O mundo de Quiró

– Faça­-me o favor de dizer: para que Nosso Senhor fez o morcego?

Pensamento e frase comum do Senhor Hemenegildo, dono de um pomar

Quiró está com as unhas dos pés fincadas numa saliência da parede, voltado para ela, e com a cabeça para baixo, dormindo.

Não sei de outro vivente que durma desta maneira. Dorme todo o dia e detesta a luz e mesmo as cores garridas e atraentes. Usa perpétuo fardão escuro tirante a negro ou cinzento sujo, avermelhado com mistura de cinza. Ao contrário chamaria atenção e poderia causar embaraço a quem ama sossego diurno e tarefa noturna.

O formato do pé de Quiró é responsável por esta atitude esdrúxula. Termina para a função preênsil e não sustentadora no plano da base erecta. O morcego não anda; praticamente arrasta­-se, cambaleante, aos tombos, desequilibrado, apoiando­-se canhestramente nas patas. Mesmo com outro plano de gravidade, as aves de extremidades preensoras possuem o andar oscilante e cômico, e são de fácil captura pelo escasso rendimento em deslocação. Lembremos as araras, jandaias e papagaios familiares. O morcego não foi feito para disputar carreiras e nem mesmo ostentar andadura decente. Com os pés que possui, Quiró não pensa em posições verticais. Mas os demais bichos de pés em garra não descansam com a cabeça voltada para o solo. Quiró não teria defesa dormindo no chão. Obriga­-se, pela determinação poderosa de sua útil sobrevivência, útil apenas ao próprio Quiró, de dormir alçado do solo, situação topograficamente conversível em escapação e sugerindo salame de fumeiro. Não lhe sendo permitido dormir deitado, pela situação das asas, e nem de pé, porque este membro não o sustenta convenientemente, aproveita a aparelhagem natural para dependurar­-se pelas unhas podais e dormir daquela maneira que sabemos.

Quiró desnorteia nossa visão normal. É quadrúpede e ave sem que o seja total ou essencialmente. Ave com mamas e dentes. Mamífero com asas úteis, destituído de bico e de penas. Asas sem o revestimento natural e sim membranosas. Contemporâneo ao Eoceno, milhões de anos anterior ao homem, revoa depois de ter atravessado as paisagens de todas as épocas pré­-históricas da Terra. As mãos são oito vezes maiores que os pés e três vezes mais compridas que todo o corpo. Todos os seus membros são desconformes, irregulares, desconjuntados. Anda de rastros e voa em ângulos agudos. Buffon dizia que Quiró mais parecia um capricho que uma obra regular do Criador. Luxurioso na sua repelente fealdade, possui o membro viril destacado e pendente como o do homem e dos macacos. Cuvier notou que o morcego tem os músculos peitorais mais fortes e mais carnudos que outro qualquer quadrúpede. Pode passar vários dias comendo ou passando fome rigorosa. Pela disposição dentária rói cascas, mastiga carne, suga polpas, sorve líquidos, tritura ossos.

Dizem que Quiró nasce dos ratos velhos. O primeiro Quiró teria esta gênese miraculosa como os muçuns e enguias provêm dos fios do rabo do cavalo mergulhados na água morta, e certas mariposas – não discutam – são transformações de antigos beija­-flores que se esqueceram de continuar a sê­-lo.

Quando os ratos macróbios perdem o sentido cenestésico viram morcegos. Continuam na missão saqueadora com a vantagem dos pedágios e com a duplicação do apetite. Apenas nos domínios da procriação entram num ritmo mais razoável. Em vez da ninhada guinchante, aparece um casal essencialmente mimoso aos olhos da senhora Quiró.

Não devo julgar (Nolite judicare, Mateus, VIII, 1) se o morcego foi rato nalguma fase de sua existência. Ingleses, alemães e franceses creem afirmativamente porque Quiró na língua deles é flittermouse, rearmouse, sledermaus, flaedermuss, chauve­-souris, onde o elemento “rato”, mouse, maus, muss, souris, está visível.

Quiró não dá importância a estas lucubrações biológicas de alta genética evolucionista. Nem mesmo prestou devida atenção a Cuvier que, em 1797, lhe batizou a família como quirópteros, de “mão e asa”, porque as membranas cutâneas se estendem entre os dedos fantasticamente alongados, envolvendo­-o até os pés. Polegares e dedos inferiores ficam livres, mostrando unhas agudas e preensoras. Usa e não usa do apêndice caudal.

