É tão estranho que as aulas tenham começado há duas semanas. A sensação é de que já se passaram dois meses.
Também é estranho pensar em como eu era. Isso porque eu era completamente diferente do que sou agora. Talvez a parte central de mim seja a mesma. Sabe, como tem sempre uma parte sua que não muda, não importa o quanto as coisas mudem, ou o quanto radical você seja ao tentar se reinventar? Mas hoje sou diferente no que se refere a uma coisa importante.
Ter distúrbio de ansiedade significa nunca se adaptar perfeitamente a ninguém. Não que isso seja uma coisa ruim. Mas quando tudo o que você quer é funcionar como um ser humano normal, não se adaptar só torna os seus problemas mil vezes maiores. No ano passado, eu era antissocial, estava deprimida e sempre tinha pensamentos negativos. A vida continuava a passar por mim, mas eu não me envolvia muito com nada. Eu apenas assistia às pessoas fazendo todas as coisas que eu achava que deveria estar fazendo. Aquelas coisas pareciam tão fáceis para elas, tipo associar-se a algum clube ou montar peças de teatro na escola! Mas sempre me pareceu meio fingido isso de tentar me adaptar aos outros do mesmo modo que os adolescentes normais.
— Como está indo aí? — papai me pergunta, na outra extremidade da mesa que estamos lixando. Meu pai faz móveis. Só trabalha com madeira maciça que, apesar de cara, dura uma vida inteira. Aliás, várias vidas. Ele tem uma oficina na cidade, mas também trabalha em casa. Por isso todas estas instalações de carpintaria montadas na garagem. Às vezes eu o ajudo com alguma atividade onde não há risco de estragar o móvel em que ele está trabalhando, coisas como lixar.
— Está ficando bom — digo.
— Como eu imaginava que ficaria.
Adoro ajudar meu pai. Toda vez que estamos trabalhando num móvel qualquer, simplesmente me concentro naquilo que estamos fazendo e consigo controlar minha ansiedade. Isso faz parte da terapia comportamental cognitiva que aprendi com meu psicólogo, no ano passado. Sempre que eu estiver me sentindo ansiosa, devo fazer algo para redirecionar minhas energias até conseguir relaxar.
Estamos usando uma lixa bem fina e tudo o que se ouve é um ruído suave, “fffft-ffft”, quando lixamos a mesa. Papai me ensinou a fazer movimentos suaves e circulares, de modo que a superfície lixada não fique irregular.
— Como está indo na escola? — papai me pergunta.
— Tudo bem. — “Fffft-ffftt”. — Já estamos ensaiando para o concerto de inverno, na orquestra.
— Concerto em que você será a estrela. Você vai ser a spalla, não?
— Pai!
— O que foi?
— Leva anos pra isso acontecer. Tipo, quando eu estiver no último ano, talvez prestem atenção em mim.
— Mas você já toca tão bem...
Este é o jeito do meu pai. Sempre me dá um superapoio. Não importa o que eu faça para estragar as coisas, ele está sempre do meu lado, recolhendo os cacos ao redor. Acho que quando ele e minha mãe perceberam como eu estava enrolada, no ano passado, o impacto foi maior nele do que nela. Eu não era bipolar nem estava louca, nem planejava explodir a escola, ou coisa do gênero. Eu estava, tipo, deprimida. Muitos que sofrem de ansiedade, às vezes, têm isso. No meu caso, acho que a obsessão com os pensamentos negativos e a preocupação com coisas, tipo, alguma bobagem que eu fiz, ou com o que as pessoas pensam de mim, naturalmente, me deixavam deprimida, como se minha mente estivesse sofrendo as consequências de todo aquele estresse. Mamãe sempre se sente mais à vontade para conversar comigo nos momentos em que estou bem, mas papai se preocupa comigo e me dá apoio em qualquer circunstância. Digamos, apenas, que mamãe não falava muito comigo quando eu estava na pior.
Mas agora me sinto melhor. E quero que todos na escola percebam que não sou mais uma esquisitona. Apesar de eu estar descobrindo a dificuldade que é fazer mudanças nesse primeiro esboço de mim mesma. Toda a energia que Sterling e eu tínhamos antes do início das aulas, com nosso pacto de autoaperfeiçoamento e reinvenção de nós mesmas, meio que desapareceu.
Papai me passa outro pedaço de lixa.
— Tem mais alguma coisa acontecendo que eu deveria saber?
— Estamos montando um aquário na aula de Química.
— E o que a Química tem a ver com os peixes?
— Ainda não descobrimos. Imagino que tenha algo a ver com o pH.
— Ah, parece legal.
— Deve ser.
— Ontem, você estava trabalhando no laboratório de Química, né? Na casa do Nash?
— Nem me faça lembrar disso.
— Achei que você gostasse de ir lá.
— Eu gosto, mas... — “Fffft-ffft”. — É que eu estou totalmente perdida nessa matéria, e Nash sabe tudo. O cérebro dele é como essas esponjas industriais que sugam tudo e mantêm as informações ali dentro, para sempre. Você pode perguntar a ele sobre qualquer coisa, e ele responde.
— Parece ser um garoto esperto.
— Ele é um gênio. — Papai sorri de um jeito que dá a entender que ele pensa que estou gostando de Nash.
— Sei o que você está pensando — digo —, e não é nada disso.
— Não é?
— Não.
— Então o que é?
— Ele é só... bem interessante. Tipo... ele coleciona sinos. Sinos de todos os lugares do mundo, sabe?
— Legal.
Mamãe abre a porta da garagem. Os aromas do jantar invadem o lugar.
— Ei, vocês dois! Hora da janta.
— Já estou indo — responde papai.
— Agora! — mamãe diz com ênfase.
— Já entendi.
Mamãe sabe como meu pai consegue ficar completamente entregue a seu trabalho. Uma vez, ela o chamou para jantar e uma hora depois ele ainda estava por aqui. Ele disse que tinha a impressão de que tinham se passado só cinco minutos.
O trabalho de minha mãe foi sempre o de ser mãe, mas neste verão ela arrumou um emprego de meio período como “assistente pessoal”. Quando perguntei o que isso queria dizer, ela respondeu: “tarefas de organização de roteiros de viagem e compra de presentes”, mas ainda não entendi o que ela faz exatamente. Tudo o que sei é que ela não fica mais muito tempo em casa e, certas noites, fica trabalhando até mais tarde. Já fiz planos de jantar na casa de Sterling nessas noites. Comer waffles congelados no jantar, preparados por meu pai, para mim e minha irmã, Sandra, não é das coisas mais apetitosas do mundo.
Mamãe volta pra dentro, e eu começo a limpar a garagem.
— Ei! — diz papai. — Estou muito orgulhoso de você.
— Por quê?
— Pelo ano que passou. Imagino como deve ter sido difícil passar pelo que você passou, e você conseguiu.
— Obrigada!
— Você sabe que estou sempre aqui se precisar de alguma coisa, não sabe?
Sinto um forte aperto na garganta e tudo que consigo fazer é concordar com um movimento de cabeça.