Majestade

Incrível não é que as pessoas, no fim das contas, se dêem melhor ou pior do que se esperava. Incrível é como se mantêm à tona, cumprem as expectativas e parecem levadas por seu inevitável destino.

Um de meus orgulhos é ninguém jamais ter me desapontado desde que fiz dezoito anos e ter aprendido a distinguir entre uma pessoa de real valor e outra com um simples dom para a enganação. Muitos dos enganadores que conheci no passado são, até hoje, apenas enganadores bem-sucedidos.

Emily Castleton nasceu em Harrisburg numa casa de tamanho médio, veio para Nova York aos dezesseis anos e foi morar numa casa bem maior. Estudou no colégio Briarly, mudou-se para uma casa enorme, depois para uma mansão em Tuxedo Park e finalmente para outro país, onde fez uma série de coisas que estavam na moda e saiu em todos os jornais. No passado, quando estava sendo apresentada para a sociedade, um daqueles pintores franceses dogmáticos a respeito das belas mulheres americanas incluiu-a, com outras onze celebridades públicas e semipúblicas, entre os perfeitos tipos da América. Na época, não faltavam homens para concordar com ele.

Ela era relativamente alta, com traços grandes e bonitos, olhos com tal extensão de azul que não havia como não notá-los e uma boa quantidade de cabelo louro e espesso, imponente e brilhante. Seus pais não sabiam muito sobre o novo mundo que tinham conquistado, daí que Emily teve de aprender tudo sozinha e envolveu-se em várias situações que desgastaram um pouco seu viço original. Mesmo assim, ainda havia viço de sobra. Passou por noivados e seminoivados, alguns flertes curtos e apaixonados, e, aos vinte e dois anos, por um tremendo caso que a amargurou e a fez vagar por vários continentes em busca de felicidade. Tornou-se “artista”, como acontece nessa idade com muitas garotas ricas e solteiras, porque as pessoas com pendores “artísticos” parecem ter algum segredo, algum refúgio interior, alguma fuga. Mas a maioria de suas amigas já se casara e a vida de Emily parecia um grande desapontamento para seu pai. E assim, aos vinte e quatro anos, com o casamento mais na cabeça que no coração, Emily voltou.

Era um ponto a menos em sua carreira, e ela sabia disso. Não se dera muito bem na vida. Era uma das garotas mais queridas e bonitas de sua geração, com charme, dinheiro e alguma fama, mas essa geração estava em busca de novos caminhos. Ao primeiro sinal de desprezo de uma antiga colega, agora uma jovem “matrona”, ela foi para Newport e se deixou conquistar por William Brevoort Blair. Imediatamente voltou a ser a incomparável Emily Castleton. A mulher perfeita, criada pelo pintor francês, voltou aos jornais. O evento mais comentado de outubro envolvendo a classe ociosa foi o dia de seu casamento.

Um esplendor para ficar na história dos casamentos da sociedade [...]. Harold Castleton instalou uma série de pavilhões, no valor de cinco mil dólares cada um, interligados como tendas de circo, nos quais se darão a recepção, a ceia e o baile [...]. Cerca de mil convidados, muitos deles líderes empresariais, misturados com os famosos do cenário social [...]. Estima-se que o valor dos presentes de casamento chegue a duzentos e cinqüenta mil dólares...

Uma hora antes da cerimônia, que se daria na igreja de St. Bartholomew, Emily sentou-se diante da penteadeira e contemplou seu rosto no espelho. Naquele momento, constatou que estava um pouco cansada do próprio rosto e sentiu-se deprimida com a idéia de que ele exigiria cada vez mais cuidados nos próximos cinqüenta anos.

“Eu queria ser feliz”, pensou em voz alta, “mas só me lembro de coisas tristes.”

Sua prima, Olive Mercy, sentada a seu lado na cama, concordou: “Todas as noivas são tristes”.

“É um desperdício”, disse Emily.

Olive reagiu com impaciência.

“Desperdício de quê? Nenhuma mulher é completa até se casar e ter filhos.”

Por um momento, Emily não respondeu. Depois, disse lentamente: “Sim, mas filhos de quem?”.

