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Uma das meninas que estava no bar da outra vez abriu a porta. Mara, Lara ou — como se chamava a outra? Rosie. De qualquer forma, não era Mimi, graças a Deus. Quem quer que fosse, olhou confusa para mim por um segundo, depois sorriu, como se tivesse me reconhecido.
“Posso ajudar?”
Dei um sorriso animado.
“Oi! Joe está em casa?” Espiei em volta como se estivesse esperando que ele se materializasse a qualquer instante. Ela se moveu para bloquear minha visão, depois pareceu mudar de ideia e deu um passo para o lado, dando um sorriso.
“Sim, claro. Entre.”
“Ah. Obrigada.” Passei por ela e fui até o corredor. Era estranho estar na casa com aquela garota.
“Ele está no quarto”, informou, desnecessariamente. Eu já estava subindo — não me ocorreu que estivesse em qualquer outro lugar. O quarto era o único cômodo em que tínhamos ficado, apesar de esse pensamento só ter me ocorrido mais tarde.
Parei do lado de fora da porta fechada. Dava para ouvir uma música tocando lá dentro. Bati, primeiro experimentalmente, depois mais alto. Não houve resposta, então girei a maçaneta e entrei.
A luz no quarto era tão fraca que mal conseguia enxergar. Havia uma luminária de lava que eu nunca tinha visto antes ao lado da cama de Joe. Bolhas vermelhas flutuavam para o alto e depois para baixo outra vez. Era hipnotizante. Não consegui ver Joe — achei que ele pudesse estar no banheiro, então ouvi um barulho vindo da cama. Olhei e fiz uma careta para a massa de cabelos claros sobre o colchão. Joe não tinha aqueles cabelos. Então, na medida em que meus olhos se acostumaram à escuridão, finalmente entendi. Engasguei e saí correndo. Fiquei lá fora por um instante, com sangue pulsando nas orelhas. Sem saber o que fazer, corri para o banheiro e tranquei a porta.
O cabelo era de Mimi. Suas pernas estavam enroladas nas costas de Joe.
Não conseguia respirar direito. Passei os dedos em minhas bochechas. O que eu ia fazer? Olhei para a janela do banheiro, mas eu nunca passaria por ali. De qualquer forma, era uma queda livre de dois andares, direto em um beco pavimentado. Gritei quando alguém bateu à porta.
“Sarah, sei que é você.” Ele bateu outra vez. “Vamos, abra a porta.” Era a voz de Joe, mas não aquela de que eu me lembrava. Estava fria e rígida.
Destranquei a porta e saí de lá, empurrando-o para o lado. Ele segurou meu braço, mas eu o sacudi e me soltei, olhando para baixo, na direção da escada.
“O que deu em você para vir até aqui?”, ele gritou atrás de mim. “Eu disse que não queria nada sério... Sarah!”
No topo da escada a visão de Mimi encostada na parede, suas pernas lisas e nuas cruzadas casualmente no tornozelo, me fez parar. Ela acenou para mim.
“Tchauzinho!”
Engoli o desejo de cuspir na cara dela e desci as escadas, abri a porta da frente e corri.
“Por favor, que haja um trem, por favor, que haja um trem”, entoei entre os dentes ao atravessar a rua até a estação. Mas não havia nenhum sinal de trem, e não haveria pelos próximos dez minutos, de acordo com o painel. Fui até o canto da plataforma e me apoiei na parede. Não chorava daquele jeito desde pequena. Soluços engasgados e sonoros faziam meu queixo bater. E eu só conseguia pensar que amava Joe. Como se isso bastasse.
O trem passou pelas estações, mas nem percebi. Sentia-me desencarnada. A menina de rosto inchado e mangas molhadas não era eu. Era alguma outra garota, burra e iludida. Quem quer que tenha dito que era melhor amar e perder do que nunca ter amado estava a) falando besteira e b) presumindo que o amor era uma via de mão dupla. Eu tinha direito de reclamar por ter perdido o que nunca tive? Finalmente percebi o que todos sempre souberam. Joe não me amava, nunca tinha amado. Nunca amaria.
Esse pensamento ativou mais uma explosão de choro, e eu expeli uma bolha imensa de muco. A falta de lenço me obrigava a abaixar a cabeça e limpar o rosto na parte interna do casaco. Fiquei grata por estranhos não falarem uns com os outros em Londres. A não ser por Kate, no ônibus. Lembrei-me do comentário dela sobre amores de verão. Até uma completa estranha sabia que Joe não dava a mínima para mim. E eu tinha chegado a pensar em ir para a faculdade dele! Graças a Deus eu ainda não tinha feito nada a respeito.
Puxei meu cabelo e emiti um estranho ruído.
“Com licença, posso ajudar?”