Está no Brasil desde o princípio do mundo, mas sua utilidade restringe­-se aos direitos da alimentação e prolongamento da espécie que ele julga indispensável ao equilíbrio terrestre. Nas ilhas de Java e Trindade um morcego se presta à fecundação de algumas árvores mas esta operação independe perfeitamente da vontade intencional de Quiró. É ato inconsciente. Levando as frutas colhidas das árvores, transporta o pólen nos pelos, espalhando a vida vegetal. Fio que Quiró pensa apenas nas frutas como aliás todos os demais transportadores do pólen.

Não tem, que eu saiba ou tenha lido, lenda ou mito na memória popular. Servia para certas fantasias no carnaval, lúgubres e confortáveis.

Antes da reforma de 1772, o professor na Universidade de Coimbra que dava seu curso à boca da noite era denominado “Lente” ou “Cadeira dos Morcegos”.

Deus estava de bom humor quando fez o canguru, mas ria pensando no morcego.

A catadura de Quiró é de uma ferocidade cômica e de uma fealdade pilhérica. É um pequeno monstro que causa susto rápido e imediata raiva por tê­-lo tomado a sério. Com suas narinas arrebitadas, as orelhas soltas, as asas negras e finas como tafetá, os olhos rebrilhantes e negros, o riso feroz na dentadura completa, Quiró é mais carnavalesco do que assombroso. Isto deve desgostá­-lo porque todos os animais horríveis são subidamente orgulhosos da impressão espantosa que a figura determina.

A senhora Quiró tem apenas um casal de belezas de cada vez e os amamenta imediatamente, um em cada mama. O filhote, agarrado ao flanco materno, continua o abastecimento no voo, mesmo nas horas ásperas de caça e fuga em lá bemol menor. A délivrance é rápida e não altera a normalidade da parturiente na vida cotidiana. Não há restrições nos hábitos nem dieta alimentar. Mais ou menos quatro semanas de gravidez sadia.

Nenhuma das cem espécies brasileiras atinge envergadura notável e por isso arranjou­-se o nome humilde de Microcheirópteros para estes nossos patrícios. Os do meu conhecimento são onívoros mas indicam a espécie Desmodus rufos como ameaçadoramente hematófaga, responsável pelas sangrias no pescoço e dorsos dos cavalos, burros e jumentos, incisões e esfoladuras outrora atribuídas ao Saci­-Pererê, duende vadio, negro, unípede e tendo barretinho vermelho doador de tesouros a quem o arrebatava ao dono suspicaz.

O tabu da harmonia entre os morcegos merece solução de continuidade. Tenho assistido discussões guinchantes e coletivas, terminadas em voejos circulares para melhor aproveitamento das dentadas. Embolam­-se numa briga rosnada e confusa e vão ambos ao solo num baque surdo. Vezes despenca o menos ágil, convenientemente mordido e convencido de sua incapacidade de reação moral. Noutras feitas o debate apaixona muitos contendores e o orador desaparece entre os apartes ministrados a dentes, os dentes agudos e finos, e a sessão é suspensa numa dispersão de voos e encaramentos furiosos, face a face, com apoteoses fulminantes de luta geral embora momentânea. Dizer­-se que eles se divertem é duvidar da veracidade do sangue que lhes escorre no focinho digno de outra função.

Que Quiró respeite a propriedade privada de outro morcego e este a dele, é balela. Quando o urubu­-rei aproxima­-se da carniça, todos os súditos se afastam, num abre­-abre respeitoso e timorato até que sua majestade ingurgite o papo repleto. Mesmo os urubus não avisados da real presença, e os que chegam depois do ágape começado, abstêm­-se da proximidade do banquete solitário e ficam olhando, em êxtase, como o soberano sabe bicar uma carcaça nauseante. Jamais vi o urubu­-rei ameaçar qualquer dos vassalos. Há, realmente, um costume que se tornou hábito.

