Thor estava sozinho ao leme de um grande barco vazio, no meio do oceano, as correntes o puxavam com uma velocidade tremenda. As velas estavam infladas pelo vento, apesar de não haver ninguém além dele no barco. Era um navio fantasma e ele permanecia ao leme, olhando para o horizonte que estava coberto por uma névoa sobrenatural. Tons dourados, amarelos e brancos faiscavam no sol da manhã.
À medida que a névoa se dissipava, a silhueta de uma ilha ia tomando forma. Ela parecia mais uma montanha que se erguia do mar do que uma ilha, seu único pico se elevava em direção ao céu. Ela se elevava mais alto do que qualquer montanha que Thor já tinha visto e na sua parte superior havia um castelo emergindo da rocha, construído na borda de um precipício. O céu era expansivo, cheio de tons de verde e amarelo pálido, uma enorme lua crescente se pendurava no seu canto. O lugar era estranho e místico. Parecia vivo.
Thor permaneceu ali, seu barco se agitava, de certa forma, ele não sentia temor. Ele sentia o oceano levando-o até a ilha. Ele sabia que aquele era o lugar ao qual ele estava destinado. Ele sabia que de alguma forma, seu destino o esperava lá. Aquele era o seu lugar. Aquele lugar, de uma forma estranha, era seu lar.
Thor não conseguia se lembrar de ter zarpado, ou de como tinha abordado aquele barco, mas ele sabia que era uma viagem que ele estava destinado a fazer. De alguma forma, aquele lugar tinha estado sempre em seus sonhos, em algum lugar lá no fundo, nos recônditos de sua consciência. Ele tinha a certeza de que sua mãe morava lá.
Thor nunca havia contemplado sua mãe antes. Durante toda sua vida tinham lhe dito que ela havia falecido no parto e ele sempre sentia uma enorme culpa por causa disso. Mas agora, enquanto ele se aproximava daquela ilha, ele sentia a presença dela. Ele sentia que ela estava esperando por ele.
De repente, uma onda enorme levantou o barco, ergueu-o cada vez mais alto no ar e Thor se encontrou subindo cada vez mais alto sobre o oceano. A onda ganhou velocidade como um tsunami e Thor navegou sobre ela durante todo o seu trajeto enquanto ela o levava velozmente em direção a ilha, cada vez mais rápido.
Quando ele chegou perto da ilha, ele viu uma figura solitária, de pé em cima de um penhasco. Era uma mulher. Ela usava vestes azuis esvoaçantes, seu rosto estava inclinado para baixo e as palmas de suas mãos estavam voltadas para fora. Uma luz intensa brilhava por trás dela, irradiando de suas palmas, fluindo como um relâmpago. A luz brilhava tão intensamente, que quando Thor olhou para cima, tentando vê-la, ele teve de proteger os olhos. Ele não conseguia distinguir o rosto da mulher.
Ele sentiu que era ela. Mais do que tudo, ele queria ver o rosto dela, para ver se ela se parecia com ele.
“Mãe!” Ele chamou.
“Meu filho.” Disse uma voz suave que provinha de algum lugar. Era a voz mais gentil e mais reconfortante que ele tinha ouvido na vida. Ele desejou ouvi-la novamente.
De repente, a onda desabou e arrastou o barco para baixo junto com ela e Thor preparou-se enquanto se dirigia para as rochas.
Thor acordou com um sobressalto e sentou-se na cama, respirando com dificuldade.
A madrugada estava rompendo sobre o horizonte. Os membros da Legião dormiam espalhados ao redor de Thor. Sua mente dava voltas com o sonho: ele parecia tão real.
Quando Thor se orientou novamente, ele percebeu que aquele era o dia. O último dia da Centena. O dia que todos haviam estado temendo.
Ele se sentia cem anos mais velho do que era quando ele tinha chegado ali, cem dias atrás. Ele não podia acreditar que tinha conseguido, que aquele era o seu último dia. Seu tempo ali tinha excedido muito a sua imaginação. Cada dia tinha sido mais difícil do que o outro, cada treinamento mais cansativo, forçando seus irmãos cada vez mais duramente. Os dias haviam se tornado cada vez mais longos enquanto ele aprendia a treinar com todas as armas conhecidas — e com algumas até mesmo desconhecidas pelo homem. Eles tinham sido forçados a treinar em todos os terrenos possíveis, desde pântanos a geleiras e os comandantes tinham gritado com eles desde de manhã cedo até tarde da noite. Mais de um de seus irmãos havia saído da Legião e tinha sido enviado para casa sozinho em um pequeno navio. Muitos tinham sido feridos. Dois morreram acidentalmente, escorregando de um penhasco em um dia particularmente tempestuoso. Eles tinham enfrentado provações e tribulações juntos, todos lutaram contra monstros e sobreviveram a todo tipo de clima. Aquela ilha era implacável, seu clima tinha passado de quente para frio, sem aviso prévio, parecia que ela tinha apenas duas estações.