Cerrei meus olhos inchados para uma mulher de tailleur. Ela estava na minha frente e se segurava na barra superior de apoio. Tinha a testa franzida de preocupação. Eu devia estar com uma aparência sem igual: chorando, balançando e emitindo estranhos ruídos animalescos. Ela tinha sido bem corajosa, pensando bem. Balancei a cabeça e, quando ela continuou ali parada, resmunguei: “Estou bem”.
“Tem certeza?”
Dirigi um olhar a ela, que voltou para o lugar.
Não havia nada que alguém pudesse fazer. Muito menos eu.
Comecei a chorar outra vez quando finalmente cheguei em Brighton. Chorei o Nilo inteiro. Quanta negação.
Era quase meia-noite e o centro da cidade estava agitado, cheio de casais afetuosos que anunciavam para mim a alegria de sua vida sexual. Lembrei-me de minha demonstração pública de afeto com Joe na estação Victoria. Não tinha significado nada para ele, portanto, talvez não representasse nada para nenhuma daquelas pessoas. Então não precisam parecer tão convencidos, pensei amargamente quando mais um casal passou, um com a mão no bolso traseiro da calça do outro.
Fiquei do lado de fora da estação, choramingando e pensando no que fazer. Não podia ir para casa. Mamãe e papai tinham deixado dois recados irritadíssimos na minha caixa postal. Mandei uma mensagem dizendo que estava bem e que ia ficar na casa da prima de Ashley outra vez, mas algo me disse que não seria o suficiente. Eu, obviamente, não podia ligar para nenhuma das meninas. Rich e Jack? Seria estranho demais. Suspirei. Teria que ser Ollie. Eu precisava dele. Ele entenderia.
Por sorte, o som da voz dele ao atender o telefone liberou torrentes de lágrimas frescas, de modo que ele ficou ocupado demais sentindo pena de mim para se sentir usado. (De qualquer forma, Ollie não estava sendo usado. Ele agora era meu amigo mais próximo. Ollie, meu melhor amigo! A ideia era espantosa, como quando você está vendo alguma coisa na tv e percebe que aconteceu na rua ao lado.) Perguntei se podia ficar na casa dele. Ollie disse que sim — até se ofereceu para me buscar, mas respondi que precisava de ar. O que até era verdade, mas, acima de tudo, precisava dar um jeito na aparência. Chorei tanto que devia estar com cara de quem estava tendo uma reação alérgica. Entrei em um McDonald’s que estava cheio demais para que alguém notasse que eu só queria usar o banheiro e passei cinco minutos jogando água fria no rosto e passando quantias generosas de hidratante. Ajudou um pouco. Eu continuava horrenda, mas quem se importava?
Quando cheguei à casa de Ollie — ele morava a uns bons vinte minutos a pé da estação — eu já tinha me recomposto o suficiente para cumprimentar os pais dele, que estavam vendo tv na sala. Obviamente não eram do tipo que dormia cedo. Estava torcendo para não ter que encontrar com eles, mas a mãe sorriu solidária e não puxou conversa, então acho que Ollie devia ter dito que eu precisava de um lugar para ficar. Os pais dele eram bem tranquilos em relação a visitantes do sexo feminino, do contrário, como ele poderia manter a impressionante reputação de conquistador?
Ollie me levou até a cozinha, que continuava aconchegante e laranja como sempre. Puxou uma cadeira da mesa.
“Sente.”
Sorri, agradecida, exausta demais para conversar. Olhei em volta enquanto ele preparava um chá. Quase nada tinha mudado desde que éramos pequenos. A geladeira continuava coberta com parafernálias de Ollie: desenhos antigos, avisos escolares, boletins. Na parte inferior havia um desenho de dois bonecos grandes e um pequeno, com braços longos e finos. Estavam todos de mãos dadas. Abaixo, um adulto havia escrito: “Minha família, por Oliver Glazer, cinco anos”.
Apontei o desenho.
“Que orgulho! Ser filho único é assim. Quando Dan entrou na escola tive um ataque porque achei que mamãe e papai preferiam os desenhos dele.”
Ollie sorriu.
“Pois é. Eles tentaram ter outros filhos depois que Zac morreu, mas não conseguiram. Teve uma época em que eu queria muito um irmão.”
Meu sangue gelou. Eu estava em choque.
“Sinto muito, Ollie. Esqueci complemente de Zac.” Pus a cabeça nas mãos. “Isso é que é ser egocêntrica.”
“Não se preocupe”, ele disse suavemente, com uma xícara de chá em cada mão. “Vamos lá para cima?” Peguei a bolsa e o segui até o quarto, ainda xingando a mim mesma mentalmente. “Você vai ficar no quarto de hóspedes”, ele disse. “Mas venha conversar comigo antes.” Ele abriu a porta do quarto com o pé e acenou com a cabeça para que eu entrasse. Sentei na beira da cama, sentindo-me desorientada e folgada. Ele me entregou o chá e sentou ao meu lado.