Não havendo traço de união entre Quiró e um urubu­-rei (Gypagus papa) nada semelha a tradição consuetudinária mantida nos dois domínios. Quiró sempre que pode não perde tempo em apoderar­-se de um redondo sapoti que está sento roído por um companheiro. E vice­-versa. Perseguem­-se mutuamente e o mais velho, que devia dar exemplo de renúncia e compostura, obriga pela insistência dos voos curvos que o colega menor solte o fruto, e o apanha num voo rasteiro espetacular.

Verdade é que brincam, ou jogam, em plena galhofa foliona e bulhenta. Voam perto uns dos outros, guinchando de pura alegria esportiva, multiplicando as acrobacias fantásticas que, vez por outra, esbarram numa cabeçada inesperada para nós, mas intencional e conscientemente preparada por eles, donos de radar, evitador de choques. A diferença é a escala mais espaçada das dentadinhas de amor e os guinchos não são aflitivos e longos como nas ocorrências da luta a sério. Constituem antes uma série de sons inarticulados, rápidos, curtos, repetidos com prazer. A hora favorável é ao anoitecer, antes do esquadrão largar para a caçada. Dura mais de meia hora. Uma hora, em tempo computável para o resignado observador. Nesta coreia as matronas tomam parte dançante, guinchante e mordente, com um filhinho de cada lado, imperturbável e mamante.

Não afirmo que Quiró mantenha o seu grupo sem alianças visitativas. Creio que o morcego não é hospitaleiro nem amigo de relações cordiais. Expulsaram, por duas vezes, dois colegas de raça e tope, sacudidos para o seu confortável manoir em hora acolhedora. Morderam, e os dois hóspedes saíram antes do horário previsto. Como os velhos romanos da República, Quiró pensa que estrangeiro é inimigo, hospes, hostis...

Creio que o grupo é possivelmente o mesmo, porque, contado e recontado, não mudou de número em várias semanas. Eram os mesmos dezessete, cabeça para baixo, dormindo quando os outros trabalhavam.

Todos os morcegos amigos meus não são insetívoros totais com abstinência de carne fora dos dias de preceito. Uma fruta lhes tenta tanto ou mais do que uma grossa mariposa noturna, um escaravelho grandão, uma lagarta indolente. Recuso­-me naturalmente a elaborar uma tabela nutricionista para os morcegos na base das predileções dos seus estômagos porque acredito que existam entre eles os requintados, os fastidiosos e os depravados, em matéria de alimentação.

De sua antiguidade Quiró guarda discreto comedimento e recatada modéstia. Há fósseis nos fosforitos de Quercy e mesmo no terciário de Paris mais abundantes nas cavernas quaternárias onde há camadas espessas do seu excremento, de mistura com restos ósseos perfeitamente identificáveis. Na mais reservada confidência tem mais de cinquenta mil séculos de permanência na face da terra e esta ancestralidade veneranda envergonhará os orgulhos do bípede sem plumas que tem brasão do século XIII e enumera os avós pelas alturas nevoentas do VIII. O morcego esvoaça desde o Eoceno Básico.

Discutem se Quiró é benfazejo ou nocivo em sua atividade noturna. Devora multidão de insetos daninhos, ou como tais considerados, mas o acusam, além das dentadas para chupar o sangue de cavalos, burros, jumentos e mesmo do Homo sapiens se o encontra a jeito, de ser responsável pela disseminação da raiva bovina, inoculada por ocasião de suas visitas hematófagas. Não está, entretanto, limpamente evidenciado que a raiva bovina ocorra na indispensável presença de Quiró, e que ele, somente ele, o malvado, a determine.

Para este problema abre­-se um outro que é o conceito da utilidade de certos animais vistos através do raciocínio do Homo loquens.