Pela primeira vez na vida, Olive, que adorava Emily, quase a odiou. Qualquer garota naquela festa daria tudo para se casar com Brevoort Blair — inclusive Olive.

“Você é uma felizarda”, disse. “Deu tanta sorte que nem desconfia. Devia levar uma surra por falar assim.”

“Vou aprender a amá-lo”, debochou Emily. “O amor virá com o tempo. Puxa, que beleza de futuro, hein?”

“Por que você faz questão de ser tão pouco romântica?”

“Ao contrário, sou a pessoa mais romântica que conheço. Sabe o que penso quando Brevoort me abraça? Que, se olhar para ele, vou ver os olhos de Garland Kane.”

“Mas, então, por que...”

“Ao entrar no avião de Brevoort, outro dia, só me lembrava do dois-lugares do comandante Marchbanks, no qual voamos sobre o canal da Mancha, apaixonadíssimos um pelo outro e sem nem tocar no assunto, por causa da mulher dele. Não me arrependo desses homens; só me arrependo da parte de mim que ficou com eles. Só tenho os restos para entregar a Brevoort numa cestinha cor-de-rosa. Deveria haver algo mais. Mesmo quando me deixava levar pela paixão, pensava que sempre sobraria alguma coisa para aquele que eu finalmente escolhesse. Pelo visto, isso não aconteceu.” Completou dizendo: “Não me conformo”.

A situação não era menos irritante para Olive, mesmo ela se mostrando compreensiva. Se não fosse ela a prima pobre, já lhe teria dito umas verdades. Emily era uma moça mimada — oito anos de homens em sua vida tinham-na convencido de que ninguém era bom o suficiente para ela, e Emily tomara esse fato como verdade.

“Você está nervosa.” Olive tentou disfarçar o aborrecimento na voz. “Por que não repousa por uma hora?”

“Está bem”, respondeu Emily, ausente.

Olive desceu. No salão inferior, esbarrou com ninguém menos que Brevoort Blair vestido de noivo, com cravo branco e tudo, e num estado de considerável agitação.

“Ah, desculpe”, ele deixou escapar. “Queria ver Emily. É sobre o anel — você sabe que anel. Estou com quatro anéis para ela escolher, mas até hoje ela não me disse qual preferia, e não posso ficar segurando todos eles na igreja até que ela decida.”

“Por acaso sei que ela prefere aquele simples, de platina. Mas se você quiser vê-la...”

“Não, não, obrigado. Não quero incomodá-la.”

Estavam muito próximos um do outro e, mesmo quando Brevoort foi embora, definitivamente comprometido, Olive não podia deixar de pensar em como se parecia com ele. Cabelo, cor, traços — podiam ser irmãos — e partilhavam o mesmo temperamento tímido e sério, o mesmo jeito direto. Tudo isso faiscou em sua mente por um instante, mas prevaleceu a idéia de que, quem sabe, Emily, loura e agitada, com sua vitalidade e amplitude, fosse realmente melhor para Brevoort, em todos os sentidos; só que, ao fim, uma onda perfeita de ternura, de ânsia e dó puramente física tomou-a por completo e a fez ver que só precisava dar um passinho à frente para cair nos braços de Brevoort, se eles se abrissem para ela.

Em vez disso, Olive deu um passo para trás, renunciando a ele como se ainda o tocasse com a ponta dos dedos e só então recolhesse as mãos. Uma vibração em suas emoções deve ter se imiscuído na consciência de Brevoort porque, de repente, ele disse:

“Vamos continuar amigos, não? Por favor, não pense que estou levando Emily embora. Sei perfeitamente que nunca serei dono dela — ninguém jamais será dono dela —, nem quero.”

Enquanto Brevoort falava, ela se despediu dele em silêncio, o único homem que sempre desejara para si.

Amou o jeito absorto e hesitante com que ele pôs o casaco e o chapéu e forçou esperançosamente a maçaneta para o lado errado da porta.

Quando Brevoort saiu, Olive foi para a sala; uma sala gloriosa e imponente, com afrescos de bacanais, maciços candelabros e retratos de figuras do século XVIII que poderiam ser os ancestrais de Emily, mas não eram, e justamente por isso, pareciam lhe assentar ainda mais. E ali ela ficou, como sempre à sombra de Emily.

