A escada de Jacob

Era o julgamento de um crime sórdido e vil, e Jacob Booth, espreguiçando-se tranqüilamente na platéia do tribunal, começou a sentir-se como quem havia devorado infantilmente qualquer coisa sem ao menos estar com fome — apenas porque estava ao alcance da mão. Os jornais tinham explorado o caso, fazendo com que houvesse uma enorme procura dos passes que permitem o ingresso de populares na sala do tribunal. Um desses passes lhe fora oferecido na noite anterior.

Jacob olhou na direção da porta, onde umas cem pessoas, respirando com dificuldade, demonstravam uma ansiosa excitação, como se aquilo fosse um escoadouro para suas próprias vidas particulares. O dia estava quente e podia-se sentir o suor da multidão — um suor que escorria em bagos, como grandes gotas de orvalho que poderiam respingá-lo se ele se atrevesse a sair por aquela porta. Alguém atrás dele arriscou que o júri não deveria levar mais de meia hora para dar o veredicto.

Com a inevitabilidade da agulha de uma bússola, sua cabeça voltou-se para a mesa da prisioneira e ele olhou mais uma vez para o rosto pálido e gordo da assassina, cravejado de dois olhos redondos e vermelhos. Chamava-se sra. Choynski, née Delehanty, e o destino lhe reservara a sorte de, um dia, esquartejar seu namorado marinheiro com uma machadinha. As mãos rechonchudas que haviam empunhado a arma do crime brincavam incessantemente com um tinteiro, e por várias vezes ela olhava para a platéia com sorrisos nervosos.

Jacob franziu a testa e olhou novamente ao redor; tinha visto um rosto bonito na multidão e o perdido de novo. Um rosto que conseguira imprimir-se em sua mente justamente quando ele estava absorvido por uma imagem mental da sra. Choynski em ação. Era o rosto de uma santa, com olhos ternos e luminosos e pele clara e delicada. Por duas vezes, Jacob varejou a sala com os olhos, depois esqueceu e sentou-se rígido, com desconforto, à espera.

O júri trouxe o veredicto: assassinato em primeiro grau; a sra. Choynski gemeu, “Ah, meu Deus!”. A sentença ficou para o dia seguinte. Terminada a função, a platéia saiu lentamente, em direção à tarde de agosto lá fora.

Jacob viu o rosto novamente, só então descobrindo por que não o vira antes. Pertencia a uma jovem sentada ao lado da mesa da prisioneira e estivera escondido atrás da cabeça em forma de lua cheia da sra. Choynski. Naquele momento, os olhos luminosos brilhavam através das lágrimas, e um impaciente rapaz de nariz achatado tentava atrair sua atenção dando-lhe tapinhas no ombro.

“Quer me deixar em paz?”, disse a moça, irritada. “Por que não some da minha vista? Que coisa!”

O rapaz suspirou profundamente e recuou. A moça abraçou a estatelada sra. Choynski, e outro circunstante observou para Jacob que as duas eram irmãs. Então a sra. Choynski foi tirada de cena — seu rosto dava a impressão de que ela tinha um compromisso urgente — e a moça sentou-se à mesa para retocar a maquiagem. Jacob esperou, assim como o rapaz de nariz achatado. Um policial apareceu bruscamente e Jacob deu-lhe cinco dólares.

“Que coisa!”, gritava a moça para o rapaz. “Não pode me deixar em paz?” Ela se levantou. Sua presença, as obscuras vibrações de sua impaciência enchiam a sala do tribunal. “Todo dia a mesma coisa!”

Jacob aproximou-se. O outro homem falava rápido:

“Senhorita Delehanty, meu jornal foi muito generoso com sua irmã. Só estou lhe pedindo que cumpra a sua parte do trato. Vamos rodar às...”

A srta. Delehanty virou-se em desespero para Jacob: “E essa agora? Ele quer um retrato da minha irmã quando ela era bebê e com a minha mãe junto!”.

“Tiraremos sua mãe da foto.”

“Mas eu quero a minha mãe! É a única foto que tenho dela!”

“Prometo devolver-lhe a foto amanhã.”

“Estou cheia disso tudo!” Mais uma vez estava se dirigindo a Jacob, mas sem enxergá-lo, exceto como uma figura num público vago e onipresente. “Acabo ficando doida!” E fez um ruído com os dentes que parecia compreender toda a essência do desprezo humano.

“Tenho um carro lá fora, senhorita Delehanty”, disse Jacob de repente. “Posso levá-la para casa?”

“Tudo bem”, ela respondeu, indiferente.

O repórter presumiu que os dois já se conheciam e começou a discutir em voz mais baixa, à medida que os três se encaminhavam para a porta.

“Todo dia a mesma coisa!”, continuou a srta. Delehanty, amarga. “Esses repórteres!” Lá fora, Jacob fez sinal para seu carro. Este se aproximou, enorme e relutante, e, quando o motorista saiu e abriu a porta, o repórter, à beira das lágrimas por ver sua foto bater asas, passou a implorar. Mas a srta. Delehanty foi implacável:

“Ora, vá tomar banho! Quer saber de uma coisa? Vá tomar banho no rio!”

A extraordinária ênfase de sua ordem foi de tal dimensão que Jacob lamentou as limitações do vocabulário dela. Não apenas evocou-lhe a imagem do infeliz jornalista afogando-se ao banhar-se nas águas do rio Hudson, como convenceu-o de que era o único jeito de se livrarem do homem. Deixando-o para trás, a fim de enfrentar seu horroroso destino, o carro finalmente arrancou.

“Você deu uma boa dura nele”, disse Jacob.

“Claro”, ela admitiu. “Depois de uns tempos fiquei escolada e aprendi a me livrar desses chatos. Quantos anos você pensa que eu tenho?”

“Qual é a sua idade?”

“Dezesseis.”

Olhou-o gravemente, como que convidando-o a divagar. Seu rosto, o rosto de uma jovem virginal, pairava fragilmente sobre a poeira etérea da tarde. Da pequena abertura de seus lábios não emanava nenhum hálito; nem ele jamais tinha visto uma textura tão pálida e imaculada como a de sua pele, tão fulgente e vistosa como a de seus olhos. Jacob — ele próprio de belos traços bem cuidados — sentiu-se, pela primeira vez na vida, cansado e acabado diante do frescor ao qual se ajoelhava naquele momento.

“Onde você mora?”, ele perguntou. No Bronx, talvez em Yonkers, Albany ou na baía de Baffin. Mas nem que tivessem que dar a volta ao mundo naquele carro, ele deixaria de levá-la.

Então ela falou, e bastou que os cacos de palavras vibrassem em sua voz para que a sensação passasse: “Rua 123. Tou morando com uma amiga”.

O carro parou num sinal vermelho e ela trocou um olhar altivo com um homem que olhava pela janela do táxi ao lado. O homem tirou o chapéu, divertido, e gritou: “Olá, gostosa, onde foi que vi você antes?”.

Uma mão e um braço puxaram o homem de volta para as trevas do táxi.

