Reino de Ata

As formigas são tão numerosas aqui, que são chamadas pelos portugueses, Rey do Brasil.

Marcgrave (1644)

Ponho três saúvas na minha unha. A rainha Ata, imóvel na sua sala de trono, é quase do tamanho do meu polegar.

Faço questão de citar La Rochefoucauld: Il y a des héros en mal comme en bien. A rainha Ata é uma obra­-prima, uma heroína en mal. Superior nada conheço nas páginas da sua História, a História Natural.

Ainda não nasceu quem a estudasse sem lhe render homenagens. Esplendor do capitalismo egoísta ou da ferocidade doutrinária, a rainha Ata domina infalivelmente todos os seus observadores. Toda a gente que a combate está convencida da necessidade de destruir­-lhe o reino mas proclama que a organização é simplesmente maravilhosa.

Enterrada viva, velando na fecundidade incessante sua multidão filial, a rainha Ata está obrigando aos poucos, num lento e irresistível empuxo de verruma, a reconhecerem­-lhe virtude inestimável de soberana. E vamos indo na marcha de apagar os nomes de “instinto”, “estímulo” e substituí­-los por “inteligência”, “raciocínio”, “deliberação realizadora”. Creio que não haverá maior vitória do que esta confissão do rei da Criação do alto dos laboratórios e arranha­-céus para uma formiga saúva no fundo da panela do seu formigueiro.

Tanto mais a odeio mais a admiro e esta ambivalência é o sentimento dos estudiosos; de vários tamanhos e famas, passando pelas reportagens, livrinhos divulgativos e inventores de formicidas. A rainha Ata passou a ser motivação erudita, inspiradora de bibliotecas e centro de interesse do Ministério da Agricultura, secretarias estaduais e classes anexas. Graças às saúvas muita gente está vivendo melhor. A rainha Ata, como o Partido Comunista, determina reações benéficas das entidades ameaçadas.

Como aquele misterioso e sedutor Prestes João, a rainha Ata tem amigos e inimigos que nunca a viram.

Lembra muito as secas do Nordeste. É tema emocional que obriga ao solidarismo humano. Não pode haver neutros diante da rainha Ata. E ela não pode ter amigos e manter aliados porque desdenha de todo mecanismo terrestre que consolida as populariades remuneradas.

Há 25 mil anos que o homem governa a Terra. Ainda não conseguiu domesticar a rainha Ata, Atta sexaens, L., nem dominar­-lhe o ímpeto devastador. Humilde, fraca, esmagável por qualquer fração de força, mereceu as honras de ser calamidade nacional e depender de sua morte a vida do Brasil. Ou o Brasil acaba com a saúva... Saint­-Hilaire, pai da frase secular, tinha toda razão mas a verdade é que Brasil e saúva vão em desenvolvimento conjunto, plano de convivência e de consciência. Questão de aceitar a coexistência.

Machado de Assis dizia não haver uma alegria pública que valesse uma boa alegria particular. Tiramos “alegria” e pomos “raiva”, “rancor”, “cólera” e dá infinitamente certo. Tenho motivos pessoais de combater a rainha Ata porque ela mandou atacar e destruir meus caixotes de hortaliça. Caso típico de mandado criminal. Por isso dediquei­-lhe tanto tempo de vida acompanhando­-lhe as manhas no intuito desesperado de anulá­-las fulminantemente. Como quem estuda um bacilo...

No canto de muro há dois olheiros, duas bocas de entrada para o reino de Ata. Suas vassalas carreiam continuamente quanto podem. Outras formigas exercitam diversas habilidades trágicas; levam insetos semimortos, ou seja, semivivos, esperneando, para o fundo da terra, possivelmente sem intuitos de entregá­-los aos micélios dos fungos alimentícios.

Por um destes pórticos desapareceu Licosa para sempre. E outras licosas maiores e menores são conduzidas diariamente. A tropa da rainha Ata tem outro estilo. Corta folhas, brotos, talinhos tenros, levando as cargas em filas incessantes e silenciosas, disciplinadas e submissas como os escravos do Rei Xerxes trazendo a bagagem dos persas que invadiam a Grécia.

De lupa ou manejando o indicador, tenho, deitado a fio comprido, acompanhado a marcha desses esquadrões da rainha Ata, despovoadores do jardim de minha mãe e responsáveis pela ausência fatal da minha planejada salada de verduras. Com a pá, o bissulfureto de carbono e outros engodos tentei arrasar­-lhe as salas reais, olhando a arquitetura estupenda, erguida pela massa cega e genial das obreiras sem nome e sem glória.

A onda teimosa, quieta, invencível das filhas da rainha Ata tem feito lacraus e caranguejeiras arrepiarem caminho como se vissem brasas.

Puseram­-lhe o claro nome de Ata, do grego attein, saltar, título devido aos infusórios rotíferos e não ao piso sereno com que vandaliza os arredores do seu bem cuidado reino. E é uma himenóptera por ter tido quatro asas membranosas.

O formigueiro do qual vemos apenas o portão de acesso, cercado pelo seu muro de areia fofa e solta, é uma construção assombrosa. Imensa cidade subterrânea com vinte e mais núcleos residenciais liga­-se por uma rede de ruas, canais, travessas, entrecruzando­-se com avenidas de contorno em que terminam as grandes vias atravessadoras dos bairros povoados. Nenhum viaduto conduz diretamente à cidade e sim se articula com outros que facilitam aproximação. Naquele labirinto, a construção é sólida e a função lógica, segura e cômoda para a saúva que percorre os meandros com rapidez e precisão, entrando em casa pela parte inferior, pelo primeiro piso, talqualmente usamos nós, os sapiens. Lembra pelo confuso e útil aglomerado de corredores, um convento do monte Sinai. Quinze anos obstinados gastou Meinhard Jacoby estudando, moldando, em cimento líquido, o urbanismo tentaculante do reino de Ata. Lá dentro, sem pressa e sem descanso, move­-se a multidão saúva, entregando folhas, cortando­-as em milímetros, cuidando dos fungos (Rozites gongylophora e outras), das larvas e ninfas, dos depósitos de restos vegetais, da rainha imóvel em sua maternidade monstruosa, vigiada pelas obreiras e guardada pelos legionários em jubilosa servidão filial.

Para esta disposição sem atritos e sem atropelos vivem as classes que não conhecem a movimentação observada por Sorokin. Ficam eternamente no mesmo nível de trabalho e destino sem revolta e “greve”. Estão servindo nas trevas as duas divisões fatais do povo de Ata. Os sexuados, ela, os soldados fanfarrões e as formigas que um dia serão seres com asas com direito ao amor de minutos e ao voo para um sol de uma hora. Ápteras, assexuadas, obscuras, servis, dedicadas até a morte, são as obreiras, carregadoras e cortadoras de folhas, fracionando­-a em frações de milímetros, dando esta alimentação fresca e nova aos filamentos insaciáveis dos micélios dos fungos, cuidando das irmãs recém­-nascidas e jovens, retirando os fragmentos gastos pela absorção, limpando as ruas, becos, avenidas, travessas, tendo as reservas, para atender aos chamamentos para ação imprevista no exterior e, mesmo na hora da catástrofe, tentando salvar antes de tudo as ninfas imóveis e brancas em seus invólucros de prata, esperança, semente, garantia da raça perpetuada. Não tem outra finalidade suas existências anônimas, lembradas unicamente pelo amor radicular ao trabalho eterno no escuro do formigueiro natal. Feridas de morte, com os abdomes decepados, ainda conduzem nos dentes sólidos as ninfas que vencerão a sorte, vencendo o tempo. Na continuidade das horas mantêm a cidade viva e crescente, conservando­-a, ampliando­-a, defendendo­-a, prontas, vigilantes, alertas, com uma vitalidade de espanto e uma tenacidade de maravilha. Para compensação sugam as gotas adocicadas que exsudam dos micélios podados. Nada mais. Nem o abraço do sexo. Nem a visão contente daquela paisagem que é um esplendor da sua alegria trabalhadora, porque são cegas. Veem, como todos os cegos totais, pelo contato, tocando os objetos com as antenas delicadas e móveis.

