Simples vida da cobrinha­-de­-coral

Vênia repetiu o gesto do Brás Cubas de Machado de Assis: balançou com a cabeça. Afirmava mudamente estar vendo uma das coisas vivas mais bonitas em toda sua existência.

Todo cenário vibrou num estranho arrepio. Passou uma aragem súbita de espanto admirativo onde havia receio. Titius e Licosa estavam recolhidos porque era manhã de sol forte. Depois concordariam perfeitamente, embora com as restrições naturais ditadas por uma antiquíssima inimizade entre as respectivas famílias, escorpionídeos, aracnomorfas e colubrídeos.

Gô olhou de longe inteiramente de acordo, mas deliberado a evitar qualquer aproximação. Quiró dormia. Musi estava ciente mas desapareceu, temerosa. Fu, o sapo do tanque, comparou­-a às estrelas, mas meteu­-se na sua casa por via das dúvidas.

Era realmente linda. Sessenta centímetros reluzentes, escorregadios, ondulantes, brilhando à luz como uma joia. Sobre o fundo vermelho­-cinábrio corriam séries de um anel dourado entre dois de ébano. O focinho arredondado, a cauda longa e fina, os olhos grandes, a cabeça airosa, com uma faixa circular formando o pescoço, juntavam­-se à elegância flexível com que veio visitando o terreno novo, num esplendor magnético.

Perturbadora! Era uma Erythrolamprus aesculapii, batizada por Lineu e que o Doutor Guilherme Piso achara encantadora, anguis pulcher!

Que distância de Raca! A mesma de um mordomo do Rei Dagoberto para um marquês de Luís XV. As cores neutras da jararaca desapareciam, numa comparação imaginária, com a refulgente visitante, vestida de vermelho, ouro e negro, fina, rápida, nervosa, que nem parecia deslizar no solo e sim ondular no espaço.

Fez a volta e antes de roçar o tanque deparou uma patrulha de Blata que se dispersou, esperando a morte. Não colheu uma só, com surpresa para os seres; subiu, num donaire incrível, a pequenina colina de detritos e nesta desapareceu.

Depois seu nome derramou­-se no quintal num assombro. Era uma cobrinha­-de­-coral, veneno até no olhar. Mais fulminante, mais violenta, mais arrebatada que Raca. E misteriosa, porque não agarrou as baratas de Blata e nem olhou para o grilo que a devia mirar, curioso e atrevido.

Tudo neste mundo tem o seu ponto de fusão, de ternura, de acomodamento. Licosa mesmo era popular em certo ângulo. Titius é que destoava, porque se fizesse relações, pungir­-lhe­-ia a consciência da espécie a frase de seu longínquo tio­-avô de Londres que deixara de picar um colega e confessava, pesaroso: – We shook the family tree!

A cobrinha­-de­-coral espalhou pavor por todo canto de muro. Os animais devem possuir a ciência infusa dos predicados de todas as espécies. Não precisam exigir a exibição da ficha policial para conhecer das habilidades maléficas ou toleráveis do intruso ou visitante. Não há surpresas entre eles. Quem sucumbe sabe que apenas não foi hábil ou esqueceu conselhos de técnica escapatória ministrados pela experiência ancestral. Não há hipócritas, dissimulados, traidores, mentirosos. São claramente vívidos os temperamentos e a violência voraz dos saltos. A cobrinha­-de­-coral ficou sendo, de todos, o animal temido, implacável, fatal. Diziam que era aparentada com as mais cruéis cobras do mundo, as matadoras de milhares de seres no mundo das Índias.

Apenas a coral aparecia muito pouco. Deixava o monturo sem vestígios de sujos e nódoas na roupagem resplandecente. Atravessava o terreiro fazendo­-se brilhante, estreitando as curvas dos coleios riscados na areia, bem depressa, bem mais depressa que Raca. Assim ondulava mais, por necessidade ou faceirice?

Certo é que insetos, ratinhos fugiam à sua vista deslumbrante. E fugiam porque ignoravam como a coral fazia sua caça. De Raca não havia segredo. A coral, com tantos dias sem fazer uma só vítima, devia ser mais resistente à fome e caçar vultosamente, de uma vez, com requintes cruéis inteiramente inéditos. Sua incrível sobriedade justificaria o arranco famélico bem próximo.