“Então. Não teve um bom dia?” Tomou um gole barulhento de chá, como uma velha fofoqueira.
Emiti uma espécie de ruído. Ri sem rir.
“Pode-se dizer que sim.” Torci as mãos no colo e contei o que tinha se passado, e ele ouviu sem fazer comentários. “Sou uma completa imbecil”, eu disse, ao concluir. Abaixei a cabeça para as mãos. “Sou tão idiota.”
Ollie olhou para a caneca vazia.
“Não”, ele disse. “Você não é idiota.”
“Mas todo mundo sabia que Joe não estava nem aí para mim.”
Ele deu de ombros.
“Poderíamos estar enganados.” Ele levantou os olhos até os meus. “Nenhum de nós vai ficar feliz porque estava certo.”
Dei um sorriso triste. Fiquei grata por ele não fingir que alguém tivesse achado que houvesse um futuro com Joe. Ele me envolveu com o braço e me puxou para perto.
“Vem cá.” Deitei a cabeça no ombro dele. “É chato o que aconteceu, mas você merece coisa bem melhor, linda.” Ollie soava quase furioso. Sorri para ele, que olhou para mim, contraindo o queixo.
E então Ollie estragou tudo tentando me beijar.
Dei um salto, como se tivesse sido picada por uma abelha.
“O que você está fazendo?”
“Desculpe. Desculpe.” Ele pareceu arrasado. “Merda, Sarah. Interpretei mal. Por favor, sente.”
“Não posso lidar com isso agora.” Peguei minha bolsa e, pela segunda vez no dia, saí correndo aos prantos da casa de um menino.
Corri por alguns minutos, então sentei na mureta do jardim de alguém para recobrar o fôlego e assimilar as coisas. Tinha sido um dia estranho. E terrível. Nada parecido tinha acontecido comigo antes. Eu nunca tinha flagrado o menino por quem estava apaixonada gemendo em cima da pessoa que eu mais detestava no mundo. Nunca tinha sido beijada por alguém que pensava que fosse meu amigo. Era assim então? Corações partidos, traições e decepções? Sempre desdenhei daquelas meninas da escola que ficavam noivas dos namorados, o que para mim não parecia nada além de uma palavra e um anel de bijuteria no dedo certo, mas de uma hora para a outra passei a entender por que elas faziam aquilo. Era como uma armadura, apesar de ser uma porcaria de uma armadura que não funciona. Eu só tinha ouvido falar de um desses casais que realmente tinha se casado — mas eles eram religiosos, então era normal que se casassem jovens.
“Ei!” Uma voz irritada gritou acima de mim. Olhei para o alto e vi um senhor esticando a cabeça para fora de uma janela no alto. “Vai ficar sentada aí a noite toda?”
O que ele achava que eu ia fazer — usar drogas no muro dele? Exaurida, levantei e comecei a andar na direção de casa. A situação não era desesperadora ou dramática o suficiente para que eu vagasse pelas ruas até o amanhecer. Além disso, estava um frio horrível.
Mamãe e papai foram para cima de mim assim que coloquei a chave na fechadura. Devem ter ficado esperando na sala, para que estivessem adequadamente irritados quando eu entrasse.
Mamãe me olhava com um de seus olhares patenteados que diziam “Quem você pensa que é?”, enquanto papai praticamente espumava de raiva.
“Onde você estava?”, ele esbravejou.
Uau. Quanta originalidade. Revirei os olhos e passei por eles para subir as escadas, mas meu pai me agarrou pelo pulso.
“Nem pensar.”
Deixei a cabeça cair para trás e suspirei pesadamente para o teto. Não tinha a menor condição de ser importunada com aquilo.
“Só quero deitar. Podemos conversar de manhã?”
“Nada disso, porra”, disse meu pai, que só falava palavrão quando estava muito irritado. Algo do tipo: “As regras são minhas, mas trato você como igual”. Ou alguma bobagem do tipo.
Então minha mãe entrou na conversa.
“Nós não merecemos ser tratados assim. Você não pode simplesmente sair sem pedir — não enquanto mora aqui. Tenha um pingo de respeito.”
Eu não aguentava mais. Simplesmente não aguentava levar uma bronca depois de tudo o que tinha acontecido. Soltei o braço da mão do meu pai.
“por que vocês não me deixam em paz?!”, gritei, e pela primeira vez na vida saí espumando de casa.
“aonde é que você pensa que vai?”, meu pai berrou, sem se preocupar com os vizinhos. Virei de costas no fim da rua.
“Vou para a casa de Cass, tudo bem? Ou querem que eu escreva uma carta pedindo autorização?”
Minha mãe me lançou um olhar de desgosto.
