– Frailty, thy name is woman!
Shakespeare: Hamlet, Prince of Denmark
Escurece e a temperatura desceu seguramente. A pirâmide de tijolos diluiu-se na treva e as árvores alargaram a sombra esparramada, continuando a nódoa imensa do escuro que se alastra. Na porta negra da casa, Titius aparece. Um instante detém-se nos limites do domínio. Depois, resolutamente, segue a marcha silenciosa, rápida e sinistra.
É um escorpião adulto, cor de ouro velho com laivos do matiz carregado de roxo-terra. Os quatro pares de patas movem-se rítmicos e as quelíceras terminadas em pinças didátilas abrem sua perpétua possibilidade agressiva. Tityus bahiensis, Perty, avança no orgulho os seus oito centímetros totais de tamanho, a cauda em seis nós marcados, o último sustentando o curvo e agudo espinho do veneno implacável. Assim correndo sem rumor, as patas na cadência impecável, lembra uma gôndola de doge de Veneza, a popa erguida na curva senhorial guardando a arma invencida. Nos palpos fixa-se a mancha castanho-negra de sua ancestralidade, o signo heráldico inconfundível.
Oito centímetros!...Titius mata de doze a quinze pessoas por mês no Brasil. Fere centenas. O pequenino monstro obrigou a mobilização científica para combater-lhe o veneno cruel, um soro preparado que se obtém imunizando cavalos com as glândulas trituradas do lacrau ameaçador. Não foi possível diminuir-lhe a dinastia inesgotável. Minúsculo, frágil na relação da massa, cabendo numa caixa de fósforos, espalha um terror contagiante como a presença real de um explosivo.
Esplêndida máquina de guerra! Nervoso, mecânico, as articulações bronzeadas imbricam-se como peças de uma armadura dourada, tateiam, como vanguardilheiros, as tenazes de cobre novo, cortando invisíveis inimigos com as lâminas afiadas, as oito patas incansáveis ganham terreno num ímpeto irresistível e firme de patrulha vitoriosa, custodiada pela torre rostrada e móbil que se alteia na retaguarda, vigilante e fiel, pronta para o golpe sem mercê.
Ninguém o olhou sem o arrepio do medo e o enfrentou sem receio. Titius conserva uma fidelidade obstinada e cega à ferocidade instintiva e bruta dos animais primários. Não tem aliados, amigos, companheiros. Na vastidão da terra inteira só enxerga adversos a combater. Os da própria espécie, do mesmo tipo, são seus contrários. Encontrando-os, batalha! Lembra aqueles hussardos de Napoleão que só sabiam dizer: – Nous battre! Nous battre! Nous battre!...
Lutará contra toda criatura viva até sucumbir. Nada o deterá nem o amedrontará seja qual for a proporção. Descerá o aguilhão contra um homem ou uma alimária, uma barata que lhe dará almoço e asa de Dondon que lhe dará morte. Não recuará, feroz, atrevido, impiedoso, primitivo.
Não conhecerá jamais tranquilidade, amor, família. Não chegou a ver o pai. Não verá os filhos. Está condenado a morrer como seus avós milenários nas manhãs da história do mundo. Morrer matando. Vive só. Sempre viveu. Matou quantos irmãos pôde e devorou-os. Na noite em que se reunir para junção amorosa, primeira e desejada, será despedaçado pela fêmea que o encontrará, como a Sansão, enfraquecido pelo espasmo inicial e derradeiro.
Aí vai Titius movendo as oito patas cadenciadas, pinças adejantes e belicosas, o “telson” agulhante, dentro da noite mansa...
Soberbo aracnídeo! A vaidade genealógica dos homens indica o Negus da Etiópia que descende do Rei Davi, reinando onze séculos antes de Jesus Cristo. E o Imperador de Japão, “tenô” no século sétimo. Nada mais anterior. Titius descende do escorpião inicial no Siluriano Superior. Foi o primeiro animal provadamente elo primário da cadeia na espécie organizada. Foi o primeiro precursor da vida animal sobre a terra. Foi o primeiro que ergueu o tórax, abandonando o mar primitivo e calcando as praias ainda desertas de vegetação. Quem ostentará brasão semelhante? Seu avô magnífico era grande e forte. Titius é fraco e mínimo. Mantém, porém, ciumentamente, a mesma coragem cega, bestial, destruidora, inútil. Não mudou fração de miligrama no potencial do instinto intratável e feroz. Se o avô longínquo aparecer-lhe na imponência de sua tonelagem maciça, Titius atacá-lo-á com sua lança na mesma insensibilidade de um desconhecido.
