— Você acha que faz diferença tomar água morna ou gelada? — Nash me pergunta.
A essa altura, já estou acostumada com este tipo de pergunta ou comentário de Nash, que surge do nada. É incrível como voltamos a nos tornar amigos desde o início das aulas, depois de passar por anos em que mal nos falamos. Esse tipo de coisa me faz pensar que tudo é possível.
— Sim, faz. Mas quem é que bebe água morna?
— Não, eu quis dizer em temperatura ambiente. Tipo, se você deixar uma garrafa de água fora da geladeira, em vez de deixá-la dentro.
— Ah, é isso que significa temperatura ambiente? Obrigada pelo esclarecimento, sr. Óbvio. — Nash sente necessidade de explicar a você os conceitos mais óbvios. Às vezes, com todos os detalhes. Isso é muito irritante.
Ele fez o mesmo hoje, na aula de Química.
Estávamos trabalhando no laboratório, e os colegas na mesa ao lado não estavam conseguindo lidar com um dos procedimentos. Então, pediram ajuda a Nash, que lhes deu uma explicação. Só que, um pouco mais tarde, quando lhe fizeram uma pergunta simples sobre proporções, Nash começou a lhes explicar coisas superbásicas, que até um aluno de 6º ano saberia.
— OK, nós sabemos isso — disse uma das meninas.
— Só estou tentando ajudar — disse Nash.
— Você está achando que somos estúpidos ou algo assim? — ela rebateu.
— Não, eu estava...
— Então por que está falando com a gente desse jeito? — a colega dela criticou.
Sei bem que essa não era a intenção de Nash. Mas se você não o conhece, é fácil interpretá-lo mal.
— E então? — Nash me pergunta.
— Então o quê?
— Faz diferença para o corpo?
— Por que é que o corpo se importaria com a temperatura da água que a gente bebe?
— Aqui estão os dados: a temperatura padrão do corpo é de 36,5° C. Então, se você beber água bem gelada, que está, tipo, a uma temperatura dez graus menor do que a do corpo, seu sistema não pode ter um choque enorme?
Folheio algumas páginas do projeto em que estamos trabalhando.
— Em que página está isso?
— Não faz parte do projeto. Eu só estava me perguntando sobre isso.
Esta é mais uma particularidade do Nash. Ele se faz perguntas sobre as coisas mais aleatórias.
— Sei lá — digo. — Nunca parei para pensar nisso.
— Me avise se você chegar a formular alguma teoria.
— Ah, não se preocupe! Você será o primeiro a saber.
Três horas mais tarde, depois de dois intervalos, terminamos o projeto. O meio do mês de outubro, em si, já é um período estressante, com o final do primeiro período de notas e a divulgação dos boletins, sem contar com este enorme projeto de Química. Pelo menos as coisas parecem estar melhorando. Sinto, agora, que sou capaz de contribuir quando estamos trabalhando juntos. Quando começamos a fazer os relatórios do laboratório, Nash mostrava ter uma inteligência enorme e eu não sabia nada. Eu me sentia uma idiota.
Odeio quando as pessoas têm a sensação de que precisam fazer o trabalho inteiro ou têm que responder perguntas em meu lugar por acharem que não vou ser capaz de fazê-lo. Isso acontecia muito durante meu período mais sombrio. Quando fiquei seriamente deprimida, eu me desliguei da escola. Às vezes, nem ia às aulas. Minha mãe me deixava ficar em casa, pois não sabia mais o que fazer. Papai chegava em casa mais cedo e jogava Uno comigo, tentando me fazer dizer o que estava errado. Mas normalmente eu não tinha muita vontade de conversar. Sobretudo, porque não sabia como explicar. Então, eu me distraía demais e não acompanhava as coisas que aconteciam ao redor, na sala. Toda vez que tinha de fazer trabalho em grupo, todos olhavam para mim tipo: “Você já devia saber isso! Por que está bancando a estúpida?”. Era muito constrangedor.
Mas agora sinto que estou realmente entendendo parte dessas coisas. E acho que fizemos um ótimo trabalho no projeto. Sorrio para Nash, toda orgulhosa de nós dois.
— O que foi? — diz ele.
— Nada.
— O que foi? Fala!
— Nada. É que... acho que formamos uma boa dupla.
Nash para de grampear as folhas.
— Eu também acho.
Sorrio ainda mais. Nash faz uma cara de apavorado.
— Está se sentindo bem? — pergunto.
— Hum... estou... — Ele se afasta da mesinha de centro, onde estávamos trabalhando. — Consegui uns sinos novos.
— Ei, legal! Me mostra. — Ele me mostra uma cordinha com pequenos sinos pendurados, no batente da janela. Dou uma sacudida neles. Têm um tinido suave. — São bonitinhos.
Nash dá início, então, a uma longa e complicada descrição sobre a origem dos sinos, de como ele os encontrou e como eles são significativos para uma determinada cultura do outro lado do mundo e...
