28. Crotalária

Crotalária

20170913_F024

Significado: O meu coração foge

Crotalaria cunninghamii | Estados do oeste e intermédios

Com expansão profusa nos solos arenosos dos bosques de mulga e em dunas de areia, esta planta exibe uma leve pilosidade nos ramos espessos. A flor assemelha-se a um pássaro ligado pelo bico ao caule central da planta, amarelo-esverdeado e com listas púrpura. Floresce no inverno e na primavera e é polinizada por pássaros e abelhões.

Depois de três longos dias de viagem, a paisagem árida e poeirenta tornou-se verde e exuberante. Já no fim do quarto dia, Alice saiu da via rápida e entrou numa estradinha estreita ao longo da costa até chegar à vila onde vivera em criança. Parou no cruzamento principal, observando o vaivém das carrinhas de caixa-aberta dos agricultores. Havia novas lojas na rua principal: uma de tatuagens, outra de telemóveis, uma loja de roupa vintage e uma loja de surf.

Atrás de si, os canaviais mantinham-se tão verdes e vívidos quanto ela se recordava. As canas pareciam mais baixas, mas o ar continuava doce e húmido. Viu-se a si mesma, com sete anos, desaparecendo por entre as canas altas para reaparecer, descalça e silenciosa, num mundo novo e excitante para lá dos limites da sua casa. Abraçou-se a si própria. Pip lambeu-lhe a perna, como que a consolá-la.

– Estás bem? Estás perdida? – Uma voz amistosa fez Alice voltar-se para trás. Era uma mulher pouco mais velha do que ela, com um bebé encaixado na anca.

– Estou ótima, obrigada – respondeu Alice.

A mulher sorriu enquanto o bebé apontava para Pip. Junto aos semáforos, poisou a criança no chão e carregou no botão para a passagem de peões.

– Desculpa – Alice chamou-a, nervosa por lhe fazer uma pergunta para a qual já sabia a resposta. – Aquele edifício do lado de lá da estrada continua a ser a biblioteca?

– Continua, sim senhora. – A mulher acenou-lhe e pegou na criança para atravessar a rua.

Ao longo dos anos, Sally Morgan imaginou muitas vezes como seria o dia em que voltasse a ver Alice Hart. Nunca esperou que isso acontecesse de um modo tão simples, numa normalíssima tarde de terça-feira.

As aulas tinham acabado, a biblioteca estava cheia, e Sally estava agachada junto às prateleiras mais baixas da secção infantil, a arrumar livros. Sem razão aparente, sentiu um estranho arrepio na espinha.

Levantou-se lentamente. Lembrou-se subitamente de umas sandálias sujas a espreitarem debaixo de uma camisa de noite esburacada; a cabecinha despenteada erguida para os livros da biblioteca; as covinhas nas bochechas; os olhos selvagens de tão verdes; os cabelos escuros espalhados na almofada da cama de hospital; o ruído e o movimento ritmado, para cima e para baixo, do ventilador que a ajudava a respirar; as maçãs do rosto tão definidas na cara esquelética e infantil; as veias violeta sob as pálpebras pálidas.

Sally caminhou cautelosamente por entre as estantes. Não via nada fora do normal. Nada fora do lugar. Estava demasiado cansada, isso sim. E quando isso acontecia, sentia-se sempre mais vulnerável em relação ao passado. Ainda assim, não resistiu a fazer uma ronda pela biblioteca.

Pessoas a vasculharem estantes. Pais com os filhos. Alunos do liceu sentados em grupo, rindo e cochichando por cima dos livros de estudo.

Nada havia de fora do vulgar. Nada que não fosse como em qualquer outro dia. Sentiu a pulsação abrandar.

Esforçando-se por ignorar aqueles sentimentos tolos, dirigiu-se à sua secretária, pegando pelo caminho em livros desarrumados. Tinha as bochechas afogueadas de desapontamento.

A luz do final de tarde insinuava-se pelas janelas de vitrais. Quando estava a chegar à secretária, Sally ficou encadeada pela luz verde-azulada que saía da cauda da Pequena Sereia. Deu um passo para o lado, baixando os olhos para protegê-los da luz. E, quando os ergueu de novo, viu a menina que ela tanto adorava no rosto de uma jovem mulher parada à sua frente. Os livros que carregava no colo caíram no chão com um grande estrondo.

