?

Twig fez que sim.

– Ele leu as insígnias na tua carrinha quando te levou à médica. Pesquisou Thornfield no Google e ligou-nos, procurando parentes próximos. E depois voltou a ligar-nos quando lhe mandaste um email a dizer que estavas a viver aqui.

Alice não conseguiu olhar para nenhuma delas.

– Ele não devia ter feito isso. – A voz de Dylan: As pessoas nunca se fartam de ti, pois não? E tu adoras usá-las…

– Talvez não – disse Candy docemente –, mas ficámos tão aliviadas quando ele nos ligou, querida. – Limpou os olhos. – Tu deixaste-nos, ervilhinha – prosseguiu. – Mandei-te milhares de mensagens, emails todos os dias… – A voz quebrou-se-lhe. – Tu limitaste-te a ir embora e nunca mais disseste nada.

Lá fora, as luzinhas brilhavam no escuro da noite que começava a cair. Iria Dylan ligar-lhe? A cabeça dela parecia querer explodir. A adrenalina fora-se esvaindo, deixando-a com uma forte sensação de exaustão.

– Vocês sabem perfeitamente porque é que eu «me limitei a ir embora» – declarou Alice. – Estavam à espera que eu fizesse o quê, depois do que aconteceu?

– Eu sei que é difícil tentares compreender, Alice, mas a June estava apenas a querer proteger-te.

– Oh, por amor de Deus! Isto não é… – Alice levantou-se e arrumou a cadeira bruscamente. – Eu não consigo lidar com isto agora – disse, levantando as mãos. Não lhe restava um resquício de força no corpo para discutir. Não as queria ali. Tinha a cabeça feita num oito; só conseguia pensar em Dylan. Não lhe restava espaço para fantasmas e memórias antigas. Além disso, bem no seu íntimo, ela sabia que estava a ser injusta. Elas não mereciam o seu medo, a sua dor, a sua raiva. A melhor coisa que ela podia fazer para bem de todas era dar tempo ao tempo.

– Preciso de um momento – murmurou, voltando costas e dirigindo-se à casa de banho para um duche retemperador. Quando ia fechar a porta, ouviu Candy dizer:

– Ela morreu, Alice.

As palavras atingiram-na como uma série de pequenas explosões. Conseguia ver os lábios de Candy a moverem-se, mas ouvia apenas fragmentos de frases.

– … ataque cardíaco fulminante…

Abanou a cabeça com força, tentando ouvir. Não sentia as pernas.

– … as cheias impediram-nos de sair de casa. Dia e noite, ela sentava-se no terraço de trás a ver o nível da água subir. Encontrámo-la de olhos muito abertos, fixos nos campos de flores destruídos. – O rosto de Candy era uma tela em branco.

Alice olhou para as duas mulheres como se estivesse a vê-las claramente pela primeira vez. Os olhos de Candy estavam raiados de vermelho, o cabelo azul espalmado e sem brilho. O cabelo de Twig estava já bastante branco nas têmporas. E mesmo debaixo da farda de trabalho, notava-se que emagrecera imenso.

June tinha morrido.

Alice cambaleou até à casa de banho e fechou a porta, encostando-se a ela quando as pernas cederam. Afundou-se no chão. Desejando urgentemente algum tipo de conforto, abriu a torneira da água quente. Entrou no duche completamente vestida e sentou-se debaixo do chuveiro. Ergueu o rosto para a água. Chegou os joelhos ao peito, abraçou-os e permitiu-se desmoronar-se num pranto, finalmente.

Alice deixou-se ficar na casa de banho muito depois de ter terminado o duche. Embrulhou-se em toalhões e ficou sentada no polibã, de olhos fechados, incapaz de se mexer, incapaz de falar.

Pelas paredes ouviu o som das vozes de Candy e Twig a conversarem na sala. O correr da porta de trás. O ruído das canecas a serem lavadas na cozinha. O arrastar das cadeiras da mesa de jantar no linóleo. Passos até à porta da casa de banho.

– Alice. – A voz de Twig. – Nós vamos ver se arranjamos um quarto no resort. Dar-te algum espaço. Foi um erro trazer-te estas notícias assim… sem aviso prévio. – Uma pausa. – Lamentamos muito. – Outra pausa. Passos a afastarem-se. Quando ouviu a porta de casa abrir e fechar, Alice saiu finalmente do duche, envolta num toalhão. Abriu a porta da casa de banho. Pip entrou de rompante, embrulhando-se nas pernas dela.