A base do útil é o interesse da vantagem auferida. O elemento útil pode ser dispensado do autoproveito, de ser útil para si mesmo desde que o seja para nós. A doutrina da servidão animal, fundada na própria doação divina, encarece demasiado a superioridade do Homo faber, fazendo­-o apenas usufrutuário do esforço inconsciente sem a retribuição que o direito natural obrigaria. O morcego não é mantido, alimentado, alojado, defendido pelo rei da Criação. Não lhe deve, fundamentalmente, deveres. Possui a anterioridade de sua presença na Terra e, como todo ser criado, possui os direitos irretorquíveis de vida e propagação. As áreas de sua atividade são limitadas às condições ecológicas e não sociais ou políticas. Quando o Homo sapiens, Adão ou os elos antropoides afirmaram existência relativamente racional, Quiró vivia há cinco milhões de anos. O direito é defender­-se a espécie prejudicada que, no momento, é constituída pelos animais sangrados por Quiró ou as frutas que ele babuja e mordisca nos pomares. Radicularmente o conceito da utilidade para o rei da Criação – nós dois, leitor! – é a extensão simples do seu uso em nosso serviço. A classificação fundamenta­-se unicamente na servidão produtora cuja legitimidade escudamos com a Bíblia. Quiró, evidentemente, jamais foi intimado desta sentença que o transforma em servo da gleba, vassalo eterno, escravo sem a possibilidade da manumissão legal. Todo esplendor reboante dos congressos científicos e da canonização dos direitos escondem a escravidão dos animais que, um dia, terão parcela de garantias vitais para sua permanência na terra.

Quiró alimenta­-se de certos acepipes dados pela Natureza a todos os viventes e paga­-se, inconscientemente, do serviço milenar prestado obscura e devotamente ao Homo sapiens “utilizando” as sobras do que ajuda a desenvolver­-se e prosperar. Nunca Quiró deduzirá que a sua missão terrena é devorar insetos para livrar o Homo faber desses incômodos e ampliar sua fazenda e conforto. Criado com o instinto que lhe defende a existência, indicando­-lhe alimentação específica e zona de sobrevivência, tanto a Natureza o formou para conservar­-lhe o tipo que, com cinco milhões de anos vividos, Quiró continua, com uma teimosia em que todo o seu ser participa integralmente, a usar da mesma técnica para prover­-se das “utilidades” necessárias ao seu organismo e família.

Compreende­-se que esta doutrina pró­-quirópteros, como houve outras defendendo vitoriosos ladrões romanos e erguidas pela voz poderosa de Cícero, que os absolveu da pena e culpa, fique provisoriamente no quadro das anomalias jurídicas e das “extravagantes” morais porque o egoísmo escurece muito mais que o fog de Londres.

O morcego que, mais das vezes, fica com fome respeitando uma tira de pano branco que suspenderam justamente no pomar de sua refeição, incapaz de assimilar a inocuidade daquele espantalho risível, evidencia a íntima certeza de que pertence a uma época em que os símbolos valiam como afirmações definitivas e fatais. Ainda encontrou o indígena que infalivelmente morria quando o pajé afirmava que ele estava perdido para a vida.

Imagine­-se a dificuldade de convencer aos peixes do mar de que sua existência se justifica pela ictiofagia do rei da Criação. Quiró, intrinsecamente, não está em serviço de ninguém.

Defensável é que o rei da Criação, bíblica e cientificamente um dos elos finais na cadeia zoológica, conserve sob domínio animais para sua alimentação, tração e transporte. Fora obrigado a submeter estas entidades a um longo período de doma e aprendizagem, domesticação intensiva durante gerações infindáveis depois de criatura tão simpática como era o Homem de Neanderthal.

De outro ângulo, certos produtos da operosidade animal pertencem menos aos fabricantes que ao captor, mel e cera de abelhas, por exemplo. Identicamente, a lã dos carneiros que tiveram a desventura de possuir exagerado agasalho por unidade. Quiró não foi amansado e nem oferece produções individuais de rendimento útil ao rei da Criação. Era tempo de reconhecer­-lhe o elementar e primário direito à vida, com as restrições preliminares às demasias de sua atividade, sol­-posto. Para isto a defesa racional dos pomares agredidos é mais essencial que a campanha contra a integridade física de Quiró.

Convinha debater­-se esta perspectiva jurídico­-social no futuro Congresso Internacional dos Direitos Animais, alheios aos interesses do Homo faber. Evite­-se, prudentemente, que o embaixador de Quiró, na base sentimental de sua opressão convenientemente manejada, organize um partido político entre os bípedes implumes e deseje reformar a sociedade oriental e ocidental dentro da concepção libertária dos quirópteros.