Pela porta que levava à pequena e inestimável nesga de grama da rua 60, agora cercada pelos pavilhões, entrou seu tio, o sr. Harold Castleton. Vinha bebericando champanhe.

“Olive, minha linda querida”, ele gritou, emocionado. “Olive, meu benzinho, Emily finalmente tomou jeito. Está ótima, como eu esperava. Os melhores sempre tomam jeito, não é? Como os verdadeiros puros-sangues. Cá entre nós, eu já estava pensando que Deus dera demais a Emily e que ela nunca ficaria satisfeita, mas, agora, voltou à terra como um...”, procurou em vão por uma metáfora, “... como um puro-sangue, e vai descobrir que não é um lugar ruim.” Olhou-a mais de perto: “Você estava chorando, Olivinha”.

“Só um pouco.”

“Não importa”, ele disse, magnânimo. “Se não estivesse tão feliz, eu também choraria.”

Mais tarde, ao partir com as duas outras damas de honra para a igreja, Olive sentiu que a solene pulsação do grande casamento parecia começar com a vibração do carro. Na porta, ela seria substituída pelo órgão e, mais tarde, palpitaria nos violoncelos e violas do baile, até desaparecer aos poucos no carro que levaria os noivos.

A multidão era compacta ao redor da igreja e, a três metros dela, o ar estava carregado de perfume, otimismo e roupas novas. Passado o aglomerado de chapéus na nave da igreja, as duas famílias sentaram-se nos bancos da frente, uma de cada lado. Os Blair — havia uma semelhança de família em suas expressões de tênue condescendência, partilhada tanto pelos genros quanto pelos verdadeiros Blair — estavam representados pelos dois Gardiner Blair, pai e filho; Lady Mary Bowes Howard, née Blair; a sra. Potter Blair; a sra. princesa Potowki Parr Blair, née Inchbit; a srta. Gloria Blair; o jovem Gardiner Blair iii e os ramos aparentados, ricos e pobres, dos Smythe, Bickle, Diffendorfer e Hamn. No outro lado da nave, os Castleton causavam uma impressão menor — o sr. Harold Castleton, sr. e sra. Theodore Castleton e filhos, Harold Castleton Jr. e, vindo de Harrisburg, o sr. Carl Mercy e duas tias velhas de sobrenome O’Keefe, escondidas num canto. Meio que para surpresa delas próprias, as duas tias tinham sido enfiadas numa limusine e vestidas dos pés à cabeça por uma costureira da moda naquela manhã.

Na sacristia, enquanto as damas de honra adejavam como pássaros com seus chapéus desabados, havia as derradeiras aplicações de batom e ajustes de alfinetes antes da chegada de Emily. Elas representavam diversas épocas da vida de Emily — uma colega da escola em Briarly, uma última amiga solteira dos seus tempos de debutante, uma companheira de viagem à Europa e a garota que ela visitara em Newport, quando conheceu Brevoort Blair.

“Eles contrataram Wakeman”, disse esta última, de pé na porta e ouvindo a música. “Ele tocou no casamento de minha irmã, mas no meu é que não vai tocar.”

“Por que não?”

“Ora, está tocando a mesma coisa o tempo todo ‘At dawning’. Já tocou isso umas dez vezes.”

Naquele momento, outra porta se abriu e a cabeça solícita de um rapaz apareceu. “Quase prontas?”, perguntou para a dama de honra mais próxima. “Brevoost está tendo um pequeno chilique. Está experimentando colarinho atrás de colarinho.”

“Fique calmo”, respondeu a moça. “A noiva sempre se atrasa alguns minutos.”

“Alguns minutos!”, protestou o jovem. “Você chama isso de alguns minutos? A turba já começou a se agitar lá fora como uma platéia de circo e o organista está tocando a mesma música há mais de meia hora. Vou pedir que ele toque um jazz.”

“Que horas são?”, perguntou Olive.

“Cinco e quinze, cinco e dez.”

“Talvez ela esteja presa num engarrafamento.” Olive silenciou quando o sr. Harold Castleton, seguido por um padre agitado, adentrou o recinto em busca de um telefone.

