Considerações finais

Nosso objetivo neste volume foi estudar as relações de autointertextualidade na obra ficcional de Mia couto, nomeadamente as estabelecidas entre o conto "nas águas do tempo" (couto, 1996) e o romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (couto, 2003). Elegemos como fio condutor da análise o conceito de cronotopo, de Bakhtin, no qual tempo e espaço imbricam-se numa mesma unidade temática. seguindo a pista dada pelo título do romance, abordamos especificamente, nos textos que constituíram nosso corpus de análise, os cronotopos do rio e da casa.

Retomando a epígrafe aposta ao trabalho como um todo, sabemos que as considerações que aqui fizemos são apenas parciais; conquanto nos pareça ter reunido um repertório significativo de leituras, sabemos que há, ainda, muito campo de trabalho e investigação a partir dos mesmos objetos de pesquisa que elegemos. Nosso conhecimento acerca da obra de Mia couto vem sendo depurado e amadurecido ao longo de muitos anos de leitura e releitura dos textos ficcionais que abordamos. como sói acontecer com a boa literatura, também a de Mia couto é inesgotável, uma vez que descobrimos novos pontos de investigação a cada vez que nos debruçamos sobre ela. A despeito da sensação de incompletude que acompanha todo trabalho acadêmico, pudemos chegar, aqui e até agora, a algumas proposições que consideramos válidas.

Com relação à historiografia literária moçambicana, entendemos que há ainda um longo caminho a ser traçado, no sentido de se estabelecer uma tradição ou uma linha de continuidade dessa literatura. contudo, as iniciativas dos autores que abordamos no primeiro capítulo são fundamentais; a partir delas já é possível delinear os primeiros desenvolvimentos dessa literatura.

A contribuição primeira e mais evidente da obra de Mia couto para a literatura moçambicana é a busca de uma dicção própria, local. Para isso, couto procura recriar o léxico, a sintaxe e inserir, nos textos escritos, alguns procedimentos que subsistem no mundo da oralidade, tais como as formulações proverbiais. As culturas que subsistem na oralidade, em Moçambique, têm uma presença constante na obra do autor, que delas resgata elementos – histórias, mitos, crenças etc. – com os quais tece enredos que transitam entre o realismo e o inusitado das situações, permeados, sempre, de ironia, drama e crítica social, num equilíbrio que permite a abordagem de temas complexos – tais como as guerras, o racismo, a corrupção, o amor, a política e outros – de forma leve e bem humorada. criatividade e competência literária, aliadas ao gosto de contar histórias e de permutar experiências tanto com o leitor como com outros autores, no diálogo intertextual, fazem da obra de Mia couto um dos marcos mais importantes do sistema literário moçambicano. Por meio dela, uma identidade moçambicana, híbrida e, certamente, ficcionalizada vai-se dando a conhecer em todo o mundo, abrangendo um número cada vez maior de leitores.

Na esteira de uma obra cada vez mais divulgada, surgem, também, inúmeros trabalhos críticos, de investigação. No segundo capítulo procuramos dar a conhecer apenas uma parcela deles – a que inclui os trabalhos acadêmicos monográficos sobre o autor produzidos no Brasil. Embora tenhamos envidado todos os esforços para reunir a totalidade desses trabalhos até janeiro de 2010, temos a consciência de que este pode ser, ainda, um levantamento parcial. Todavia, conseguimos reunir um corpus significativo, que cresceu na medida em que a obra de Mia couto se tornava mais divulgada. Alguns elementos cruciais da literatura coutiana foram repetidamente abordados nos trabalhos, o que indicia a baixa circulação desses entre os pesquisadores. Notamos, ainda, que a obra de couto tem sido abordada preferencialmente pelo viés dos estudos culturais, como se fosse ela essencialmente produto das condições históricas de seu surgimento.

Finalmente, chegamos, no terceiro capítulo, à análise daquilo que constituiu nossa hipótese de trabalho: a existência de uma relação autointertextual entre o conto "nas águas do tempo" (couto, 1996) e o romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (couto, 2003). Essa relação pode ser evidenciada nos motivos composicionais do tempo, os quais abordamos a partir do conceito bakhtiniano de cronotopo. A análise dos cronotopos do rio e da casa nos dois textos permitiu-nos afirmar que essa relação autointertextual, se não esteve conscientemente presente no processo de criação dos textos, pode ser positivamente apreendida durante a leitura dos mesmos. Os dois textos aproximam-se não apenas pela repetição de temas e motivos literários, mas pelo sentido dado a esses elementos, por meio dos quais podemos apreender com mais profundidade, e sem os excessos de uma leitura exótica e estereotipada, os diferentes tempos e espaços que se imbricam na realidade e na literatura de Moçambique. O diálogo entre essas diferentes instâncias, isto é, entre as diferentes culturas que compõem o retrato do país na atualidade é imprescindível para a configuração de uma identidade literária nacional.

As duas narrativas com que trabalhamos apontam para uma travessia iniciática: do menino, no conto; do jovem, no romance. Ambas as personagens devem tornar-se mediadoras entre os tempos passado e presente, tecendo o fio que ata modernidade e tradição – essa ressignificando, dando sustento e sentido àquela. A transcriação literária das culturas moçambicanas que subsistem na oralidade, vertendo-as não simplesmente em escrita, registro, mas em literatura, criação, poiesis, é um traço fundamental que tem marcado toda a obra de Mia couto. várias personagens coutianas fazem uma transição entre culturas diversas, tornando-se elas mesmas um território de misturas, essencialmente híbrido: temos em Muidinga um leitor e reconstrutor da trajetória de Kindzu; em Tizangara, os fatos são narrados por um tradutor; Marianinho psicografa as cartas do avô; Mwadia lê as cartas do passado e as incorpora. Essa recorrência, na obra coutiana, de processos de "tradução de universos" nos autoriza a dizer que a função da autointertextualidade no processo criativo de couto não é "repetir" o que já fora sinalizado no conto, mas reelaborar, pela dilatação e complexidade pertinentes ao romance, um dos pilares de seu projeto literário, que é essa "missão" que se atribui o autor de verter o tradicional na modernidade, a África no mundo ocidental europeizado, traduzindo um certo Moçambique, poeticamente plasmado, para leitores que se espalham pelo mundo afora e que, como nós, retornam das histórias de Mia couto mais profundamente humanizados – processo que constitui, afinal, o sentido último de toda literatura.