Termino lembrando que compreender vem de cum e prehendere, e este é o nosso prender, atar, segurar, ligar, embaraçar, encantar, apanhar, tomar etc. etc., e junte­-se a preposição “com”, de, às vezes, fatídica relação de companhia e cumplicidade. Deduz­-se que só compreendemos quando dominamos, assimilamos, cativamos a coisa “compreendida”. Quiró é uma desta exceções. Não podemos ainda compreendê­-lo totalmente e mesmo para conhecer o íntimo mecanismo fisiológico, interesse nosso e não de Quiró, extirpamo­-lo vivo, rasgando­-lhe carne, nervos, cartilagens, partindo­-lhe os ossos e arrancando­-lhe os olhos, como em meados do século XVIII já fazia Lázaro Spallanzani, sábio e piedoso jesuíta de ordens menores e maiores na cultura experimental do seu tempo. Tudo para “compreender” como Quiró, com os olhos ausentes, voava no escuro evitando os obstáculos.

O morcego é muito familiar e todos nós conhecemos sua figura. O Homo sapiens, que já desintegrou o átomo, aplicado para finalidades filantrópicas em Nagasaki e Hiroshima, 1945 anos depois do nascimento de Jesus Cristo, não conseguiu apoderar­-se de certos segredos funcionais de Quiró e daí submetê­-lo aos suplícios da pesquisa laboratorial.

Como somos nós a medida de todas as coisas, calculamos pela nossa a inteligência dos animais, e nunca pensamos na valorização dos atos que só o animal pode fazer e que talvez seja este um ato essencial à sua vida, e nos passe despercebido ou julgadamente banal. Se a curiosidade desvendou muito da vida dos grandes mamíferos, muito pouco, quase nada, sabemos dos insetos que não se deixam examinar tranquilamente e não estão dispostos a repetir movimentos e costumes debaixo dos olhos próximos dos sábios universitários. Nem sabemos mesmo se o ambiente artificial, declarado “inteiramente idêntico ao natural”, que cerca o animal observado no laboratório, não modifica insensivelmente certas reações personalíssimas da examinada vítima.

Nunca uma criatura humana despertou enquanto Quiró chupava­-lhe o sangue. Não se sabe o analgésico empregado para manter a vítima adormecida e passiva aos sorvos lentos do quiróptero. Tentei transformar­-me em campo experimental, dormindo despido da cintura para cima em recantos sabidamente favoritos de Quiró da espécie hematófaga. Queria apenas saber até onde ia a técnica do morcego nos assuntos da narcose. Fui decepcionado porque Quiró deixou­-me incólume e foi exercer a técnica estupefaciente no jumento Catolé que não estava interessado de maneira alguma na operação. Não posso, decorrentemente, dar meu depoimento pessoal.

Diziam que a incisão é feita com as unhas e não com os dentes. Como é possível conseguir a insensibilidade local para o arranhão daquele estilete que é a unha de Quiró? Feita a esfoladura, segue­-se a sucção demorada e substancial enquanto o homem ressona. Contam que Quiró abana a ferida com o adejo das asas funcionando em leque. Outros explicam que o morcego esfrega a região para o talho primeiro com o focinho macio e tépido como uma bochecha de criança. Já tenho deparado Quiró ocupadíssimo em sugar o dorso de cavalos mas nunca notei o abanar refrigerador das asas. Vi apenas a nódoa negra do morcego imóvel sobre sua vítima impassível e aparentemente sem nada sentir.

Um homem apesar de Rei da Criação tem sono pesado relativamente aos animais que acordam facilmente sob a mais ligeira provocação. Como suportam a operação de Quiró durante tempo possivelmente longo? Mistério. Atinaram finalmente que o segredo está na língua do morcego, do morcego hematófago, pontuda e eriçada de papilas duras e muito finas, agudas e dirigidas para trás. Com o atrito de lixa desfaz a epiderme, couro, pelo, e age. Naturalmente, para as regiões pilosas, Quiró prepara o campo operatório limpando­-o cuidadosamente antes do serviço atritador lingual. Houve tempo, tempo de Buffon, Cuvier, Daubenton, Roume de Saint­-Laurence, últimas décadas do século XVIII, que se ensinava Quiró insinuar os alfinetes sugadores da língua nos poros, alargando­-os, penetrando­-os e podendo obter sangue fácil.

Mas não sei se estes sábios chegaram a ver uma ferida feita pela chupação do morcego. É como uma úlcera. Uma esfoladura mais longa que larga, cuja orla é o sangue coagulado. O morcego fica, quase sempre, na mesma posição e a abertura é a mesma também. Dizem os entendidos, entendidos proprietários dos animais feridos, que as chagas indicam o número dos morcegos e não as mudanças dos pontos de sucção.

