5. Flor da Pena Pintada

Flor da Pena Pintada

20170913_F001

Significado: Lágrimas

Verticordia picta | Sudoeste da Austrália

Arbusto de pequeno ou médio porte com pequenas flores côncavas cor-de-rosa de fragrância extremamente doce. Depois de florescer dura apenas cerca de dez anos, mas exibe um cenário profuso de flores vivas durante uma estação prolongada.

Estou-aqui. Estou-aqui. Estou-aqui.

Alice ouvia o seu coração, a única maneira de conseguir estabilizar e acalmar as emoções. Mas nem sempre resultava. Às vezes ouvir coisas era pior do que vê-las: a pancada seca do corpo da mãe a embater numa parede; o exalar surdo, quase impercetível, saído da boca do pai quando lhe batia.

Abriu os olhos à procura de ajuda porque o ar lhe faltava. Onde estaria a contadora de histórias dos seus sonhos? Alice estava sozinha no quarto, à exceção das máquinas que apitavam freneticamente ao seu lado. O pânico percorreu-lhe a pele.

Uma mulher entrou a correr pelo quarto.

– Está tudo bem, Alice. Deixa-me ajudar-te a sentar para respirares melhor. – A mulher estendeu a mão e tocou em alguma coisa na parede atrás dela. – Tenta não entrar em pânico.

A cabeceira da cama de Alice começou a erguer-se lentamente até à posição sentada. As dores no peito começaram a diminuir.

– Estás melhor assim?

Alice assentiu.

– Linda menina. Respira o mais fundo que conseguires.

Alice respirou o mais profundamente que pôde, fazendo o coração abrandar. A mulher encostou-se à cama e pegou-lhe na mão, pressionando dois dedos sobre o pulso enquanto olhava para um pequeno relógio que trazia preso na bata.

– Chamo-me Brooke. – Tinha uma voz suave e amável. – Sou a tua enfermeira.

Brooke olhou de relance para a menina e piscou-lhe o olho. As bochechas formavam covinhas quando sorria. Nas pálpebras brilhavam linhas de sombra azul e arroxeada, levando Alice a recordar-se do matiz madrepérola brilhante das conchas das ostras. O barulho da máquina abrandou. Brooke largou-lhe o pulso.

– Precisas de alguma coisa, querida?

Alice tentou pedir um copo de água, mas as palavras não saíram. Fez o gesto com uma mão, levando-a à boca.

– É pra já, querida. Volto num segundo.

Brooke saiu. As máquinas continuaram a apitar. O quarto branco encheu-se com um zumbido de sons estranhos: um sibilar distante; vozes estáticas, algumas calmas, outras aflitas; o varrer de portas automáticas a abrir e a fechar; solas de sapatos a chiarem, uns apressados, outros bamboleantes. O coração de Alice acelerou de novo, batendo forte contra as costelas. De olhos fechados, esforçou-se por abrandar a respiração, mas doía-lhe quando inspirava profundamente. Tentou chamar alguém, gritar por ajuda, mas a voz não passava de um sopro. Tinha os lábios gretados, o nariz e os olhos a arder. O peso das perguntas que se acumulavam pressionava-lhe as costelas. Onde estava a sua família? Quando poderia voltar para casa? Tentou de novo falar, mas a voz insistia em não sair. Tinha na cabeça a imagem de traças brancas a saírem-lhe da boca, no oceano de fogo. Seria uma recordação? Teria acontecido realmente? Ou tudo não passara de um sonho? E, sendo um sonho, isso queria dizer que tinha estado apenas a dormir? E há quanto tempo?

– Calma, Alice – disse Brooke, entrando apressada no quarto com um copo e um jarro de água. Poisou-os e pegou na mão da menina enquanto lhe enxugava as lágrimas. – Calculo que isto deva ser um choque para ti, querida, acordares assim. Mas estás a salvo. Estamos a tomar conta de ti. – Alice olhou para os olhos madrepérola de Brooke. Queria tanto acreditar nela… – A médica está mesmo aí a chegar para te ver. – Brooke afagou a mão de Alice com suaves círculos do polegar. – Ela é amorosa – acrescentou, estudando o rosto da menina.

Pouco depois, entrou no quarto de Alice uma mulher de casaco branco. Era alta e esguia, e tinha o cabelo grisalho e comprido – que a Alice fez lembrar o sargaço que se acumulava à beira-mar.