Enquanto Thor estava sentado ali com Krohn ao seu lado, uma parte dele temia aquele último dia, uma parte queria apenas deitar-se para voltar a dormir, mas ele sabia que não podia. Aqueles últimos cem dias tinham feito dele uma pessoa diferente, ele agora estava pronto para enfrentar qualquer coisa que lançassem contra ele.
Thor ficou sentado ali, na luz do amanhecer, esperando. Em breve, todos iriam levantar-se, equipar-se e embarcar em sua missão final. Mas enquanto eles não faziam isso, ele poderia deleitar-se em ser o primeiro a levantar-se, sentar-se ali e desfrutar do silêncio, vendo o sol raiar uma última vez sobre aquele lugar que ele tinha chegado a amar.
*
Thor estava de pé, com as mãos nos quadris, junto com os outros na praia estreita e rochosa. Ele olhava para o mar tempestuoso, sentindo o frio no ar da nova estação. Ele tinha aprendido a adaptar-se às condições meteorológicas adversas e já não tremia quando um vendaval gélido golpeava seu corpo. Ele olhava fixamente para o mar, seus olhos cinzentos brilhavam, ele sentia-se endurecido, impávido. Sentia-se como um homem adulto.
Seus irmãos de armas estavam por perto, Krohn se encontrava, como sempre, ao lado dele, perto da frota de pequenos barcos de madeira que se preparavam para zarpar para o teste final da Centena. Eles esperavam, todos ansiosos, enquanto Kolk passeava entre eles, parecendo tão insatisfeito e intenso como sempre.
“Aqueles de vocês que tiveram êxito até hoje, podem desejar parabenizar a si mesmos. Não façam isso. Vocês têm um último dia restante e este dia é o que se destacará dos outros. Se vocês sobreviverem a este dia, cada um de vocês vai voltar como um membro da Legião. Todas as provas pelas quais vocês já passaram, todas elas têm sido apenas uma preparação para o que vocês estão prestes a fazer.”
Kolk parou e virou-se, apontando para o horizonte.
“Naquela ilha, lá no horizonte...” Disse ele. “... Vive um dragão solitário, um pária da terra dos dragões. Temos vivido a sombra dele nos últimos cem dias e tivemos a sorte de que ele não nos atacou. Os guerreiros fazem todo o possível para evitar o lugar. Hoje, nós vamos fazer-lhe uma visita.
“Esse dragão guarda zelosamente um tesouro. Um antigo cetro de ouro. Dizem que o dragão o esconde no fundo de seu covil. Vocês devem encontrar o desfiladeiro, descer por ele, encontrar o cetro e voltar com ele.”
Ouviu-se um murmúrio nervoso no meio do grupo quando os garotos se viraram e se entreolharam com os olhos cheios de pavor. O coração de Thor martelava enquanto ele olhava para o mar rompendo na ilha ao longe, coberta por uma névoa surreal, mesmo naquele dia claro. Ele podia sentir sua energia, mesmo dali onde estava. Ao longo dos últimos cem dias seu poder tinha se desenvolvido e sua sensibilidade era mais intensa, ele era capaz de sentir energias, mesmo à distância. Ele podia sentir que uma criatura formidável vivia na ilha, uma criatura antiga, primordial. Ele sentia que todos estavam indo em direção a um grande perigo.
“Todos os homens aos botes e movam-se!” Kolk ordenou.
Todos correram para os pequenos barcos a remo que balançavam freneticamente nas águas da costa e subiram um de cada vez. Cada barco comportava cerca de uma dúzia de rapazes. Thor subiu junto a Krohn, ficando perto de Reece, O’Connor, Elden e os gêmeos, cada um sentou-se em um banco e pegou um remo.