E ali começou uma azáfama de gente que entrava, uma a uma, depois aos pares, até que a sacristia estivesse entupida de parentes e de confusão.

“O que está acontecendo?”

Um motorista entrou e disse alguma coisa, excitado. Harold Castleton soltou um palavrão e, com o rosto afogueado, saiu em direção à porta, atropelando as pessoas. Houve uma tentativa de evacuar a sacristia e, em seguida, como se para equilibrar a barafunda, uma onda de vozes saiu do fundo da igreja e começou a subir ao altar, cada vez mais alta, mais rápida e mais excitada, sempre crescente, apoderando-se de todo mundo, até transformar-se num suave bramido. O anúncio do altar, de que o casamento tinha sido adiado, mal foi ouvido — naquele momento, todos já se sentiam personagens de um escândalo que tomaria a primeira página dos jornais: o de que Brevoort Blair fora abandonado ao pé do altar e que Emily Castleton fugira.

II.

Quando Olive chegou, havia mais de dez repórteres à porta da casa dos Castleton na rua 60, mas ela estava tão concentrada em seu objetivo que nem ouviu as perguntas. Queria desesperadamente consolar um certo homem de quem nem deveria se aproximar. Por isso, como que para substituí-lo, procurou seu tio Harold. Entrou pelos pavilhões de cinco mil dólares, onde os fornecedores do banquete e os empregados continuavam esperando numa respeitosa e funérea meia-luz, como se alguma coisa ainda fosse acontecer, entre bandejas de caviar e peito de peru e um piramidal bolo de casamento. No andar de cima, Olive encontrou o tio sentado num banquinho, diante da penteadeira de Emily. Os artigos de maquiagem e o repertório da vaidade feminina, dispersos à sua frente, faziam de sua imprópria presença em tal lugar um símbolo daquela catástrofe maluca.

“Ah, é você.” A voz dele parecia indiferente. Tinha envelhecido nitidamente em duas horas. Olive enlaçou seus ombros curvados.

“Lamento tanto pelo senhor, tio Harold.”

De repente, ele despejou uma torrente de palavrões, silenciou, e uma única e imensa lágrima brotou lentamente de um olho.

“Preciso de meu massagista”, disse. “Mande McGregor chamá-lo.” Deu um longo suspiro entrecortado, como uma criança respirando depois de chorar, e Olive viu que suas mangas estavam cobertas com uma camada de pó-de-arroz da penteadeira, como se tivesse se debruçado sobre ela, chorando.

“Chegou um telegrama”, ele gaguejou. “Está em algum lugar.” E acrescentou, bem devagar: “De agora em diante, minha filha é você”.

“Ah, não, o senhor não deve dizer isso!”

Abrindo o telegrama, ela leu:

NÃO CONSEGUI PT TALVEZ EU SEJA UMA BOBA MAS ASSIM ACABA MAIS RÁPIDO PT LAMENTO POR VOCÊS

EMILY

Depois de chamar o massagista e destacar um criado para ficar à porta do tio, Olive foi para a biblioteca, onde um confuso secretário tentava não dizer nada para um repórter insistente e perguntador.

“Estou tão aborrecido, senhorita Mercy”, ele dizia, num falsete desesperado. “Tão aborrecido que me deu até dor de cabeça. Há meia hora penso que estou ouvindo música vindo do baile.”

Então ocorreu a Olive que ela também estava ficando histérica. De fato, nos intervalos do rumor do tráfego, vazava distinta e cristalina uma melodia:

... Is she fair

Is she sweet

I don’t care — cause

I can’t compete —

Who’s she…

Desceu as escadas correndo e atravessou a sala, com a canção cada vez mais alta em seus ouvidos. Na entrada do primeiro pavilhão, parou estupefata.

Cerca de dez jovens casais deslizavam pelo salão de lona, à música de uma orquestra pequena, mas sem dúvida profissional. No bar, num dos cantos, havia outros jovens, e meia dúzia dos encarregados do serviço preparava coquetéis e abria champanhes.

“Harold!”, ela chamou, imperativa, um dos dançarinos. “Harold!”