Virou-se para Jacob, com o cenho franzido e com a sombra de um fio de cabelo entre os olhos: “As pessoas me reconhecem na rua. Saíram montes de fotos no jornal”.

“Lamento que a coisa tenha acabado tão mal.”

Ela recordou os acontecimentos daquela tarde pela primeira vez na última meia hora. “Aquilo ia acontecer de qualquer jeito. Estava escrito. Mas ninguém terá a coragem de condenar uma mulher à cadeira elétrica em Nova York.”

“É verdade.”

“Vai pegar prisão perpétua.”

Era óbvio que não se tratava dela falando. A tranqüilidade de seu rosto fazia com que as palavras se separassem dela assim que eram pronunciadas, como se adquirissem uma existência independente.

“Você morava com ela?”

“Eu? Você não lê jornal? Nem sabia que era minha irmã até que vieram me dizer! Não via ela desde criança.” Apontou repentinamente para uma das maiores lojas de departamentos do mundo. “É ali que eu trabalho. Depois de amanhã, volto à estiva.”

“Vai fazer calor esta noite”, disse Jacob. “Por que não damos uma volta e depois jantamos?”

Ela olhou para Jacob e achou-o amável e educado. “Está bem”, respondeu.

Jacob tinha trinta e três anos. Em jovem, chegara a possuir uma voz de tenor que parecia ter algum futuro, mas uma laringite privara-o dela durante uma semana febril dez anos antes. Numa espécie de desespero que mal escondia um certo alívio, comprou uma fazenda na Flórida e passou cinco anos transformando-a num campo de golfe. Quando veio o boom imobiliário de 1924, vendeu-o por oitocentos mil dólares.

Como tantos americanos, costumava avaliar as coisas em vez de apreciá-las. Sua apatia não significava exatamente medo da vida nem qualquer afetação, mas apenas a violência subitamente fatigada. Era uma apatia bem-humorada. Sem precisar de dinheiro, tentara desesperadamente — durante um ano e meio — casar-se com uma das mulheres mais ricas da América. Se a amasse, ou mesmo fingisse isso, teria conseguido; mas nunca conseguira desempenhar mais do que a mentira formal.

Não era alto, mas era magro e bonito. Exceto nos momentos em que se deixava acometer pela incrível apatia, era extremamente charmoso; andava com um grupo que se considerava o melhor de Nova York e que se divertia mais que todo mundo. Durante um dos tais ataques de apatia, parecia um passarinho emburrado e aborrecido que detestava a humanidade.

Mas ele estava gostando da humanidade naquela noite, sob o luar de verão dos Borghese Gardens. A lua parecia um ovo radiante, macio e suave como o rosto de Jenny Delehanty do outro lado da mesa, enquanto uma brisa salgada soprava de leve sobre as mansões da região, como que coletando o aroma das flores e depositando-o no gramado do restaurante. Os garçons lembravam duendes alvoroçados, com seus fraques pretos esvaindo-se na penumbra e o peito branco das camisas luzindo numa colcha de escuridão.

Tomaram uma garrafa de champanhe e ele disse a Jenny Delehanty: “Você é a coisa mais linda que já vi. Pena que não seja meu tipo, e não tenho a menor intenção a seu respeito. Entretanto, você não vai voltar para aquela loja. Amanhã, vou arranjar-lhe um encontro com Billy Farrelly, que está dirigindo um filme em Long Island. Não sei se ele vai achá-la bonita, porque nunca lhe mandei ninguém antes”.

Não houve nem sombra de mudança de expressão nos olhos dela, apenas uma ponta de ironia. Coisas como aquela já lhe tinham sido prometidas antes, mas o diretor do filme nunca estava disponível no dia seguinte. Ou então ela fora esperta o suficiente para nunca recordar os homens do que eles haviam lhe prometido na véspera.

“E não apenas você é bonita”, continuou Jacob, “como tem muita classe. Tudo que faz — por exemplo, pegar esse copo ou fingir estar segura de si ou que me despreza — fica evidente. Se alguém for esperto para perceber isso, acho que poderá fazer de você uma atriz.”

“Eu adoro a Norma Shearer. E você?”

De volta para casa naquela noite cálida, ela ofereceu-se tranqüilamente para ser beijada. Enlaçando-a de leve, Jacob deixou que seu rosto tocasse a suavidade do rosto dela por um momento e depois encarou-a por um longo momento.

“Que bela criança”, disse gravemente.

Ela sorriu para ele, enquanto suas mãos brincavam burocraticamente com as lapelas de seu paletó. “Diverti-me muito”, ela murmurou. “Puxa! Espero nunca mais ter de voltar àquele tribunal.”

“Também espero.”

“Não vai me beijar?”

“Este lugar por onde estamos passando é Great Neck”, disse Jacob. “O pessoal do cinema mora por aqui.”

“Você é uma figura, bonitão.”

“Por quê?”

Ela balançou a cabeça e achou graça. “Porque é.”

Jenny viu, então, que ele era de um tipo com o qual ela não estava acostumada. Jacob estava surpreso, não envaidecido, de que ela o achasse engraçado. Jenny percebeu também que, qualquer que fosse o seu objetivo, ele não queria nada dela naquele momento. Jenny Delehanty aprendia depressa. Assim, tornou-se também grave, doce e tranqüila como a noite e, quando eles cruzaram a ponte de Queensboro em direção à cidade, já estava quase adormecida em seus braços.

II.

No dia seguinte, Jacob ligou para Billy Farrelly. “Preciso falar com você. Descobri uma garota que você devia conhecer!”

“Ai, meu Deus!”, disse Farrelly. “Você é o terceiro hoje! Tenha dó.”

“Mas as outras duas não eram ela.”

“Está bem, Jake. Se ela for branca, já ganhou o papel principal do filme que começo a rodar nesta sexta.”

“Fora de brincadeira, você fará um teste com ela?”

“Não é brincadeira. Dou-lhe o papel principal, estou lhe dizendo. Não agüento mais essas atrizes cretinas. Parto para Hollywood no mês que vem. Preferia ser o jardineiro de Constance Talmadge a trabalhar com essas...” Sua voz tinha uma intensa amargura. “Claro, traga a moça, Jake. Vamos ver o que ela tem.”

Quatro dias depois, quando a sra. Choynski, acompanhada por dois auxiliares do xerife, foi passar o resto de seus dias em Auburn, Jacob e Jenny atravessaram a ponte de Astoria, Long Island.

“Você precisa mudar de nome”, disse ele. “E lembre-se: nunca teve irmã.”

“Pensei nisso. Até imaginei um nome novo. Que tal Tootsie Defoe?”

“Horrível. Simplesmente horrível!”

“Então sugira outra coisa, já que é tão esperto.”

“Vamos ver... Jenny... Jenny qualquer coisa — Jenny Prince?”

“Está bem, bonitão.”

Jenny Prince subiu as escadarias do estúdio de cinema, e Billy Farrelly, num daqueles dias de mau humor em que desprezava a si mesmo e à profissão, contratou-a para um dos três papéis principais da fita.