Não são apenas magníficas as coisas ignoradas. São também mais temidas e respeitadas. O povo de Musi tomou­-se de tal terror que afrouxava a guarda para o lado de Raca. A jararaca ia engordando com o desleixo dos ratinhos. Temer por temer só se temia a cobrinha­-de­-coral porque estava demorando a provar que era cobra e cobra de veneno.

Ficava dias e dias metida nos buracos subterrâneos e deduzia­-se que preparava as câmaras para a reserva alimentar. Quando soasse a hora de sua investida, o quintal despovoar­-se­-ia. Só as aves teriam o direito de viver, constante das asas. Assim mesmo, delgada, sinuosa, leve, subiria aos ninhos para chupar os ovos e acabar com família dos xexéus, canários, lavadeiras e bem­-te­-vi.

Não se podia negar, pela conformação e cores, que a coral pertencia a uma família tradicionalmente agressiva e matadora. Cobra­-de­-coral mata e a vítima fica com todo sangue à flor da pele, vermelha como a atacante. Raca terminava logo sua façanha. A outra demoraria horas fazendo sofrer, brincando como gato com o rato ou o cavalo do cão que atordoa com uma injeção as caranguejeiras e as leva, inermes e vivas, para o seu ninho onde ficam com os ovos do vencedor na carne, alimentando­-os até a exaustão.

Quando a coral surgia, o silêncio era absoluto. Somente a aves fitavam, voando, a beleza insinuante da criminosa. Coincidiu sua estada com uma das viagens sentimentais ou predatórias de Raca. Espalhou­-se que a jararaca pusera­-se a salvo do implacável veneno de sua opositora. Até Raca estava amedrontada. Só o grilo, heroico, soltava, todas as noites, seu cântico de valentia e de sonho, desafiante, solitário, imperturbável.

Desnorteante era a dieta da coral. Todos os quitutes disputados a deixavam indiferente. Nunca se precipitou sobre um camundongo ou uma baratona substancial, rica em ácido fórmico, estimulador. Desprezava os frutos maduros, abertos e fáceis, no chão à sua passagem. Nunca animal algum merecera tanta admiração e determinara tanta desconfiança. Não feria, não matava. Essa exclusão valia a certeza de perversidades adormecidas e de fúria desmedida. Pensava­-se que qualquer anoitecer agrediria Raca ou subiria à mangueira para atacar Sofia. Gô, de frio cinismo que chegava à valentia petulante, nunca mais pisou no quintal. A súbita ausência da jararaca permitia o delírio das suposições mais trágicas.

Vez por outra, inalterável de elegância vistosa, a coral furava para a brecha do muro, espalhando as cores inesquecíveis do negro, ouro e vermelho rutilantes.

Num começo de noite o mais novo dos filhos de Musi desgarrou­-se da manada fraternal. Era um ratinho de dois centímetros, olhinhos miúdos de contas negras, patas róseas de enfeite de bolo, focinho curioso, com os fios delicados de um bigodinho incipiente, cauda de seda, vestido de uma penugem cinzento­-clara, macia, suave, tentadora. Entalado entre um degrau e o rebordo da parede, o ratinho deparou a cobrinha que regressava. Encolheu­-se soltando o guincho de despedida e lástima. Believe it or not, a coral nem o olhou. Deslizou, faceira, fazendo relâmpagos com o traje festivo e voltou para montureira residencial. Inacreditável!

Imagine­-se quando esta reserva paciente e falsa de contenção e alheamento esgotar­-se e a coral retomar a legitimidade indomável dos seus golpes sem mercê... A expectativa lembrava a de um condenado que assistisse à vagarosa verificação dos instrumentos de tortura, feita pelo carrasco. Antes a violência lealmente exercida que uma atmosfera opressiva de ameaça constante, envenenadora da alegria, diluindo a vontade de viver.