– Esperem! – gritou.

Twig e Candy já estavam lá fora. Ao ouvirem a voz dela, voltaram para dentro.

– Podem ficar aqui. Tenho espaço suficiente. Neste momento estou na minha folga de quatro dias. – Ergueu o queixo e fixou-as. – Quero que fiquem cá. Temos muito que conversar. – O coração batia-lhe descompassado dentro do peito.

Elas olharam uma para a outra. Candy foi a primeira a falar:

– Que me dizes de eu fazer alguma coisa para jantarmos? Não vamos conseguir pensar claramente com o estômago vazio.

Enquanto Candy se dirigia para a cozinha, e Twig se instalava no pátio para enrolar um cigarro, Alice foi ao quarto vestir-se. Cada movimento exigiu-lhe um esforço descomunal. Primeiro as cuecas. Teria June sentido dores? Uma perna. Depois a outra. Saberia que estava a morrer quando sofreu o enfarte? Camisa por cima da cabeça. Teria gritado, ou chamado por alguém? Estaria aterrorizada? A cabeça de Alice parecia pesada demais para o pescoço a suportar. Enfiou-se na cama, só por um breve momento, procurando o conforto da sua almofada.

Até que o sentiu.

O cheiro da colónia de Dylan na camisa dela, o aroma a folhas verdes e a mais qualquer coisa. O corpo dele, os seus sonhos, o seu hálito, a terra e a sal.

Alice levou o colarinho da camisa ao nariz, inalando profundamente. Ele ficara triste por se ver excluído dos incêndios controlados. E perturbava-o demasiado o facto de ela atrair a atenção dos outros homens. Ela devia ter sido mais sensível, mais consciente. E devia ir ter com ele e pedir-lhe desculpa. Ele tinha simplesmente perdido a cabeça. Acontecia a qualquer um.

Alice esforçou-se por conter as lágrimas. Sentou-se e apagou a luz da mesa de cabeceira. Olhou para a casa dele, através das dunas. Surgia solitária e com tudo apagado, uma estrutura sombria debaixo do céu estrelado.

Na manhã seguinte, Alice acordou com o cheirinho a café acabado de fazer, e os sons atarefados de Twig e Candy na cozinha. Não sabia onde estava, nem no tempo, nem no espaço. Podia ter nove anos. Dezasseis. Vinte e sete.

– Café? – perguntou Candy ao vê-la surgir na sala, com um ar cansado e olhos sonolentos.

– Sim, por favor.

– Que tal dormiste? – quis saber Twig.

– Que nem uma pedra, sem sonhos – murmurou Alice, bocejando. – E vocês?

– Lindamente – assentiu Twig com um sorriso.

– Nós sentimo-nos como duas adolescentes num acampamento. Imagina, com a nossa idade… – Candy sorriu, estendendo a Alice uma caneca de café a fumegar. Ela agradeceu com um aceno.

Instalou-se um silêncio desconfortável entre as três. Lá fora, Pip corria em círculos, perseguindo a própria cauda.

– A cadela tem de ir passear – disse Alice, dando um gole no café. – Costumamos fazer o mesmo passeio quase todos os dias, do meu quintal de trás até à parede da cratera. Tem uma vista que eu sei que vocês vão adorar.

Com Pip a saltitar à frente delas, Alice, Twig e Candy caminharam por entre árvores e arbustos em direção à cratera. De vez em quando, uma delas parava para apontar uma rosa-do-deserto, ou uma águia-audaz a pairar por cima das suas cabeças. Mas, a maior parte do tempo caminharam em silêncio, seguindo o trilho que escalava a parede da cratera. Quando chegaram à plataforma de observação, Twig arquejava aflitivamente. Teve de se sentar à sombra para recuperar o fôlego.

– Isso é da porcaria dos cigarros de enrolar que passas o dia a fumar – disse-lhe Candy, de sobrolho carregado. A outra fez-lhe um gesto, enxotando-a.

Alice passou o cantil de água às duas e deitou um pouco numa tigela para Pip – que se estendeu, arquejante, ao lado de Twig. O ar fresco da manhã refrescou-lhes a pele. Voltaram-se para observar a cratera. As ervilhas-do-deserto exibiam um resplandecente e mágico tom de vermelho.

– Isto é espetacular – suspirou Candy. – Acho que nunca tinha visto tantas ervilhas-do-deserto juntas.

– Atraem turistas do mundo inteiro.

