O significado do nome Marisa é “oceano de amargura”, e é isso mesmo que eu sou.
Alguém bate à porta. Não dou atenção.
— Marisa! Posso entrar? — pergunta mamãe.
Viro a página.
— Estou entrando — diz ela.
Maldita porta que não tem tranca.
Mamãe entra, com ar de quem está pouco à vontade, mas determinada. Para chegar até mim, ela tem de pisar em montes de papéis amassados e desviar de pôsteres rasgados que pendem das paredes. Ainda não tive energia para arrumar meu quarto desde o dia em que tirei tudo aquilo das paredes, então, estou vivendo no meio dessa bagunça. Tudo aqui está numa espécie de limbo.
E há também a caixa de meu violino. Pela primeira vez, reparo que ela está coberta de pó. Nem consigo me lembrar de quando foi a última vez que pratiquei. Sei que o sr. Silvestein sabe que eu tenho sido negligente. Na semana passada, no ensaio da orquestra, deixei escapar um guincho agudo com a corda mi, no meio de um intervalo, e ele me fuzilou com o olhar de um jeito que achei que fosse me enforcar.
Continuo fingindo que estou lendo.
— Como você está se sentindo? — diz ela.
Que pergunta mais bizarra! Mesmo sem considerar o fim do namoro ou todos os dias em que não fui à escola, a pergunta é bizarra. Ela já me viu nesta espiral descendente antes. Ela sabe qual é a sensação.
— Não vai falar comigo?
— Só respondo a perguntas que valem a pena ser respondidas — informo.
— Sei. — Mamãe se senta na cadeira de braços largos que papai fez para mim quando me graduei no Ensino Fundamental. Adoro essa cadeira. Tem braços largos, feitos com madeira de bordo polida. Papai a construiu com braços largos, pois sabia que eu ia querer colocar copos e livros nela, ao me sentar.
— Ligaram da escola — mamãe diz. — Seu professor de Matemática, o sr. Wilson.
Eu, tipo, esperava que o sr. Wilson me ligasse. Há alguns dias, ele pediu para eu esperar no fim da aula e disse que poderia lhe contar qualquer coisa que estivesse me incomodando. Eu não sabia nem mesmo como começar a me explicar, então respondi que qualquer hora, sim, talvez.
— O que ele queria? — pergunto.
— Ele disse que você não entregou nenhum trabalho a semana toda. E que não tem mais participado das aulas.
— Eu nunca participo daquela aula. É Matemática.
— Bom, ele disse que parece que algo está incomodando você.
Mamãe se levanta e vai até a janela. O rio está fluindo e brilhante. Ele parece contente à luz do sol da primavera. Gostaria, também, de estar contente.
— Marisa, se você...
— Eu estou bem.
— Mas se você...
— Eu estou bem. — Não vou voltar a fazer terapia, tenho certeza que é sobre isso que ela vai me perguntar de novo. Não quero nem ouvir isso. Não quero estar naquela situação nunca mais. Tenho que ser capaz de passar por tudo isso sozinha. Só preciso de mais tempo.
— Você não pode continuar faltando às aulas — diz mamãe.
— Eu sei.
— E você precisa fazer suas tarefas.
— Eu sei, mãe!
— O sr. Wilson disse que vai aceitar trabalhos atrasados se você entregar até segunda-feira.
Continuo a fingir que estou lendo.
— Você pode deixar o livro de lado, por favor?
Continuo a fingir.
— Coloca o livro de lado.
Faço isso.
— Eu gostaria muito de saber por que você está tão zangada comigo — diz mamãe.
— Você sabe por quê.
— Não, não sei. Talvez eu soubesse no início, mas não sei mais. Eu peço desculpas pelo divórcio. Peço desculpas se eu tive um caso amoroso. Mas não peço desculpas em relação ao Jack.
— Dá pra você não falar este nome?
De repente, algo muda. O rosto de mamãe fica todo tenso. É óbvio que fui longe demais. Em vez de simplesmente deixar meu quarto, como ela normalmente faz, ela fica imóvel.
— Você acha que eu queria mesmo que as coisas estivessem desse jeito? — ela grita. — Você acha que era isso que eu queria ter na minha vida?