Um rapaz alto, de dezoito anos, entregou seu par a um colega e veio falar com ela.

“Olá, Olive. Como papai está reagindo?”

“Harold, que diabo...”

“Emily é louca”, ele disse, como se a consolasse. “Sempre falei a você que Emily era louca. Doida varrida. Sempre foi.”

“Mas que idéia é esta?”

“Isto?” Olhou em volta com ar de inocência. “Ah, são alguns dos rapazes de Cambridge que vieram comigo.”

“Mas... dançando!”

“Ora, ninguém morreu, não é? Pensei que podíamos aproveitar um pouco essa...”

“Mande essa gente embora”, disse Olive.

“Por quê? Que mal há nisto? E eles vieram de longe, de Cambridge...”

“Simplesmente não fica bem!”

“Mas eles não estão nem ligando, Olive. A irmã de um deles fez a mesma coisa — a diferença é que fugiu no dia seguinte, não na véspera. Um monte de gente faz isso todo dia.”

“Mande os músicos embora, Harold”, disse Olive com firmeza, “senão vou chamar seu pai.”

Obviamente, ele achava que nenhuma família devia sentir-se desonrada por um episódio de tal magnitude, mas, mesmo relutante, concordou. O mordomo assistiu, deprimido, à remoção do estoque de champanhe, e os jovens, ainda que registrando o insulto, saíram indiferentes para a noite mais tolerante. Sozinha, com a sombra — a sombra de Emily — que pairava na casa, Olive sentou-se na sala para pensar. O mordomo apareceu na porta.

“É o senhor Blair, senhorita Olive.”

Ela se pôs de pé, tensa.

“Com quem ele quer falar?”

“Ele não disse. Apenas chegou.”

“Diga-lhe que estou aqui.”

Brevoort entrou com um ar mais de abstração que de depressão. Cumprimentou Olive de longe e sentou-se ao banquinho do piano. Ela queria dizer-lhe “Venha aqui. Ponha a cabeça no meu ombro. Não dê importância”. Mas ela também queria chorar e, por isso, não disse nada.

“Dentro de três horas”, ele observou com tranqüilidade, “já teremos os matutinos. Há uma banca de jornais na rua 59...”

“Isso é uma tolice...”, ela começou.

“Não sou um homem superficial”, ele a interrompeu, “mas minha maior preocupação agora é com os jornais. Mais tarde, haverá um respeitoso silêncio dos parentes, amigos e colegas de negócios. Quanto ao caso em si, estou surpreso de não estar me importando a mínima.”

“Eu não daria importância a nada.”

“Estou até grato a ela por ter feito isso a tempo.”

“Por que não se afasta um pouco?” Olive inclinou-se para ele com sinceridade. “Vá para a Europa até a coisa esfriar.”

“Esfriar!” Ele riu. “Essas coisas não esfriam. Um certo ar de gozação irá me acompanhar pelo resto da vida.” Ele resmungou. “Tio Hamilton já correu para Park Row a fim de fazer a ronda das redações dos jornais. Ele é da Virgínia e foi inábil o suficiente para usar a expressão ‘dar uma surra’ para um editor. Mal posso esperar para ver o tal jornal.” Interrompeu-se. “Como está o senhor Castleton?”

“Ele gostará de saber que você veio perguntar.”

“Não vim para isso.” Hesitou. “Vim para lhe fazer uma pergunta. Quero saber se você se casaria comigo em Greenwich amanhã de manhã.”

Por um minuto, Olive sentiu-se precipitada no espaço; emitiu um som estranho; sua boca escancarou-se.

“Sei que você gosta de mim”, ele continuou, calmamente. “Para dizer a verdade, já cheguei a pensar que me amava um pouco, se me perdoa a presunção. Aliás, você se parece muito com uma garota que já me amou, então talvez...” Seu rosto estava róseo de vergonha, mas ele seguiu amargamente em frente. “Enfim, gosto demais de você e, seja qual for o sentimento que eu tivesse por Emily, já se evaporou.”

O estrondo e o alarme dentro dela pareciam tão altos que ele devia estar ouvindo.