– Começam a florescer agora, ao longo de todo o verão e até ao outono – observou Twig com um tom conhecedor e visivelmente maravilhada. – Na minha terra chamamos-lhes flores de sangue – acrescentou. – E nas nossas histórias, as histórias Koori, elas florescem onde quer que haja sangue derramado.

– Nunca me contaste isso – disse-lhe Candy. – É por isso que tens sempre tanto cuidado ao plantá-las em Thornfield?

Twig assentiu:

– É uma das razões, sim. Fazem-me sempre lembrar a família que perdi. E também – A voz fraquejou-lhe. – a família que encontrei.

Tem coragem. Acredita – murmurou Candy.

Alice apanhou um galho do chão e apontou para a cratera.

– Conta a história indígena que a cratera é o resultado do impacto de um coração de mãe que caiu à terra. Ela arrancou-o do peito e lançou-o das estrelas, para ficar junto do filho bebé que caíra inadvertidamente do seu berço no céu. – Alice quebrou o galho em dois e entreteve-se a descascar uma das metades. – As ervilhas-do-deserto florescem ao longo de nove meses no ano, num círculo perfeito. Dizem que cada uma das flores representa um pedaço vivo dessa mãe, vinculado à terra. – Foi partindo o galho em pedaços cada vez mais pequenos, formando uma pilha aos seus pés. – A minha amiga Ruby diz que se as flores adoecerem, ela e a família também adoecem.

– Faz todo o sentido – comentou Twig.

Ficaram as três sentadas em silêncio durante um momento.

– Ela foi cremada ou enterrada? – Alice não conseguiu olhar para nenhuma delas.

– Cremada – respondeu-lhe Candy. – Deixou instruções expressas para isso. E pediu que as cinzas fossem lançadas ao rio para que ela pudesse encontrar o caminho até ao mar.

Alice abanou a cabeça tristemente, recordando o dia em que mergulhara no rio e sonhara segui-lo até casa.

– Talvez seja melhor voltarmos, Alice. Temos uma coisa para te dar – disse Candy. Twig concordou com um aceno.

– Claro – retorquiu Alice. Assobiou à cadela e orientou-as no caminho de regresso a casa.

Quando chegaram, o sol já ia alto, irradiando calor. Alice encheu três copos com água fresca e rodelas de limão, servindo as amigas.

Minutos depois, Candy dirigiu-se ao carro de aluguer e regressou com um objeto embrulhado num pedaço de tecido. Alice reconheceu-o instintivamente.

– Oh, meu Deus!

– Ela deixou escrito no testamento que gostaria que ficasses com ele. – Candy entregou-lhe o embrulho.

Alice desembrulhou o Dicionário de Thornfield. Uma onda de doces memórias percorreu-lhe o espírito. A primeira vez que entrou no ateliê com Candy. Twig a ensinar-lhe a cortar flores. June a mostrar-lhe como prensá-las. Oggi, ainda um rapazinho, erguendo os olhos do livro e acenando-lhe.

– Ocupou-lhe uma boa parte dos últimos vinte anos, mas no fim cumpriu a promessa que te fez. – O tom de Twig soou grave e emocionado. – Tudo aquilo que alguma vez sonhaste saber está aí dentro. Nós não nos apercebemos, mas a June dedicou o seu último ano de vida a escrever as histórias de Thornfield, incluindo a dos teus pais.

Alice cravou as mãos no livro.

– Quando as leres – disse Candy –, ficarás a saber que a Ruth Stone nunca quis que Thornfield passasse para as mãos de um homem que não fosse merecedor. – Fez uma pausa, parecendo estudar as palavras cuidadosamente. – Sabes, Alice, quando o teu pai era novo, a June sofreu um ataque cardíaco. Foi uma coisa relativamente ligeira, mas ainda assim ela resolveu fazer um testamento. Mas não disse a ninguém… porque decidiu que o Clem não seria beneficiado. Ela sabia como ele era possessivo em relação à tua mãe, viu isso logo, desde que eram miúdos. E também percebeu desde logo até que ponto ele conseguia ser agressivo connosco. Ou ciumento, quando não era ele o centro das atenções. Ou mesmo maléfico quando se descontrolava, extremamente violento quando perdia a cabeça. Um dia, ele ouviu inadvertidamente a June contar à Agnes que Thornfield um dia seria dela, minha e da Twig. Que tinha tomado a decisão de não incluir Clem no testamento… Bom, no dia em que ele abandonou a quinta, jurou que nunca mais falaria com June, nem com nenhuma de nós. – A voz quebrou-se-lhe. – E foi por isso que nós nunca te conhecemos até chegares a Thornfield, já com nove anos. Nunca mais voltámos a ver ou a falar com os teus pais.