Sem simpatias na terra, com a utilidade precária e dispensável de preador de insetos, espalhando pavores e cutiladas, o escorpião ganhou as honras de denominar uma constelação do zodíaco e lá está, resplandecente, entre a Balança e o Sagitário, nas alturas do firmamento estrelado.
No Norte o chamam lacrau, rabo-torto no Maranhão, e no Sul, escorpião. A lacraia não é o feminino de lacrau, que no Nordeste é a centopeia, surrupeia, o repelente quilópode que Dondon dividiu em duas metades geometricamente certas e engoliu, deliciada.
Quando Jasão domou os touros de bronze do Rei Eetes da Cólquida, pai da amável Medeia, e semeou os dentes do dragão que Cadmo vencera, era uma noite de luar sereno. Do seio da terra foi nascendo uma multidão de homens com suas lanças, espadas, escudos redondos, elmados de bronze reluzente. De pé e em fúria desafiante, gritavam que os conduzissem à batalha, mostrando-lhes o inimigo, excitando-se com o bater das lâminas nos escudos, erguendo as feias cataduras, sedentas de sangue. Atiraram-se uns aos outros num combate impetuoso, tomados de cólera e de loucura. Foram caindo um a um e o último, ferido de morte, agitou na mão agonizante a lança invicta gritando: “– Vitória! Fama imortal!” E morreu também. O luar era doce e calmo. Os guerreiros nascidos dos dentes do dragão tinham vivido apenas uma hora. O feroz e ardente combate fora o único prazer que tiveram em sua curta existência belicosa. Titius, de raça anterior a todos os dragões, Velocino de Ouro e Argonautas venerandos, nasceu simbolicamente de um dente, de um canino pontiagudo e resistente, do dragão de Cadmo.
A alegria única de sua breve vida é a batalha, ele contra todos, até sucumbir sem dizer: “ – Glória! Vitória! Fama imortal!”
O guabiru Gô, ratazana famélica, teve a honra de importunar ao Imperador Napoleão mas Titius foi além. Mordeu Órion e o matou por ordem de Diana. Não podia a casta deusa escolher mensageiro mais indigno da missão e que mais sinceramente a cumprisse, matando o caçador olímpico com o veneno de sua agulha fatal. Ambos, morto e matador, tornaram-se constelações.
Nunca um ente vivo roçou Titius, para não ser agredido. Por um ato reflexo, insopitável, sacode a lançada até nas folhas secas que o tocam.
Afrontando o antagonista, Titius segura-o com as tenazes aptas e próximas ao assalto e depois com o dardo apontado na cauda erguida. Vem o ferrão para imobilizar e depois o lacrau o aprisiona com as pinças cortantes, para dilacerar.
Recordo minha aproximação, em dezembro de 1944, com ele. Calçando uma chinela tive a exata impressão de ter calcado uma brasa viva. Sacudi o pé instintivamente e o escorpião apareceu, já longe, afastando-se ligeiro da zona em que agira. Matei-o ignominiosamente com uma chinelada. A dor, aguda e queimante, irradiava-se do calcanhar. Antes dos socorros empreguei, numa verificação acurada, os dois remédios clássicos, aconselhados por pessoas da família, incluindo magistrado eminente, desembargador erudito. Subi para mesa de estudo, isolando-me do solo. A dor deveria ceder mas não cedeu. Continuou terebrante. O outro recurso foi transformar Titius num emplastro (Similia similibus curantur) e pô-lo na parte molestada pelo seu ferrão. Nenhum efeito sedativo. Eficiente foi mesmo uma ampola do sérum feito no Butantã. No dia seguinte ainda coxeava. À tarde nada sentia. Repito não ter percebido a pontada da agulha e sim a sensação perfeita de ter esmagado no calcanhar uma brasa, queimando-me inadvertidamente.
