O rato decúmano incomodou muito ao Imperador
Napoleão na Ilha de Santa Helena.
F. Martin e Rebau
Ao José Pires de Oliveira (1912-1966),
companheiro na obstinação da pesquisa e paciência de observação
A digestão de Gô obrigou-o a dormir até depois das quinze horas. Gô possui vários locais de repouso e um apartamento privativo que se localiza debaixo da cozinha, entrada pelo lado oposto à porta derribada. Há um declive suave de barro vermelho que leva à porta ovalada e suja dando entrada para o salão de estar, quarto de cama e aposento de devaneio, além de gabinete de estudo dos planos de saque, pesquisas, explorações fiscalizadoras e expedições punitivas às mercearias, dispensas e demais recantos onde os comestíveis aguardam sua visita proveitosa.
Quando o sol bate o ouro luminoso na porta da caverna de Gô é porque está em declinação sensível. Na língua dos homens serão quinze horas ou pouco mais. Cai, serena, a viração da tarde e os ventos do mar lavam campo e cidade em lufadas refrescantes e doces.
O aposento do ratão cinza e ébano, e ventre alvacento, é mobiliado com precisão no plano das utilidades relativas ao proprietário. Há uma coleção heterogênea de relíquias dos assaltos antigos, restos secos de alimentos, farrapos de pano, tiras de papelão sem cor, latas decenárias, vagas coisas imprecisas e enferrujadas, pedras, bolotas de barro, pala de boné, vidros quebrados, pedaços vistosos de papel colorido, festões roídos, estofos, pontas de almofadões, bricabraque reunido sem razão e amontoado no velho instinto ratoneiro de guardar o furto feliz embora desaproveitado.
Ali Gô dorme e sesteia quando as obrigações inadiáveis não determinam sua presença noutros pontos. Permanentemente atarefado, em movimento contínuo, mal tem tempo para o asseio corporal indispensável à sua estirpe e tradição. Usa apenas e bastante o focinho como escova, e a língua para substituir a esponja úmida. Examina-se minuciosamente, acamando os pelos eriçados e fora do alinhamento normal. Corrige o aprumo dos bigodes ornamentais, cofiando-os com as patas solícitas, quase fio a fio. Revista o lado interno das coxas, pés, lambendo com atenção justo os lugares suspeitos de nódoas dispensáveis. Revirando a cabeça vistoria o lombo numa olhada fiscalizadora. Detém-se, segurando a cauda, numa análise pensativa e demorada entre carícias e passos higiênicos. Retifica o focinho, estende as patas, espreguiça-se, estira-se, curva-se, andar lento, contrai os músculos posteriores e anteriores, calculando-lhes resistências, e durabilidade. A língua pontuda, rubra, obediente, percorre-lhe o corpo inteiro como um jato morno e fino de água tépida. Deita-se. Levanta-se. Sacode-se. Tufa os bigodes de mosqueteiro da Rainha, adianta pata a pata num exercício distensivo, lento e enérgico. Balança-se numa atenção final. Está pronto.
Gô tem o nome sisudo de Mus decumanus mudado para Mus norvegicus. Na França o denominam Surmulot e goza dos direitos históricos. Gô invadiu a Europa no século XVIII vindo da Pérsia. Atravessou a Rússia, Áustria, Alemanha, França, espalhando-se para os Balcãs e Península Ibérica. Pulou para a Inglaterra. Apareceu na Itália, instalou-se no Mediterrâneo. Representante e consequência do imperialismo colonizador e invasor, viajou nos navios mercantes, descendo como turista na terra latino-americana e deixou-se fixar, multiplicando-se com a maior sem-cerimônia deste mundo, sem passaporte e permis de séjour.
Na França bateu-se com o rato negro, potentíssimo frequentador dos Inocentes e Montfaucon, cantado em prosa e verso, o rato clássico do Renascimento e da Idade Média, companheiro de François Villon e do Jongleur de Notre Dame. O rato negro (Mus rattus) não resistiu à ferocidade de Gô, sólido, audaz, esfomeado, indo a 40 centímetros de tamanho implacável no emprego das presas afiadas como punhais nativos de Ispahan.