Antes que eles partissem, Thor olhou para a costa e viu William de pé ali com medo em seus olhos. Thor realmente tinha ficado surpreso ao ver que William tinha chegado tão longe e pensou que ele abandonaria a Legião durante cada etapa do caminho. Mas agora, aquele exercício final devia ter sido demais para ele.
“Eu disse para entrar no bote!” Kolk gritou, dirigindo-se a ele rapidamente, o último rapaz que tinha ficado na praia.
William olhava de volta com os olhos arregalados.
“Peço desculpas senhor, mas eu não posso fazê-lo.” Ele disse humildemente.
Thor ficou ali, seu barco balançava descontroladamente e seu coração estava pesaroso por William. Ele não queria vê-lo ir embora, não depois de tudo o que tinham passado.
“Eu não vou dizer de novo.” Advertiu Kolk. “Se você não entrar nesse barco agora, estará fora da Legião. Tudo que você fez não serviu de nada. Isso é irreversível, definitivo.”
William ficou parado ali e balançou a cabeça.
“Sinto muito.” Disse William. “Quem me dera poder fazer isso. No entanto, isso é algo que eu não posso fazer.”
“Eu tampouco.” Exclamou uma voz.
Thor olhou e viu outro garoto, um dos mais antigos, saltar de um dos outros barcos e ficar em terra. Os dois ficaram ali na areia, cabisbaixos, com vergonha.
Kolk fez um gesto de desprezo, agarrou cada um por trás e empurrou-os para a frente, para longe dos outros rapazes. Thor se sentia muito mal por eles. Ele sabia que seriam colocados no pequeno barco e enviados de volta para o Anel e levariam esse estigma consigo pelo resto de suas vidas.
Antes que Thor pudesse pensar nisso mais profundamente, os comandantes da Legião surgiram atrás de cada um dos barcos e os empurraram com força, lançando-os ao mar. Thor sentiu o barco movendo-se sob ele e momentos depois ele estava tomando o remo junto com os outros rapazes.
A agitação do mar ficou mais forte à medida que avançavam e logo eles estavam longe da costa, presos a correntes fortes que os puxavam para a Ilha do Dragão.
Quando se aproximaram da ilha, Thor tentou obter uma melhor vista, porém a vista era constantemente obscurecida pela névoa que pairava sobre sua costa.
“Ouvi dizer que o dragão que vive lá come um homem por dia no café da manhã.” Disse O’Connor.
“É claro que iriam reservar algo assim para o último dia.” Disse Elden. “Justamente quando pensávamos que estávamos saindo daqui.”
Reece olhou para o horizonte.
“Já ouvi histórias sobre este lugar contadas por meus irmãos.” Disse ele. “O poder do dragão é insondável. Não há nenhuma maneira de que nós possamos derrotá-lo atacando-o de frente, mesmo juntos. Nós apenas temos de esperar, cuidar nossos passos e não acordá-lo. A ilha é grande o suficiente e ele pode estar dormindo. Tudo o que temos a fazer é sobreviver o dia.”
“E quais são as chances de que consigamos?” O’Connor perguntou.
Reece deu de ombros.
“Ouvi dizer que nem todos os garotos sobreviveram nos últimos anos.” Disse ele. “Mas um bom número conseguiu.”
A ansiedade de Thor aumentava à medida que as correntes o puxavam em direção à ilha. O remo ficou mais leve e logo ele pôde distinguir o contorno singular da costa formado por rochas vermelhas de formas e tamanhos de uma variedade infinita. Elas brilhavam e resplandeciam como se estivessem em chamas. Elas brilhavam na luz como uma praia de rubis. Ele nunca tinha visto nada assim.
“Oretistas.” Conval disse olhando para as pedras. “Diz a lenda que se você der uma delas a alguém que você ama, ela vai salvar a vida da pessoa amada.”
Momentos depois, o barco atracou na costa, Thor pulou com Krohn e os outros e o puxaram por todo o caminho para as rochas. Seus pés rangiam ao redor delas; os rapazes olhavam para baixo e recolhiam as brilhantes pedras vermelhas.
Thor fez o mesmo. Ele segurou uma pedra contra a luz, examinando-a. Ela brilhava como uma jóia rara na luz da manhã. Ele fechou a mão e os olhos e sentiu uma brisa surgir quando ele se concentrou. Ele podia sentir o poder da pedra pulsar através de seu corpo. Conval estava certo: aquela era uma pedra mágica.