– Então… – Alice afastou-se, como se estivesse a juntar as peças de um um puzzle. – Os meus pais abandonaram Thornfield porque a June tomou uma decisão que ela sabia de antemão que ia deixar o meu pai furioso?

– As coisas não foram assim tão simples. A June achou que tinha boas razões para fazer o que fez. Conhecia muito bem a natureza do filho para deixar nas mãos dele tudo aquilo que ela e as mulheres da tua família construíram. Ele era extremamente volúvel.

– Sim – retorquiu Alice. – Tenho plena noção disso, Candy, acredita. – Sentiu uma dor aguda latejando-lhe nas têmporas. – Por que é que não me disseste que foi por isso que eles deixaram Thornfield?

– Não podia, Alice. Não podia trair a June. Nunca, depois de tudo o que ela fez por mim. Cabia-lhe a ela contar-te esta história.

– Quer dizer que, por causa disso, ignoraste os teus próprios sentimentos? – Elevou a voz: – Que os erros da June passaram a ser teus também?

– Pronto, já chega – interveio Twig. – Já chega. Faz uma pausa, Alice. Respira fundo.

Alice levantou-se e caminhou pela sala. Lágrimas gordas rolaram pelo rosto de Candy.

– Eu creio que é muito importante – declarou Twig lentamente –, não nos deixarmos perturbar pelo passado.

– Deixar-me perturbar pelo passado?! – guinchou Alice. – Como é que isso pode acontecer se eu nem sequer conheço o passado?

– Alice, por favor… – Twig tentou chamá-la à razão. – Tens de te acalmar. Precisamos de falar de coisas realmente importantes.

– Que coisas? – lançou-lhe Alice num tom agressivo.

– Senta-te – disse Twig, firmemente. O rosto dela era absolutamente imperscrutável. E o de Candy também. Alice sentiu uma onda de preocupação instalar-se no lugar da raiva que momentaneamente a consumira. Olhou para Candy, depois para Twig.

– O que é? – quis saber. – Digam-me.

– Senta-te, Alice.

A jovem ia começar a protestar quando Twig ergueu uma mão. Resignada, Alice puxou de uma cadeira e sentou-se.

– Tudo isto é demasiado para assimilar de uma vez só, e nós só queremos poupar-te o mais que nos for possível – disse Twig, entrelaçando as mãos.

– Só lhes peço que me contem. – Alice cerrou os dentes.

– Ok – acedeu Twig. – Bom…

Candy respirou fundo.

– Alice… – Twig não sabia como começar.

– Diz-me, bolas!

– O teu irmão sobreviveu ao incêndio – disse Twig por fim, afundando-se na cadeira.

Alice reagiu como se tivesse levado uma estalada:

– O quê?!

– O teu irmão bebé. Sobreviveu. Foi adotado pouco depois de teres vindo para Thornfield.

Alice ficou a olhar para elas, completamente atordoada.

– Nasceu prematuro e muito doente. Os médicos duvidaram que sobrevivesse. E nessa altura… a June pôs em causa a sua capacidade de tomar conta de um recém-nascido doente, e também não quis expor-te a mais sofrimento, caso ele não sobrevivesse.

Alice abanou a cabeça, sem conseguir entender.

– E então… descartou-o, pura e simplesmente?

– Oh, minha ervilhinha! – Candy estendeu uma mão para ela. – Tenho tanta pena! É um choque horrível para ti, demasiada informação para processar. Vai levar o seu tempo. Por que não voltas para Thornfield connosco? Por favor. Nós cuidamos de ti e…

Subitamente, Alice levantou-se e correu para a casa de banho. Vomitou e tossiu, tomada por convulsões.

Os rostos de Candy e Twig, cheios de medo, preocupação e amor, inclinaram-se sobre Alice, amparando-a, dizendo o nome dela.

Candy abriu com o pé a porta de rede, levando duas tigelas de massa fumegante para o pátio. Estendeu uma a Twig e sentou-se ao lado dela, iluminada pelas luzinhas decorativas. Comeram em silêncio durante um longo momento. O céu mudara de azul para âmbar e cor-de-rosa. Iluminada por trás, a parede da cratera parecia o casco de um navio encalhado.

– Não achas que devíamos acordá-la? – sugeriu Candy.