Mas não foi possível explicar como o morcego evita a sensibilidade local para realizar seu trabalho como se manejasse matéria inerte.

Será que Quiró segrega com a saliva uma substância analgésica, suprimindo a dor da esfoladura e sucção na carne viva? E como obtém o mesmo resultado ao incisar o couro ou pele ainda sem o analgésico? Esta secreção sedativa só ocorrerá nos atos da ação hematófaga porque o morcego noutras ocasiões e possibilidades, irado quando o pegamos a mão, morde, e esta mordidela é dolorosa. Logo aí não intervém o calmante.

Estamos esperando a decifração.

Quiró se orgulha de outro mistério e este único dentre todos os entes da terra. O segredo de sua orientação entre obstáculos inesperados e no meio das trevas. Passa sem chocar­-se com nenhum deles como se fosse dia luminoso e mesmo assim, no inopinado do encontro, é surpreendente a rapidez com que se esquiva.

A face é coberta de carúnculas e os pelos numerosos plantados sobre terminações nervosas serão membros táteis. Não táteis ao contato imediato mas sensíveis aos afastados, recebendo e captando emanações dos obstáculos longe, registrados numa rede extensa e possivelmente esparsa pelas asas e face, zona receptiva de uma sinalização irradiada pelos embaraços materiais muito além de sua acuidade normal. A onda sutil e sonora (infra e super) emitida por suas asas choca o impedimento e volta repercutindo, impressionando centros nervosos que transformam esta sensação numa imagem motora.

Curioso é que este radar, legitimíssimo radar com milhares de séculos de antecipação ao aparelho que conhecemos, não é apenas um núcleo delicado de registro mas um modificador automático de rota, mudando a direção do voo. Aquela trajetória sinuosa e brusca do percurso de Quiró é uma consequência, uma média raciocinada das diversas e repetidas mensagens que recebe e que orientam a viagem às cegas com uma precisão, segurança e naturalidade admiráveis. O radar não modifica a rota. Informa.

O melhor volante de automóvel não é capaz de evitar o desastre numa curva fechada, espatifando o objeto que não viu e não podia prever. Chegou mesmo a divisá­-lo mas não houve tempo para a manobra evitadora. É preciso que a imagem fique acomodada na perspectiva e se torne sensação transmitida ao cérebro e daí aos músculos que executam o processo da freagem. Criança, cachorro, carrocinha de maçãs viram destroços sem estes dois fatores indispensáveis: visão e tempo para o mecanismo transmissor da ordem. Se estes gestos já tivessem se tornado reflexos, os jornais na seção de desastres passariam a folhas in albis. Quiró consegue desviar­-se do que não vê, o que deparará alguns segundos ou minutos depois, no ímpeto do seu voo rápido. Peço licença para citar Camões, Os Lusíadas, V, 22:

Vejam agora os sábios na escritura

Que segredos são estes de Natura!

Só a luz anula a eficiência do radar quiropteriano. Atraído pelo clarão, voejando pelo desconhecido aposento, Quiró esbarra duramente nas paredes em cabeçadas humilhantes para inalterabilidade em matéria de navegação. Não só há impactos com a cabeça como também os ângulos não foram mais previstos e as roçaduras pelo salão tomam proporções alarmantes de visível imperícia.

O radar de Quiró poderá reduzir­-se também a um poderoso órgão olfativo. O sentido do olfato é impressionado pelas partículas gasosas odoríferas vindas de longe. Poderá Quiró receber estas emanações, identificando­-as pelo odor, e desviar­-se dos centros irradiantes.1 Hipóteses, mas elas abrem caminhos na mata fechada. A futura estrada real é a soma destas picadas audaciosas na floresta semivirgem.

Quiró localiza, num raio de quilômetro, as frutas que amadurecem e os tipos que ele sabe saborear. Não tem exploradores nem recebe comunicação prestante da quinta­-coluna. Quem possui sapotizal sabe a veracidade desta notícia. Até que os frutos marrons fiquem “de vez”, ainda leitosos mas com a polpa adocicada e a pele fina e retesada, não há sinal de Quiró pelas cercanias. Sua presença é a denunciação infalível do estado dos sapotis e sapotas do pomar. Não seria o perfume, o mensageiro à sensibilidade extrarreceptora de Quiró? Localizar o órgão é fácil, mas talvez existam auxiliares para veículo transmissor. Pelo som.