– Olá, Alice, eu sou a Dra. Harris – disse, aos pés da cama da menina enquanto folheava os gráficos na prancheta. – É muito bom ver-te acordada. Tens sido uma menina muito corajosa.

A Dra. Harris deslocou-se para junto de Alice e tirou uma lanterninha do bolso, que ligou com um clique e apontou para os olhos da menina. Instintivamente, ela pestanejou e virou a cabeça para o lado.

– Desculpa, sei que não é agradável. – A médica encostou o estetoscópio frio ao peito de Alice e ficou a ouvir. Seria possível que conseguisse escutar as perguntas que tinha dentro dela? Seria possível que fosse desatar a responder-lhe subitamente, mesmo que Alice não estivesse certa de querer ouvir as respostas? Sentiu uma impressão estranha na barriga, de puro medo.

A doutora Harris tirou o estetoscópio dos ouvidos. Murmurou qualquer coisa a Brooke e estendeu-lhe a prancheta. A enfermeira pendurou-a aos pés da cama e foi fechar a porta do quarto.

– Alice, vou falar contigo, contar-te como vieste aqui parar, ok? – disse a médica.

Alice olhou para Brooke de relance. Tinha os olhos pesados. Olhou novamente para a médica e assentiu lentamente com a cabeça.

– Linda menina. – A médica esboçou um sorriso e juntou as mãos como numa prece. – Houve um incêndio na propriedade onde moravas. A polícia está a tentar descobrir o que se passou, mas o mais importante é que tu estás em segurança e a recuperar muito bem.

Uma pausa sinistra encheu o quarto.

– Eu… lamento muito, Alice. – Os olhos da Dra. Harris estavam e húmidos e sombrios. – Nenhum dos teus pais sobreviveu. Mas… toda a gente aqui se preocupa contigo e com o teu bem-estar, e vão cuidar de ti até a tua avó chegar…

Os ouvidos de Alice deixaram de funcionar. Não ouviu a médica referir de novo a avó, nem nada que ela tenha dito a seguir. Só pensava na mãe. Nos seus olhos cheios de luz. Nas canções que cantarolava pelo jardim, profundamente tristes. O virar dos seus punhos delicados; os seus bolsos cheios de flores; o hálito suave e quente, pela manhã. Ver-se aninhada nos braços dela, na areia fresca num dia de calor, sentir a respiração subir e descer no peito dela, e o ritmo da voz e do coração enquanto lhe contava histórias, fazendo girar ambas dento do casulo quente e mágico que as acolhia. Foste o verdadeiro amor de que eu precisava para acordar de uma maldição, Coelhinha. És o meu conto de fadas.

– … e venho ver-te no meu próximo turno – concluiu a médica, olhando de relance para Brooke, antes de sair do quarto.

Brooke deixou-se ficar aos pés da cama de Alice, com uma expressão soturna. Alice sentia um buraco a arder-lhe no peito. Seria possível que Brooke não o ouvisse? Rugindo como fogo, feroz e sibilante, engolindo tudo o que havia dentro dela? Uma pergunta repetia-se uma e outra vez na sua mente, arrancando-lhe bocados de si mesma.

O que teria ela feito?

Brooke aproximou-se da cabeceira e serviu um copo de sumo pálido, estendendo-o a Alice. O que lhe apeteceu fazer imediatamente foi dar um safanão na mão da enfermeira, mas depois de provar o sabor doce e fresco, inclinou a cabeça para trás e engoliu. Caiu-lhe no estômago, gelado. Arquejando, estendeu o copo para que Brooke lhe desse mais.

– Bebe devagarinho – disse a enfermeira, hesitante, servindo-a de mais um pouco.

Alice bebeu tão sofregamente que o sumo lhe escorreu pelo queixo. Soluçou e estendeu de novo o copo. Mais. Mais. Agitou o copo na cara de Brooke.

– Só mais este.

Alice quase se engasgou a beber o último gole. Baixou o copo com o braço a tremer. Brooke ainda teve tempo de deitar a mão ao saco para vomitado, abrindo-o mesmo a tempo. Alice vomitou golfadas de sumo. Depois, deixou-se cair na almofada, ofegante.

– Pronto, pronto – murmurou Brooke, massajando-lhe as costas. – Já passou. Linda menina. Respira devagar.