Para o formigueiro conseguiram temperatura estável e ventilação constantes. As frias aragens noturnas são aquecidas brandamente pelo sistema conjugado de canais receptores e condutores de ar. Não precisam transportar as larvas e ninfas para níveis mais altos ou baixos, mantendo­-as num clima igual. Conquistaram o arejamento ambiental sem máquinas, sem propagandas e sem descontinuidades. Os canais receptores se orientam para o regime dos ventos constantes, para a direção comum dos alísios que sopram do mar. Quantas gerações para alcançar esta perfeição? Sem nenhuma aparelhagem têm o milagre dos fungos produtores numa atmosfera idônea para sua manutenção. Os fungos são melindrosos, exigentes, sensíveis como nenhuma outra planta do mundo. Nos cuidados científicos dos laboratórios experimentais murcham, contaminam­-se e sucumbem. Tratados pelas saúvas, vivem sadios e prolíferos, alimentando toda a população da rainha Ata.

Só esta cultura de fungos imortalizaria um povo possuidor de processo único para a conservação do seu tipo imutável em pureza e teor alimentar. De milhões de substâncias nutritivas, a rainha Ata, por suas antecessoras, elegeu este fungo e fixou­-o para sempre. Jamais foi encontrado fora dos formigueiros das saúvas. É, pois, espécie que alcançou este estágio atravessando no tempo experimental cuidado. As condições de temperatura e de conservação foram outros problemas para que o fungo não morresse. E ele continua resistente e saudável no meio de um formigueiro debaixo da terra, aberto ao contato de todos os micróbios existentes e possíveis.

Estes fungos são semeados numa espécie da pasta vegetal obtida pela mastigação que as saúvas fazem das folhas e brotos. Crescendo, são constantemente podados para evitar o alargamento da cúpula do cogumelo. A seção vegetativa do fungo é filamentosa; dão­-lhe o nome de “micélio”. Destila o micélio gotículas que tomam certa consistência em forma minúscula de couve­-rábano, batizado como Moellerche kohl­-rabi, couve­-rábano de Moeler. As saúvas absorvem este néctar adocicado. É o seu único alimento e mesmo só o utilizam sob forma líquida. Para manter a plantação de fungos é preciso trazer suprimento recente vegetal, cortá­-lo miudamente e cercar a planta com este reforço vital que é assimilado. Depois, retirar as folhas inúteis e substituí­-las. Assim indefinidamente.

Esta alimentação única mantém a saúva admiravelmente hígida e apta para o esforço que exige vinte vezes o seu próprio peso. Formiga não adoece. Não conhece epidemia. Resiste ao combate humano contra suas cidades. Prolifera sem paralíticos, sem abortos, sem monstros teratológicos. Os fungos são mantidos imunes de contatos de micróbios. Impossível saber­-se qual o método para este espantoso resultado contra todas as leis severas de assepsia. Como afastar contaminação dentro de um buraco de areia, no seio da terra, cercado de formigas e de restos podres de vegetais? Uma verificação do Professor Neal A. Weber (1955) ainda torna mais fabulosa a técnica das saúvas. Tendo podido obter fungos no ágar do laboratório mantidos pelas saúvas notou o aparecimento de micróbios de contaminação. As saúvas ocuparam­-se atentamente com os seus fungos indispensáveis e estes, apenas estes, mantiveram­-se imunes do contágio. Ninguém pode compreender como as filhas de Ata se arranjam para isolar os seus fungos no ambiente aberto e livrá­-lo de todos os agentes letais. O Professor Weber acredita no que me parece lógico. Na mastigação as formigas segregam substâncias inibidoras que impossibilitam o desenvolvimento dos micróbios. Esta salivação é mantida para as novas pastas de que se nutrem os fungos e que já estão, de antemão, preparadas para exercer ação microbicida.

Inútil adiantar quanto ao valor da escolha destes fungos como alimento único e a criação de processos eficientes para sua conservação e pureza.

Qual é o grupo humano que defende, com esta dedicação técnica, seus meios de nutrição?

Para nutrir seus canteiros de fungos as saúvas destroem praticamente todas as plantas úteis e cultivadas. Antes do descobrimento do Brasil assaltariam as roças indígenas, reforçando as apanhas de folhas novas das fruteiras selvagens. Com a vinda do europeu e decorrente importação de espécies saborosas indispensáveis ao paladar dos brancos, Ata deve ter melhorado o campo das razias, experimentando o produto dos saques na sustentação dos seus cogumelos subterrâneos. Sendo todas plantadas ao derredor ou nas proximidades das residências coloniais, os atídeos largaram as incursões predatórias de lonjuras e ficaram rodeando as casas, domesticando­-se ao seu modo e proveito. Os indígenas possuíam suas roçarias mais afastadas e daí os atídeos frequentarem parcamente o ambiente caseiro das malocas. O europeu facilitando a colheita dos frutos com os pomares vizinhos atraiu Ata e com ela seu povo fiel.

As formigas pré­-saúvas (vá lá o nome) constam de fósseis já existentes no período jurássico, época secundária, quando só Deus sabia a criação do primeiro homem, milhões de anos depois.

São sexuadas as formigas de asas, içá, contração de içaba, gordura, alusão ao abdome volumoso e graxento, comestível apetecido pela indiada e ainda por muita gente popular, assando­-se ligeiramente. As içás são as fêmeas aladas e os machos têm nome de içabitus, sabitus, bitus, vitus, também providos de asas. A içá fecundada denomina­-se tanajura. Será a fundadora de uma nova dinastia num formigueiro novo. Há igualmente a classe dos soldados, saúvas de sólidas mandíbulas e cabeça larga e forte, encarregados, pelo menos tradicionalmente, da guarda interna da casa e defesa da rainha­-mãe.

As assexuadas são as formigas cortadeiras, carregadeiras, as que se dedicam vitaliciamente aos serviços internos e domésticos da casa­-grande comum, criação das formigas novas, desde estado de larvas, higiene etc. Todas as folhas carreadas passam por um prévio processo de limpeza, raspagem dos parasitas, sujos, fios de aranha, tudo enfim quanto possa prejudicar a pureza permanente dos fungos. Só depois é que são colocadas nos canteiros sagrados. As formigas assexuadas são em número tríplice às sexuadas, os moços machos e fêmeas que se preparam para ver o sol. Assim convém às necessidades das obrigações que terminam com a morte, trabalhando sempre, cegas e devotas da escravidão, sem disponibilidade, aposentadoria ou férias remuneradas, de permeio.