Há vinte anos que Sally ansiava pelo momento em que Alice Hart caísse de novo, qual estrela cadente, na sua vida.

E ali estava ela.

Alice percorreu a povoação atrás do carro de Sally, ainda atordoada com a cena da biblioteca. Quando Sally a viu, os olhos desfocaram-se-lhe – quase como se estivesse a atravessá-la com o olhar – mas rapidamente correu para ela, envolvendo-a num abraço intenso, balouçando-a para trás e para a frente, balbuciando repetidamente o seu nome. Alice ficou muito quieta, assoberbada pela memória que tinha daquele perfume a rosas, sem saber como reagir.

– Deixa-me olhar para ti! – gritou Sally, fungando e limpando as bochechas. – Mas que bela mulher que tu estás!

Alice corou de inesperado prazer.

– Que tal tomarmos um chá? Tantos anos depois? – sugeriu a outra, de olhos brilhantes.

Alice assentiu timidamente.

– Malta, a biblioteca hoje fecha mais cedo, peço desculpa – anunciou a bibliotecária. Começou a enxotar as pessoas, e pouco depois saiu para o parque de estacionamento com Alice. – Vem atrás de mim, querida.

Alice parou o carro atrás do de Sally, à porta de um pequeno chalé situado numa falésia com vista para o mar. Tinha um bonito deque de madeira envernizada a toda a volta, coberto por uma fragrante videira de frangipani. Do teto pendiam espanta-espíritos feitos de conchas, vidrinhos-do-mar e pedacinhos de madeira deixados pela maré. No jardim, um mar de grevílea cor de flamingo. Galinhas debicavam a relva debaixo de uma enorme acácia cor de prata.

– Uau… – murmurou Alice, maravilhada.

– Entra, entra – chamou-a Sally com um aceno. – Vamos dar um pouco de água a essa tua cadelinha amorosa.

Lá dentro, Alice sentou-se à mesa da cozinha, com Pip a seus pés. Sally fez chá e tirou do armário um bolo de fruta que depois fatiou e barrou com manteiga. Lá fora o oceano rugia. Sally sentou-se à mesa, pousando em frente a Alice um prato com uma fatia generosa e uma caneca de chá a fumegar.

– Come qualquer coisa.

Alice ficou surpreendida pela sensação de conforto que a companhia de Sally lhe transmitia. Tinham estado juntas uma tarde apenas, já lá iam vinte anos, e ali estava ela, a acolhê-la em casa como se ela fosse um ente querido há muito perdido.

Deu uma dentada no bolo. Sally fez o mesmo e beberricou do seu chá, olhando para Alice com ternura. Deixaram-se ficar sentadas, juntas num silêncio amistoso. O mar parecia tão próximo, como se corresse dentro de casa. As memórias de Alice atingiram-na como a rebentação das ondas. Sentiu picos nos olhos. Agarrou-se à mesa para se equilibrar, lutando contra uma tontura forte e súbita.

– Alice? – perguntou Sally num tom alarmado.

A jovem tentou falar, mas só lhe saiu um gemido. Sally levantou-se e abraçou-a, esfregando-lhe as costas para acalmá-la.

– Oh, minha querida menina. Respira fundo. Com calma.

Respirando lenta e profundamente, Alice vislumbrou o oceano, seguindo com o olhar uma linha prateada de ondas azuis-esverdeadas que rebentaram depois na praia. O deserto é um antigo sonho do mar. A voz dele percorreu-a. Ngayuku pinta-pinta. E ela dançava descalça à volta da fogueira deles, os olhos dele no corpo dela, vendo-a rodopiar por entre as chamas, absorvendo-a. Ngayuku pinta-pinta. Minha borboleta.

– Respira fundo, Alice. Concentra-te na minha voz. Fica junto da minha voz. – Enquanto Sally a abraçava, as memórias dela não lhe davam tréguas. Fica junto da minha voz. O mar de fogo. Bela Adormecida. Penas incineradas, sopradas pela brisa. Subindo, subindo.

Alice agarrou-se a Sally, as unhas cravadas na camisa dela, subitamente em pânico, temendo desmoronar-se, cair da falésia do rebordo do mundo.