Mas tudo o que ela queria era deixar de respirar para sempre.

Alice passou por longos períodos de sono entrecortado. Sonhos com fogo deixavam-na alagada em suor. Quando acordava, sentia o coração tão quente que temia que lhe derretesse o peito. Coçava as omoplatas até as deixar em sangue. Brooke cortava-lhe as unhas amiúde, mas isso não a impedia; Alice cravava-as na pele noite após noite, até que Brooke optou por lhe calçar umas luvas enquanto dormia. E mesmo assim, a voz recusava-se a sair. Desaparecera, evaporada como uma poça de sal na maré baixa.

Novas enfermeiras vieram visitá-la. Usavam batas diferentes da de Brooke. Davam passeios com ela pelo hospital, explicando-lhe que os músculos dela tinham enfraquecido muito enquanto dormira e era preciso treiná-los para que voltassem a ser fortes. Ensinaram-lhe exercícios para ela fazer na cama e no quarto. Outras vinham falar com ela sobre os seus sentimentos. Traziam-lhe cartas com bonecos e brinquedos. Alice não voltou a ouvir a voz da contadora de histórias nos seus sonhos. Estava cada vez mais pálida e com a pele gretada. Imaginava que o coração estava a morrer de sede, definhando aos poucos, secando desde as margens até ao centro, vermelho e cru. Todas as noites tentava escapar às ondas de fogo. Passava a maior parte do tempo deitada na cama a olhar pela janela, para o céu mutante, tentando não se lembrar, tentando não questionar coisa alguma, esperando apenas que Brooke chegasse. Os olhos de Brooke eram os seus preferidos.

O tempo foi passando. A voz de Alice perdera-se há muito. Não conseguia comer mais de duas garfadas a cada refeição, por mais que Brooke se zangasse com ela. As perguntas por responder ocupavam-lhe todo o espaço que tinha no corpo; e a que mais a assustava era sempre a mesma:

O que teria ela feito?

Ainda que mal comesse, bebia copos e copos de água e de sumo doce, mas nada extinguia o fumo nem a dor que sentia.

Olheiras profundas e roxas, como nuvens de tempestade, começaram a surgir-lhe no rosto. As enfermeiras levavam-na a passear ao sol duas vezes por dia, mas o brilho da luz era demasiado forte para ela aguentar mais do que escassos minutos de cada vez. A doutora Harris visitou-a de novo para lhe explicar que, se não começasse a comer, teriam de alimentá-la através de um tubo. Alice nem quis saber; as perguntas secretas doíam mais do que qualquer tubo. Já não tinha espaço dentro dela para sequer se importar.

Uma manhã, Brooke entrou no quarto de Alice – com os seus sapatos de borracha cor-de-rosa e os olhos brilhantes como o mar de verão. Trazia qualquer coisa nas mãos, escondida atrás das costas. Alice olhou para ela, vagamente interessada.

– Chegou uma coisa – disse a enfermeira com um grande sorriso. – Só para ti. – Alice ergueu um sobrolho.

Brooke imitou o rufar de tambores.

Tchanã!

Mostrou-lhe uma caixa atada com várias fiadas de fita garrida. Alice recostou-se na cama, endireitando-se. Sentiu um brevíssimo arrepio de curiosidade percorrer-lhe o corpo.

– Estava na sala das enfermeiras esta manhã, quando comecei o meu turno. E só tinha este cartãozinho com o teu nome. – Brooke pousou-lhe a caixa no colo com um piscar de olho. Era maravilhosamente pesada.

Alice desatou a fita e abriu a caixa. Lá dentro, aninhada debaixo de resmas de papel de seda, uma pilha de livros. As lombadas estavam voltadas para cima, tal como as flores do jardim da mãe se viravam de frente para o sol. A menina passou os dedos pelos títulos, engolindo em seco ao reconhecer um deles. Era o primeiro livro que requisitara da biblioteca, o das selkies.

Com um inesperado surto de energia, Alice virou a caixa ao contrário. Os livros caíram-lhe no colo e ela suspirou de prazer, abraçando-os. Folheando páginas, inspirou profundamente o cheirinho a papel e a tinta. Histórias de sal e saudade pareciam flutuar em torno do rosto dela, acenando-lhe. Assim que ouviu o ruído dos sapatos de Brooke no chão de linóleo do lado de fora do quarto, Alice ergueu os olhos, surpresa; nem a vira sair.