Toda esta sociedade desloca­-se em tarefas imutáveis, exceto a defesa ao formigueiro que cabe, patrioticamente, a todos os elementos vivos, excluindo­-se as turmas vigilantes que cuidam das larvas, ninfas e serviços imediatos à rainha­-mãe.

As missões são executadas num exercício de rotina, impecáveis de ordem, precisão, disciplina. A milenar capitalização de experiências anteriores fixa a norma executiva que se tornou instinto. Mas nem tudo é instinto no reino harmonioso de Ata.

Se o homem continua parcialmente cet inconnu na própria fisiologia é desculpável que a rainha Ata cultive seus misteriozinhos. Um deles é a unidade específica de sua alimentação. O Rozites gongylophora e possíveis variedades é o tipo único. Para conservar­-lhe imutabilidade substancial e pureza no teor nutricionista, as saúvas conservam­-no em recanto subterrâneo em regime constante de podagem. Para a fixação deste fungo como alimento insubstituível deveria ocorrer um período experimental de amplíssima duração. Milhares de vegetais foram examinados, provados, excluídos. Para a determinação da escolha foi preciso que a verificação indicasse a excelência indiscutível do fungo. Antes a avó longínqua da rainha Ata teria outras substâncias para sorver. O mistério é a passagem entre os alimentos iniciais e a deliberação eletiva do fungo. Mistério que se adensa, sugestivo como todos os mistérios, na forma contemporânea de sua manutenção. Não há este fungo em liberdade, deparado na Natureza livre. As içás, iniciando o voo nupcial, já com a missão dinástica das novas cidades, levam uma semente, um fragmento do fungo numa parte da cavidade bucal. Logo que escavam a primeira sala plantarão esta semente servindo­-lhe de estrume as carnes dos primeiros filhos.

Chegam elas à conclusão que o pequenino cogumelo teria clima ideal de temperatura, umidade e segurança para sua imaculabilidade, retirado da superfície. E o fungo desceu para o seio da terra, guardado por sua escolta de niebelungos como uma fração encantada do ouro do Reno.

Não apenas as Atas mas os mirmecíneos, Acromyrmex (nigra, landdolli, subterrânea etc.), nigrocitosas, octospinosas etc., alimentam­-se de fungos em estâncias profundas. Têm apenas uma cidade e expulsam, cuidadosamente, os detritos alimentares dos fungos acumulando­-os em volta da boca dos formigueiros em forma de pequeninos montes de estrume pardo.

No canto de muro, o reino de Ata conta duas entradas dispostas inteligentemente nos dois ângulos do quintal. Para a primeira virão as novidades do resto do mundo porque se apropínqua da brecha do muro. Para a segunda é fácil a visão de todo terreno murado. Nenhuma patrulha militar escolheria situações mais privilegiadas para espreita e vigilância. E estas entradas são bocas de canais que se articulam ao complicado sistema de comunicações internas. Jamais se ligam diretamente à cidade e será esforço inútil tentar o bombardeio à capital dos atídeos por intermédio desta aberta e cômoda cabeça de ponte.

Naturalmente outras espécies, também residentes no canto de muro, são carnívoras, a Formiga niger, a fuliginosa etc., decepando insetos mortos ou feridos, dividindo­-os em carretos proporcionais às carregadeiras apressadas ou levando os animais em plena tentativa de defesa inútil para a mais horrorosa e torturante das mortes no fundo da cidade hostil. Estas devem lembrar a força convergente e miúda dos liliputianos quando imobilizaram Guliver pelos cabelos. Vejo­-as conduzindo grandes lagartas que ondulam na derradeira intenção de salvar­-se, suspensas e elevadas milímetros do chão pelo esforço conjugado de centenas e centenas de formigas luzidias, negras e ávidas. Parecem crianças de uma escola maternal conseguindo o carreto de um elefante, recalcitrante e assombrado com o atrevimento vitorioso daquelas insignificâncias que se tornaram irresistíveis pela ordem e pelo número.

Os mirmecologistas indicam como milagres do instinto a escolha dos terrenos para a implantação residencial. É preciso que estes reúnam condições precípuas para a estabilidade vital da colônia. A presença dos óxidos de cálcio afetam o metabolismo dos fungos e, decorrentemente, a economia interna das próprias formigas. Evitam as terras que tenham cal e se são, as tanajuras nos acasos do voo, obrigadas a mais uma tentativa de adaptação impossível, sabem que marcham para sua morte e a do grupo que surgiria do seu ventre inesgotável.

O terreno deverá ser consolidado para afastar os desmoronamentos, os escorregamentos e deslizes de areia na perfuração das vias, bloqueando, impossibilitando a tarefa. Nem muito compacto que dificulte demasiado ao escavamento. Os arrimos construídos são, às vezes, previsões que a estupenda experiência dos atídeos cautelosamente vai armando para aguentar as paredes, os aclives, a própria curva da abóbada que cobre a câmara de fungos ou a panela onde está a majestade prolífera da rainha Ata. Previstas também as possíveis infiltrações, inundações. Assim os vários regimes meteorológicos são sabidos e cumpridos. Por todo território do Brasil, sul, centro, nordeste, extremo norte, de condições topográficas tão diversas, a saúva maneja a informação da Meteorologia como raras criaturas humanas em função social. Na incerta precipitação pluviométrica do Nordeste, no labirinto potamológico da Amazônia, no planalto, planícies e serras, tabuleiros, capoeirões, nas regiões das matas e do agreste, com chuvas constantes e regulares, Ata sabe excelentemente todas as notícias e age com uma segurança, certeza e conhecimento incomparáveis.

Acresce também a fama possuída. Quando, no Nordeste, os formigueiros desaparecem das encostas barrentas e álveos dos rios ressequidos, o inverno é infalível, matemático, fatal. Nas barrancas do São Francisco as formigas mudam a residência e todos sabem que a inundação está próxima. Vezes há em que o grande rio não alaga as redondezas. O engano é então do rio. Ele é que está errado. A formiga é infalível.

Nenhum avião transatlântico atravessa o oceano tendo cobertura meteorológica semelhante à que a rainha Ata possui para o momento do alardo nupcial dos seus filhos. A boca do formigueiro enxameia de machos e fêmeas, ansiosos e palpitantes para o ensaio das asas e do sexo, virgens ambos. Já praticamente deixaram as câmaras subterrâneas, sinal que a primeira autorização fora dada. Mas a segunda, a ordem suprema, uma única vez entendida por aqueles milhares de insetos, a ordem do décollage, esta não vem. O voo está adiado. Inquestionavelmente a chuva vai cair. E realmente cai. Tendo observação pessoal e há outra, impressionante, de Meinhard Jacoby. Impressionante, porque verifica­-se a primeira e depois a segunda revoada em partidas regulares, dentro dos horários comuns, 11 às 14 horas para todos os reides. O terceiro grupo, já em posição, foi retardado e a ordem não chegou. Recolheram­-se todos. A chuva, uma hora depois, metralhou a terra. Teria inutilizado fulminantemente todo o grupo.

A minha observação constou apenas do adiamento do voo coletivo sem que houvesse revoada anterior. Nem o céu dava anúncios de chuvarada. A chuva, entretanto, veio, rápida e forte. Era dezembro, tempo das imprevistas e fustigantes chuvas­-de­-caju, assim denominadas porque “sustentam” a safra.

Mas este cuidado cifra­-se ao voo nupcial. Com chuvinhas molhadeiras, rezinga de mulher, teimosas, contínuas, transparentes, as carregadeiras e cortadeiras continuam as tarefas.