O processo de alimentar-se é idêntico ao dos caranguejos. As patas armadas são os prestantes talheres, levando o bocado à boca. Não podendo sugar, come aos pedacinhos, pacientemente fragmentados pelas pinças. Daí o preferir comestíveis compactos, os besouros de cascas estalantes como castanhas assadas e as polpudas e globulosas aranhas de barriga redonda e farta. Os observadores afirmam a impossibilidade da criação conjunta de lacraus. Vão-se mutuamente eliminando e resta um último, último dos que se achavam com ele, soma da consumação total.
Quando se locomove o faz de pinças abertas e a cauda alta, ferrão em riste, pronto para ação imediata. É uma fortaleza móvel que assombraria o rei de Liliput, inexpugnável na relatividade das forças.
Vi-o caçar baratas, as vermelhas de Blata, as escuras, as negras, as chatas, as enormes que aparecem em certas tardes de inverno, de asas caspentas, parecendo invencíveis.
Habitualmente, tem o pudor de alimentar-se em público como o negro rei do Porto Novo. Volta ao esconderijo com a presa, já morta, segura nas garras como na espetacular fama do gorila raptador de mulheres. Vai saciar-se na meia treva do seu salão, sozinho como sempre.
Na noite branca de luar, um luar convencionalmente da Cólquida, Titius caminha em jejum e sem fome, em rumo inflexível, numa reta teimosa. Debalde por ele passam as sombras apetecíveis da caça habitual. O ferrão está imóvel no alto da torre aculeada. Os insetos rasteiros ouvem o surdo rumor igual da marcha obstinada do lacrau temível.
No batente da calçada esboroada há um aclive que facilita a subida. Titius galga, infatigável, a ladeira e agora as patas retardam o movimento acelerado, as quelíceras se estendem, abertas, e o ferrão se acurva, numa aproximação perigosa. Desce, lento, outro escorpião, um tanto maior, da mesma cor, feitio e armas. O espaço diminui entre ambos e quando Titius põe o primeiro par de patas no bordo do cimento espedaçado, o outro lacrau o ataca, aproveitando o possível desequilíbrio.
O aguilhão resvala no embate da couraça fulva de Titius, que reage, atirando o bote longo, indo para perto, segurando o efeito. O outro desviou-se e avançou com as tenazes vibrantes, o ferrão quase paralelo à cabeça enfurecida. Movimentam-se não em círculos, possíveis pela delicada articulação dos anéis torácicos, mas em ângulos retos, como num jogo de espadas.
Bruscamente, enlaça-se o duplo par de pinças num aperto rangido e os ferrões batem, como punhaladas ou aríetes, os dorsos lustrosos, escavando, procurando os pontos sensíveis à penetração. Iniciam uma valsa lenta, de amplos rodeios, levando ora um e ora outro a direção do par. No palmo quadrado da velha calçada o duelo atinge intensidade imprevista, vantagem rápida quando Titius empurra o adversário contra uma saliência diminuta que representaria esboço de colina sustentadora do prélio. Ali, comprimido, frente a frente, além das marteladas dos aguilhões que batem e raspam como pedras de catapultas, as tenazes se firmam, em puxões decisivos, como numa tentativa de desarticulação de todo membro agressor.
O lacrau desafiante abandona a disposição frontal e vai devagar apoiando-se à saliência, ficando de lado e obrigando Titius a segui-lo na posição. Agora voltaram ao frente-à-frente ao longo da elevação protetora. Quase ao final da tomada de postura a tenaz do inimigo se liberta numa fração de segundo e desce, fulminante, sobre a primeira pata direita de Titius enquanto a outra garra sustentava o mortificante amplexo. Há apenas um perceptível estalido que Fu, o sapo do tanque, ouvindo, compreendeu e fugiu. A pata de Titius caiu no cimento como um pedaço de palito quebrado.
Mas para este golpe não era possível manter imóveis as duas pinças de Titius com uma só tesoura. Antes que o adversário se recompusesse, o lacrau arrebatou suas quelíceras da pressão diminuta e prendeu-as ao primeiro casal dianteiro do duelista. Apertou desesperadamente e partiu-o, rente ao terço, como numa foiçada de cegador.