Ele viu os outros meninos colocando no bolso a maior quantidade de pedras que podiam carregar como lembranças; Thor pegou uma e colocou-a no fundo de seu bolso. Apenas uma delas era o suficiente para ele. Ele não precisava de uma para si mesmo, só havia alguém no mundo a quem ele desejava dar uma: Gwendolyn. Isso, se por acaso ele conseguisse voltar para ela.
Todos eles começaram a subir o barranco, a única entrada que conduzia até os penhascos íngremes. A névoa ia e vinha, dificultando ver algo mais adiante, mas Thor pôde enxergar um caminho estreito quase que formado por degraus naturais, que dava para o lado do penhasco, o caminho estava coberto de musgo.
Eles subiam pelo caminho em fila indiana, Thor escorregava quando as ondas do mar borrifavam tudo, tornando o caminho escorregadio. Thor se esforçava para manter o equilíbrio quando uma forte rajada de vento os golpeou.
Finalmente, eles chegaram ao topo. Thor estava na colina coberta pela grama, junto com os outros, no pico da Ilha do Dragão. Ele olhou em volta, um musgo verde escuro cobria a ilha até onde ele podia ver e a névoa pairava sobre ele. Era um lugar assustador, sombrio e enquanto Thor olhava ao seu redor, de repente ele ouviu um rugido profundo. Parecia que a própria terra estava borbulhando e ao longe, chamas e fumaça subiram na névoa para logo desaparecer. Um cheiro estranho pairava naquele lugar, era como o cheiro de cinzas misturadas com enxofre. Ele impregnava tudo ali. Krohn choramingou.
Thor engoliu em seco. Os garotos se viraram e se entreolharam, até mesmo o mais corajoso deles tinha medo em seus olhos. Todos eles haviam passado por muitas coisas juntos, mas nada como aquilo. Eles estavam realmente ali. Não era mais um simples exercício repetitivo, agora era uma questão de vida ou morte.
Todos eles partiram em grupo atravessando aquela parte erma da ilha, andando sobre o musgo escorregadio, todos em guarda, todos com as mãos sobre as suas espadas.
Depois do que pareceram horas, os rapazes ouviram um som sibilante e, em seguida, um forte barulho que ecoava cada vez mais alto. A névoa girava em torno deles. Finalmente, o ar ficou mais frio, mais úmido, eles chegaram à beira de uma cachoeira. Thor olhou para baixo ao longo da borda; ela parecia cair interminavelmente.
Eles continuaram por uma trilha ao redor da circunferência da cachoeira e seguiram através de um terreno pantanoso, encharcado pelas gotas da queda d'água, os seus pés afundavam no solo. Eles andaram e andaram através das nuvens de névoa que se tornavam tão espessas que eles mal podiam ver uns aos outros; o rugido do dragão se ouvia a cada poucos minutos e parecia ficar cada vez mais alto. Thor virou-se para ver por onde eles tinham vindo, mas a névoa agora era muito grossa para que ele pudesse ver através dela. Ele começou a se perguntar como eles fariam para encontrar o caminho de volta.
Enquanto marchavam, Reece quem ia ao lado de Thor, subitamente perdeu o equilíbrio e começou a cair. Thor usou seus reflexos recém-descobertos para alcançá-lo e agarrá-lo justo um momento antes que ele caísse. Ele agarrou-o com força pela parte de trás da camisa e puxou-o de volta. Quando Thor se aproximou e olhou, percebeu que tinha acabado de salvar a vida de Reece: abaixo deles, o chão se abria para o que parecia um cânion enorme que se precipitava por centenas de metros.
Reece virou-se e olhou para Thor com um olhar de gratidão por ele ter salvado sua vida.
“Eu estou em dívida com você.” Disse ele.
Thor sacudiu sua cabeça. “Não, não está.”
Os rapazes todos reunidos em torno dele, olhavam para o imenso cânion, afundando centenas de metros dentro da terra, eles se perguntavam.
“O que é isso?” Elden perguntou.
“Parece um desfiladeiro.” Conval disse.
“Não.” Reece disse. “Não é.”
“Então o que é isso?” Conven perguntou
“É uma pegada.” Disse Reece.
“Uma pegada?” Conven perguntou.
“Olhe para a depressão, como ela é irregular. E olhe para a forma ao redor das bordas. Isso não é um desfiladeiro, meu amigo. Essa é uma pegada de Dragão.”