Quais são os órgãos supersensíveis que podem captar as diferentes pressões atmosféricas numa distância de tempo, previsão infalível? E todas as saúvas recebem o aviso ou apenas as entidades diretoras de onde emanará o gesto orientador de todos os grupos? A atitude coletiva é o resultado da sensação por todos sentida ou obediência a uma ordem irradiada da rainha­-mãe? O melhor é cessar a série das interrogações.

Vênia balançou a cabeça afirmativa. Crê que não será minha geração a reveladora destes segredos. Sofia, a coruja meditativa, concorda.

Creio que o reino de Ata, com sua organização e vida silenciosa debaixo da terra, suas cidades entrecortadas de comunicações, suas hierarquias, suas figuras neutras ou sexuadas, dista das colmeias onde o sussurro das asas laboriosas enche de serena melodia o âmbito residencial. Para o distributismo das abelhas, o egoísmo feroz das formigas será uma incompreensão. Certo a abelha não fornece, consciente e espontânea, cera e mel ao dominador humano. A sabedoria de Ata é a sua inutilidade agressiva e depredadora. O homem não pode cativá­-la na domesticidade aproveitável porque saúva para nada presta. Por isso, o combate é de morte e a formiga guerreira aceitou, à outrance, o desafio.

Como nós, “sapiens”, precisamos aprender e a herança técnica dos nossos pais não veio para nossa cabeça no curso do sangue, assombramo­-nos porque a saúva nasce sabendo. Não aprende. Não há cursos. Com cinquenta dias de vida abre canais e fura túneis que desembocam, rigorosamente certos, nas avenidas de contorno e jamais coincidem com outros sistemas de circulação. Não há enganos nos cálculos prévios nem surpresa na resistência dos materiais empregados ou trabalhados. Uma enchente de rio arrasa uma vila ou abate os arrabaldes de uma cidade mais de uma vez. Há uma comissão de estudos. O curso fluvial, volume, direção, história das inundações anteriores e suas áreas de alagação são elementos consultados. Anos de deduções para uma defesa lógica. O rio, com uma sem­-cerimônia incrível, devasta outra vez as ruas. Nova comissão de estudos. Nunca uma enchente imprevista surpreendeu formigueiro. Constroem perfeitamente a salvo ou fazem a transferência das “panelas” em tempo oportuno. Sempre antes do cataclismo. Não há exemplo de formiga morrer afogada. Exceto, se for pela mão de um experimentador humano. É um confronto que não tenho coragem de fazer.

Suas antenas, frágeis, inquietas, adejantes, são os olhos e membros do tato. Cortá­-las é ver a saúva tornejante, desorientada, palerma, formiga doida. De umas dez que ficaram sem antenas e foram transportadas para longe dos caminhos do formigueiro, nenhuma conseguiu atinar com o regresso. Todas foram repostas nas estradas e tropeçavam nas companheiras que, uma vez identificando­-as com um leve toque de antenas ou muito possivelmente pelo odor que elas exalam, nada fizeram em auxílio e proteção das mutiladas pela minha curiosidade. Enfiei­-as, uma a uma, pela bocarra do formigueiro, ignorando­-lhes o destino subsequente.

Mas têm o senso de orientação porque levei um grupo para longe das vias conhecidas, no outro lado da chácara, uns trezentos metros alucinantes. As saúvas calcavam areia e barro na percussão insistente das antenas interrogadas, vindo e voltando, ansiosas, sem deter passo mas no rumo geral. Demoraram mais de duas horas neste percurso de perdição. Voltaram todas ao piso costumeiro.

Trazem estes conhecidos desde o estado de larvas.

Deste segredo impenetrável há um depoimento curioso. O Padre Frederico Pastors, M.S.F. (Natal, Rua Pedro Soares, 161) enviou em 1930, pelo dirigível Graf Zeppelin, alguns ovos de galinha para pessoas amigas em Altenessen, Prússia Renana. Nasceram galinhas e um galo. Este, enquanto viveu, cantava pelo horário dos galos brasileiros, quatro horas de diferença. Não houve convivência que o fizesse aderir ao fuso europeu reinante na Alemanha. Fora exportado em ovo. Nem sempre a ecologia explica as coisas...

Uma saúva carrega vinte vezes seu peso mais ou menos trezentos a quinhentos metros. Nada de comparações com as nossas possibilidades de resistência, anormal e normal. Um homem de setenta quilos suportaria tonelada e meia de carreto... Num ambiente sem ar os nossos pulmões não funcionariam cinco minutos. Num frasco arrolhado cinco saúvas morreram com dezoito horas de suplício. A respiração traqueal deu melhor rendimento no teste. Quantos dias resistem sem alimentar­-se? Prendi um grupo durante cinco dias. Ficaram trôpegas e esgotadas mas voltaram ao reino logo que as libertei. Não me foi possível acompanhar uma verificação superior a estes cinco dias.

As chuvas de junho e julho passaram e as ventanias de agosto varreram os céus. Setembro inicia a estiagem segura, tardes lentas, dias ardentes que os crepúsculos refrescam, noites macias, esfriando nas madrugadas prematuramente luminosas.

De meados de setembro em diante abre­-se o ciclo das revoadas matrimoniais das saúvas. Os reinos vão multiplicar­-se com a doação ritual do sacrifício de milhares de vidas à voracidade dos pássaros, lagartos, aracnídeos e à gulodice humana. A Natureza equilibra o excesso de produção.

Ao redor do formigueiro negrejam as saúvas alvoroçadas. Vão saindo aos borbotões, amontoando­-se, circulando numa azáfama a própria massa que se avoluma, inquieta, agitando as asas numa verificação curiosa pelo seu uso.

O sol espelha nos reflexos metálicos da multidão ansiada e viva, de breves saltos de polegadas e correrias de palmos de extensão ao derredor do pórtico donde nunca estiveram. Na diminuta quadra, duas ou três dezenas de milhares fervilham num sussurro abafado e perene, irradiante como a própria música da ansiedade amorosa, impaciente de realização. Nenhuma se afasta do círculo que as atrai como ímã. A multidão alada agita­-se, rondando a bocarra do formigueiro para onde não voltará. Içás enormes, soberbas, os ventres abaulados e reluzentes, antenas adejantes, passeiam. Três quartas partes são os içabitus, sabitus, bitus, vitus, menores, mais inquietos, andejos, esvoaçadores.

Súbito, a ordem misteriosa estende o comando que ouviram naquela vez única. Deslocam­-se as içás magníficas como dogarezas e o cortejo aflito dos bitus seduzidos. A claridade ofuscadora parece revelar­-lhes o mistério do sexo e a missão suprema daquele deslumbrante desfile pelo azul incomparável do céu de verão. As ondas sucessivas alçam voo raseiro e ascendem nas curvas amplas e harmoniosas da iniciação. Juntam­-se os pares no ar na força irresistível da fecundação.

Não é o voo quase vertical, solitário e orgulhoso da jovem rainha­-virgem das abelhas, com seu séquito sonoro de noivos. Içás e bitus rodam, tontos de amor, duas dezenas de metro de alto, no espetáculo de suas núpcias de dois minutos. O macho cavalga o dorso brilhante da fêmea na rapidez do ímpeto criador. A resistência do vento, a ginástica incessante das asas impelem o ar que penetra, violento, pelos orifícios de suas traqueias, comprimindo­-lhe o abdome e projetando o membro da vida. Como as abelhas, a junção só se verifica por aquela forma alada e pagã, fulgente, súbita, de asas inquietas na instantaneidade do espasmo que não mais se repetirá.

