29. Cauda-de-raposa

Cauda-de-raposa

20170913_F026

Significado: Sangue do meu sangue

Ptilotus | Interior da Austrália

Tjulpun-tjulpunpa (Pitjantjatjara) são arbustos pequenos que formam espigas de florinhas roxas, cobertas de uma densa pilosidade branca. As folhas são igualmente cobertas de uma penugem densa em forma de estrela que impede a perda de água. Antigamente, as mulheres usavam as flores pilosas para forrar os recipientes de madeira onde transportavam os bebés.

Alice pedalou colina acima com todas as suas forças, o medalhão a bater-lhe no peito. Arrependeu-se amargamente de não ter ido de carro até à vila; a mochila que trazia às costas magoava-lhe os ombros, cheia que nem um ovo com os ingredientes para o jantar dessa noite. Mas o exercício também lhe fazia bem. Aquele esforço físico ajudava-a a lidar com o stress que sentia desde que Sally agendara aquele jantar. E logo pela manhã, Alice decidiu limpar as teias de aranha de uma bicicleta que estava na garagem de Sally e arrancar com ela. À medida que percorria a estrada até à vila, o mar tornava-se cada vez mais turquesa. Alice interpretara isso como um bom sinal.

De regresso à casa de Sally, Alice pensou no menu pela enésima vez: tacos de perca com salsa, guacamole caseiro e biscoitos Anzac – crocantes por fora e fofos e húmidos por dentro. Sally tinha tratado de tudo o resto. Estava determinada a juntar Alice e Charlie o mais serenamente possível.

Nas semanas que se seguiram à chegada de Alice, Sally fez todos os possíveis para que a jovem se sentisse em casa. Ajudou-a a desempacotar os livros e pendurou na parede o retrato de Frida Kahlo que Lulu lhe oferecera. Sentou-se junto dela todas as vezes que ela chorou. Explicou-lhe que June pagara bem para que os pais tivessem funerais condignos; Sally estivera presente em ambos. Levou Alice ao local onde ela crescera. No sítio recôndito e isolado entre os canaviais e o oceano fora construída uma pousada de juventude e um bar de praia, com uma belíssima vista para o mar, apinhada de bronzeados viajantes. O jardim da mãe desaparecera. Alice não foi capaz de sair do carro. Quando regressou à casa de Sally, correu até à praia, inspirou fundo e gritou ao mar. Sally ouviu atentamente as histórias que Alice lhe contou da quinta de flores e do deserto. Indicou-lhe uma conselheira de luto, que a havia ajudado muito quando a sua Gilly partira. Alice passou a vê-la todas as semanas, duas vezes por semana quando Dylan lhe começou a mandar emails. Deu com eles quando decidiu abrir o correio eletrónico, um mês após ter deixado Kililpitjara. Eram mais de uma dúzia, milhares e milhares de palavras. Dylan começara com um espírito de arrependimento, pedindo desculpa. Mas à medida que ficava sem resposta, revelara-se cada vez mais furioso. Não os leias, implorara-lhe Sally. Só te vão causar sofrimento. Mas ambas sabiam que ela os lia a todos, palavra por palavra. Uma e outra vez. Sally percebia logo quando chegava um novo email. Nessas alturas, dava a Alice todo o espaço do mundo. Fazia-lhe bolinhos de fruta. Tinha sempre tempo para um passeio à beira-mar, mas nunca insistia se Alice não quisesse falar. A profunda bondade de Sally, a sua tão astuta intuição… era como se durante anos e anos se tivesse estado a preparar para a chegada de Alice.

Quando se despachou do supermercado, Alice decidiu parar nos correios para enviar a resposta à mais recente carta de Lulu. Isto por aqui mantém-se um sonho chuvoso, nebuloso e verdejante, escrevera a amiga. Comprámos uma salamandra a lenha, uma cabra, uma burra (o Aiden batizou-a de Frida), duas vacas-leiteiras e seis galinhas. Por favor, vem visitar-nos. Percorreremos juntas a Baía dos Fogos. Enquanto colava o selo no envelope, Alice sorriu ao pensar nas palavras de resposta que enviara a Lulu. Prometo que vou visitar-vos, um dia destes.