– Deixa-a dormir, Candy.

– Ela já está na cama há mais de um dia.

– E, ao que parece, bem precisa do descanso – suspirou Twig.

– E o telemóvel dela? Ainda não parou de tocar.

– Candy…

– Como é que achas que ela fez aquelas nódoas negras? – interrompeu-a a outra, num murmúrio angustiado.

Twig abanou a cabeça. Pousou a tijela e levou a mão ao bolso da camisa, de onde retirou a sua bolsa de tabaco. – Deve ter sido num trabalho qualquer aqui no parque. Sabes bem que às vezes nos magoamos.

– Eu sinto que a perdemos – disse Candy baixinho.

– Sentes isso porque não sabemos nada da vida dela desde que saiu de Thornfield. E nem sequer lhe demos a oportunidade de nos pôr a par, pois não? Trouxemos-lhe notícias devastadoras.

Candy não respondeu. Ficaram ambas a ver o sol a afundar-se no horizonte.

– E não lhe disseste que a June morreu à espera que ela voltasse para casa – disse Candy, passado um momento.

– Nem tu – lançou-lhe Twig.

– Eu sei. – Candy esfregou as têmporas. – A última coisa que ela precisa é desse tipo de culpa.

Surgiram as primeiras estrelas no céu.

– Chegaste a ver os cadernos dela? – perguntou Candy.

Twig assentiu com a cabeça, acendendo um cigarro.

– Estão nas estantes. Cobertos de flores e dos respetivos significados. Alguns têm desenhos, outros têm flores secas. Sem nenhuma ordem em especial, não como num dicionário. As páginas parecem aleatórias, mas quando as folheamos ficamos com a sensação de que contam uma história.

Twig deu uma longa passa e expeliu o fumo para cima, olhando para Candy de relance.

– Que é que foi? – disse Candy, defensiva. – Vi-os nas estantes, fiquei curiosa e dei uma vista de olhos, mais nada. – Brincou com o garfo nos restos de massa fria. – Estou preocupada.

Twig deu outra longa passa no cigarro.

– Também eu.

Candy poisou o garfo na tigela, num gesto decidido.

– Temos de convencê-la a voltar para casa connosco – declarou. – Afinal, um terço de Thornfield pertence-lhe.

– Tudo isso pode esperar. Não vamos a lado nenhum.

– Sim, mas… não a pressentes metida nalgum sarilho? Nós somos a única família que ela tem. Ela precisa de nós. – A voz de Candy soou trémula.

– Não somos a única família que ela tem – fez-lhe ver Twig.

Candy endireitou-se, boquiaberta.

– Como assim? Nós amamo-la. Criámo-la.

– E assim que ela se sentir preparada, vamos estar lá para apoiá-la. Mas neste momento temos de lhe dar o tempo de que ela necessita. Deixá-la fazer o que tem de fazer.

– Que é?

– Viver – disse Twig, simplesmente. – Tu sabes isso. A tua cabeça e o teu coração não estão em sintonia, neste momento. Ela está desesperada por viver a sua própria história, tentar e errar e, mesmo assim, saber que ficará bem.

– Mas… – O lábio inferior de Candy tremeu-lhe. – E se não ficar?

– E então? Que é que queres fazer? Reprimi-la e sufocá-la, como fez a June para tentar protegê-la? Lembra-te que de boas intenções está o inferno cheio.

Candy ficou em silêncio. Pensativa, Twig retirou pedacinhos de tabaco da língua. Ao longe ouviram-se cães a uivar.

– Não a vamos perder outra vez – declarou Twig. – Dá-lhe algum crédito.

Candy concordou com um aceno, o rosto tolhido pela dor.

– Ok – murmurou.

– Ok – repetiu Twig, dando outra passa, ouvindo o crepitar do tabaco no silêncio da noite.

Alice sentou-se no sofá com uma caneca de café. Já estava acordada há umas horas, mas sentia a cabeça tão vazia quanto o céu lá fora. Candy disse-lhe que tinha dormido dois dias seguidos. Depois de tudo o que te dissemos, devias estar mesmo a precisar.

Enquanto Candy e Twig levavam os sacos para o carro de aluguer, Pip saltitava à volta delas, metendo-se-lhes no meio dos pés. Elas queriam chegar a Agnes Bluff ainda de dia, já que o voo de regresso seria na manhã seguinte bem cedo.