O outro lacrau perdeu alguns quintos de segundo com as pinças desocupadas. Quando procurou replicar, escolhendo o local, Titius tesourava violentamente a articulação das tenazes, as lâminas fincadas na cartilagem que as flexiona e mantém. Uma pinça tombou, dobrada como uma haste. A outra não tinha a força de defender-se contra as duas, duplicadas pelo furor de Titius. O coto se erguia, inútil, numa tentativa de auxílio. A segunda pinça cedeu, curvada para baixo. O inimigo estava condenado a morrer mesmo se escapasse aos lances terríveis de Titius. Sem as pinças não mais podia alimentar-se.
Era apenas fugir. Fugir numa defesa contínua, lançando-se estoicamente contra as lâminas do lacrau vencedor. Os ferrões apenas se agitavam, riscando as carapaças convulsas pela batalha. Estariam ambos imunes ao veneno ou este teria unicamente efeito atordoador em quantidades não possuídas no momento do encontro.
A derrota do lacrau da calçada se concluiu pelo despedaçamento regular, tortura dos cem pedaços, com regularidade, ritmo, segurança anatômica das incisões cruéis, junta a junta, num lento amontoamento de restos palpitantes. Restou unicamente o corpo fusiforme, contraído, a cauda ainda recurvada numa convulsão derradeira de ataque imaginário.
Depois tudo cessou. Titius triturou pernas, pinças, mas parecia não aproveitar o cadáver como alimento. Cumprira unicamente uma regra indispensável na noite branca, sua primeira noite de amor.
Por ali, invisível e pressentida, estava a fêmea disputada e para ela marchara o lacrau cujos destroços sujavam a calçada de cimento sujo.
Por que se encontram lacraus macho e fêmea? Que irradiação olorosa, penetrante e única, apenas percebida naquela noite clara, embriagando Titius, arrastando-o ao encontro numa adivinhação dos sentidos sem localizar-se? Nunca mais se repetirá aquele perfume, som ou clarão misterioso que se reflete em todo seu corpo, fazendo-o vibrante como uma folha às soltas ventanias de agosto. Uma vez apenas a onda irresistível o envolve em sua força capitosa, em seu amavio penetrante, em sua delícia perceptível e eternamente nova...
A fêmea apareceu logo depois, saída dentre dois tijolos, cauda bem alçada, quatro pares de patas finas e firmes erguendo o corpo esguio, onduloso, magnético, um tanto mais alto que Titius, trêmulo no minuto da iniciação. Estendia para ele as quelíceras como no apelo à valsa nupcial, bailado de amor, dança dos sexos, excitação prévia para a união que nunca mais teria seguimento.
Titius atendeu ao convite das pinças femininas. Mas não ficam apenas enlaçadas, num doce aperto sedutor, transmitindo o desejo informe, incomprimível que os agita e sacode. Erguem as quelíceras para o alto, numa oblação, oferta aos deuses obscuros da espécie pelo mistério que vai realizar-se, terrível e jubiloso, para a perpetuidade da conservação.
Começa o bailado das núpcias. Nunca Titius bailou e não bailará nunca mais. Pinças juntas, numa união afetuosa, patas cuidadosas evitando todos os obstáculos do terreno escuro e sarapintado de manchas prateadas do luar, dançam, longa, delirante, apaixonadamente.
Pela primeira vez Titius está perto, enlaçado com alguém e não agride, não luta, não fere. Está vivendo, consciente ou inconsciente mas ébrio de fome sexual, deslumbrado da sensação inconcebível, o penúltimo ato de sua vida de ferocidade, bruteza e selvageria profissionais. Está dançando.
Ninguém assiste ao assombroso espetáculo de Titius bailarino. Só o casal participante cumpre o rito daquela exibição maravilhosa de elegância, precisão, graça de maneiras, conhecimento impecável de um ritmo cuja melodia apenas eles dois ouvem e acompanham, sentimentais.
Se disserem a Licosa, a Gô, a Dondon, a Sofia, ao povo de Quiró, de Blata, à concordante Vênia, à tropa de Musi, ao passageiro guaxinim, ao negro Catá, à rainha Ata, ao grilo, às aves, à cigarra, aos besouros incontáveis, ao beija-flor, às mariposas, libélulas e efêmeras que Titius dançou antes de morrer, certamente não acreditarão. Não podem, não devem, não é possível crer.