A içá é agora uma tanajura.

O bitu desce, rodopiante, esgotado, exausto, semimorto, inútil, inerme para águas do pântano onde os peixes aguardam a presa pobre.

As toalhas murmurejantes das içás e bitus fremem ao vento tépido da tarde em cortejos e amores de momentos. É a vez inicial e derradeira daquele alarde faiscante que o sol incendeia de opalas chamejantes.

Todas as aves insetívoras estão pousadas ou revoando, em filas e bandos solidários. É uma outra revoada, bulhenta e voraz, entrecruzando­-se, cortando e desenhando arabescos na paisagem das núpcias trágicas da tanajura. São elas, unicamente elas, as desejadas por todos os bicos e mandíbulas, no ar, na terra, nas águas paradas do tanque, na sombra da folhagem muda pela ardência ensolarada. Uma e mais horas de caçada incessante e tumultuosa, riscando a serenidade da tarde no estrépito das buscas acrobáticas.

Pela areia quente os bitus arrastam os minutos agonizantes, asas desfeitas, queimados pela terra de brasa. Nenhum animal os procura. Não têm, como suas esposas perseguidas por todas as fomes aladas, o abdome túrgido, cheio de gordura perfumada de essências de cravo e de laranja.

Mutiladas na parte essencial à propagação, as tanajuras caem procurando cumprir ainda, desesperadamente, a tarefa que lhes confiaram os deuses obscuros de sua raça. Tentam abrir tenazmente um orifício na areia fulva, enterrando­-se para construir a primeira casa da futura cidade e depor o primeiro filho da futura população. Morrem antes de qualquer prosseguimento. Por todo ambiente há uma palpitação sonora de amor e de morte.

Algumas tanajuras conseguem gloriosamente satisfazer a finalidade vital. Chegam intactas, os ventres túmidos com toda a reserva existencial do esposo perpetuamente desaparecido, e durante alguns minutos, ouvindo a voz estranha e poderosa do oráculo instintivo buscam no solo o local para abrir o caminho para a vida coletiva que nascerá. Não o poderá mudar. A escolha é definitiva, irrevogável, decisiva. Com as patas ansiosas e as mandíbulas sólidas a tanajura escava, febrilmente, o túnel para sepultar­-se. Nunca mais voltará à superfície. Jamais deixará a câmara que, esposa fecunda, encherá ininterruptamente de filhos.

Na cavidade bucal conduz um fragmento do fungo indispensável e sente que a vida do macho estremece na fecundidade inesgotável de suas entranhas.

Para que este voo nupcial, arrebatador e único? Além de provocar a mecânica da apetência funcional do macho é o supremo processo selecionador entre a multidão concorrente. Será o mais vigoroso, resistente, audaz, apto à procriação forte de uma família poderosa de vitalidade e de seiva prolongadora da espécie. O voo não é tão subido e arrojado como o da rainha das abelhas, mas na escala das proporções exige aos sabitus apaixonados o máximo do esforço e o cúmulo da tenacidade sexual.

Vento, luz, distância mobilizam­-se para o cumprimento ritual desses deveres físicos que representam credenciais de durabilidade e pureza no sêmen doado à esposa voadora e fugitiva.

O primeiro gesto da tanajura, ato que inicia sua existência preciosa, doadora de vidas novas, é arrancar­-se as asas, numa automutilação que a consagra adstrita à terra, exilada dos voos, vinculada ao seu reino e aos seus filhos sem a tentação da viagem e a miragem da liberdade luminosa.

Seus descendentes não fazem migrações enxameadoras, jornadeando para a fundação de outra pátria, conduzindo no meio do bando melódico a velha rainha fiel ao destino do povo que fundou. Ata permanecerá para todo o sempre na sua câmara vestida de penumbra, no silêncio do protocolo racial, recebendo homenagens à sua fidelidade mas alimentando­-se como a mais humilde das suas formigas serviçais. Não tem, como rainha das abelhas, mel privativo do seu nível soberano. Exceto a função criadora que a situa acima de toda a cidade, é apenas a mais antiga, a mais respeitável, a mãe comum de todo formigueiro.

Ela é a explicação da vida comum, a garantia da eternidade saúva, Defendem­-na, cercam­-na de carinhos, de cuidados, de ciúmes. Sua presença é um título de propagação, de continuidade da família. Não a substituem. Não terá sucessoras. Nem conhece herdeiras presuntivas. Dela nascerão rainhas de outros reinos mas ela, velha, semi­-inútil, morrerá no seu trono, na grandeza indisputável da sua majestade solitária.

A jovem tanajura, nova Ata, vai criar o seu reino com as forças do seu ventre e o estímulo da tradição perene, direito consuetudinário, irrevogável e perpétuo.

Cinquenta e oitenta centímetros de escavação furiosa. Uns segundos de pausa para ver se é bastante distância da linha da terra onde há luz, plantas e voam ainda as últimas içás e os derradeiros sabitus enamorados.

Agora a jovem Ata alarga a extremidade do seu trabalho. Alguns centímetros para cada lado. É um aposento do tamanho de uma pequena caixa de fósforos. Cabem três na palma da minha mão.

Este início de reino é que era segredo impenetrável até que um pesquisador brasileiro, Mário Autuori, de competência excepcional, tudo iluminou com a lâmpada de sua tenacidade observadora.

Lá no fundo de sua sala inicial, Ata alimenta a pelotinha do fungo com seu próprio líquido fecal. Apanha o fungo com as mandíbulas, encosta­-o à extremidade abdominal e expele uma gota de líquido que o fungo absorve. É alimento e fertilizante. O fungo multiplica­-se com um ímpeto que semelha violência. Ata divide­-o, alimenta­-o e a plantação cresce. Cada fração é uma nova e futura fonte alimentar.

Com trinta dias saem as primeiras saúvas da postura inicial. O fungo não pode alimentar a população nascente. Nos primeiros 120 dias a rainha Ata distribui com os filhos os “ovos de alimentação”, cheios de um líquido nutritivo. Cada um guarda apenas uma gota e Ata atende aos filhos como se manejasse um biberon. Cada ovo para duas e três larvas. Os primeiros três a quatro meses de vida se passam sem ligação com o exterior. Esta notícia biológica foi uma revelação de Mário Autuori. Dizia­-se uma porção de coisas bonitas, inclusive que Ata alimentava o fungo com a substância dos ovos iniciais onde viviam as larvas. O fungo vivia da vida dos primeiros cidadãos do reino de Ata. Mário Autuori descobriu como a rainha arranjava para viver e espalhar a vida ao derredor.

O tempo vai passando e Ata depõe na areia escura mais ovos. Já, há que meses, fechou, obstruindo, o túnel que a trouxera da superfície. Nunca mais subirá aquela ou outra ladeira que a leve ao sol e ao rumor do mundo. Os ovos são larvas e estas passam a ninfas ou pupas, já esboçado o aspecto adulto das formigas. A plantação de fungos, multiplicada na divisão e mantida inicialmente pelas substâncias vitais da rainha Ata, viceja. As pupas deixam sua túnica de seda plástica, rompida pelas mandíbulas maternas. Rodeiam sua mãe e rainha, ainda trôpegas, cambaleantes, mas já sabedoras de sua história e dos direitos e deveres de sua estirpe.