Não digo nada. Não sei o que ela queria.
— Quando é que vai ser a minha vez, Marisa? Quando você e sua irmã forem embora, fazer faculdade? Não posso esperar tanto assim! Por que é que eu tenho que colocar tudo em compasso de espera?
Nunca tinha ouvido minha mãe gritar desse jeito. Não imaginava que ela poderia ficar zangada assim. Que poderia reagir desse modo.
— Eu amo Jack. Ele me ama também, e nós queremos ficar juntos. E realmente sinto muito que tudo tenha que mudar, mas as coisas são assim.
Mamãe sai pisando duro e bate a porta.
Minha adrenalina está a mil. Estou tremendo e sinto medo. Nunca vi mamãe chegar nem perto dessa fúria toda. Ela me assustou completamente.
Tudo isso é demais pra mim. O fim do namoro com Derek, porque ele gosta de outra. A briga com Sterling. Nash, que não tem mais tempo para me encontrar. Papai, que fura nossos planos. E agora essa!
Às vezes me pego imaginando como seria me matar. Ou melhor, tipo, o que aconteceria depois que eu morresse. Será que alguém sentiria minha falta? Alguém repararia que não estou mais por aqui? O que as pessoas diriam a meu respeito?
Será que estar morta é melhor que estar do jeito que estou?
Na verdade, não tenho instintos suicidas. Existe uma diferença entre realmente querer se matar e simplesmente pensar a respeito disso. Mas não consigo deixar de pensar nessas coisas. Se eu fosse mesmo me matar, o que eu faria? Cortar os pulsos me parece óbvio demais. Todos fazem isso. Tomar comprimidos talvez seja o modo mais fácil e, provavelmente, o menos doloroso, mas como é que eu encontraria estes comprimidos? E que tipo de comprimidos deveria tomar? Com certeza, não faria algo estúpido como tentar me enforcar ou dar um tiro na cabeça. Um plano como esse poderia sair pela culatra e, então, em que eu me transformaria? Num vegetal que vive e respira, mas com uma vida ainda pior.
Existem pessoas no mundo que são torturadas diariamente. Pessoas são estupradas e assassinadas, e vivem em condições horríveis, e nem mesmo lembramos que elas existem. Eu poderia ser uma dessas pessoas. Poderia estar vivendo numa zona de conflito, neste instante, sem água potável e aleijada de uma perna. Deveria me sentir grata por tudo que tenho.
Porém, saber tudo isso não faz com que me sinta melhor. E isso me deixa ainda pior.
Mas há uma saída.
Levo o laptop para minha cama e começo a escrever para ele. Sei bem que ele pode me ajudar, se quiser. Só não tenho certeza se vai mesmo fazer isso.
Não é estranho que eu me sinta conectada com um rapaz que nem sequer conheço?
Durante o resto do dia, fico uma pilha de nervos. E se ele não ler meu e-mail? E se não se der conta do quanto eu preciso dele?
Por fim, são 23 horas, e o programa dele vai entrar no ar.
— OK, pessoal, tem uma pessoa aí entre vocês que precisa de nossa ajuda. Se alguém tiver algum conselho que queira dar, vá em frente e envie para nós. Estou por aqui 24 horas por dia, sete dias na semana, atento à sua necessidade de ser ouvido.
Ele vai ler minha mensagem. Estou pressentindo isso.
— Oi, Dirk. Preciso muito de seus conselhos. No ano passado, eu estava seriamente deprimida, e havia dias em que não queria continuar viva. As coisas melhoraram durante um tempinho, mas agora estou de volta à mesma situação. Tudo está uma droga e preciso me sentir melhor. Ouço seu programa todas as noites e sei que você pode me ajudar. Por favor, me ajude!
Meu coração está batendo de um jeito completamente descompassado e, em meus ouvidos, há um zunido assustador. Espero que ninguém descubra que o e-mail que ele acabou de ler foi enviado por mim.