Derrotado o velho rat noir, Gô dedicou-se a expulsar o mulot dos bosques e dos campos, o rato das festas campestres (Mus sylvaticus), de 24 centímetros de extensão. Ganhou aí denominação francesa, por ser superior ao mulot, um sur-mulot, surmulot dos nossos dias de Paris, rato burguês, operário, burocrata, boêmio, de residências, avenidas, esgotos e pradarias policiadas, le gros rat gris inextinguível.
No Brasil, desde George Marcgrave, ao redor de 1642, havia o nome de guabiru dado ao rato comedor de todos os alimentos, atrevido e prolífero, do nheengatu guabi, comestíveis, de r-ú, comer, devorar, segundo Teodoro Sampaio. Gô ainda não se incluíra entre os brasileiros mas ao chegar recebeu o apelido que lhe serviu como feito sob medida.
De sua disseminação espantosa, roendo a bagagem dos exércitos em todas as campanhas setecentistas, indica-se a presença na Ilha de Santa Helena, 1815-1821, onde teve a honra de tornar-se incômodo ao próprio Imperador Napoleão Bonaparte.
Da perfeita sintonização dos guabirus quanto a um determinado alimento há a velha anedota de P. Martin e Rebau, sem localização, mas popular em quase todos os portos do mundo. Um navio mercante infestado por Gô ancorou vizinho a uma escuna holandesa carregada de queijos. O odor forte atraiu as ratazanas que se apinhavam, guinchando de gula. Um marinheiro colocou uma prancha entre os dois navios e Gô, em poucos minutos, transpôs a ponte levando todo seu povo sem que ficasse um só espécime para amostra. Não sei que espécie de suicídio escolheu o capitão da escuna holandesa no dia seguinte.
Possivelmente Gô atingiu o Brasil ainda em fins do século XVIII ou nas primeiras décadas do XIX, com a abertura dos portos ao comércio marítimo, veículo natural do emigrante indesejável e espontâneo. Espalhou-se pelas cidades litorâneas e só atingiu alguns pontos centrais no século XX e não, felizmente, em muitos lugares. Rio de Janeiro, Santos, Bahia, Recife foram interpostos exportadores de guabirus para sul e norte brasileiros. O “rato-do-porto” é um dos sinônimos acolhedores de Gô.
Onívoro, valente, ladrão, orelhas redondas, cauda longa, patas despidas de pelo, é também mentiroso, cínico e adulador conforme as circunstâncias. Há cinzento-escuros, quase negros, com tonalidades amareladas mas o ventre é sempre de matiz mais claro. Dois a três partos de oito a doze filhinhos por ano, amamentados com carinho, tratados com desvelo e abandonados com indiferença desde que aprendam a técnica de toda gatunagem produtiva e os segredos de evitar ou adiar os castigos legais.
Seus outros apelidos são: ratazana, rato rabo-de-couro, e, no Nordeste, guabiru ou gabiru, como queriam. Para vendeiros e merceeiros há também o título de “amaldiçoado”. O tipo mais comum é de 22 centímetros totais. Há maiores e tão robustos que intimidam gatos e cães que não sejam rateiros exercitados.
Suporta e sobrevive intacto aos calores da Pérsia, gelos da Rússia, invernos da Europa Central e do Leste, travessias oceânicas, rigores de Londres, verões tropicais do Continente Americano, clima de Nova Iorque e de Punta Areña, sertão do Nordeste, planície amazônica, alagados de Marajó, docas do Rio de Janeiro e de Santos, cais de Buenos Aires.
Sobe velozmente às árvores, descendo com a cabeça para baixo como um acutipuru. Nada excelentemente. Pula com desembaraço. Seu corpanzil espesso é grosso, maleável e flexível como borracha. É surpresa vê-lo espremer-se entre as ripas de um telhado, estreitezas dos enxaiméis, angústias de uma telha e outra, e escapar. Assombro calcular-se o volume do seu corpo avantajado com as reduzidas dimensões de uma abertura pela qual incontestavelmente passou e desapareceu. É um corredor admirável, com o rabo esticado na horizontal para não prejudicar o impulso.