Ao final da tarde, Sally fez uma sopa de batata e alho-francês, enquanto Alice descansava no sofá, vendo o sol acabar de pintar as nuvens e passar o seu pincel às estrelas.

Comeram sem falar, o silêncio entre ambas interrompido pelo som dos talheres a baterem na loiça, a melodia dos espanta-espíritos, o mar ondeando, o cacarejar das galinhas, e os bocejos ocasionais de Pip.

– Vais precisar de um sítio para ficares, querida – disse Sally, limpando as mãos ao guardanapo.

Alice partiu um pedaço de pão em dois e molhou-o no restinho da sopa. Concordou com a cabeça enquanto mastigava.

– Não me falta espaço cá em casa – ofereceu-se Sally. – Tenho um quarto livre que é todo teu, se quiseres. Tem imensa luz de manhã, e uma vista linda para o jardim e para o mar. – Brincou com a colher de sopa. – A cama está feita e tudo.

– Não posso aceitar…

Sally chegou-se à frente e poisou a mão na de Alice. Uma onda de calor envolveu o pulso da jovem e subiu-lhe pelo braço.

– Obrigada, Sally.

Sally assentiu, erguendo o copo.

– À tua – disse, com os olhos cheios de água.

Alice imitou-a.

– E à tua – respondeu.

Depois de arrumarem a cozinha, Sally levou Alice até ao seu quarto. Deu-lhe toalhas felpudas e duas almofadas grandes e fofas.

– Precisam de mais alguma coisa, vocês as duas? – Sally afagou as orelhas de Pip. Alice fez que não.

– Então… até amanhã – disse Sally, abraçando-a.

– Até amanhã.

Alice apagou a luz e deixou as cortinas abertas. O luar entrava pelas janelas, exibindo uma ampla e clara vista do oceano. Deitou-se, puxando Pip para si, aninhando-a na curva da barriga, abraçando-a com força e soltando um pranto silencioso.

Na manhã seguinte, Alice foi até à cozinha, fez café, e levou-o para o jardim – antes de Sally acordar. Ficou grata pela solidão. O céu surgia límpido e azul-bebé. O mar resplandecia, sereno. Pip desatou a correr, perseguindo a cauda. Abelhas zumbiam em torno de uma murta-comum em flor. Alice sorriu. Bocejou e esfregou os olhos. Não dormira um sono seguido: as ondas e as memórias eram demasiado barulhentas. Passeou pelo bonito jardim de Sally, beberricando do seu café, parando para admirar as grevíleas e falar com as galinhas. À medida que o calor do sol lhe atenuou a tensão nas costas, Alice reparou numa ala exuberante, cheia de plantas tropicais envasadas, que se estendia ao longo da casa: monsteras, aves-do-paraíso, agaves e fetos.

Alice sentiu-se cada vez mais maravilhada; aquilo era um jardim dentro de um jardim, tão meticuloso e bem cuidado – em contraste com a beleza selvagem que o rodeava. A mistura de verdes. A folhagem variada e tão resplandecente. Mas, ao avançar, a sua admiração foi esmorecendo aos poucos. Cravou os dedos na asa da caneca. Em alguns dos vasos viam-se pequenos brinquedos de plástico rachados e descolorados cravados na terra: uma sereia a acenar, uma concha, um golfinho sorridente, uma estrela-do-mar. A jovem falhou um passo.

No centro do jardim havia uma estátua de madeira em tamanho real. Uma menina a oferecer uma flor. Uma estátua que Alice já tinha visto antes.

– Alice.

Ela voltou-se subitamente, o coração descompassado. Sally esperava-o no fim do trilho de gravilha, o rosto marcado pelo sono e pesado de tristeza.

– Mas por que raio é que isto está aqui?! – gritou Alice, apontando para a estátua com a mão trémula. – Como é que tens uma escultura do meu pai?

Sally recuou um passo, apanhada de surpresa.

– Vem para dentro.

Alice não respondeu.

– Anda daí, Alice. Eu faço mais café e conversamos.

Na sala, Sally pousou uma cafeteira de café acabado de fazer na mesa em frente ao sofá. Fez sinal a Alice para que se sentasse, e ela obedeceu.