Antes de voltar para casa, parou na biblioteca. Atravessar o átrio continuou a parecer-lhe uma viagem pelo tempo, um regresso aos seus dias de menina – quando Sally alumiou o seu mundo pela primeira vez.

– Chegou correio para ti – disse-lhe Sally, sorrindo de alegria ao vê-la finalmente entrar em casa.

O envelope vinha endereçado a Alice numa caligrafia que ela não reconheceu. O carimbo revelava o remetente: Agnes Bluff.

Por um momento Alice lutou para respirar. Seria possível que Dylan a tivesse encontrado? Mas não. Era impossível. Ele não fazia ideia onde ela estava, só tinha acesso ao seu endereço de email. Enfiou os dedos na ranhura e abriu o envelope. Lá dentro estava um cartão.

Espero que estejas bem, Alice

À coragem. E ao alento, certo?

E que tal ao futuro, e a tudo o que ele tem para oferecer?

Moss

Alice abanou o envelope; um pacotinho de sementes de ervilhas-do-deserto caiu-lhe na mão.

– Isso parece algum tipo de magia – observou Sally.

Alice esboçou um pequeno sorriso:

– E é. – Fechou a mão, sentindo a forma das sementinhas e pensando na cor que ostentariam quando crescessem. Ao futuro.

– Estás bem? Como te sentes em relação ao jantar de hoje?

Alice engoliu em seco.

– Bem. Meio nervosa. Aliás, agoniada, mesmo. – Suspirou. – Mas desde que deixei o Kililptijara que não penso em mais nada senão em conhecê-lo. Por isso…

– Vai ser maravilhoso. – Sally levantou-se para abraçá-la. – Ainda vais sair? – quis saber.

– Só me falta mais uma paragem.

Pedalou com força, esforçando-se por subir a última colina, sentindo os pulmões a arder. A imagem da campa dos pais invadiu-lhe a mente. Cerrou os dentes e pedalou até chegar ao cume. Parou para deixar a brisa fresca arrefecer-lhe a pele suada, e olhou para o céu e para o mar. Eram tão extensos… Seguiu com o olhar a fita preta que representava a estrada distante, fixando-se no ponto onde ela se insinuava pelos canaviais e subia a falésia, antes de virar para a casa de Sally. Vendo o mesmo percurso que o irmão iria fazer, quando chegasse.

Alice deixou-se ficar sentada no selim. Após um novo e demorado olhar sobre o oceano, pôs os pés nos pedais e desceu a falésia – rumo à tranquilidade que se estendia à sua frente.

Quando deu por terminado o dia de trabalho, Sally fez um desvio de última hora. Parou o carro debaixo do seu eucalipto branco preferido.

Pegas cantarolavam nos seus ramos. Atravessou a rua e passou os portões ornamentados do cemitério. Percorreu a alameda de eucaliptos, passou a estátua do anjo com as asas escancaradas, virou à esquerda num trilho ladeado de buganvílias floridas, até chegar ao outeiro sombreado pela copa de uma árvore-de-chá. Era sempre ali que finalmente conseguia relaxar os ombros.

Sally sentou-se junto a John e Gilly, as costas direitas, o cabelo esvoaçando levemente sob a brisa marítima. Passou os dedos pelas letras em relevo do nome de John. Beijou o mármore frio que acolhia Gilly. Deixou-se ficar por um momento, ouvindo o canto dos pássaros e o sussurrar das árvores. O esguicho de um aspersor de rega. Ao longe, o motor de um cortador de relva. Quando a luz começou a esmorecer, olhou para o relógio.

De regresso ao carro, algo a fez deter-se e optar pelo relvado norte do cemitério. Já lá iam muitos anos. Deu por si a percorrer as fileiras de sepulturas, verificando os nomes nas lápides.

Assim que viu as campas de Agnes e Clem, Sally sentiu um baque. Alguém tinha estado ali. Cobrindo a sepultura de Clem viam-se autocolantes já gastos. Sally aproximou-se e reconheceu as borboletas pintalgadas com restos de tinta turquesa. Alice devia tê-las arrancado das portas da carrinha. Uma onda de remorso cingiu-lhe o peito. Voltou-se para o vento, deixando que o seu sopro apagasse os anos, até regressar aos dezoito, de olhos grandes e loucamente apaixonada por Clem Hart.