Come o que encontra e o que deparar. Gatos e cachorros novos, frutos, carnes secas e de fumeiro, ovos, papelão, couro, esteiras, coleções de jornais, arquivos de títulos de dívida pública, relatórios, pareceres, processos civis ou criminais. Frequenta latas de lixo, montureiras, depósitos de imundícies, hotéis de luxo, mercados sem vigias, depósitos e armazéns de cereais.
Vezes espalha-se a notícia de que um hipotético timbu está “acabando” a ninhada de pintos de raça. Qual timbu, gambá, mucura, micurê, suruê, sariguê, sarigueia, cassaco (Didelphis aurita), qual nada! É o guabiru o responsável pelo massacre.
Assisti na granja de meu pai a um combate singular entre Gô e uma galinha de pintos.
Gô penetrara na seção das poedeiras onde estavam galinhas no choco e com ninhadas. Mal a galinha o avistou, atacou-o impetuosamente, com cinco adagas em cada pata, batendo-lhe as asas furiosas no focinho, atordoando-o, e sacudindo bicoradas ferozes que valiam golpes de sabre. Gô arremeteu, bufando, o pelo todo arrepiado duplicando-lhe o volume ameaçador, dando focinhadas raivosas, e roncando. A galinha sustentava a defesa, gritando, e uma das bicadas acertou num olho do guabiru, vazando-o. Gô recuou, guinchando, e abandonou o debate, trôpego, sem acertar com o caminho por onde tivera a desgraça de vir. Pude abatê-lo com uma paulada e ver a galinha, que o seguira indignada, tripudiar sobre o cadáver do inimigo com beliscões triunfantes.
De sua obsessão heroica até o sacrifício tenho um documento autêntico e raro.
Um meu primo possuía uma mercearia próxima à estação do caminho de ferro e decorrentemente visitada por Gô todas as noites. Decidiu espalhar várias ratoeiras em lugares estratégicos. Pela manhã encontramos uma ratoeira sem a isca do queijo e prendendo dois terços da cauda de um guabiru e a seguinte, com a isca intacta, segurando Gô, de pescoço esmagado. Pelos caminhos de gotas de sangue reconstituímos o drama do guabiru.
Gô, deparando a primeira ratoeira, com o pedacinho de queijo do Seridó, ressumando manteiga, fizera menção de provar o acepipe e a mola disparara, amputando-lhe mais da metade do rabo. Gô fugira deixando as reticências de sangue até o fim do armazém, fazendo rodeios, reviravoltas, tentando alcançar com o focinho o coto da cauda sangrenta. Correra em quase todas as direções, aliviando a dor na multiplicação dos movimentos e terminara sossegado. Voltara tranquilamente à ratoeira, saboreando o queijo que lhe custara o sacrifício do apêndice.
Restaurado, divisara a segunda armadilha e fora servir-se. A argola caíra-lhe no pescoço, esmagando-o. Gô aí ficou. Há predileções menores mas não superiores.
Este Mus norvegicus é alto responsável pelas assombrações noturnas e graças às suas corridinhas, andar grave, bufidos e roncos, estalamento de madeira velha, impressões de alguém escarrar, pisar vagaroso, empurrar portas e janelas, soprar nas proximidades do leito, tem despovoado residências e derramado popularidades mediúnicas.
Costuma fazer sua despensa à custa da despensa alheia. Carrega laboriosamente frutos, pedaços de carne, para a sua caverna. Come lá ou esquece a matalotagem que apodrece sem que Gô sinta necessidade de renovar o ambiente asfixiante para outros pulmões.
Uma sua curiosidade é arrastar alimentos para devorá-los em recantos solitários onde ninguém o incomodará. Quando residiu no interior da velha cozinha, Quiró associou-se, por vocação espontânea, às reservas de Gô e este transferiu a residência para local de acesso difícil ao morcego tão amigo dos bens alheios.