“São todas iguais”, disse a Jacob. “Bolas! Você hoje tira uma fulana dessas do esgoto e amanhã já querem bandejas de ouro. Preferia ser o jardineiro de Constance Talmadge a ter um harém cheio delas.”

“Gostou da garota?”

“Ótima, ótima. Tem um bom perfil. Mas são todas iguais.”

Jacob comprou para Jenny Prince um vestido de noite por cento e oitenta dólares e levou-a ao Lido naquela noite. Estava contente, até um pouco excitado. Riram muito e se sentiram felizes.

“Como é, já está acreditando que é uma estrela do cinema?”, perguntou.

“Aposto que vão me demitir amanhã. Foi fácil demais.”

“Não, não foi. Foi fácil psicologicamente. Por sorte, Billy Farrelly estava...”

“Gostei dele.”

“Ele é ótimo”, concordou Jacob. E isso o fez lembrar que outro homem já estava abrindo portas para o sucesso de Jenny. “Mas é um irlandês maluco. Cuidado com ele.”

“Eu sei. A gente sempre sabe quando o sujeito está a fim.”

“Como?”

“Não quero dizer que ele esteja a fim de mim, bonitão. Mas ele tem aquele jeito de olhar, entende?” Distorceu o rosto lindo com um sorriso maldoso. “Ele gosta. Está mais do que evidente.”

Beberam uma espécie de suco de uva altamente alcoolizado.

O maître veio à mesa.

“Esta é a senhorita Jenny Prince”, disse Jacob. “Você ainda vai ouvir falar muito dela, Lorenzo, porque ela acaba de assinar um grande contrato no cinema. Trate-a sempre com o maior respeito.”

Quando Lorenzo retirou-se, Jenny disse: “Você tem os olhos mais bonitos que já vi”. Ela se esforçava, fazia o melhor que podia, mas ele tinha um jeito sério e triste. “É verdade”, ela repetiu, “os olhos mais bonitos que já vi. Qualquer garota gostaria de ter os seus olhos.”

Ele riu, mas estava comovido. Sua mão cobriu o braço de Jenny. “Seja boazinha”, disse. “Trabalhe bem e ficarei orgulhoso de você — e nos divertiremos bastante juntos.”

“Mas sempre me divirto tanto com você!” Seus olhos estavam postos nos dele, como se fossem suas mãos. A voz dela era clara e seca. “Juro, não estava brincando quando falei dos seus olhos. Você sempre pensa que estou brincando. Quero lhe agradecer por tudo o que fez por mim.”

“Não fiz nada por você, sua bobinha. Apenas a vi e fiquei... bem, fiquei encantado — qualquer pessoa deveria ficar encantada com você.”

Os artistas surgiram no palco e os olhos dela fugiram vorazmente.

Ela era tão jovem, e Jacob nunca tinha sido tão consciente da juventude até então. Até aquela noite, sempre se achara jovem.

Depois, no táxi, cheia do perfume que ele lhe comprara naquele dia, Jenny achegou-se e agarrou-se a Jacob. Ele a beijou, mas sem entusiasmo. Da mesma forma, não havia paixão nos olhos dela ou em sua boca; apenas um ligeiro aroma de champanhe no hálito. Ela se juntou a ele quase com desespero. Jacob tomou suas mãos e afastou-a de si.

Jenny afastou-se ainda mais, ressentida.

“O que há? Não gosta de mim?”

“Não devia tê-la deixado tomar tanto champanhe.”

“Por que não? Já bebi antes. Até já fiquei de pileque uma vez.”

“Bem, acho que você devia se envergonhar disso. E se eu souber que você está bebendo de novo, vai ver uma coisa!”

“Você é assim, sempre durão, é?”

“O que há? Qualquer bêbado de botequim vai logo se aproveitando de você?”

“Ora, não é nada disso.”

Por um momento, viajaram em silêncio. Então a mão de Jenny agarrou-se à dele. “Gosto mais de você do que de qualquer outro que já conheci. Não posso evitar, posso?”

“Minha querida.” Enlaçou-a outra vez.

Tímida e hesitantemente, beijou-a e, mais uma vez, ficou congelado pela inocência de seu beijo e dos olhos que, no exato momento, contemplaram-no das profundezas da noite, das profundezas do mundo. Jenny ainda não sabia que o esplendor era algo que aconteceria no coração; quando ela descobrisse isso e se deixasse envolver na paixão do universo, ele a assumiria sem problema ou remorso.

“Gosto muito de você”, disse Jacob, “mais do que de qualquer outra pessoa que conheço. Quanto àquele negócio de beber, estava falando sério. Você não deve beber.”

“Vou fazer tudo o que você quiser”, ela disse. E repetiu, olhando-o bem nos olhos: “Tudo”.

O carro parou em frente ao apartamento de Jenny e ele lhe deu um beijo de boa-noite.

Continuou no táxi, exultante, parecendo viver mais profundamente sua juventude do que nunca. Inclinou-se, apoiando-se em sua bengala, e, ao se dar conta de que era rico, jovem e feliz, deixou que o táxi trafegasse pelas ruas escuras em direção a seu futuro, que nem mesmo ele podia predizer.

III.

Certa noite, um mês depois, num táxi com Farrelly, Jacob deu ao motorista o endereço deste. “Quer dizer que você está apaixonado pela garota”, disse Farrelly, divertido. “Pois bem, vou sair do seu caminho.”

Jacob experimentou um vago desconforto. “Não estou apaixonado por ela, Billy”, disse calmamente. “Só quero que a deixe em paz.”

“Claro! Vou deixá-la em paz”, concordou Farrelly prontamente. “Não sabia que você estava interessado — ela me disse que não conseguia conquistá-lo.”

“O fato é que você também não está interessado”, disse Jacob. “Se eu pensasse que vocês dois estavam gostando um do outro, acha que seria tolo de ficar entre vocês? Mas você não sente nada por ela, e ela está um pouco impressionada e fascinada.”

“Está bem”, concordou Farrelly, enfarado, “não vou nem chegar perto.”

“Claro que vai”, riu Jacob, “na falta de coisa melhor a fazer. E é a isso que me oponho — uma coisa assim acontecer a ela.”

“Compreendo. Vou deixá-la em paz.”

Jacob foi obrigado a se contentar com aquilo. Não tinha a menor confiança em Billy Farrelly, mas achava que Farrelly era seu amigo e não procuraria ofendê-lo, a não ser que houvesse sentimentos mais fortes. Mas as mãos dadas por baixo da mesa naquela mesma noite o tinham aborrecido. Jenny mentira quando ele a repreendera; disse até que, se ele quisesse, poderia levá-la para casa imediatamente; dispôs-se também a não falar de novo com Farrelly aquela noite toda. Isso fizera Jacob parecer um bobo, até para si mesmo. Teria sido mais simples, quando Farrelly observou “Quer dizer que você está apaixonado pela garota”, ter conseguido responder: “Sim”.