Mais tarde, Brooke entrou discretamente, empurrando uma mesinha com rodas na direção da cama de Alice. Trazia uma série de tacinhas de plástico coloridas; salada de frutas com iogurte; uma sanduíche de queijo e salada, sem côdea, outra taça com uma pequena pilha de batatas fritas de pacote, brilhantes de óleo e sal. Por último, um pacotinho de amêndoas e passas. E um pacote individual de leite, com uma palhinha.

Os olhos da menina encontraram os de Brooke. Depois de uma pausa, concordou com um aceno de cabeça.

– Boa! É assim mesmo! – exclamou Brooke, travando as rodas do carrinho do almoço antes de sair do quarto.

Mantendo o livro das selkies junto a si, Alice escolheu outro da pilha que tinha no colo. Abriu-o, estremecendo de prazer ao ouvir o típico estalinho da lombada. Levou a mão a um triângulo da sanduíche e fechou os olhos ao cravar os dentes no miolo suave e fresco. Já nem se lembrava da última coisa que comera assim tão boa. A manteiga cremosa e salgada, o queijo levemente picante. A alface crocante, a doçura da cenoura, o tomate sumarento… esfomeada, enfiou o resto do triângulo na boca, esforçando-se por mastigar – deixando cair dos cantos da boca pedacinhos de pão e cenoura ralada.

Depois de vários goles no leite para empurrar o almoço, Alice soltou um sonoro arroto. Sorriu para si própria de satisfação e, com a barriga cheia, dedicou toda a sua atenção ao livro. Ainda que estivesse certa de que nunca o tinha lido, sabia que conhecia a história. Passou a ponta dos dedos pelo relevo da capa. Era a ilustração de uma linda jovem a dormir, segurando na mão uma rosa espinhosa.

No dia seguinte, quando estava quase a acabar A Bela Adormecida, Alice afastou os olhos do livro para ver a Dra. Harris e Brooke a bichanarem lá fora no corredor com outras duas mulheres. Uma estava de fato, com uns óculos quadrados de massa e um batom berrante. Tinha nos braços um dossiê grosso, cheio de papelada. A outra vestia uma camisa caqui abotoada até acima, calças da mesma cor e botas de aspeto sólido, parecidas com as que o pai usava para trabalhar. Tinha já bastantes cabelos brancos e sempre que se mexia ouvia-se o tilintar de sininhos; trazia em cada pulso várias pulseiras de prata que batiam umas nas outras quando ela gesticulava. Alice não conseguia desviar o olhar da mulher.

O grupo voltou-se para entrar no quarto. Alice concentrou-se no livro e, quando elas entraram, nem sequer levantou os olhos. Os sininhos tilintaram.

– Alice – começou Brooke, num tom esganiçado. Alice não entendeu a razão das lágrimas nos olhos dela.

A mulher de fato avançou um passo:

– Alice, queremos apresentar-te a alguém muito especial.

A menina manteve o olhar fixo no livro. A Bela Adormecida estava prestes a ser salva pela força do amor. Quando a senhora de fato voltou a falar, fê-lo num tom demasiado alto, como se Alice fosse dura de ouvido.

– Alice, esta é a tua avó. Chama-se June. Veio buscar-te para ires para casa.

Brooke empurrou a cadeira de rodas de Alice pelos corredores do hospital até ao exterior, onde uma manhã radiosa as acolheu. Pouco antes, a enfermeira tinha desaparecido do quarto a correr, enquanto a mulher de fato falava. June limitara-se a olhar para Alice sem conseguir parar quieta com os dedos, por causa dos nervos. A menina já tinha lido o suficiente sobre avós para perceber que, com o conjunto caqui e as botifarras que trazia nos pés, June não tinha nem a aparência nem o comportamento típico de uma avó. Ao contrário das pulseiras, que não se calaram um segundo, June não abriu a boca, nem sequer quando a mulher de fato comentou que fora a própria June quem enviara a Alice a caixa de livros. A doutora Harris disse que June era a guardiã de Alice; aliás, ela e a mulher de fato tinham usado e abusado dessa expressão. Guardiã. Guardiã. Alice associava o termo às imagens de faróis. Mas June não tinha nada aspeto de conter dentro de si uma luz protetora. Os olhos dela eram do mais distante que Alice já vira, como aquele tipo de horizonte tão longínquo que nem permite distinguir o mar do céu.