“Deixe, Martin”, ela disse. “Sinceramente, não suportaria que ela ficasse em casa esta noite.”
“Nem eu”, rebati.
Então eu ia para a casa de Cass. Ela morava na esquina, por isso meus pais tinham me deixado ir. Se ela me deixaria entrar era outra história. Peguei o telefone da bolsa e fui até as últimas chamadas. Ela estava bem no fim da lista. Até semana passada nos falávamos quase todo dia. Cliquei no nome dela, mas caiu na caixa postal. Não me surpreendi.
“Cass, sou eu... Por favor, posso ir para a sua casa? Sei que é tarde e você provavelmente me odeia, mas peguei Joe na cama com a vaca da Mimi e não posso ir para casa... nem para outro lugar...” Fechei os olhos, consternada. O que Ollie estava pensando?! “Por favor, ligue de volta quando receber o recado.”
Ela ligou quando cheguei à casa dela.
“Onde você está?”
“Aqui fora.”
“Estou descendo.”
Não sei o que estava esperando, mas se era uma reunião alegre com promessas regadas a lágrimas de que jamais brigaríamos de novo, eu estava enganada. Cass abriu a porta e simplesmente ficou ali parada, olhando para mim com cautela. Eu realmente não conseguia me lembrar por que estávamos brigadas. Aliás, estávamos brigadas?! Quer dizer, não nos falávamos desde que eu tinha ido a Londres, mas foi Donna que me disse que ela estava chateada. Coloquei a bolsa no degrau, dei alguns passos na direção dela e a abracei. Foi uma aposta arriscada. Se Cass não retribuísse eu teria murchado e morrido ali mesmo. Teria morrido por causa desse dia de merda. Mas isso não aconteceu. Ela me abraçou. Uma deixa para a reunião.
“Por que estamos brigadas?”, ela perguntou, rindo e chorando no meu ombro.
“Eu estava pensando exatamente a mesma coisa.” Recuei e olhei nos olhos dela. “Cass, se fui uma péssima amiga, desculpe. Não tive a intenção.”
Ela balançou a cabeça, séria.
“Não, eu também fui péssima. Vamos esquecer. Foi um momento ridículo em uma amizade exemplar, e daqui a trinta anos vamos rir disto enquanto tomamos chá com bolo de abacaxi.”
Ri. Bolo de abacaxi era nosso código para pessoas velhinhas e senis, em homenagem à sra. Fieldhouse, nossa professora anciã de gastronomia no sétimo ano, que tinha obsessão por bolo de abacaxi. Em um único ano preparamos bolo de abacaxi quatro vezes.
“A cura natural, crianças!”, ela costumava dizer, brandindo uma lata de rodelas de abacaxi. “Tanta bromelina!” (Justiça seja feita — se bromelina aparecesse em algum jogo de perguntas e respostas, sempre ríamos.)
Lá em cima, no quarto de Cass, coloquei o pijama — ela já tinha se vestido — e deitamos. Cass tinha uma cama branca de plástico e uma coberta branca com uma foto impressa dela e de Adam mordendo a mesma maçã. Ela não colava pôsteres na parede — emoldurava-os e pendurava adequadamente. Sua escrivaninha era imaculada, o monitor e o teclado do computador não tinham um grão de poeira, os tacos do chão eram lustrados e a coberta tinha marcas de aspirador. Resumindo, ela era maníaca por organização. Perfeccionista era seu nome do meio, ou seria se não fosse Marjorie. (Um segredo de estado que só eu conhecia — acho que nem Adam sabia disso.)
Cass apagou a luz e ficamos deitadas no escuro. Era um alívio estar em uma situação familiar. Já tínhamos dividido aquela cama diversas vezes. Eu estava com um nó rígido de pesar e preocupação no estômago, e cada vez que pensava em Joe, Ollie, mamãe ou papai tinha que me concentrar para não chorar, mas ficar com Cass era bom.
“Quer conversar sobre isso?”, ela perguntou, com a voz baixa.
Praticamente não falamos nada uma para a outra desde o momento do bolo de abacaxi. Acho que Cass estava esperando para me fazer perguntas sob o véu da escuridão. Ela sabia que eu odiava chorar na frente dos outros, apesar de que expelir uma bolha de muco em um vagão lotado do metrô faz você reconsiderar a relutância em chorar na frente de uma amiga.
“Quero, mas pode ser de manhã?”, bocejei. “Só quero dormir.”
“Claro que pode.” Ela acariciou minha testa. “Boa noite.”
Eu teria respondido, mas não consegui. Estava tentando chorar em silêncio. Joe costumava acariciar minha testa daquele jeito.
“Tudo bem?”
“Hã-hã.” Inspirei um ar relaxante, porém nojento e mucoso pelo nariz e expirei pela boca, em seguida cedi à exaustão e dormi.