Mas o fato é que não estava. Valorizava-a agora mais do que julgara possível. Via nela o despertar de um temperamento aguçadamente individual. Ela gostava de coisas simples e tranqüilas. Estava desenvolvendo a capacidade de discriminar, de abolir o trivial e o desnecessário de sua vida. Tentou presenteá-la com livros; depois, sabiamente, mudou de tática e passou a pô-la em contato com vários homens. Criava situações e depois as explicava para ela, e adorava quando via os resultados começarem a florir diante de seus olhos. Envaidecia-se também de que ela confiasse cegamente nele e o usasse como padrão no julgamento de outros homens.

Antes mesmo da estréia do filme, ofereceram-lhe um contrato de dois anos, pela simples impressão de que ela podia ser mais que uma promessa — quatrocentos dólares por semana nos primeiros seis meses e aumentos regulares depois disso. Mas ela teria de ir para Hollywood.

“Não preferia que eu esperasse um pouco?”, perguntou Jenny, quando eles voltavam do campo uma tarde. “Não preferia que eu continuasse em Nova York — perto de você?”

“Você deve ir para onde seu trabalho a levar. Precisa aprender a cuidar de si mesma. Já tem dezessete anos.”

Dezessete anos — tornara-se tão velha quanto ele, que já não tinha idade. Seus olhos escuros sob o chapéu de palha amarelo pareciam cheios de destino, o mesmo destino que ela se dispunha a dispensar.

“Fico pensando, se você não tivesse aparecido, teria surgido alguém? Digo, para me obrigar a fazer as coisas”, disse ela.

“Você teria feito tudo sozinha”, ele respondeu. “Ponha na cabeça que não é dependente de mim.”

“Mas eu sou. Tudo foi graças a você.”

“Não é”, ele disse enfaticamente, mas sem acrescentar quaisquer razões. Gostava que ela pensasse daquele jeito.

“Não sei o que faria sem você. É meu único amigo”, e acrescentou, “de quem eu gosto. Está vendo? Entende o que quero dizer?”

Ele riu, divertindo-se com o nascimento do egoísmo dela, implícito a seu direito de ser entendida. Naquela tarde, estava mais linda do que nunca, delicada, resoluta, mas, para ele, indesejável. Às vezes Jacob se perguntava se aquela assexualidade de Jenny não se dirigia a ele, se não seria uma máscara que ela só usasse em sua presença. Sentia-se felicíssima com rapazes, embora fingisse desprezá-los. Billy Farrelly, talvez para desgosto dela, parecia tê-la deixado em paz.

“Quando irá me visitar em Hollywood?”

“Breve”, ele prometeu. “Mas você também virá a Nova York de vez em quando.”

Ela começou a chorar. “Ah, vou sentir tanto sua falta!” Grandes lágrimas correram pelo morno marfim de suas faces. “Puxa! Você foi tão bom para mim! Me dê a mão. Você foi o melhor amigo que alguém já teve. Onde vou encontrar um amigo como você?”

Ela estava representando agora, mas ele sentiu um aperto na garganta e, por um instante, uma idéia maluca subiu-lhe à cabeça, tateante, como um cego tateando o vento — casar-se com ela. Teria apenas que fazer a sugestão, e ela seria só dele e nunca mais precisaria conhecer ninguém, porque ele a compreenderia para sempre.

No dia seguinte, na estação, Jenny deliciava-se com as flores que recebera, com sua cabine e com a perspectiva de fazer uma viagem mais longa que todas as que já tinha feito. Quando se despediu de Jacob com um beijo, seus olhos profundos fitaram os dele e ela estreitou-se contra ele, como a protestar contra a separação. Chorou novamente, mas ele sabia que, por trás das lágrimas, havia a felicidade da expectativa de novas aventuras. Quando Jacob deixou a estação, Nova York parecia curiosamente vazia. Através dos olhos dela, Jacob tinha visto novas cores na cidade, mas, agora, elas haviam se desvanecido na cinzenta tapeçaria do passado. No dia seguinte, foi a um consultório em Park Avenue e consultou um famoso especialista que não visitava havia dez anos.

“Gostaria que examinasse minha laringe de novo”, ele disse. “Não há muita esperança, mas talvez algo tenha mudado a situação.”

Engoliu um complicado sistema de espelhos, aspirou e expirou, emitiu graves e agudos e tossiu ao comando do médico. O especialista fez um exame completo. Finalmente sentou-se e tirou os óculos: “Não há alteração. As cordas não estão perdidas, apenas se gastaram. Não há nada a fazer”.

“Foi o que pensei”, disse Jacob humildemente, como se estivesse sendo culpado de uma impertinência. “Foi praticamente o que o senhor já havia me dito antes. Só queria saber se era irreversível.”

Quando saiu do edifício, era como se tivesse perdido alguma coisa — uma pequena esperança, o desejo de que um dia...

“Nova York melancólica”, dizia o seu primeiro telegrama para ela. “Clubes fechados. Nuvens negras sobre a Estátua da Liberdade. Trabalhe muito e seja fantasticamente feliz.”

“Querido Jacob”, ela telegrafou de volta, “sinto muito a sua falta. Você é o homem mais fabuloso do mundo. Não me esqueça, querido. Amo você. Jenny.”

Chegou o inverno. O filme que Jenny fizera em Long Island foi lançado, juntamente com artigos e entrevistas a seu respeito nas revistas de cinema. Jacob ficava o dia todo em casa, tocando a sonata de Kreutzer na vitrola e lendo suas cartas, mal escritas, porém afetuosas, e os artigos dizendo que ela fora descoberta por Billy Farrelly. Em fevereiro, Jacob ficou noivo de uma velha amiga, então viúva.

Foram juntos à Flórida e, em pouco tempo, estavam rosnando um para o outro nos corredores do hotel e durante as partidas de bridge. Assim, decidiram terminar com aquilo. Na primavera, Jacob resolveu fazer uma longa viagem e reservou um camarote no Paris, mas, três dias antes da partida do navio, mudou de idéia e tomou o trem para a Califórnia.

IV.

Jenny foi recebê-lo na estação, beijou-o e pendurou-se em seu braço durante todo o percurso até o hotel Ambassador. “Bem, finalmente você chegou”, disse Jenny, quase chorando. “Nunca pensei que o veria por aqui. Nunca pensei!”

Sua voz traía um esforço para se controlar. O enfático “Que coisa!”, que tanto podia ser uma exclamação de fascínio, horror, desprezo ou admiração — uma de suas expressões favoritas —, desaparecera e não admitira substitutos. Se seu estado de espírito exigisse expletivos além dos limites de seu repertório, ela se manteria em silêncio.

Mas, ao dezessete anos, os meses são anos e Jacob percebeu uma mudança em Jenny; de forma alguma ela continuava a ser uma criança. As coisas pareciam decididas em sua cabeça, nada mais a distraía dos objetivos. O estúdio já não era o acidente maravilhoso, divino; nunca mais ela diria: “Daria tudo para não trabalhar amanhã”. Tornara-se parte de sua vida. As circunstâncias convergiam para uma carreira que agora prosseguiria independentemente de sua vontade.

“Se este filme for tão bom quanto o outro — ou seja, se eu estiver bem nele de novo, Hecksher terá de refazer meu contrato. Todo mundo que já viu as tomadas está dizendo que, pela primeira vez, pareço sensual.”