“Será um grande favor que você me estará fazendo”, continuou. “Meu Deus, sei que isso parece meio louco, mas o que podia ser mais louco do que essa tarde inteira? Veja bem, se você se casar comigo, os jornais vão publicar uma matéria bem diferente; vão pensar que Emily preferiu sair do caminho para nos deixar livres, e a piada acabará se voltando contra ela no fim das contas.”

Lágrimas de indignação vieram aos olhos de Olive.

“Acho que devo tentar entender seu orgulho ferido, mas você não percebe que essa proposta é um insulto?”

O rosto dele caiu.

“Desculpe”, ele disse depois de uma pausa. “Acho que fui um cretino só de pensar nisso, mas todo homem odeia perder toda a dignidade por causa do capricho de uma garota. Agora vejo que é impossível. Desculpe.”

Ele se levantou e apanhou a bengala.

Estava se dirigindo à porta quando Olive sentiu o coração subir-lhe à garganta e uma onda irresistível de autopreservação tomou-a por inteiro, derramando-se sobre seus escrúpulos e seu orgulho. Os passos dele ressoavam no hall.

“Brevoort!”, ela chamou. Correu para o hall. Ele se virou. “Brevoort, como era mesmo o nome do jornal — o jornal aonde foi seu tio?”

“Por quê?”

“Porque ainda não deve ser muito tarde para eles mudarem a matéria, se eu telefonar agora. Vou dizer a eles que nos casamos esta noite!”

III.

Há uma turma em Paris que não passa de um prolongamento da sociedade americana. As pessoas que se mudam para lá estão conectadas por centenas de fios à terra natal, e suas diversões, excentricidades e altos e baixos são um livro aberto para amigos e parentes em Southampton, Lake Forest ou Back Bay. Assim, durante sua primeira temporada européia, as andanças de Emily, seguindo as estações no continente, eram publicamente conhecidas. Mas, a partir do dia em que deixou Nova York, um mês depois do casamento que não houve, ela desapareceu de vista. Às vezes sabia-se de uma carta para seu pai, um ocasional rumor de que estava no Cairo, em Constantinopla ou na menos freqüentada Riviera — só isso.

Certa vez, um ano depois, o sr. Castleton esteve com ela em Paris, mas, como ele disse a Olive, o encontro só serviu para lhe fazer mal.

“Havia alguma coisa”, ele disse, vagamente, “como se... como se Emily estivesse pensando em uma porção de coisas fora do meu alcance. Foi agradável, mas meio automático e formal. Ela perguntou por você.”

Apesar de sua sólida posição, com uma filha de três meses e um belo apartamento na Park Avenue, Olive sentiu o coração descompassar-se.

“O que ela disse?”

“Adorou saber sobre você e Brevoort.” E acrescentou para si mesmo, com um desapontamento que não conseguia esconder: “Embora você só tenha capturado o melhor partido de Nova York depois que ela o jogou fora...”.

Mais de um ano depois dessa conversa, a voz de seu secretário ao telefone perguntou a Olive se o sr. Castleton poderia vê-los naquela noite. Foram encontrar o velho andando em sua biblioteca num estado de agitação.

“Bem, aconteceu”, ele declarou com veemência. “As pessoas não ficam paradas; ninguém fica parado. Pode-se subir ou descer neste mundo. Emily preferiu descer. Parece estar chegando ao fundo do poço. Já ouviram falar de um homem que me foi descrito como” — referia-se a uma carta que trazia na mão — “um vagabundo chamado Petrocobesco? Ele se faz passar por príncipe — príncipe Gabriel Petrocobesco —, aparentemente de... de lugar nenhum. Esta carta me foi mandada por Hallam, meu funcionário na Europa, e traz um recorte do Matin, de Paris. Aparentemente, esse cavalheiro foi convidado pela polícia a deixar Paris e, na pequena entourage que partiu com ele, estava uma garota americana, srta. Castleton, ‘de quem se diz ser filha de um milionário’. O grupo foi levado até a estação pelos gendarmes.” Brandia o recorte e a carta para Brevoort Blair com dedos trêmulos. “O que você entende por isto? Emily chegar a esse ponto!”

“É mal, muito mal”, disse Brevoort, franzindo a testa.