São as primeiras formigas que sugam o fungo, mantido, aparado por Ata, conservadora inicial do micélio. Trinta dias depois a primeira patrulha de cavadeiras parte em missão de abrir um canal comunicante para a flor da terra. Não mais será o caminho que Ata pôde rasgar no dia do seu primeiro e último voo inesquecível. Este acesso nunca mais será encontrado. Fica no seio da terra como uma veia fechada, um vestígio da estrada para a criação de um mundo novo.

As saúvas multiplicam­-se. Chegam, pela primeira vez, da superfície, trazendo a primeira carga de folhas. Ninguém as acompanhou para guiá­-las aos tipos vegetais apropriados. Trouxeram a carga excelente, limpa, cortada, oferecida ao micélio. A tarefa entrou em rotina e assim será sempre.

A câmara ampliou­-se. Ata está maciça, pesada, imensa, cercada de filhos, a guarda dos soldados fiéis vigiando sua defesa. Outras câmaras surgem. Para guardar as pupas. Para os detritos que restam da assimilação dos fungos. Organiza­-se a cidade. Novas comunicações. Cada mês há uma camada de operárias sem sexo, nascida para a servidão perpétua e feliz. Enclausurada toda a vida, não acompanhará o enxame como uma rainha nova da colmeia iniciante. Dará, imóvel e fecunda como uma Níobe bárbara, filhos inumeráveis para a batalha contra as plantações humanas pela conservação religiosa dos fungos cujos canteiros se multiplicam.

Agora Claparède e Shadworth Hogson dificilmente explicarão pela mecânica do interesse esta cidade fundada por um interesse sem proveito individual. Como a base da atividade animal é o egoísmo e o sexo, o reino de Ata difere. Não há saúva beneficiada pelo trabalho de uma outra nem há proveito nos deveres de Ata para o seu povo. A tabela das compensações no formigueiro escapa à percepção equitativa da lógica dos homens. Como não consentem que fale em ideal relativo às saúvas não haverá outra interpretação para estas vidas votadas ao sacrifício em favor da conservação imutável de sua organização. O ideal da saúva é manter no futuro a fórmula do presente. Nenhuma melhorará de condição, forma de trabalho e destino vital.

O instinto somente se prova pelas reações às provocações da rotina. O instinto de uma caranguejeira não pode prever sua reação ouvindo violino. Para a cristalização das experiências no tempo é indispensável a repetição dos motivos formadores do movimento solucionador, por sua vez soma das provocações anteriores. Diante de novo motivo, apresentado pela primeira vez, o instinto não tem solução alguma. Se a reiteração dos fatos determina uma atitude defensiva em relação aos elementos recentes é que existe uma mecânica de raciocínio. Um animal não pisa espontaneamente brasas vivas. Forçado a atravessar um braseiro, cada um age de acordo com possibilidades que são soluções dadas pela inteligência e não pelo instinto, vocábulo vago e bonito para explicar comodamente quando outra explicação falece.

Meu pai foi vendedor de formicidas e fazia provar nos formigueiros da chácara, justamente na época em que iniciava eu minhas curiosidades de amador sem método. As saúvas reagiram. O instinto não as podia ajudar porque formicida era novidade, novidade terrível, para a rainha Ata e seus filhos. Entupia os canais com terra molhada quando a emanação era de bissulfureto de carbono. Enchia, heroicamente, de corpos de saúvas o túnel condutor se o veneno era cianureto de potássio. Toda a gente sabe que estes dois elementos são fixadores dos primeiros. A terra molhada para o bissulfureto de carbono, e a matéria orgânica, na espécie, pelo ácido fórmico, possivelmente, para o cianureto de potássio. Certamente a solução custou­-lhes milhares de vidas e ignoro como alcançaram esta conclusão ou de que formigueiro veterano de fumigações letais tiveram notícia da defesa primária e ocasional. Foram vencidas mas custou. Defenderam­-se com as armas da improvisação. Instinto não improvisa.

Inexplicável para mim são as guerras. Inexplicável porque dificilmente formiga de outra raça ousa atravessar os territórios jurisdicionados pela rainha Ata. No comum a guerra é com as formigas irmãs, saúvas legítimas de cidades próximas. A contiguidade é um problema em potencial. E mesmo “não há mando mais mal sofrido, nem mais mal obedecido que o dos iguais”, ensinava o Padre Antônio Vieira.

Logicamente nunca fui testemunha do início das operações guerreiras nem sabedor da tensão perigosa entre os dois beligerantes. Surpreendia­-me vendo a batalha encarniçada e violenta em toda extensão de um dos caminhos que levava os grupos ao saque nas plantações da chácara. Era apenas um corpo a corpo primitivo e bravio, formiga a formiga ou patrulhas às voltas com um único e teimoso combatente. De permeio vagavam, distribuindo raros e vagos golpes, os soldados, formigas de aspecto arrogante pela imponência da mandíbula e vulto da cabeçorra, mas insignificantes e covardes pelo lado de dentro, “unicamente grandes no tamanho” como poetava Olavo Bilac dos gigantes Curinqueans. Era a “guarda pessoal” mais de efeito decorativo e intimador que eficiente e real nas horas difíceis. As massas sacudidas no combate foram rareando mas não houve perseguição aos restos destroçados que, individualmente, voltaram ao formigueiro com o amargor da derrota ou da agressão repelida... et le combat cessa faute de combattants.

Nunca pude sistematizar o critério dos horários de trabalho das saúvas. Carreiam folhas a qualquer hora, exceto nas ardentes. Pela manhã e pela tarde, com chuva miúda e neblineiro, seguiam obstinadas. O mais comum e tradicional é o serviço durante a noite, não apenas pela temperatura agradável nas regiões tropicais como pela ausência de vigilância e reação de inimigos, incluindo o proprietário das plantas assaltadas.

A rainha Ata parece ter, como as demais espécies animais, limites geográficos à sua expansão. Há barreiras ecológicas para as colunas cortadeiras e possíveis lindes intransponíveis. Deverá ter, logicamente, o seu clima biotópico, zona de utilização. Ultrapassada a linha imaginária mudar­-se­-ão as condições de conforto ou facilidade aquisitiva. Aparecerão inimigos que serão justamente os habitantes do novo país, intolerantes e patrióticos pela sua terra inviolada. Assim parecem existir zonas delimitadas, embora indecisamente, para a penetração exploradora da rainha Ata e rendimento normal no corte vegetal. Esta presença do biótopo já foi suficientemente pesquisada e expressa para que se possa excluir a saúva ao império de sua provada influência.