“O que são tomadas?”

“São as cenas já filmadas, que eles projetam no fim do dia. Estão dizendo que, pela primeira vez, estou sensual.”

“Não tinha reparado”, brincou Jacob.

“Você não repara nessas coisas. Mas estou mesmo.”

“Sei que está”, ele disse e, movido por um impulso impensado, tomou-lhe a mão.

Ela o encarou imediatamente. Ele sorriu, meio segundo atrasado. Mas em seguida ela também sorriu e isso atenuou seu engano.

“Jake”, ela gritou, “que maravilha! Você está aqui! Reservei-lhe um quarto no Ambassador. O hotel estava lotado, mas desalojaram alguém porque eu disse que precisava de um quarto. Mandarei meu carro para você dentro de meia hora. Foi bom ter vindo num domingo, porque tenho o dia livre.”

Almoçaram no apartamento mobiliado que ela alugara para o inverno. Era em estilo mourisco 1920, herdado de um galã do passado recente. Alguém lhe dissera que a decoração era horrível, por isso ela brincara a respeito; mas, quando ele tentou explorar o assunto, descobriu que ela não sabia por quê.

“Seria ótimo se houvesse homens melhores por aqui”, disse Jenny enquanto almoçavam. “Claro que há homens ótimos, mas, quero dizer... ah, você sabe, como em Nova York — homens que saibam mais do que uma mulher. Como você.”

Depois do almoço, ela o informou de que iriam a um chá. “Hoje não”, ele objetou. “Gostaria de ficar sozinho com você.”

“Está bem”, ela concordou contrariada. “Acho que posso telefonar desmarcando. Pensei que... é uma colunista que escreve para um monte de jornais e eu nunca tinha sido convidada antes. Mas se você não quiser...”

Diante daquele quadro, Jacob assegurou-lhe que adoraria acompanhá-la. Aos poucos, descobriu que iriam, não a uma festa, mas a três.

“Em minha posição, é o tipo de coisa que se deve fazer”, ela explicou. “Se não, não se conhece ninguém, a não ser os colegas de filmagem, e isso não é bom.” Ele sorriu. “Bem, de qualquer maneira”, ela completou, “é o que todo mundo faz aqui nos domingos à tarde.”

No primeiro chá, Jacob percebeu que havia uma enorme preponderância de mulheres sobre homens, e de gente inexpressiva (repórteres, filhas de empregados do estúdio, esposas de montadores), em vez de pessoas realmente importantes. Um jovem ator latino chamado Raffino apareceu por um breve momento, falou com Jenny e saiu; vários astros e estrelas deram o ar de sua graça, mas só falaram dos próprios filhos, com uma domesticidade surpreendente. Outro grupo de celebridades isolava-se num canto, imóveis como estátuas. Havia também um roteirista ligeiramente embriagado e muito excitado, tentando marcar encontros com uma garota atrás de outra. No fim da tarde, a maioria das pessoas parecia levemente alegre e o tom de voz dos presentes estava mais alto em timbre e volume. Jacob e Jenny se retiraram.

Na segunda festa, o jovem Raffino — mais um dos inumeráveis candidatos a Valentino — apareceu de novo por um minuto, falou com Jenny um pouco mais atentamente e saiu. Jacob concluiu que esta festa não tinha o brilho da outra. Havia mais gente sentada ao redor da mesa de coquetéis.

Jenny — ele percebeu — bebia apenas limonada. Ficou surpreso e bem impressionado com sua distinção e boas maneiras. Sempre falava para uma só pessoa, e não para todos os que estivessem por perto para ouvir; em seguida escutava, sem sentir necessidade de percorrer a sala com os olhos. Fosse aquilo deliberado ou não, notou que, em ambos os chás, cedo ou tarde ela estava conversando com o convidado mais importante. Sua seriedade e o ar de estar dizendo “Esta é a minha oportunidade de aprender alguma coisa” calavam fundo na vaidade de seus interlocutores.

Quando saíram para a última festa — uma ceia —, já estava escuro. Anúncios luminosos apregoando lançamentos imobiliários brilhavam em Beverly Hills. Na entrada do Grauman’s Theater, já se formava uma fila enorme sob a chuva fina.

“Olhe! Olhe!”, gritou Jenny. Era o filme que ela terminara um mês antes.

Saíram do Hollywood Boulevard e entraram por uma rua lateral. Ele a enlaçou e a beijou.

“Jake querido.” Sorriu para ele.

“Jenny, você está linda. Não sabia que era tão linda.”

Ela olhou para a frente, com firmeza, o rosto meigo e tranqüilo. Uma onda de aborrecimento perpassou por ele, que a apertou com ansiedade quando o carro parou diante de uma mansão iluminada.

Entraram num bangalô cheio de gente e fumaça. O ímpeto com que as pessoas haviam se atirado no começo da tarde já se exaurira; tudo se tornara mais vago.

“Assim é Hollywood”, explicava uma tagarela que parecia ter estado nas proximidades durante todo o dia. “Nada de grandes agitações aos domingos.” Indicou a anfitriã. “Uma menina doce e simples.” Levantou a voz: “Não é, querida? Uma menina doce e simples?”.

A anfitriã respondeu: “É. De quem se trata?”. E a informante de Jacob baixou de novo a voz: “Mas esta sua menina é a mais esperta do estúdio”.

O total de drinques que Jacob havia bebido naquela noite já começara a afetá-lo de maneira agradável, mas, por mais que tentasse, o sentido daquela festa lhe escapava. Havia algo tenso no ar, algo que sugeria competição e insegurança. As conversas com os outros homens tornavam-se rapidamente vazias ou excessivamente cordiais, quando não se dissolviam num clima de suspeita e desconfiança. As mulheres eram mais agradáveis. Às onze horas, na copa, Jacob deu-se conta de que não via Jenny havia mais de uma hora. Voltando para a sala, viu quando ela entrou — ostensivamente vindo de fora, porque tirou uma capa dos ombros. Estava com Raffino. Quando se aproximou, Jacob percebeu que ela parecia sem fôlego e que seus olhos brilhavam. Raffino sorriu com amabilidade para Jacob. Poucos minutos depois, ao sair, inclinou-se e sussurrou no ouvido de Jenny, a qual deu-lhe boa-noite sem esboçar um sorriso.

“Tenho de estar no estúdio às oito da manhã”, ela disse a Jacob pouco depois. “Se não for para casa agora, amanhã vou parecer um guarda-chuva molhado. Importa-se, querido?”

“Hein? Claro que não!”

O carro atravessou as intermináveis distâncias que separavam os lugares naquela cidade.

“Jenny, nunca a vi como nesta noite. Encoste sua cabeça em meu ombro.”

“Ótimo, estou mesmo cansada.”

“É indescritível como você estava radiante.”

“Estava como sempre, eu acho.”

“Não, não estava.” Sua voz reduziu-se a um sussurro, trêmula de emoção. “Jenny, estou apaixonado por você.”

“Jacob, não seja tolo.”