A verdade era outra. A cobrinha­-de­-coral não faria mal a ninguém. Nunca fez. É uma opistoglifa ou opistoglifodonte. Seus dentes são implantados em posição dificilmente preadora. Não os tem perfurados pelos canais e sim um simples sulco onde a peçonha escorre. Não serão, realmente, capazes de função inoculadora. Têm veneno mas inoperante. É preciso que a própria vítima se disponha a ajudar a picada, pondo­-se em situação rara para a coral fincar­-lhe as presas posteriores, feitas para outras finalidades. Ficam atrás em vez de posição anterior como das cobras venenosas. Sabem elas de sua relativa inocuidade e fogem dos homens e dos animais que as podem molestar, com maior segurança que esperar o revide. Daí a escolha da residência subterrânea, guardada pelo anteparo das imundícies, dificultando o acesso. Daí a rapidez da marcha, defesa instintiva para evitar encontros onde não seria, provavelmente, a vencedora. Daí a vida retirada, pouco visível, afastada das provocações que a sociedade do canto de muro oferece na convivência de tantos desejos e vontades fortes. Não é da família das corais peçonhentas, as Elapídeas, a cujo seio pertence a Naja oriental, Naja hannah, matadora de homens, rainha das jângalas do Hindustão. A cobrinha­-de­-coral, que apareceu no canto de muro, possuía apenas o indumento semelhante, imitação criminosa que lhe rendia, não os proveitos da caça fácil, mas a irradiação temerosa de impossível malefício.

As Elapídeas, sim, têm os dentes plantados na frente do maxilar, imediatos e prontos para ação inoculadora. São proteróglifos, como dizem os herpetologistas que as estudam, dentes dispostos perigosamente na parte anterior, hábeis para a injeção fulminante da peçonha. A cobrinha­-de­-coral era uma simples espalhadora de terrores inofensivos como aquela borboleta de Rudyard Kipling que ameaçava acabar com o mundo se batesse o pé.

Esquivando­-se do rumor, desviada e furtiva, o suntuoso colorido revela sua presença, fixando atenções desagradáveis e perseguidoras. Quando Raca se poupa aos perigos atalhando caminhos e dissimulada nas tintas pouco sugestivas do seu uso, podendo ocultar­-se com relativo êxito, a cobrinha­-de­-coral atrai a curiosidade como se fosse um sanfoneiro ou trouxesse campainha atroadora na ponta do rabo. Conspiram contra sua tranquilidade e segurança pessoal os pigmentos do traje, a melanina negra, a xantina amarela, a eritrina vermelha, denunciando­-lhe o vulto ondulante, ligeiro e flexível, indisfarçável.

Como Sofia é a mais inclinada aos exercícios especulativos da meditação, em suas estiradas horas silenciosas, creio que dedicou à cobrinha­-de­-coral momentos de alta, nobre e desinteressada indagação. Examinaria a razão biologicamente útil da sua simulação, arremedando as cobras­-de­-coral verdadeiras na posse projetora do veneno.

Em dado momento, uma dada espécie modificou seu pigmento por causas externas e também internas, predominando nestas a força inconsciente e poderosa da imitação. A coloração escarlate daria uma aparência defensiva de efeito positivo. Não apenas o valor ofensivo e sugestionador do vermelho mas também a imagem das corais legítimas, semeadoras de mortes. Com as armas de Aquiles Patrolo afugentou os troianos. O processo mulativo para estas falsas corais influiria nos hábitos? As corais legítimas não são agressivas e sim evitam as ocasiões de luta. Para a inoculação do veneno será preciso morder maciçamente porque a peçonha está nos últimos e não nos primeiros dentes. Esta permanente fixou­-se nas falsas corais, sempre opisto, posterior, e não prótero, anterior, quanto à situação da cavidade ou sulco receptante, glife, nos dentes, odontos. Por isso a verdadeira coral é proteróglifa e a falsa epistóglifa. Esta distinção substancial e decisiva junto à quase identidade dos pigmentos exteriores, na parte visível ao inimigo, talvez consista no melhor argumento para a defesa das falsas corais, não variantes de um ramo único primitivamente mas vítimas conscientes e obstinadas do mimetismo que se tornou coloração normal com o tempo. Foi um castigo parecido com o camponês russo que vestiu a pele do lobo para assaltar um rebanho e furtar a ovelha e não mais conseguiu desvestir o disfarce. Ficou sendo lobo, um lobo inferior, falso lobo, o resto da existência.

São raciocínios de coruja desocupada, tendendo explicar a melancólica existência da linda cobrinha­-de­-coral, fugitiva e apavorada durante os dias de sua simples vida.