As saúvas dormem? Repousam? Não tendo olhos para cerrar as pálpebras coando a luz e dando penumbra propícia ao sossego, à tranquilidade fisiológica determinante do sono, o povo de Ata não dorme. Mas, como todo ser organizado, queima energia no movimento que é um esforço físico. Sua respiração é traqueal. Dos lados do corpo abre­-se uma série de orifícios, e cada um é a extremidade de um canal que leva o ar diretamente aos órgãos do inseto. Não têm eles o aparelho pulmonar distribuidor geral. Têm exigências de respiração, embora em ritmo infinitamente mais lento e daí a exigência é menor para o desgaste orgânico. São proporcionalmente vinte vezes mais resistentes que o homem normal, o homem tipo padrão, para o emprego da força física. Seu esqueleto não é interno, constituído pela armadura óssea sustentadora da estrutura, mas externo, um esqueleto tegumentar, uma substância espessa, córnea, a quitina, revestindo­-lhe todo o corpo com uma luva à mão. A continuidade do movimento esgota o inseto e suas marchas são vagarosas, reações lentas. São obrigados a repousar quando lhes chega o índice da fadiga. Repousam, descansam detendo­-se. Parados, quietos, reunidos num bloco solidário de fatigados, estão descansando. A imobilidade no inseto é o seu repouso.

Todos nós temos visto as três marchas das saúvas carregadeiras. Uma lenta, certa, mecânica; outra mais viva, mais apressada, sempre em coluna por um, e a última, acelerada, urgente, vezes deixando a formação, atropelando­-se alguns indivíduos mais salientes, ligeiros, não querendo perder tempo na obediência do ritmo coletivo. Anda na primeira forma um metro em cerca de dois minutos e na última em sessenta e oitenta segundos. São indispensáveis as condições favoráveis de terreno, relativa horizontalidade, ausência de obstáculos sensíveis e habitualidade do caminho. Em caminho velho anda­-se mais depressa. A formiga isolada caminha sempre devagar.

Maurice Maeterlinck, em 1901, publicou La Vie des Abeilles e estas se tornaram favoritas literárias na exaltação lírica do evocador maravilhoso. De mais a mais, a apicultura é ciência envolvente e saborosa e as abelhas insetos lindos em sua utilidade sonora e cativante. Não há eloquência humana capaz de criar um halo de simpatia ao redor do vandalismo sistemático, da presença desnecessária e ausência de qualquer préstimo na rainha Ata.

Quando apicultura é método de criar abelhas, uma sauvologia seria a técnica de matar saúvas. A admiração pela inteligência de Ata é a mesma que teríamos examinando uma aparelhagem eficiente e completa de contrabandistas, organização moderna de ladrões e um sistema impecável para peculatários. Toda aquela ciência é contra nós, em serviço de inimigos e auxiliando depredações e gatunagens permanentes.

Creio, entretanto, que Ata suporta um confronto no domínio da “inteligência” com a sua prima alada, a abelha generosa e prestante.

O cérebro da formiga forma 296 partes do peso total do inseto. A abelha atinge apenas 174. O sentido egoístico, utilitário, prático de Ata não admite a colheita de pólens para fabricar cera e mel, substâncias irresistivelmente sedutoras para todos os animais, tornando a fabricante objeto de perseguição constante pelas gulas e bom gosto dos plenipotenciários e embaixadores da escala zoológica. Fabrica a rainha Ata um produto que a nenhum outro animal apetece e o homem, com o senso mais genial de exploração industrial, despreza e repudia como imprestável. Não há criatura humana capaz de disputar às saúvas o uso dos fungos ou participar do seu consumo.

Para manter sua cultura, a rainha Ata manda seus exércitos devastar as plantações cuidadas pelo homem. Tanto a planta mereça carinho do agricultor ou atenção do agrônomo, mais as saúvas se interessam por ela com auxílios assimiláveis para os canteiros subterrâneos. Quando a abelha trabalha para o homem, o homem trabalha para a saúva. Ajuda­-a, auxilia­-a, ampara­-a. E evidentemente contra vontade expressa do doador malgré lui. O homem, três milhões de vezes maior que uma abelha, cobra alta percentagem de um esforço realizado exclusivamente por elas. A saúva, três milhões de vezes inferior ao homem, exige uma cota­-parte e vai buscá­-la, queira ou não queira o desafortunado sócio. Em alguns lugares do sertão nordestino os plantadores de mandioca costumavam amontoar uma boa porção de manivas à entrada dos roçados. Denominavam a este ato, a ceva. Destinavam­-na às saúvas, crentes que se contentariam com a oferenda espontânea, respeitando o resto das plantações. Era uma vassalagem submissa à onipotência agressiva de Ata. Para leões, tigres, panteras, uma refeição assim exposta gratuitamente significa armadilha próxima para a captura. A “ceva” anunciava simplesmente uma reverência e uma súplica para que Ata carregasse a dádiva e fosse embora sem maiores avanços em matéria fiscal.

Qualquer apicultor mostra suas colmeias com o manso orgulho de um esforço pessoal. Alguns, pela exibição do pormenor e conhecimento das andanças alheias, dão a impressão modesta de haver feito realmente o mel. Quando indicam, na ondulação do terreno devastado, as bocas dos canais que levam aos palácios, almoxarifados e depósitos de Ata, é como se apontassem um acampamento de hunos ou um “descanso” de cangaceiros. Há ódio represado e cólera contida ante o irremediável. Um agricultor adiantado, inteligente e letrado, afirmava: “ – Prefiro uma furna de onças a um formigueiro de saúvas!” Estava certo...

A permanência de Ata no seu reinado tenho como superioridade lógica às migrações das abelhas nos enxames anuais. O abandono da colmeia repleta de mel, cera, larvas, ninfas, princesas, por 90% da população, acompanhando sua rainha, terá significação essencial para o código da espécie. Fica a colmeia farta para que a nova raça a possa povoar sem as dificuldades iniciais. Cabe à rainha, que tudo construirá, e às abelhas, que tinham trabalhado, o destino de outra fundação, no acaso, refundando, com menor rendimento um lar, uma cidade, um reino.

A lógica das formigas é mais poderosa. Cumpre a fundação a uma tanajura, fêmea nova e recém­-fecundada, destinada a construir e repetir no tempo e no espaço a mesma tarefa que a rainha velha realizou. É uma exigência de capacidade realística, dura e cruel mas enérgica e de impressionante grandeza bárbara. A jovem tanajura, com o fragmento do fungo na boca, sozinha e sem alimentos acumulados ou servas solícitas, escavará na areia o caminho para a cidade que fundará. Trabalhará, isolada, solitária até rodear­-se de filhos que serão cortadeiras, carregadeiras, soldados, e os sexuados entre os quais sua sucessora espera o momento do voo para recomeçar a tarefa heroica de todas as suas antecessoras. É bem uma escola de coragem e de sacrifícios, moldagem ritual e áspera para a consagração da realeza verídica, provada no exercício da fundação no reino e nos valores imediatos do tino e decisão para eleger o terreno, plantar o fungo e dispor, sem ajuda, o primeiro lar. A futura rainha encontra tudo na colmeia. A jovem tanajura deverá tudo construir. A primeira tem os elementos materiais para uma acomodação fácil e farta. A segunda trouxe apenas a herança mental da técnica, a técnica de criar um mundo onde será rainha até morrer.

Por mais sugestivo que seja o voo coletivo para o exílio e a figura da rainha­-moça, servindo­-se do mel puríssimo, prefiro ver a tanajura escavando na areia ardente, com o auxílio de patas e mandíbulas, o primeiro degrau do seu trono vitalício.

As formigas comunicam­-se pelos breves toques de suas antenas. Possivelmente identificam­-se os grupos num reconhecimento recíproco pelas emanações características. Têm um cheiro particular. Perfume nacional. Devem ter, inquestionavelmente, sinais para movimentos de interesse coletivo. Pus um besouro, grande e grosso, num terreno onde raras formigas transitavam. Uma delas encontrou o besouro morto, caça de primeiríssima ordem. Tocou­-o com as antenas, andou ao redor, subiu para o ventre do morto, desceu e, precipitadamente, num ritmo acelerado, voltou ao formigueiro. Pelo caminho deteve­-se para tocar nas companheiras encontradas, mas não em todas.