“Estou apaixonado por você. Não é estranho, Jenny? Aconteceu assim de repente.”

“Você não está apaixonado por mim.”

“Você quer dizer que o fato não lhe interessa, não é?” Ele teve uma leve sensação de medo.

Jenny libertou-se do círculo de seus braços. “Ora, claro que me interessa. Você sabe que não há ninguém de quem eu goste mais neste mundo.”

“Nem o senhor Raffino?”

“Ah, meu Deus!”, ela protestou com desprezo. “Raffino não passa de uma criança.”

“Amo você, Jenny.”

“Não, não ama.”

Estreitou-a de novo. Seria sua imaginação ou ela impôs uma breve resistência? Mas deixou-se aconchegar e beijar.

“Você sabe que Raffino não quer dizer nada”, ela garantiu.

“Talvez eu esteja com ciúme.” Sentindo-se insistente e pouco atraente, libertou-a. Mas a sensação de medo tinha se tornado uma dor. Embora soubesse que ela estava cansada e pouco à vontade com o que ele dizia, não conseguiu encerrar o assunto. “Acho que ainda não havia notado como você se tornara uma parte importante da minha vida. Não sabia o que estava me faltando, mas agora sei. Quero ficar perto de você.”

“Bem, estou aqui.”

Ele interpretou suas palavras como um convite, mas, desta vez, ela relaxou entediada em seus braços. Abraçou-a pelo resto do caminho.

“O carro o levará até o hotel”, disse Jenny, quando chegaram ao apartamento. “Lembre-se, você irá almoçar comigo amanhã no estúdio.”

De repente, os dois se viram numa discussão que esteve a ponto de se tornar uma briga, sobre se era ou não muito tarde para que ele entrasse. Nenhum dos dois parecia avaliar a mudança que a declaração dele provocara no outro. Subitamente, tinham se tornado pessoas muito diferentes — Jacob tentando desesperadamente fazer o relógio voltar àquela noite em Nova York, seis meses antes, Jenny considerando esse comportamento mais de ciúme que de amor. Era como se neve se acumulasse sobre as qualidades de consideração e compreensão que ela conhecia nele, e com as quais se sentia tão bem.

“Mas eu não o amo assim”, ela gritou. “Como pode aparecer de uma hora para outra e querer que eu o ame desse jeito?”

“É assim que você ama Raffino!”

“Juro que não! Nunca nem o beijei — nem isso!”

“Hum!” Jacob era agora um pássaro desabrido. Mal podia acreditar no que estava fazendo, mas, enfim, fora acometido por essa coisa ilógica que era o amor. “Um ator!”

“Ah, Jake!”, ela gemeu. “Por favor, deixe-me entrar. Nunca me senti tão confusa na vida.”

“Eu é que irei embora”, ele disse de repente. “Não sei o que está acontecendo, exceto que estou louco por você e não sei o que estou dizendo. Eu a amo e você não me ama. Acho que já me amou, ou pensou que amava, mas é evidente que já acabou.”

“Mas eu o amo.” Ela pensou por um momento; o anúncio verde e vermelho de um posto de gasolina defronte refletiu a luta em seu rosto. “Se você me ama tanto assim, eu me casarei com você amanhã.”

“Casar comigo!”, ele exclamou. Jenny estava tão absorta no que ela própria dissera que nem notou sua exclamação.

“Eu me casarei com você amanhã”, ela repetiu. “Gosto mais de você do que de qualquer outra pessoa, e acho que chegarei a amá-lo como você deseja.” Finalmente explodiu num soluço. “Mas... eu não sabia que isto iria acontecer. Por favor, deixe-me só esta noite.”

Jacob não conseguiu dormir. Podia ouvir a música do baile do Ambassador e o alarido das garotas do clube à espera de seus namorados. Então um homem e uma mulher começaram a brigar no corredor, continuaram no quarto ao lado e os murmúrios irritados chegavam a seu quarto pela fresta da porta. Por volta das três da manhã foi até a janela e contemplou o claro esplendor das noites da Califórnia. A beleza de Jenny parecia estar em todos os lugares, no gramado defronte, nos tetos dos bangalôs, na música da noite. Estava no quarto, no travesseiro branco, cantava através das cortinas. Seu desejo recriou-a até ela perder todos os vestígios da antiga Jenny, mesmo os da garota que fora recebê-lo na estação aquela manhã. Em silêncio, enquanto se passavam as horas, ele a moldou numa imagem de amor — uma imagem que perduraria tanto quanto o amor em si, ou mesmo mais —, que só pereceria quando ele finalmente dissesse: “Eu nunca a amei”. Lentamente, essa imagem foi criada (a partir de uma breve ilusão de juventude ou de um velho desejo), até que a única coisa em comum entre a mulher que ele conhecia e a que ele imaginava era o nome.

Mais tarde, quando Jacob finalmente permitiu-se dormir por algumas horas, a imagem recriada estava a seu lado, pairando sobre o quarto, entrelaçada em seu coração.

V.

“Não me casarei com você se não me amar”, ele disse, quando voltavam do estúdio. Ela esperou, com as mãos postas tranqüilamente no colo. “Acha que eu iria querê-la infeliz, Jenny, sabendo que não me ama?”

“Eu o amo. Mas não desse jeito.”

“O que significa desse jeito?”

Jenny hesitou, os olhos distantes. “Você não me... perturba, Jake. Não sei, houve homens que me perturbaram de alguma maneira quando me tocaram, dançando ou coisa assim. Sei que é bobagem, mas...”

“E Raffino, também a perturba?”

“Um pouco, não muito.”

“E eu, nem um pouco?”

“Sinto-me bem e feliz com você.”

Ele deveria ter lhe dito que assim era melhor, mas não conseguiu dizê-lo, talvez por não saber se aquilo era verdade ou mentira.

“Seja como for eu me casarei com você. Talvez você me perturbe um dia.”

Ele riu, mas parou em seguida. “Se eu não a perturbava, como você diz, por que parecia gostar tanto de mim no verão passado?”

“Não sei. Talvez porque eu fosse mais jovem. A gente nunca sabe como se sente, não é?”

Ela se tornara escorregadia para ele, de um jeito que empresta significados ocultos às mais insignificantes observações. Ao passo que ele, com as grosseiras ferramentas do ciúme e do desejo, tentava criar uma espécie de magia tão etérea e delicada como um grão de pó na asa de uma traça.

“Escute, Jake”, ela disse de repente, “aquele advogado da minha irmã — Scharnhorst, não era? — ligou para o estúdio esta tarde.”

“Sua irmã vai bem”, ele respondeu, com ar ausente. “Quer dizer que vários homens a perturbam?”

“Bem, se eu sentisse isso a respeito de tantos homens, não teria nada a ver com amor, não acha?”

“Mas, segundo você, não pode haver amor sem isso.”

“Não é nada disso, e você sabe. Apenas lhe contei como me sentia. Você sabe melhor do que eu.”

“Não sei de nada.”