Tinha posto uns brincos de plástico com margaridas na noite em que se conheceram. De onde eu venho, isso significa «prendo-me a ti» – fora a primeira coisa que ele lhe dissera. Quando Clem lhe pegou na mão, Sally agarrou-a e deixou-se guiar por ele. E aconteceu mesmo ali, de encontro à parede de tijolo do pub. Mais tarde, chegou a desejar que os hematomas das costas nunca sarassem, cada um deles a prova inequívoca de que não tinha sido um sonho. Mas quando o viu novamente, Clem olhara-a como se ela não passasse de uma baforada de vapor.

Pouco depois, o pai de Sally aparecera em casa para jantar com John Morgan, um jovem polícia recolocado da cidade. Quando ela lhe apertou a mão cálida e lhe viu o olhar pleno de bondade, Sally soube logo que ele era a resposta. Depois de um noivado-relâmpago, casaram, e não se ouviu um único burburinho de escândalo quando Sally exibiu a barriga saliente. Toda a gente ficou feliz por eles, e Sally viu-se de tal forma envolvida na sua própria mentira que deu por ela a dizer que adorava que o bebé tivesse os olhos de John, ou o seu feitio sereno. Ainda que Sally não tenha ocultado a John o fraquinho que tivera por um agricultor da vila, quando Gilly morreu e ela viu o marido transformado num farrapo, percebeu que Clem Hart era um segredo que ela jamais poderia partilhar com ele.

Sally abriu os olhos e voltou-se para a campa de Agnes. A lápide estava coberta com um bonito arranjo de campainhas-brancas, mirto-de-limão, e a flor escarlate de uma pata-de-canguru. Imaginou Alice ali sentada, compondo um santuário de flores para a mãe.

Passou-se um longo momento. Sally aclarou a garganta antes de falar:

– Agnes… Ela está em casa. Veio para casa, e está linda. – Apanhou uma folha de eucalipto caída e partiu-a em pedaços. – Está segura. Estão ambos seguros. E maravilhosos… Oh, Agnes, são os dois tão maravilhosos…

Por cima dela, escondida algures na copa de um eucalipto, uma pega cantou.

– Eu estou a olhar por eles. – A voz de Sally soou mais forte. – Prometo.

O toque estridente do telemóvel sobressaltou-a. Vasculhou dentro da mala, e atendeu:

– Olá, Charlie.

Sally levantou-se e acariciou a lápide de Agnes, antes de se se voltar e se afastar, ouvindo o doce som da voz do filho.

Ele subiu os degraus da casa onde crescera, combatendo o nervosismo com respirações rápidas.

Vai ser maravilhoso, dissera-lhe Cassie ao dar-lhe um beijo de despedida. Isto é tudo o que tu sempre quiseste. É a tua família, Charlie. Não tenhas medo.

Charlie apertou o buquê que trazia na mão. Depois de a mãe lhe ter ligado a combinar o jantar, foi pesquisá-la no Google. Outra vez. Alice Hart, Floriógrafa, Quinta de Thornfield, Onde Germinam Flores Silvestres. Comprara-lhe um ramo de telopeas, depois de ler que, em Thornfield, elas significavam Regresso à Felicidade.

Parado no deque, deixou-se ficar a ouvir os sons familiares do mar, dos espanta-espíritos, do cacarejar das galinhas, do zunido das abelhas – e da voz da mãe vinda da cozinha. Em conjunto representavam a banda sonora da sua vida. E depois, um novo elemento sonoro: o ladrar de um cão.

– Pip! – Uma voz plena de riso – uma voz que ele não conhecia – avançou para ele.

Charlie engoliu em seco. Reajustou as flores nas mãos suadas.

A sombra dela surgiu primeiro, no corredor. Ele abriu a porta de rede. Relaxou os ombros. Os seus olhos encheram-se de lágrimas.

A sua irmã mais velha. Estava ali.