Na entrada do formigueiro não havia uma única formiga. A formiga alvissareira mergulhou na abertura mas deve ter andado muito pouco, apenas um segundo. Fizera, naturalmente, o sinal denunciando o encontro de uma coisa útil e valiosa. Um segundo depois dela haver desaparecido, uma coluna espessa de formigas apressadas apareceu e seguiu, rumo certo, na direção onde o besouro estava. Continuou a boca do formigueiro a vomitar formigas durante um minuto. Depois saíram poucas e estas tomaram outro caminho, para outras missões e apenas raras acompanharam o coice da tropa. A formiga alvissareira não tivera materialmente tempo senão de penetrar no formigueiro umas tantas polegadas. Fizera, evidentemente, soar um sinal de alarma, junto a informação da coordenada geográfica, pois as formigas que saíam marchavam em rumo certo e sem tergiversações erradias.

Repeti a experiência umas seis vezes, sempre com os mesmos resultados. Decididamente, as formigas possuem um meio de comunicar­-se pelo tato.

Não sabia tratar­-se de experiência famosa desse Sir John Lubbock, repetida por Mestre Wasmann.

Outra observação pessoal, não foi provocada, mas espontaneamente oferecida pelas filhas da rainha Ata.

Partindo do portão alcança­-se o jardim subindo­-se escada. Este era o caminho real das saúvas no assalto às roseiras e pequeninas árvores de fruto. Ataquei as colunas expedicionárias com água quente, fumegante, e tive a alegria de vê­-las morrer aos milheiros. Teimavam na conquista e eu na repressão liquidante. Mudaram, então, o horário, aparecendo durante as primeiras horas da noite. Voltei a destroçá­-las sem mercê. Ficamos todos vigilantes, com armas prontas. As saúvas desapareceram. Regressando uma madrugada, deparei os regimentos tenazes galgando degraus, outros descendo, carregando folhas. Aniquilei­-os com um instrumento imprevisto, um lança­-perfume, primeiro a frio e depois guiando, como um lança­-chamas, a linha flamejante que as torrou todas.

Como trabalho durante a noite ia sempre verificar se as saúvas haviam voltado ao ataque. A escada estava sempre deserta.

Uma tarde descobri a nova via. Do terraço para a rua há um cano para escoamento de águas pluviais. As saúvas estavam utilizando o viaduto para sua campanha alimentar dos fungos. Mergulhavam na calçada, subiam pelo túnel, saindo no jardim pelo ralo, reiniciando imediatamente as operações. Pude notar que a marcha era lenta e havia uma larga margem de prejuízos na estrada improvisada. O vento canalizado arrancava­-lhe as cargas e vez por outra precipitava as mais aferradas no negro abismo de três metros de altura.

A entrada pelo ralo era a ocasião mais difícil por causa da ventania e as saúvas pagavam caro o transporte de folhas. Aquelas que levavam maiores fragmentos eram sacrificadas fatalmente. O vento incidia sobre a superfície apresentada pelo pedaço da folha como se soprasse numa vela de embarcação. A folhinha voava levando a formiga como passageira gratuita. Algumas largavam o carregamento logo às primeiras lufadas. Outras obstinavam­-se em conservá­-lo e eram sacudidas nos ares, desaparecendo no escuro do esgoto. Creio que se o caminho novo fosse o habitual, ou tivesse sido nalgum tempo, estas dificuldades estavam solucionadas. Tratava­-se, evidentemente, de uma experiência em matéria de transporte.

Não é possível falar em formigas sem evocar a cigarra boêmia e vadia, cantora do sol, suplicando o empréstimo de víveres para atravessar o inverno, o inverno europeu. E a resposta desdenhosa da formiga:

“Vous chantez! J’en suis bien aise.

Eh bien, dansez maintenant”...

que La Fontaine imortalizou. Bem diversa é a verdade. O episódio era impossível porque não há cigarras no inverno. As larvas estão sepultadas na terra e sairão na primavera. As cigarras cantadeiras morrem antes desta estação.

J. H. Fabre examinou a história e chegou, documentadamente, às conclusões opostas. Para começo de conversa, La Fontaine ne l’a jamais entendue, ne l’a jamais vue. Pour lui, la célèbre chanteuse est certainement une sauterelle. Tristeza saber que La Fontaine nunca viu nem ouviu uma cigarra. E que a cigarra citada na fábula deliciosa é um gafanhoto!...

A cigarra não precisa das vitualhas da formiga nem do seu menor auxílio. A cigarra não pode servir­-se de coisa alguma dos armazéns formigueiros. Alimenta­-se de humos, sumos, seivas vegetais. No estado larvar já aproveita as raízes subterrâneas para alimentar­-se por sucção. A formiga não lhe podia ser útil mesmo compadecida e caridosa.

Certas formigas, moscas, vespas, percevejos é que se socorrem da cigarra, precisando quase indispensavelmente das sobras de sua refeição farta e preciosa. A formiga (não a saúva) é que é pedinte, suplicante, requerente.

Julho na Europa, dezembro e janeiro no Brasil, no áspero calor do verão, a cigarra perfura a casca das árvores com sua agulha oca, levemente torneada em espiral, e suga a seiva refrigerante inesgotável. Como seu canto independe do órgão sugador, continua a cantiga interminável e gloriosa em louvor ao sol. Assim, sugando e cantando simultaneamente, é um inseto feliz. Ao seu derredor, esgueirando­-se entre suas pernas compassivamente erguidas, subindo­-lhe pelo dorso vibrante, trepando­-lhe pelas asas, dezenas e dezenas de formigas, vespas, moscas, percevejos escuros disputam as gotas da seiva vegetal que escorre, trazida à superfície pela poderosa bomba de sucção da cigarra.

O número de insetos que parasitam os saldos alimentares da cigarra cresce sempre e, como registrou Fabre, consegue expulsar o técnico daquele poço artesiano que voa para outro ponto, deixando os intrusos no gozo efêmero de um aproveitamento depressa extinto porque, faltando a sucção, a seiva não mareja na casca. Noutra árvore, a cigarra repete a operação perfuradora que atrai o séquito de formigas, especialmente de formigas, saciando­-se com o esforço único da cigarra.

Mas o povo de Ata defende­-se da lenda porque não mantém relações com a cigarra. Entre outras distâncias, separa­-as o alimento. Cigarra não pode comer o fungo que é a delícia única das saúvas.

Por este e outros valores é que o Rei Salomão citou­-a no Livro dos Provérbios; citou­-a porque M. Hope está convencido de que o rei­-sábio referia­-se a Ata (Transactions of the Entomological Society of London, II, 213).

Por isso, Sir John Lubbock admitia que as formigas, e não as abelhas, reclamassem o segundo lugar, depois do Homem, na escala da inteligência.

Enquanto rola o hino de suas glórias, as duas filas silenciosas de saúvas vão e vêm carregadas de folhas verdes, despovoando de beleza o resto do quintal, obstinadas, submissas, indomáveis, terríveis em sua humildade, mantendo na perpetuidade do tempo o signo imutável de sua raça assombrosa...