Havia um homem à espera na entrada do edifício. Jenny saiu e falou com ele; depois, virando-se para Jake, disse baixinho: “É Scharnhorst. Incomoda-se de esperar aqui embaixo enquanto falo com ele? Disse que não levaria mais de meia hora”.

Jake esperou, fumando inúmeros cigarros. Dez minutos se passaram além da hora. Foi quando o porteiro lhe acenou:

“Depressa!”, ele disse. “A senhorita Prince o chama ao telefone.”

A voz de Jenny estava tensa e assustada. “Não deixe Scharnhorst sair! Está descendo as escadas, ou talvez pelo elevador. Traga-o de volta.”

Jacob desligou o telefone no momento em que o elevador chegou. Postou-se em frente à porta, barrando a saída. “Senhor Scharnhorst?”

“Sim?” O rosto era suspeito.

“Pode subir ao apartamento da senhorita Prince de novo? Ela esqueceu de lhe dizer algo.”

“Falo com ela depois.” Tentou forçar a passagem diante de Jacob. Segurando-o pelos ombros, Jacob empurrou-o de volta ao elevador, fechou a porta e apertou o botão do oitavo andar.

“Posso mandar prendê-lo por isso!”, gritou Scharnhorst. “É uma violência!”

Jacob continuou segurando-o firme. Lá em cima, com pânico nos olhos, Jenny mantinha a porta aberta. Após uma ligeira luta, o advogado concordou em entrar.

“O que houve?”, perguntou Jacob.

“Conte você”, ela disse. “Ah, Jake, ele quer vinte mil dólares!”

“Para quê?”

“Para arranjar um novo julgamento para minha irmã.”

“Mas ela não tem a menor chance!”, exclamou Jacob. Virou-se para Scharnhorst. “Você sabe muito bem disso.”

“Há algumas alternativas técnicas”, disse o advogado, inseguro, “coisas que só um advogado consegue entender. Ela está muito mal na prisão, e sua irmã, tão rica e famosa... A senhora Choynski acha que devia ter outro julgamento.”

“Você a convenceu disso, não?”

“Ela mandou me chamar.”

“Mas a idéia da chantagem foi sua. Suponho que, se a senhorita Prince não dispuser de vinte mil dólares para financiar o novo processo, todo mundo saberá que ela é irmã de uma assassina.”

Jenny exclamou: “Foi exatamente o que ele disse!”.

“Espere um minuto!” Jacob pegou o telefone. “Western Union, por favor. Western Union? Gostaria de passar o seguinte telegrama.” Deu o nome e endereço de uma conhecida personalidade do mundo político de Nova York. “O telegrama é o seguinte:

Condenada sra. Choynski ameaçando irmã, conhecida atriz de cinema, ameaçando denunciar o parentesco PT Pode arranjar com diretor da prisão para suspender visitas até eu chegar aí e explicar situação? PT Avise-me se duas testemunhas de tentativa de chantagem são suficientes para excluir advogado do foro judiciário em Nova York se processo partir de firma tão poderosa quanto Read, Van Tyne, Biggs & Cia., ou de meu tio PT Resposta para hotel Ambassador, Los Angeles.

JACOB C. K. BOOTH

Esperou até que a portaria lhe repetisse o telegrama, palavra por palavra. “Agora, senhor Scharnhorst”, disse, “o amor à arte não deve ser perturbado por alarmes desse tipo. A senhorita Prince, como pode ver, está bastante aborrecida. Isso ficará claro no seu trabalho amanhã no estúdio, o que poderá desapontar milhões de espectadores. Portanto, não vamos obrigá-la a tomar nenhuma decisão. Aliás, eu e o senhor estaremos saindo de Los Angeles no mesmo trem esta noite.”

VI.

O verão passou. Jacob continuou sua vida ociosa, animado apenas pelo fato de que Jenny viria a Nova York no outono. A esta altura já teria havido muitos Raffinos, ele achava, e ela saberia, afinal, que a perturbação provocada por suas mãos e olhos — e lábios — era sempre a mesma. Era o equivalente, em outra escala, aos romances colegiais, aos namoros de férias. E, se ela ainda pensasse que seus sentimentos por ele não fossem de paixão, ele a aceitaria assim mesmo, deixando que a paixão acontecesse depois do casamento, como já acontecera a tantas mulheres.

Suas cartas o fascinavam e confundiam. Em sua inaptidão de expressão, havia lampejos de emoção — falava de eterna gratidão, de sua vontade de vê-lo, mas pareciam reações rápidas e assustadas, provocadas, ele imaginava, pela presença de outros homens. Em agosto, ela foi filmar numa locação e, por algum tempo, houve apenas alguns postais de um deserto perdido no Arizona e, depois, nada. Ele gostou dessa interrupção. Tinha pensado em tudo que havia nele e que poderia repugná-la — sua ostentação, seu ciúme, sua manifesta dependência. Desta vez seria diferente. Ele manteria controle da situação. Ela, pelo menos, o admiraria de novo e veria nele a garantia de uma vida bem ajustada e digna.

Duas noites antes de Jenny chegar, Jacob foi ver seu último filme num enorme cinema na Broadway. Era uma história passada numa universidade. Jenny usava um penteado em forma de coque, inspirava o galã a façanhas atléticas e, no final, desaparecia entre a multidão que o aplaudia. Mas havia alguma coisa em seu desempenho: pela primeira vez, a impressionante tonalidade que ele notara em sua voz parecia transferir-se para a sua imagem na tela silenciosa. Cada gesto, cada movimento era pungente e relevante. Outros na platéia começaram a perceber também. Jacob julgou achar isso pela maneira com que a platéia respirava quando ela entrava em cena e pelo reflexo de sua expressividade nos rostos indiferentes dos espectadores. Os críticos também notaram, embora a maioria deles tivesse sido incapaz de definir precisamente sua personalidade.

Mas a primeira vez em que Jacob teve real consciência da existência pública de Jenny foi através do comportamento dos outros passageiros que desembarcavam do trem que a trazia. Embora ocupados com seus amigos e bagagens, não deixavam de olhá-la, de dizer seu nome ou de chamar a atenção dos outros para a sua presença.

Jenny estava radiante. Havia uma aura de júbilo à sua volta, que parecia fluir dela, como um frasco de perfume que tivesse conseguido aprisionar o êxtase. Aquilo provocou uma transfusão mística, e o sangue voltou a correr pelas veias ressecadas de Nova York. Houve a satisfação do motorista de Jacob quando ela o reconheceu, o rebuliço respeitoso dos empregados do Plaza diante de sua presença, o colapso nervoso do maître do restaurante onde jantaram. Quanto a Jacob, sentia-se agora em total controle de si mesmo. Estava gentil, atencioso, educado, como era natural nele, mas, nesse caso, tudo tivera de ser planejado. Suas maneiras pareciam prometer e delinear sua capacidade de cuidar dela, sua vontade de que ela o quisesse.

Após o jantar, o cantinho no restaurante esvaziou-se aos poucos do pessoal do teatro e a sensação de estarem a sós pairou sobre eles. Seus rostos tornaram-se graves, suas vozes mais tranqüilas.