– Penso que está tudo. – Twig voltou a entrar em casa, sacudindo o pó das mãos. – Sei que já te perguntei isto mil vezes, mas se quiseres que fiquemos…

Alice abanou a cabeça.

– Eu estou bem. E vai fazer-me bem ficar um tempo sozinha para conseguir digerir tudo isto.

– Prometes que nos ligas? – disse-lhe Candy, com um sorriso tristonho. – Sempre que tiveres dúvidas, ou precisares de falar, ou apenas para ouvires a voz de quem te conhece e te ama muito.

Alice levantou-se e avançou para ela.

– Odeio despedidas – gemeu Candy, abraçando-a. – Promete que vais visitar-nos. Não tarda, começam as sementeiras. Vamos tentar começar tudo de novo.

Alice assentiu por cima do ombro de Candy, inspirando o seu cheiro a baunilha.

Candy desfez o abraço.

– Alice Blue… – murmurou ternamente, ajeitando uma madeixa de cabelo por detrás da orelha da jovem antes de entrar no carro.

Alice e Twig ficaram frente a frente, em silêncio. A jovem não conseguiu olhá-la nos olhos.

– Estás bem? – Twig pigarreou.

Alice obrigou-se a olhar para ela.

– Hei de ficar.

Captaram o olhar uma da outra por um momento, até que Twig tirou do bolso de trás um envelope volumoso.

– Quando te sentires preparada – disse –, tens aqui tudo o que precisas. Já devia ter-te dado isto há muitos anos.

Alice aceitou o envelope. Twig puxou-a para um abraço apertado.

– Obrigada – disse a jovem. Twig fez-lhe uma festa, sorrindo.

Alice ficou a acenar-lhes até o carro desaparecer de vista.

Quando entrou em casa, sentiu à sua espera tudo aquilo que Twig e Candy lhe haviam contado. A morte de June. A vida do seu irmão bebé. Andou em círculos, tentando que tudo assentasse dentro do seu coração, mas depressa percebeu que só tinha espaço para Dylan. Já tinham passado dias. Onde estaria ele? Twig e Candy podiam ter-se esquecido de lhe dizer que o telefone tinha tocado enquanto ela dormia. Poisou o envelope que Twig lhe deu e apressou-se para o telemóvel. Como já era de prever, tinha várias mensagens e chamadas não atendidas.

Todas dele. A primeira mensagem era um pedido de desculpas, mas as seguintes revelaram-se cada vez mais frias. A última mensagem deixou-a literalmente maldisposta.

Tenho-me mostrado superior a tudo isto, liguei-te e pedi-te desculpa, e tu ignoras-me? Que simpático da tua parte.

Movida pela culpa e pela compulsão de resolver as coisas, Alice pegou nas chaves de casa e saiu pela porta de trás. Percorreu a vedação em direção à casa dele. Ia pedir-lhe desculpa por ter aceitado o serviço das queimadas. Por não ter sido mais sensível em relação aos seus sentimentos, e por não ter ido ter com ele antes. Ia explicar-lhe que tinha tido a inesperada visita de familiares. Ia contar-lhe tudo. Revelações súbitas de morte e de vida. Ele ia entender.

Mas o portão de Dylan estava fechado a cadeado. E nenhum dos seus carros se encontrava à vista.

– Ele não está em casa – disse uma voz atrás dela.

Voltou-se. Era Lulu. Já não falavam há meses.

– Foi-se embora – informou-a a amiga, enfiando as mãos nos bolsos. – Esteve na sede a falar com a Sarah, parece que tinha assuntos urgentes a tratar. Precisou de partir de repente.

Alice perscrutou-lhe o rosto, tentando compreender.

– Que… Quando? – murmurou por fim.

– Ontem ainda o vi na bomba a atestar o carro. Ele não te disse nada?

Alice não conseguiu conter um suspiro profundo. Que assuntos urgentes? Teria ele contado a Sarah o que se passara no ateliê? Estaria magoado? Doente? Com algum problema? Lulu agarrou Alice a tempo, quando lhe viu os joelhos cederem.

– O que é que eu fui fazer? – Alice desatou num pranto incontido, apoiada em Lulu para não cair. Nem sequer se apercebeu que os seus hematomas ficaram à vista.

– Mas que raio…? – disse Lulu por entre os dentes cerrados, olhando para os braços de Alice. – Ele magoou-te? O Dylan bateu-te, Alice?!

Alice tentou engolir o embaraço.

– Pois – disse Lulu, num tom preocupado, mas firme. – Vamos para minha casa. Anda.