Há duzentos anos, Spallanzani cegou quatro morcegos e jogou­-os num quatro escuro atravessado por fios estendidos verticalmente. O Quiró de 1756 desviou­-se agilmente de todos os empeços e Lázaro Spallanzani escreveu, com sua erudita pena de pato, o primeiro registro desta habilidade. Apenas agora estamos registrando a mesma com outros matizes e comentários mas unicamente Quiró sabe por que e como faz para ter a percepção dos obstáculos distantes.

Antes de 1587, Gabriel Soares de Souza (cap. LXXXVI) era o primeiro a comunicar no Brasil que “quando estes morcegos mordem alguém que está dormindo de noite, fazem­-no tão sutilmente que não se sente; mas sua mordedura é mui peçonhenta”. O grande observador colocou Quiró entre as aves, simpatia maior que valoriza o morcego lembrando sua clássica e única anedota. Quiró soube que dois congressos estavam reunidos. Um, dos mamíferos, presididos pelo leão, e outro das aves, presidido pela águia. Quiró apresentou­-se ao primeiro e foi expulso porque não havia lembrança de bicho com peitos e com asas. O segundo recusou Quiró por faltar­-lhe o bicho e ostentar mama. Quiró, pelo exposto, não tem aceitação legislativa.

Principal condutor da raiva, segundo alguns estudiosos indiferentes à beleza de Quiró e elegância dos seus volteiros fulminantes, é o carregador inconsciente e automático da peste rábica, acima e livre de qualquer contaminação. Portador do vírus, não sofrerá de zanga mortal. É o que ensinam, mas não sei se Quiró concordará. Quem nos garante o morcego não sofrer epidemias e ter sua massa familiar dizimada pelo flagelo? A notada diminuição dos quirópteros em certas épocas, não fixas, teria explicação razoável pelo aparecimento de pestes súbitas. Mas é de notar que a peste rábica surge às vezes em regiões onde os morcegos são raros ou diminutos. A fama decide Quiró a aceitar a paternidade do ônus letal. A nobreza obriga...

Os quirópteros hematófagos são silenciosos ou quase taciturnos. Compreende­-se que lhes reveste a dignidade de provadores do sangue, uma das sedes da alma. Os morcegos que colecionam no estômago insetos e frutos são mais ou menos ruidosos e amigos do seu (deles) ruído e não dos barulhos alheios. Para fazê­-los perder o apetite basta uma longa faixa branca e movente de fazenda, ondulando na noite. Ou uma tira de folha de flandres que estale e alveje no escuro. Quiró deserta, indignado e respeitoso ao desconhecido. Estes espantalhos estão na classe dos tabus. Há outro meio direto e incisivo. Espalhar, equilibrando entre os galhos carregados, alguns molhos de urtigas (Urtica urens, L. Urera baccifera, Gand). Quiró arranha­-se e voa furioso com o possível prurido insuportável. Mas dizem que a urtiga dilacera as asas de Quiró, reduzindo­-as a frangalhos, impossibilitando­-as para o voo, condenando­-o consequentemente à morte pela fome porque não está organizado o serviço de assistência social entre os morcegos.

Dos amores morcegais não tenho autoridade para denunciá­-los como Jean Rostand fez aos infusórios e Lucien Berland aos crustáceos. São finuras francesas que minha romba penetração brasileira e tropical admira mas não pode colaborar.

Recordo­-os, aos morcegos, despencando das alturas, estreitados num amplexo alucinante que a queda final não teve o condão de interromper senão alguns segundos depois. Só então o senhor e a senhora Quiró separaram­-se do abraço genesíaco, ventre a ventre, contundidos e saciados pelas duas emoções. Tentaram os passos lentos e trôpegos e alçaram o mole voo para o firmamento do telhado escuro que era o lar, doce lar...

1 O Instituto de Zoologia da Universidade de Munique conseguiu a representação gráfica, Graphische Darstellung (1957), das ondas ultracurtas que o morcego emite pelo nariz para localizar pelo eco os obstáculos opostos ao seu voo.