Olhado de certo ângulo parece um guerreiro tártaro, da guarda pessoal de Gêngis Khan. Um dos ciúmes mais vivos é a incolumidade pulcra do seu bigode cujos fios são sensíveis ao tato como órgãos de apalpação à distância. Cortar os bigodes a Gô não somente é diminuí-lo no plano estético como desequilibrá-lo quantitativamente.
Não conserva família nem nutre os filhos. Deixa estes encargos à companheira, com quem mantém sentimentos primários. Ele cumpre a missão suprema da fecundação e a fêmea lhe deve eterna gratidão pelo resto da vida, segundo intimamente pensará, a deduzir-se pelo seu comportamento alheio aos amores paternais.
A senhora Gô perpetua sua amável espécie três vezes por ano, com oito a doze filhinhos de cada vez. Ao terceiro parto a senhora Gô já tem netos e netas procriando porque aos quatro meses o jovem Gô já prova o doce amor conjugal in partibus. Aleita-o gracioso rebento em ninho morno, alimenta-o, cerca de trinta dias, com as gulodices que lhe abrem o apetite e logo depois mostra o buraco de saída do palácio, mandando-o viver por conta e risco próprios.
O antigo Mus decumanus Pall é o tipo excelente do rato social. Acompanha o homem não para servi-lo, como o cão, o cavalo, o boi, mas para servir-se dele, de sua indústria cujos produtos lhe agradam excessivamente. Assim onde vai o homem com suas ciências, fazendo o pão, o queijo, o toucinho, o azeite, a manteiga, as carnes salgadas, secas ao fumeiro ou ao sol, Gô o segue como uma sombra solícita. Não lhe presta o menor auxílio, nem mesmo diminui pragas de insetos com sua voracidade, como o morcego. É um colaborador apreciável na consumação dos alimentos, hóspede inconvidado e permanente, comensal conturbativo, não somente na alteração dos cálculos das reservas das vitualhas como desfazendo o arranjo dos aposentos e destruindo quanto pode destruir.
Dir-me-ão que Gô é um elemento na circulação e produção das utilidades porque obriga sua substituição e criação decorrentes. Certas coisas demorariam mais tempo se Gô não trouxesse o auxílio inapreciável dos seus dentes incisivos, afastando-as definitivamente do uso. Modifica, graciosa e inesperadamente, a durabilidade de móveis, imóveis e semoventes. E do seu índice de civilização basta lembrar que veio da Pérsia e jamais abandonou a companhia humana, proclamando a indispensabilidade do Homo sapiens para sua manutenção e conforto familiar. Esta fidelidade, tão mal registrada, nunca mereceu o justo relevo por parte dos sociólogos e antropologistas culturais.
O hábito de fazer reservas na sua caverna evidencia que Gô possuiu antepassados vivendo em terras de inverno que obrigavam a um estágio mais ou menos prolongado nas atividade predatórias. É, pois, rato sedentário, com situação estável, definida, compreensiva quanto ao levantamento estatístico do seu povo no espaço. Mas, para atrapalhar as deduções humanas, é amigo de migrações, visitando em massa o campo especialmente em época de frutificação de certas especialidades do seu paladar.
Bruscamente uma localidade é invadida pelas hordas de Gô, alarmando a tranquilidade pública, atacando os outros concorrentes e com pouca possibilidade de meios defensivos, espavorindo donas de casa e guardas dos depósitos. Convergem naquele centro de interesse as técnicas para enfrentar Gô e seu bando famélico, ratoeiras, armadilhas campestres, venenos, cães especializados (pelo menos na fama) e gatos famosos que, em boa verdade, preferem alimentos preparados pelas suas donas e donos ao sabor da carne sangrenta de uma ratazana crua. Rapazes e moças sentimentais, crianças curiosas, amores adiados ou difíceis, solucionam-se com a ingestão dos tóxicos destinados a Gô e este, sem querer, aprecia a abertura de um novo ciclo social e ativa movimentação jornalística nas seções respectivas aos desastres pessoais e suicídios inconcertáveis.