— A mensagem foi enviada por “Desamparada Confiante”, diz Dirk. — A situação dela não é fácil, meus amigos. Quer saber minha opinião? Você chegou ao fundo do poço. Muitos de nós já estiveram lá. Mas a boa notícia é que, a partir desta situação, a vida só pode melhorar. E isso vai acontecer. Eu costumava pensar que, se a pessoa não passou pelas coisas que passei, ela jamais poderia compreender, e tentar explicar isso a ela seria inútil. Mas não é bem assim. Os seus amigos sempre são capazes de ajudar você de alguma forma. Mesmo que apenas ouvindo você, isso vai ajudá-la. Tenho aqui uma mensagem enviada à Desamparada Confiante: “Por favor, não machuque a si mesma! Você estará ferindo muito mais gente além de você”. E tenho aqui alguns telefones de serviços de assistência 24 horas que gostaria de repassar a todos vocês, ouvintes.
Anoto os números passados por Dirk, mas não estou muito convencida de que conversar com um estranho possa me ajudar. Seria parecido com voltar à terapia, só que obtendo conselhos piores.
— Desamparada Confiante — diz Dirk —, seu nome mesmo indica que você ainda tem confiança. Ou seja, você não quer desistir. Não desista! Além disso, você não está desamparada. Você pode lutar contra isso. Seja forte! Você já foi forte no passado e superou; pode enfrentar isso novamente. E se você acha que vai machucar a si mesma, me prometa que vai telefonar para um destes números que acabo de passar. Cara, este é um daqueles momentos em que gostaria de não permanecer anônimo. Eu sou esta voz que vocês estão ouvindo. Mas quem sou eu? Não sou especialista em nenhuma dessas coisas. Sinto as mesmas coisas que todos vocês sentem. Portanto, lembrem-se de que estamos todos no mesmo barco. Se você machucar a si mesma, estará me machucando e machucando a cada um de nós.
É neste momento que tenho um clique. De fato, é como se todos nós estivéssemos no mesmo barco. Todos nós ouvindo o programa, neste momento, no quarto de nossas casas, esperando que a verdadeira vida comece. Do modo como Dirk fala, é como se estivéssemos conectados de uma maneira muito ampla, mesmo que um não conheça o outro. É como se fôssemos parte de uma família verdadeira, só que os membros dessa família não podem ser separados.
Não estou sozinha nessa. Não preciso resolver todos os problemas sozinha.
Quando o programa termina, caminho, pé ante pé, em direção à porta do quarto de mamãe. Preciso me entender com ela. Quero muito fazer isso, mas ainda tem muita raiva entre nós duas. Se eu deixar que essa raiva me destrua, nunca poderei ser a pessoa que quero ser. Tudo o que mamãe está dizendo é que ela quer viver no “agora”, assim como eu. Isso é tão errado assim?
Saio de fininho e corro através do gramado, na direção da casa de Nash. Já passou de meia-noite, então não dá para bater à porta dele. Apanho algumas pedrinhas na entrada de sua casa e me coloco sob a janela dele. Atiro uma na janela dele, ela atinge uma árvore e ricocheteia no escuro da noite. Tento de novo. E mais uma vez. Isso sempre parece tão fácil nos filmes!
Uma pedrinha finalmente atinge sua janela. Espero até que ele apareça. A luz de seu quarto estava acesa quando cheguei aqui, então sei que ele está acordado. Atiro uma pedra maior. Ela bate na janela com um estalo mais forte.
Nash afasta duas tiras de sua persiana e me vê. Como as luzes do píer estão acesas, consegue perceber que sou eu. Ele faz alguns gestos desesperados com a mão, que não consigo decifrar. Então, desaparece. Aguardo.
Ele sai no jardim, dizendo:
— O que está acontecendo? Você está bem?
— Vou ficar bem.
Saímos caminhando na direção do píer e conto tudo a Nash. Falo a ele sobre minha ansiedade e que estou fazendo terapia. Digo como eu me sentia deprimida no ano passado e que estou deprimida de novo. Todas essas coisas que eu vinha esperando para dizer a alguém, esperando pela pessoa certa para ouvi-las, consigo, então, desabafar tudo. E Nash me ouve. Ele é a única pessoa a quem quero contar tudo isso. Então, conto, e ele me apoia, do modo como sempre quis que ele fizesse.