Introdução
Nossa leitura da obra de Mia couto iniciou-se ainda na fase de graduação, com a disciplina literaturas africanas de língua Portuguesa, em 1996. chamaram-nos a atenção, primeiramente, os poemas do autor; somente depois viemos a saber, pela leitura de alguns textos críticos, que sua obra ficcional era mais vasta e de melhor qualidade; dedicamo-nos, então, à sua leitura. desse interesse surgiu o projeto no qual fizemos um estudo comparado das personagens infantis em Guimarães Rosa e Mia couto; deste, abordávamos especialmente o conto "nas águas do tempo" (couto, 1996).
Desde então temos acompanhado avidamente as publicações brasileiras da obra de couto e também de alguma crítica. Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (couto, 2003), a temática do romance pareceu-nos próxima à daquele conto e, durante a leitura desses dois textos, essa impressão só fez confirmar-se. Os elementos em comum nessas duas narrativas deram origem à hipótese de que o romance teria sido concebido a partir de uma ampliação temática do conto. Guardamos essa ideia durante alguns anos.
Em 2004, durante o curso de Especialização em Fundamentos da leitura crítica da literatura, munidos de instrumentos teóricos que nos levaram a aprofundar nossa leitura do mesmo conto, tivemos a oportunidade de rever algumas questões que trazíamos conosco de longa data. a primeira dizia respeito à historiografia literária moçambicana, cuja bibliografia é ainda muito restrita no Brasil; a segunda referia-se ao número crescente de trabalhos acadêmicos baseados na obra de Mia couto. vale lembrar que, desde que iniciamos nossa leitura da obra de couto, o autor foi arrebanhando um grupo de leitores cada vez maior: suas publicações foram mais difundidas tanto pela sua presença na mídia quanto pelas suas frequentes visitas ao Brasil. além disso, nossos estudos permitiram ampliar o leque de contribuições advindas da teoria literária, com as quais aprofundamos a reflexão sobre a obra de couto.
Este livro constitui-se de três momentos principais: a reflexão sobre a historiografia literária de Moçambique, as considerações a respeito da fortuna crítica acadêmica produzida no Brasil e a análise da autointertextualidade na obra ficcional de Mia couto.
No capítulo 1, problematizamos algumas questões pertinentes à história da literatura moçambicana. Empreendemos, no início, uma discussão sobre a nomenclatura adotada para os estudos das literaturas africanas de língua portuguesa; a adoção de um ou outro termo para se referir ao conjunto dessas literaturas implica questões ideológicas que procuramos elucidar.
Em seguida, procuramos refletir sobre a natureza da historiografia literária à luz de estudos clássicos, como os de vítor Manuel de aguiar e silva (1976; 1990), e de outros mais recentes, como aqueles produzidos no âmbito do Grupo de Trabalho (GT) em História da literatura da associação nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em letras e linguística (anpoll), nomeadamente os de autoria de José luís Jobim (1998; 2005), Marisa lajolo (1994) e Maria da Glória Bordini [199-?].
Somente então, respaldados pelas reflexões anteriores, dedicamonos à análise das contribuições de alguns autores que propuseram ou ajudaram a problematizar o pensamento sobre a história da literatura moçambicana. nosso recorte restringiu-se, porém, aos textos de autores que ou estão publicados no Brasil ou se encontram nas bibliotecas universitárias do país. as propostas de periodização literária de Manuel Ferreira (1987), Fátima Mendonça (1988), Manoel de souza e silva (1996) e Pires laranjeira (1995; 2001) foram analisadas comparativamente. Em seguida, procuramos entender qual o lugar de Mia couto na história literária de seu país, considerando sua obra como partícipe fundamental do processo de constituição do sistema literário moçambicano.
No capítulo 2, apresentamos a fortuna crítica acadêmica (teses e dissertações) produzida no Brasil sobre a obra de Mia couto. a partir de 42 trabalhos que pudemos reunir, observamos como se distribuem no território nacional; em seguida, tecemos algumas considerações sobre o modo como esses estudos referem-se ou não a esse corpus de crítica já constituído. Traçamos, na sequência, um histórico dessa produção, dividindo-a por ano de publicação, que se estende de 1994 a 2009. Procuramos apresentar cada um dos trabalhos refletindo criticamente sobre essas contribuições. O conjunto revelou-se mais vasto do que esperávamos, e a qualidade dos trabalhos produzidos nas diferentes universidades do país sobre a obra coutiana é, no geral, indiscutível. a leitura dessa fortuna crítica específica colaborou enormemente com a construção do repertório que mobilizamos, posteriormente, em nossa análise, seja pela apresentação de pontos de vista que ainda não havíamos considerado sobre a obra do autor, seja pelo confronto dos pressupostos dos demais pesquisadores com os nossos e pela procura de um posicionamento pessoal sobre as questões levantadas pelos colegas.
Nos capítulos 3 e 4, por fim, analisamos a autointertextualidade na obra ficcional de Mia couto, a partir de dois cronotopos essenciais que comparecem tanto no conto "nas águas do tempo" (couto, 1996) quanto no romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (couto, 2003): o rio e a casa. O primeiro foi objeto da análise no capítulo 3; o cronotopo da casa, por sua vez, foi analisado no capítulo seguinte.
Passemos, portanto, à leitura do resultado desse longo e fecundo percurso pela história, pela crítica e pela análise literárias.vale lembrar que em nossa leitura mobilizamos um repertório particular, constituído pela soma das leituras teóricas e literárias que realizamos durante nosso percurso formativo. Tudo isso implica a construção de um ponto de vista obrigatoriamente restrito, a partir do qual observamos a literatura de Mia couto. Em nenhum dos levantamentos feitos durante a pesquisa tivemos a pretensão de sermos exaustivos. ao contrário: quanto mais lemos, mais perguntas nos surgem. algumas delas procuramos responder aqui; outras permaneceram abertas, suscitando outras viagens futuras pelo território sempre novo da literatura.