Cá fora, June estava sentada ao volante de uma velha carrinha de caixa, esperando por elas no parque de estacionamento dos visitantes. Ao lado dela estava um cão gigantesco com a língua de fora. Das janelas abertas saía um som suave de música clássica. Assim que o cão viu Brooke e Alice, levantou-se de um salto, ladrando, enchendo a cabine da carrinha com o seu corpo volumoso. June sobressaltou-se e baixou o volume da música para ver se punha freio ao cão.

– Harry! – gritou, tentando acalmá-lo. – Desculpem – disse, saindo com dificuldade do interior da carrinha. Mas Harry não deixou de ladrar. Sem pensar, Alice ergueu o braço, num sinal claro para calar Harry – Harry, e não Toby. Quando o cão não obedeceu, a menina apercebeu-se do seu erro e o queixo tremeu-lhe sem que conseguisse evitá-lo.

– Oh, não, não – disse June, interpretando erradamente a reação de Alice. – Eu sei que ele é enorme, mas não tenhas medo. Os Bullmastiffs são muito meigos. – Explicou, agachando-se ao lado da cadeira de rodas. Mas Alice não conseguiu olhar para ela. – Sabes, o Harry tem poderes especiais. Cuida das pessoas quando elas estão tristes. – June deixou-se ficar onde estava, aguardando. Ignorando-a, Alice entreteve-se a remexer os dedos com as mãos pousadas no colo.

– Bom, vamos, Alice. Vou ajudar-te a entrar para a carrinha – disse Brooke.

June levantou-se e recuou ligeiramente para permitir que Alice saísse da cadeira e entrasse para o lugar do passageiro. Harry deu um saltinho para se sentar ao lado dela. Tinha um cheiro diferente do de Toby, doce e barrento em vez de húmido e salgado. E também não tinha o pelo comprido e fofo, nada onde ela pudesse enfiar os dedos.

Brooke aproximou-se da janela. Harry abanou-se todo para ela e Alice mordeu o lábio inferior.

– Porta-te bem, Alice. – Brooke acariciou-lhe o rosto antes de lhe virar costas abruptamente. Dirigiu-se a June, que estava a poucos metros dela, e conversaram mais um pouco em voz baixa. A qualquer minuto, Brooke marcharia até à carrinha nos seus sapatos cor-de-rosa de borracha, abriria a porta do passageiro e declararia que tudo não passara de um engano. Alice não teria de se ir embora. Brooke levá-la-ia para casa, para a sua secretária e para o jardim da mãe, e Alice acabaria por encontrar a sua voz algures à beira-mar, por entre as cascas de vieira e os caranguejos-soldados, e gritaria alto, tão alto que a família acabaria por ouvi-la. A qualquer minuto, Brooke regressaria até ela. A qualquer minuto. Brooke eras sua amiga. Não a deixaria partir com alguém que ela não conhecia. Ainda que a mulher fosse um farol.

Alice observou intensamente as duas mulheres. June apertou amistosamente o braço de Brooke e esta devolveu-lhe o gesto. Certamente estaria a confortar June, explicando-lhe que tudo não passara de um enorme engano – que Alice não ia a lado nenhum. Por fim, Brooke entregou a June o saco com os pertences da menina – que se resumiam aos seus livros e nada mais – e afastou-se da carrinha, em direção ao hospital.

Porta-te bem, Alice viu-a articular, enquanto erguia a mão num aceno. Ainda se demorou à entrada do hospital com a cadeira de rodas vazia. Mas pouco depois desapareceu no interior das portas automáticas.

Alice foi acometida de uma forte tontura, como se Brooke tivesse levado consigo todo o sangue das suas veias. Tinha-a a deixado com uma estranha. A menina esfregou os olhos para empurrar as lágrimas para dentro, mas foi em vão. Enganara-se, pensando que as lágrimas poderiam ir para o mesmo local onde estava escondida a sua voz. Mas a verdade é que elas lhe corriam pelo rosto abaixo como se brotassem de uma torneira avariada. June estava de pé, junto à janela do passageiro com os braços paralelos ao corpo – como se não soubesse o que fazer com eles. Por fim, abriu a porta, enfiou o saco de Alice atrás do banco e fechou a porta suavemente. Deu a volta à carrinha e subiu para o lugar do condutor, ligando a ignição. Ficaram ambas ali sentadas, em profundo silêncio. Nem Harry, o cão-gigante, soltou um som que fosse.