“Há cinco meses que não nos vemos”, disse Jacob, olhando para as próprias mãos pensativamente. “Nada mudou em mim, Jenny: Eu a amo com todo o meu coração. Amo o seu rosto, os seus defeitos, a sua mente e tudo em você. A única coisa que quero na vida é fazê-la feliz.”

“Eu sei”, ela murmurou. “Puxa, como sei.”

“Não sei se ainda há apenas afeto em seus sentimentos em relação a mim. Mas não importa. Se você se casar comigo, descobrirá que as outras coisas acontecerão antes que você se dê conta — e aquilo que você chamou de perturbação lhe parecerá uma brincadeira, porque a vida não é para garotos e garotas, Jenny, e sim para homens e mulheres.”

“Jacob”, ela murmurou, “não é preciso que você me diga isso — eu sei.”

Levantou os olhos pela primeira vez. “O que quer dizer com isso — que sabe?”

“Eu sei o que você quer dizer. Ah, isso é terrível! Jacob, escute! Preciso lhe dizer. Escute, querido, mas não diga nada. Não me olhe. Apenas escute. Jacob, estou apaixonada.”

“O quê?”, ele perguntou, atarantado.

“Apaixonei-me. É por isso que compreendo como foram bobas aquelas perturbações.”

“Está querendo me dizer que se apaixonou por mim?”

“Não.”

O terrível monossílabo pareceu levar uma eternidade para cruzar a pequena distância que os separava na mesa: “Não — não — não — não — não!”.

“Ah, isto é horrível!”, ela gritou. “Apaixonei-me por um homem que conheci durante a filmagem no deserto. Não queria — tentei resistir, mas a primeira coisa que descobri quando cheguei lá é que tinha me apaixonado e não podia fazer nada. Escrevi a você pedindo que fosse até lá, mas não mandei a carta. Eu estava louca por aquele homem, mas não tinha coragem de me declarar a ele. Não conseguia dormir.”

“É um ator?”, ele ouviu a sua voz, vinda de alguma profundeza. “Raffino?”

“Ah, não, não, não! Espere, deixe-me contar. Aquilo se arrastou por três semanas e cheguei a pensar sinceramente em me matar, Jake. A vida não valeria nada se eu não o tivesse. Mas, uma noite, por acaso, ficamos a sós num carro. Ele me agarrou e me obrigou a dizer que eu o amava. Ele sabia — não podia deixar de saber.”

“Foi uma coisa... incontrolável, não?”, disse Jacob, tentando ficar firme. “Compreendo.”

“Ah, eu sabia que você ia entender, Jake! Você entende tudo. Você é a melhor pessoa do mundo, Jake, eu não sei disso?”

“Vai se casar com ele?”

Ela fez que sim, lentamente. “Disse a ele que, antes, eu teria que vir a Nova York ver você.”

À medida que seu temor diminuía, ela percebeu melhor a extensão da dor de Jacob e seus olhos se encheram de lágrimas. “Só acontece uma vez, Jake, desse jeito. Isso não me saía da cabeça naquelas semanas em que não tinha coragem de dizer a ele que estava apaixonada — porque, se ele não me quisesse, eu nunca mais me apaixonaria e, nesse caso, para que viver? Ele estava dirigindo o filme, e sentia o mesmo a meu respeito.”

“Compreendo.”

Como antes, seus olhos prenderam-se aos dele como mãos. “Ah, Ja-a-ke!” Com aquele repente de compaixão, passou a força do primeiro impacto. Os dentes de Jacob cerraram-se de novo e ele lutou desesperadamente para esconder sua miséria. Disfarçando suas expressões com uma máscara de ironia, mandou pedir a conta. Quando entraram num táxi a caminho do Plaza Hotel, era como se já se tivesse passado uma hora.

Ela se agarrou a ele: “Jake, diga que está tudo bem! Diga que compreende! Jake, querido, meu melhor amigo, diga que compreende!”.

“Claro que compreendo, Jenny.” Sua mão acariciou a dela automaticamente.

“Ahhh, Jake, você está se sentindo péssimo, não está?”

“Vou sobreviver.”

“Ah-h-h-h, Jake!”

Chegaram ao hotel. Antes de sair do carro, Jenny olhou-se no espelhinho de sua bolsa e virou a gola de seu casaco de pele. No saguão, Jacob esbarrou em diversas pessoas e pediu desculpas, com voz tensa e inconvincente. O elevador se abriu. Jenny, com o rosto ausente e cheio de lágrimas, entrou e estendeu a mão em sua direção.

“Jake”, disse mais uma vez.

“Boa noite, Jenny.”

Ela se virou para o interior da cabine e a porta gradeada se fechou. O ascensorista arrancou.

Jacob quis gritar: “Cuidado com esse elevador! Não suba tão depressa!”.

Voltou-se e saiu pelo saguão como um cego. “Eu a perdi”, murmurou a si mesmo, assustado. “Eu a perdi!”

Caminhou pela rua 59 em direção a Columbus Circle e depois desceu a Broadway. Estava sem cigarros — esquecera-os no restaurante — e entrou numa tabacaria. Houve uma ligeira confusão a respeito do troco e alguém na loja riu.

Quando saiu à rua, pareceu confuso por um momento. Em seguida, como se finalmente se desse conta de sua nova realidade, sentiu-se imensamente cansado. Como quem relê uma história trágica esperando que o final termine de outra maneira, obrigou a memória a voltar àquela manhã, àquela primeira manhã do ano anterior. Mas o fio da trama desenrolou-se com a certeza de que chegaria ao fim naquele apartamento do Plaza Hotel, onde ela se separara dele para sempre.

Caminhou pela Broadway. Um grande luminoso na porte-cochère do Capitol Theater piscava na noite: “Carl Barbour e Jenny Prince”.

O nome tomou-o de assalto, quando um transeunte pronunciou-o. Parou e observou. Outros olhos dirigiram-se para o luminoso, muitas pessoas se viraram e entraram no cinema.

Jenny Prince.

Agora que ela não mais lhe pertencia, seu nome assumia um significado próprio.

Brilhava na fachada, frio e impenetrável, desafiando a noite.

Jenny Prince.

“Venha se deslumbrar com minha beleza”, parecia dizer. “Realize seu sonho e se case comigo por uma hora.”

Jenny Prince.

Não era verdade — ela estava no Plaza Hotel, apaixonada por outro homem. Mas seu nome brilhava com insistência.

“Eu amo o meu público. Ele é maravilhoso comigo.”

Ondas de dor invadiram-no por dentro, com cristas altas de desespero, afogando-o em intenso sofrimento. “Nunca mais. Nunca mais.” Orgulhoso e inatingível, o nome na fachada agora parecia olhar para ele.

Jenny Prince.

Ela estava lá! Toda ela, o melhor dela — o talento, o poder, o triunfo, a beleza.

Jacob seguiu uma parte da multidão e comprou um ingresso na bilheteria.

Confuso, olhou ao redor do enorme saguão. Então viu uma porta e entrou. Lá dentro, sentou-se numa poltrona e foi engolfado pela escuridão.

(1935)