“É o fim. Achei que, ultimamente, suas retiradas de dinheiro estavam muito grandes, mas nunca suspeitei de que estivesse sustentando...”

“Pode ser um engano”, sugeriu Olive. “Talvez seja outra senhorita Castleton.”

“Não, é Emily. Hallam investigou. É Emily, que teve medo de mergulhar na correnteza limpa da vida, e que agora sai nadando no esgoto.”

Chocada, Olive sentiu o gosto agudo do destino em sua definitiva diversidade. Ela, com uma mansão em Westbury Hills, e Emily metida num vergonhoso escândalo com um aventureiro deportado.

“Sei que não tenho o direito de lhes pedir isto”, continuou o sr. Castleton. “Menos ainda o direito de pedir a Brevoort qualquer coisa relacionada a Emily. Mas estou com setenta e dois anos, e Fraser já disse que, se eu continuar adiando um tratamento de saúde por mais uma quinzena, ele não se responsabiliza, e aí Emily ficará sozinha para sempre. Gostaria que vocês antecipassem sua ida à Europa por dois meses e a trouxessem de volta.”

“Mas o senhor pensa que nós temos toda essa influência?”, perguntou Brevoort. “Não vejo por que ela me escutaria.”

“Não há mais ninguém. Se vocês não forem, eu terei de ir.”

“Ah, não”, disse Brevoort rapidamente. “Vamos fazer o que pudermos, não vamos, Olive?”

“Claro.”

“Tragam-na de volta, não importa como, mas tragam-na de volta. Podem até levá-la para um tribunal e jurar que é louca.”

“Está bem. Vamos fazer o possível.”

Apenas dez dias depois desse encontro, o casal Brevoort Blair procurou o funcionário do sr. Castleton em Paris para se inteirar dos detalhes. Eram muitos, mas insatisfatórios. Hallam vira Petrocobesco em vários restaurantes — um sujeito baixinho e gordo, com um olhar lúbrico e atraente e uma sede inestancável. Era de alguma nacionalidade obscura e vinha zanzando pela Europa havia vários anos, vivendo não se sabia de quê — provavelmente à custa de americanos, embora Hallam soubesse que, ultimamente, mesmo os círculos mais fronteiriços da sociedade internacional estavam fechados para ele. Sobre Emily, Hallam sabia muito pouco. Os dois tinham sido vistos na semana anterior em Berlim e, na véspera, em Budapeste. Era provável que uma figura tão indesejável como Petrocobesco tivesse de se registrar na polícia aonde quer que chegasse, e essa era a linha de investigação que ele recomendava aos Blair.

Quarenta e oito horas mais tarde, acompanhados pelo vice-cônsul americano, foram ao chefe de polícia em Budapeste. O policial falou rapidamente em húngaro com o vice-cônsul, que, em seguida, passou-lhes o resumo de seu comentário — o casal Blair chegara tarde demais.

“Para onde eles foram?”

“Ele não sabe. Recebeu ordens para deportá-los e eles foram embora ontem à noite.”

De repente, o policial escreveu algo num pedaço de papel e, com uma sucinta observação, estendeu-o ao vice-cônsul.

“Ele diz que devemos tentar isto aqui.”

Brevoort olhou para o papel.

“Sturmdorp — onde fica isso?”

Outra rápida conversa em húngaro.

“A cinco horas daqui num trem local que sai às terças e sextas. Hoje é sábado.”

“Podemos contratar um carro no hotel”, disse Brevoort.

Prepararam-se para partir depois do jantar. Era uma dura viagem, que varou a noite pela planície húngara. Em certo momento, Olive acordou de um sono agitado e viu Brevoort e o motorista trocando um pneu; e, depois, de novo, quando pararam num riacho enlameado, de onde se enxergavam as luzes dispersas de uma cidade. Dois soldados num uniforme estranho espiaram para dentro do carro. Cruzaram uma ponte e seguiram uma rua estreita e torta, até a única estalagem de Sturmdorp. Os galos já estavam cantando quando eles desabaram sobre uma cama dura.