— Ei, Nash!
— Fala.
— Eles são bonitinhos.
— Obrigado!
Ficamos os dois ali, parados, sem dizer nem fazer nada. Ele simplesmente fica olhando para mim.
É estranho. Pela primeira vez diante de Nash, sinto necessidade de dizer algo.
— Então... no que é que deu a história da... carta? — Eu estava quase dizendo no que é que deu a história da Birgitte, mas Nash nunca me disse que a carta era endereçada a ela, e eu não quero que ele saiba que eu a vi rindo do Jordan.
— Que carta?
— Você sabe... aquela que você escreveu para... hã...
— Ah! Aquela. Não deu em nada. Ela não sentia a mesma coisa que eu.
— Que pena!
— Na verdade, não. Na verdade, é uma coisa boa. Eu estava mais interessado numa outra pessoa, então...
— Quem?
— Outra pessoa.
— Então por que não entregou a carta a ela?
— É um ensaio — diz Nash. — Você acha que eu vou desperdiçar o melhor material que tenho já na rodada preliminar?
Não estou engolindo essa história de Nash tratar isso tudo como se não fosse grande coisa. Gostar de alguém que acaba lhe rejeitando é uma coisa importante. Estou aprendendo a decifrar o jeito de Nash, e ele não me soa muito convincente. Mas é nisso que ele quer que eu acredite, e a verdade é meio humilhante. Então deixo quieto.
— Então, hum... acho que terminamos — digo.
— Terminamos?
Aponto para a mesinha de centro.
— O relatório.
— Ah! Certo. É, terminamos.
— Acho que ficou muito bom.
— Marisa... — diz Nash e chega mais perto de mim. Como se fosse me beijar ou algo assim.
Ah, meu Deus!
Nash vai me beijar.
Eu sabia que ele gostava de mim!
Eu me afasto dele.
— O que aconteceu? — pergunta ele.
— Eu não estou... não sou... você ia tentar me beijar?
— Depende.
— Do quê?
— Depende do porquê de você não ter me deixado.
Que dificuldade, isso... Como é que se diz a alguém que gosta de você que seu sentimento em relação a ele não é o mesmo? Ninguém gosta de ouvir uma coisa dessas. É devastador.
Mas eu preciso lhe dizer.
— Nash, eu não... sabe como é... não gosto de você da mesma maneira.
— Não?
— Não. Você achou que eu gostava?
— Não sei. Parecia que você gostava de mim.
— Bem, não é bem o caso.
— É, estou percebendo agora.
— Me desculpa!
Nash se afasta para o outro canto do quarto.
Eu preciso saber exatamente por que ele achou que eu gostava dele. É tão estranho, porque não tem nada a ver!
— Eu... fiz alguma coisa... que fez você achar que eu gostava de você?
— Digamos que teve algumas pistas.
— Tipo o quê?
— Você sempre gostou de vir até minha casa, por exemplo.
— Pra fazer nossos trabalhos. E porque somos amigos.
Nash pega um sino grande, de vaca, em sua escrivaninha. Balança-o algumas vezes.
— É isso, então? — pergunto. — Eu gosto de vir aqui e, por isso, você achou que eu gostava de você?
— Não, é mais do que isso. Você simplesmente me parece... bom, esquece.
Ainda não faço a mínima ideia do que ele está falando. Mas ele já está se sentindo mal com o episódio, então decido deixar pra lá.
— Não acredito que isso está me acontecendo de novo — ele diz.
— O quê?
— Isso. Rejeição.
— Me desculpa. Mas eu não quis...
— É. Você não pode exigir que alguém sinta o mesmo que você, certo?
— Não era isso o que eu ia dizer.
— Se for pior do que isso, com certeza eu não quero ouvir.
— Eu ia dizer que não tinha intenção de magoá-lo. Você simplesmente... me surpreendeu, só isso.
— Você me surpreendeu ainda mais.
Ficamos os dois parados, ali, olhando para todos os lados, menos no rosto um do outro.
— OK — ele diz —, isso é estranho.
— Mas não precisa ser. Ainda quero continuar sua amiga.
Nash dá uma fungada.
— Você não quer? — pergunto.
— Acha mesmo que isso é possível?
— Por que não? Quer dizer, vai ser meio estranho no começo, mas...
— Seria muito mais do que estranho, pra mim. Sou eu quem gosta de você.
— Então... o que você quer dizer?
Nash balança a cabeça. Ainda sem olhar para mim.
— Ainda não sei.
Isso é muito injusto. Por que ele tinha que estragar tudo? Por que é que ele achou que eu gostava dele? Dei alguma indicação disso? Não, não poderia ter dado. Porque não gosto dele. Mas ainda quero continuar amiga dele. Temos que continuar amigos.
Mas... e se não conseguirmos?