– Vamos lá para casa, então, Alice – disse June. Engatou a primeira. – Temos uma longa viagem pela frente.

Saíram do parque de estacionamento. Alice sentiu as pálpebras pesadas de exaustão. Tudo lhe doía. Harry tentou algumas vezes tocar com o focinho na perna dela, mas a menina afastou-o, voltando costas aos seus dois companheiros de viagem – e mantendo os olhos completamente fechados ao seu novo mundo.

Brooke carregou uma e outra vez no botão do elevador com força e vasculhou dentro da mala até encontrar o seu maço de cigarros de emergência. Quando o elevador tocou e as portas se abriram, Brooke irrompeu por ele adentro e carregou no botão do estacionamento. Mais uma vez, recordou a felicidade no rosto de Alice quando viu a caixa dos livros; a luz que lhe enchera os olhos valera bem a mentira que Brooke dissera quanto à origem do presente. Alice estava agora com a avó. Com a família dela, forçou-se a pensar, que era, afinal, tudo o que a menina mais precisava.

Em toda a sua vida, Brooke nunca testemunhara um cenário semelhante ao que vira na propriedade dos Hart. A polícia insistia em chamar-lhe a tempestade perfeita: trovoada seca, uma criança deixada sozinha com uma caixa de fósforos por perto, e uma família encurralada no tumultuoso ciclo da violência de um homem contra a sua mulher e filha. Brooke estava por perto quando a polícia explicou a June o que acontecera: Clem tinha espancado a filha até à inconsciência, no quarto dela, e depois, ao aperceber-se do incêndio, arrastara-a para fora de casa antes de voltar a entrar para resgatar Agnes. Mas na altura em que a ambulância e os bombeiros chegaram, já não foi possível reanimar a mulher, e Clem morreu pouco depois, devido à inalação de fumos. A essa altura do relato, June já se mostrava tão agoniada que Brooke interveio e sugeriu ao polícia que fizesse uma pausa.

O elevador chegou ao estacionamento com um novo e nauseante tlim. Brooke inspirou profundas golfadas de ar puro, atrasando o acender do cigarro. Pobre mulher, aquela Agnes. Com apenas vinte e seis anos e tamanho pavor do marido que fizera um testamento a acautelar a guarda dos filhos, um dos quais nunca viria a conhecer. Brooke levou a mão ao estômago só de pensar no bebé, arrancado do corpo espancado e moribundo de Agnes. Engoliu a bílis que lhe subiu à garganta. Que marido seria capaz de fazer uma coisa daquelas à mulher grávida, à filha, e ao bebé ainda por nascer? E o que seria da menina, a filha de Agnes que sobrevivera ao incêndio?

Brooke sentiu-se subitamente esmagada pela imagem de Alice, inconsciente, espancada e intoxicada pelo fumo. Atirou o maço e o isqueiro para um caixote do lixo, meteu-se no carro e afastou-se do hospital tão depressa que os pneus chiaram no asfalto. Queria distanciar-se o mais possível do quarto vazio da menina.

Lá fora, o crepúsculo de verão surgiu-lhe espesso e ameno. Os pinheiros da Ilha de Norfolk, plantados por toda a extensão da orla marítima, estavam carregados de papagaios que guinchavam ebriamente, entoando a sua canção do ocaso. Brooke encostou o carro à berma e abriu as janelas para inspirar a fragrância forte a sal, algas e frangipani. Alice murmurara incessantemente coisas sobre flores quando estava no auge dos seus terrores noturnos. Flores, pássaros, fénix e fogo.

– Vá lá! – murmurou Brooke para si mesma – Recompõe-te, merda!

Limpou os olhos, assoou o nariz e ligou a ignição. Acelerando para longe do mar, cortou as curvas das ruas vazias do bairro onde morava, travando a fundo no caminho de entrada de sua casa. Assim que entrou, correu para o telefone e fez a chamada que temera fazer todo o dia. Forçou-se a marcar o último dígito do número de Sally – que sabia de cor desde os doze anos.

Sentiu o sangue pulsar-lhe nos ouvidos enquanto ouvia o toque de chamada.