É de notar que, atenta à proporção assustadora da descendência de Gô, muitos filhos e pelo menos dois terços procriando com quatro meses de nascidos, a família recobriria uma área de vinte quilômetros quadrados com uma camada de trinta centímetros de ratos apinhados, uns sobre os outros em dois anos. Há, notavelmente, uma curva na massa existente e, sem explicação plausível, a rataria graúda diminui, sem que se possa atribuí-la aos processos normais de guerra ao povo de Gô. Podia, e pode, tratar-se de uma onda epidêmica fulminando centenas de milhares de tipos, fazendo baixar o nível da família abundante com as areias nas praias do mar. Mas nem sempre os ratos mortos são encontrados como acontece nas ocasiões sinistras da peste bubônica. O guabiru desapareceu, sensivelmente, e é esta a hora amável em que ele realiza o seu festivo camping, excursão gastronômica e recreativa, financiada à custa das vítimas produtoras da região visitada.
Ao contrário de quase todas as espécies, cujos machos só se batem na época amorosa, Gô tem ânimo belicoso e seus duelos são vistos e apreciados constantemente. O motivo central é a disputa do que está comendo ou do que pretende comer e outro Gô o antecipou na mastigação.
Naturalmente combatem pela fêmea como os cães, lagartixas e aves, combate que antecipa a fixação da escolha por parte feminina ou posse do macho solidário – pela afastação dos concorrentes derrotados. Infelizmente não fui testemunha destas andanças.
O nobre Georges Louis Leclerc, conde de Buffon, confidenciou na sua informação prestante e linda:
Les rats sont aussi lascifs que voraces; ils glapissent dans leurs amours, et crient quand ils se battent; ils préparent un lit à leurs petits, et leur apportent bientôt à manger; lorsqu’ils commencent à sortir de leur trou, la mère les veille, le défend, et se bat même contre les chats pour les sauver. Un gros rat est plus méchant et presque aussi fort qu’un jeune chat; il a les dents de devant longues et fortes.
O debate se inicia por uma focinhada brusca e peremptória. O desafiado reage imediatamente e o prélio se encarniça entre bufos, rosnados, guinchos curtos, pelos eriçados, rabo tendido como se fosse de arame. Os sons roucos devem significar excitações, insultos contundentes entre os dois guerreiros assanhados. A batalha não comporta o corpo a corpo e sim uma troca de ataques breves, com defesas nos saltos e réplicas nas dentadas. Os dois rodam ao derredor, procurando que o adversário se descubra para um bom talho no pescoço e, idealmente, na garganta, lugar vulnerável e difícil. Mudam constantemente de pontos, circulando-se, desfechando a cutilada imprevista que dura segundos. É uma demonstração de resistência e de rapidez. Os longos dentes incisivos de Gô não lhe permitem fixar a dentada e sim dar cortes de adaga. A posição deles no maxilar facilita a roedura mas não a dentada heroica. Assim há uma série de golpes sucessivos, seguidos, imediatos, cortantes, um após outro, interrompidos pelos rodeios, rosnaduras agressivas, pausas preparatórias do reinício da peleja. O sangue os exaspera, excitante, sacudindo-os para a ferocidade, embora a técnica continue a mesma, apertada, feroz, cerrada, dentada sobre dentada. Não se erguem nas patas nem a cauda intervém, como entre os camaleões ou tejuaçus combatentes. Finda a justa pelo abandono do campo, um antagonista foge, perseguido pelo outro até certo trecho de caminho. Já não está em situação de picar o inimigo, aproveitando o desfalecimento defensivo na retirada.
O vitorioso, resfolegando, pode então roer o botim deixado pelo inimigo.
Tudo quando o Senhor de Buffon escreveu sobre a dedicação aos ratinhos ofereça-se em homenagem à senhora Gô. O seu ocasional marido nem sequer admite o mesmo domicílio. Continua na sua velha caverna e a senhora é que aceita, jubilosa, os encargos da manutenção, vigilância e defesa da prole. Gô não tem tempo para estes sentimentos incompatíveis ao seu temperamento individualista, solitário e pirateiro. Depois que a senhora Gô recebeu os ratinhos, Gô nem mais aparece por perto. Missão cumprida, meus senhores...