A coreografia é em forma de estrela, estrelas indefinidas de raios curtos que continuam e confundem, transformados em séries de retas. Pinças no ar, bem altas, os corpos separados como nos bailados populares e as mãos juntas, vão os dois para direita até que um deles toma a orientação e torna à esquerda durante três segundos porque a direção mudou e foi depressa substituída.
Há mesmo a ilusão de um volteio donairoso mas realmente trata-se de uma ida teimosa e de um recuo gentil, sempre unidos e conjugados, fiéis na emoção.
Mas esta dança incrível não é somente cerimonial de matrimônio. Já constitui desfile, rumo perceptível ao lar que a penumbra guarda para o segredo do amor, estranho e sádico. Cada impulso é dado num rumo que o par corrige e leva, doce e firmemente, para o horizonte inevitável. Parece que alguém sonha evitar o indivizível e o fatal, mas é compelido à satisfação do destino escuro e determinador. Pouco a pouco o casal escorrega, bailando, pelo aclive que Titius subiu para bater-se e agora desce numa alegria movimentada. Atravessam o terreno até o tanque que a lua prateou. Dura tempo o percurso com a variedade de planos consecutivos de controle e direção sutis. Para lá e para cá, as tenazes são mãos carinhosas. O par ultrapassou o tanque luminoso. Ganha, nas idas e vindas amorosas, a sombra da mangueira. Infatigáveis, os bailarinos seguem o desenho encantador, afastando-se na pista que iam pisar, voltando a ela, numa imutável atração poderosa.
Quanto tempo dura o bailado? O luar esfriou a noite branca. Titius continua nas marchas e recuos intérminos mas certamente indispensáveis. Estão perto da pirâmide de tijolos. Mais figuras complicam a exigência da coreografia atordoadora. Vão os dois para longe e logo regressam ao que pareciam abandonar. As pinças brilham num lampejo da luz serena. As folhas das trepadeiras prolongam as nódoas sombrias que bordam o chão. Algumas atitudes supremas se sucedem, lógicas. A dança cai num enlanguecimento que não afrouxa o apertar das tesouras, transformadas pelo amor em carícias. Brusca, sôfrega, imprevistamente, o casal desapareceu na boca da entrada da caverna.
Na tarde e noite seguintes Titius não apareceu. Exigências de lua de mel. Nem nas trevas subsequentes o grande caçador temerário voltou aos pontos de sua predileção.
A senhora Titius, sim. Veio à porta da mansão e saiu para caçar. Ninguém pergunta a um lacrau pelo destino do outro. O canto de muro contentou-se em verificar que o marido abandonara os amados recantos de presas abundantes. A senhora Titius, sozinha, soberba, tenazes abertas, cauda ameaçadora, caçava e regressava ao seu palácio na pirâmide de tijolos quebrados.
Podia ter havido comentários mas o mundo do canto de muro trata de seus interesses vitais e respeita idiossincrasias alheias. Quem havia de ir incomodar a senhora Titius? Seria uma quebra imperdoável da tradição sagrada à dignidade dos seus semelhantes ou dessemelhantes.
Três meses depois a senhora Titius atravessa o quintal com a imponência de uma escolta da Polícia Especial num carro de patrulha. Conduz no dorso vinte lacrauzinhos aprumados em duas filas fronteiras, as caudas enganchadas e a bateria das patas voltada para o exterior. Está orgulhosa como um elefante da corte ostentando no lombo palanquim de rajás. Caça para eles a carne tenra das baratas e distribui o botim em parcelas mimosas, sugerindo aprendizagem no manejo das pinças inábeis.
Dois meses além, a senhora Titius procura novo solar bem longe. Partiu para os lados remotos da velha calçada de cimento. Os lacrauzinhos dispersam-se, alargando continuamente as áreas de vida, já fortes, ousados, valentes e cruéis. Espalham-se porque os duelos surgiram e houve vítimas que valeram jantares. Ficaram dois, bem separados. Um além do mamoeiro, no caixote que hospedara Dondon. O outro na velha casa senhorial de Titius. Titius morreu! Viva Titius!...