– Meu Deus! – Sally riu-se nervosamente. – Há anos que tenho rezado pela oportunidade de ter esta conversa contigo, e agora… as palavras não me saem. – Brincou agitadamente com as mãos. – A verdade é que não sei por onde começar. Que tal fazeres-me tu as perguntas, Alice? Eu respondo a tudo o que quiseres saber.

Alice inclinou-se para a frente, esforçando-se por controlar o tom de voz:

– Podes começar por me explicar por que motivo tens uma estátua do meu pai no teu jardim – disse. – Ou talvez me possas dizer porque é que a minha mãe te deixou em testamento a guarda de mim e do meu irmão? – A pergunta que ela tinha presa na garganta desde que abrira a carta de Twig saiu-lhe num rompante.

Sally empalideceu.

– Uau… Ok.

Alice não conseguia manter o joelho quieto. As palavras da mãe, na carta, ecoaram-lhe nos ouvidos: Uma vez que June Hart não reúne as condições necessárias para cuidar dos meus filhos, eu, Agnes Hart concedo pelo presente a guarda de ambos a Sally Morgan.

– Tu conheceste a minha mãe? – Alice exigiu saber.

– Não – disse Sally. – Não, Alice, nem por isso. Cruzámo-nos algumas vezes na vila, nada mais do que isso.

A jovem abanou a cabeça:

– Isso não faz sentido. Que razões teria ela para te atribuir a nossa guarda?

– Eu não conhecia tua mãe, mas ela conhecia-me a mim, Alice – murmurou Sally. – Ela conhecia-me.

– Não percebo nada do que estás a dizer. – Alice sentiu o coração apertado, como se a sua caixa torácica fosse demasiado pequena para contê-lo.

– Quando eu era nova – Sally começou lentamente –, apaixonei-me. Por alguém que não me pertencia. – Abanou a cabeça. – Eu tinha dezoito anos. Nunca tinha tido um namorado. Via o teu pai de vez em quando, aqui e ali. Era o novo fazendeiro de cana-de-açúcar cá da terra. Calado, diligente… inquietante. Muito metido consigo. Havia algo de intrigante nele. – Fez uma pausa. – Observei-o de longe durante muito tempo. Ninguém sabia grande coisa sobre ele. Não usava aliança. Foi apenas uma noite… Uma noite. Eu estava no pub com um grupo de amigas, tinha bebido uns copos a mais e… ganhei coragem. Fui direta a ele e convidei-o para tomar uma bebida. – Nova pausa. – Dois meses depois descobri que estava grávida.

Alice olhava-a fixamente.

– Quando é que isso aconteceu?

– Um ano depois de tu nasceres, quando…

– Não! – interrompeu-a Alice. – Isso não é possível.

Sally assentiu com uma expressão grave:

– Temo que sim.

– Não! – repetiu a jovem. Em nenhuma das histórias da mãe existia um irmão. Ela não podia ter sabido da existência de Sally.

Sally aguardou, a expressão aberta, os olhos pesados.

Alice sentiu a cabeça a andar à roda.

– Tu tens um filho do meu pai?

– Tive – murmurou a outra, baixando o olhar para as mãos. – A Gillian morreu aos cinco anos com leucemia.

Alice não conseguiu falar.

– Quando ela nasceu, contei ao Clem sobre a Gilly, mas foi só para ele ficar a saber. Deixei bem claro que não queria rigorosamente nada dele. No entanto, o amor de um filho muda-nos. Não consegui evitar desejar que ele a conhecesse. Na noite em que ela morreu, por mais mórbido que possa parecer, mandei-lhe uma madeixa do cabelinho dela, atada com uma das suas fitas favoritas. Embora o Clem não tivesse tido qualquer contacto com ela quando estava viva, fiz questão que ele ficasse com algo seu. A verdade é que eu estava um verdadeiro farrapo. Zangada. Quis magoá-lo, castigá-lo, lembrá-lo de como a ignorara… em vida e na morte.

Alice sentiu um forte cheiro a petróleo, recordando-se de quando abrira a gaveta da cómoda, na cabana do pai, descobrindo a fotografia de Thornfield e a madeixa atada numa fita puída. O cabelo de Gillian. O cabelo da sua irmãzinha.

– A estátua da Gilly estava à minha porta quando regressei do funeral – disse Sally.