A senhora Gô, por seu lado, desinteressa-se totalmente do companheiro de outrora. Durante uns trinta dias está ocupadíssima com os filhinhos maravilhosos. Que utilidade terá para ela Gô que nunca a protegeu e jamais trouxe, pendente dos dentes, um fragmento de coisa para comer? Nem mesmo lhe fez corte e vênias devidas ao sexo? A senhora Gô, tendo filhos em estado de aptidão para a vida, pouco mais de mês de existência, está livre de qualquer vínculo obrigacional. Filhos sim, marido não. E mesmo aos filhos já não os considera como tais. São outros tantos machos que a podem procurar e bater-se contra os irmãos pela sua posse. Talis vita, finis ita...
Há documentos e observações sobre uma fase em que o guabiru agride e mata seus semelhantes mais fracos e os devora, deixando apenas a cauda e as patas. Não sei se é permitido dizer “canibalismo” para esta crise entre ratazanas. O canibal possuía no antropofagismo uma explicação de incorporar as virtudes valentes do devorado no devorante. E havia um certo ritual que os velhos cronistas registraram. Não era o gosto exclusivo pela carne humana que levava o guerreiro a assar no moquém o vencido.
No mundo dos guabirus a razão será, inicialmente, falta de alimentação. É quase impossível verificar-se este estado na normalidade ecológica em que vive Gô. Não tenho observações e depoimentos para atestar pela afirmativa nem chegar a negar o que tanto homem ilustre afirmou desde meados do século XVIII. Deixo apenas o registro no plano das possibilidades sem evidências de maior clareza perceptiva.
Não me consta que Gô suba às árvores procurando ninhos para furta-lhes os ovos. Na mangueira talvez respeite as tapiucabas, implacáveis para qualquer violação territorial. Já o tenho visto empoleirado na goiabeira e descendo com uma goiaba atravessada nos dentes, feliz da vida.
No ouro matinal, Gô atravessa o canto de muro farejando, focinho baixo como um porquinho negro. Rápido, inquieto, indeciso, parando e recomeçando a marcha miúda e surda, detendo-se para identificar restos de frutas e folhas tontas, enroladas e verdes que os xexéus fizeram cair da mangueira, sua sombra está em toda parte, silenciosa e indagadora, pesquisando a possibilidade do almoço. Agora o vejo, olhinhos brilhantes, os tufos brancos do bigode mongol palpitantes; avança num leve fungado curioso para a ruma de tijolos, a casa-grande da região. O faro adverte-o da presença perigosa de alguns moradores de dispensáveis relações próximas, Licosa e Titius, e continua a jornada calada e sutil, olhando as redondezas mudas. Parece-me Sir John Falstaff, gordo, glutão, vaidoso, covarde e cínico, não o Falstaff da Guerra dos Cem Anos, mas o de Shakespeare, do As Alegres Comadres de Windsor e de O Rei Henrique IV, simpático apesar dos vícios e sugestivo sem as virtudes.
Evoco mentalmente story and history de sua longa vida, desde a Pérsia, até este quintal num recanto do Brasil tropical. Admiro-lhe a fidelidade ao temperamento, a coerência nos defeitos, a impertubalidade na imperfeição. Não lhe nego que a vivacidade alerta, a coragem corsária, a valentia criminosa, a fácil, natural e legítima graça tosca e hábil com que vem vencendo tempo e distância numa serena continuidade de violência e rapinagem. Não se impõe aos artistas porque não tem a elegância do gato ou o porte do tigre. Sua pequenez o faz cômico, ridículo, esquecido nas memórias que o recordariam sempre se valorizassem a força e tenacidade de sua vida baixa e suja, no mesmo caminho e modelo dos seus antepassados do Kurdistan e Azerbeidjan.
Parou para roer, distraído e displicente, uma goiaba verde. Largou-a. Um rumor nas folhas secas afastou-o numa carreira em linha reta, decisiva, rabo horizontal. Um instante seu perfil passou no recanto do muro manchado de mofo. E desapareceu...