Alice lembrava-se de ver a luz tremeluzente do candeeiro sobre as estatuetas de June… e de uma menina. Pensara erradamente que se tratava dela própria.

– A tua mãe foi ao funeral – prosseguiu Sally. – Eu vi-a, no fundo da igreja. Depois do serviço fúnebre já não a encontrei. Mas ela deixou uma planta envasada junto à sepultura, com um cartão para a Gilly assinado com o teu nome.

Alice rompeu num pranto, cobrindo o rosto com as mãos, imaginando o esforço que a mãe deveria ter feito para ir ao funeral e regressar a casa sem que o pai descobrisse. Como lhe deveria ter custado ultrapassar tamanha traição e, ainda assim, sentir compaixão por Sally. O sofrimento que deveria ter carregado, sabendo que Alice jamais viria a conhecer a sua meia-irmã. A confiança que a mãe certamente depositava no caráter de Sally; o nível de desespero que a levara a deixar os filhos à sua guarda. O pavor que a consumira ao ponto de sentir necessidade de fazer um testamento.

– Que planta?

– Desculpa?

– Que planta é que a minha mãe deixou na sepultura?

Sally dirigiu-se à janela aberta e estendeu a mão para colher uma flor laranja-vivo de uma bonita árvore frondosa. Ofereceu-a a Alice.

– Algodoeiro-da-praia – murmurou Alice, lembrando-se da coroa de flores que a mãe lhe fizera no dia do seu aniversário. Recordou o seu significado, tirado do Dicionário de Thornfield: o amor liga-nos eternamente.

– Um ano depois, tu entraste na biblioteca – continuou Sally. – Reconheci-te de imediato. Soube logo que eras a filha do Clem e da Agnes. A mana mais velha da minha Gilly. E depois do incêndio, quis logo cuidar de ti.

– Cuidar de mim?

– Eu estive lá. No hospital. – A voz de Sally era quase inaudível. – Sentei-me à tua cabeceira quando estiveste em coma. Li-te histórias.

Fica junto da minha voz, Alice. Eu estou aqui.

– Enviei-te uma caixa com livros e… – A voz falhou-lhe.

Os seus livros de infância – que ela sempre julgou serem um presente de June.

– Fiquei contigo até saber que a June estava a chegar. Depois de partires com ela, a enfermeira ligou-me a dizer que o teu irmão tinha sobrevivido, mas que a June não o tinha levado. Depois fui contactada por um advogado acerca do testamento da Agnes, da sua vontade expressa… Pedi ao meu querido John que descobrisse onde estavas. Tinha de saber se estavas em segurança. Quando soube que tinhas ido para Thornfield, obriguei-me a aceitar a vontade da June… e a reconciliar-me com tudo o que se passou.

Alice olhou-a, inexpressiva:

– Que vontade?

Sally estudou-lhe o rosto.

– Oh, Alice – disse, passado um momento.

– Que vontade, Sally?

– A June deixou bem claro que não queria que tu tivesses qualquer tipo de contacto comigo. Ou com o teu irmão.

– Como assim «deixou bem claro»?

Sally empalideceu de novo.

– Eu… escrevi-te cartas, Alice. Muitas cartas, durante anos. Cartas e fotografias do teu irmão, à medida que ele ia crescendo. Sempre quis restabelecer contacto contigo, mas nunca obtive resposta. Com a June como tua tutora legal, não podia impor-me contra a vontade dela. Não tinha poder para isso. Tudo o que pude fazer foi certificar-me de que não causaria mais sofrimento. A ti ou ao teu irmão.

Alice gritou de frustração. Desesperada por ar fresco, levantou-se e correu para a janela, apoiando a testa contra o vidro frio.

Passado um momento, Sally aclarou a garganta.

– Eu criei o teu irmão, nunca lhe escondendo que fora adotado – disse, num tom sereno. – E ele sempre soube da tua existência.

Alice voltou-se.

– Está prestes a fazer vinte anos. É um amor de menino. Foi viver com a namorada há pouco tempo e trabalha como paisagista. Para o ver feliz é pô-lo num jardim.

Alice afundou-se no sofá.

– Como é que ele se chama? – sussurrou.

– Chamei-lhe Charlie – disse Sally, sorrindo pela primeira vez naquela manhã.