Olive acordou com a certeza de que tinham chegado a Emily; e, com isso, veio a velha sensação de impotência diante do temperamento da prima; por um momento, o passado e a presença dominante de Emily voltaram inteiros, e pareceu-lhe uma presunção estarem ali. Mas a firmeza de propósito de Brevoort reanimou-a, e a confiança já lhe voltara quando desceram. O proprietário falava um americano fluente, aprendido em Chicago antes da guerra.

“Vocês já não estão na Hungria”, ele explicou. “Cruzaram a fronteira para Czjeck-Hansa. É um paizinho com duas cidades, esta e a capital. Não exigimos visto para os americanos.”

Deve ser por isso que eles vieram para cá, pensou Olive.

“Talvez o senhor pudesse nos dar alguma informação sobre pessoas de fora”, disse Brevoort. “Estamos procurando uma americana...” Descreveu Emily sem mencionar seu provável companheiro. Enquanto fazia isso, uma estranha transformação se operou no rosto do estalajadeiro.

“Deixe-me ver seus passaportes”, disse. E então: “E por que querem encontrá-la?”.

“Esta senhora é prima dela.”

O estalajadeiro hesitou momentaneamente.

“Acho que talvez eu consiga encontrá-la para vocês”, disse.

Chamou o porteiro; houve rápidas instruções numa arenga incompreensível. Em seguida:

“Sigam esse rapaz — ele os levará.”

Foram conduzidos por ruas imundas até uma casa decadente nos limites da cidade. Um homem com um rifle de caça, descansando no lado de fora, aprumou-se e falou rispidamente com o porteiro, mas, depois de uma troca de frases, subiu as escadas e bateu à porta. Quando ela se abriu, uma cabeça espiou para fora; o porteiro falou de novo e entraram.

Estavam num quarto grande e sujo que poderia ter sido parte de uma casa de cômodos para pobres em qualquer parte do Ocidente — paredes descoloridas, poltronas rasgadas, uma cama disforme e indícios de que, apesar da indigência, contivera a fantasmagórica mobília de décadas anteriores, como se podia ver pelos anéis de poeira e lugares mais gastos. No meio do quarto postava-se um homem baixinho e forte, com olhos preguiçosos e um nariz adunco sobre uma boca pequena e doce, mas deteriorada, que olhou atentamente para eles quando abriram a porta; depois, com uma única exclamação de desprazer — “Chut!”, — afastou-se impacientemente. Havia outras pessoas no quarto, mas Brevoort e Olive viram apenas Emily, reclinada numa chaise longue com os olhos semicerrados.

Ao vê-los, seus olhos se abriram em meigo espanto; fez um gesto de quem ia saltar para eles, mas, em vez disso, apenas estendeu a mão. Sorriu e disse seus nomes numa voz clara e educada, menos um cumprimento do que uma espécie de explicação para os outros da presença deles ali. À menção de seus nomes, uma relutante amenidade substituiu a rabugice no rosto do homenzinho.

As moças se beijaram.

“Tutu!”, disse Emily, como se o chamasse às falas. “Príncipe Petrocobesco, deixe-me apresentá-lo à minha prima, senhora Blair, e ao senhor Blair.”

Plaisir”, disse Petrocobesco. Ele e Emily trocaram um rápido olhar. “Não querem se sentar?”, e imediatamente sentou-se na única cadeira disponível, como se estivessem fazendo o jogo das cadeiras.

Plaisir”, repetiu. Olive sentou-se ao pé da chaise longue de Emily e Brevoort tomou um banquinho que estava encostado à parede, enquanto observava os outros ocupantes do quarto. De pé, perto da porta, havia um rapaz de capa, com ar feroz, de braços cruzados e dentes faiscantes, e dois homens barbudos e esmolambados, um deles segurando um revólver e o outro com a cabeça afundada no peito, sentados lado a lado num canto.

“Chegaram há muito tempo?”

“Não, hoje de manhã.”

Por um momento, Olive não pôde resistir a comparar os dois, o americano alto e de traços finos e o sul-europeu nada atraente, pouco mais que um candidato a Ellis Island.* Depois, olhou para Emily — o mesmo cabelo espesso e brilhante, impregnado de raios de sol, os olhos com lampejos de mares revoltos. Seu rosto estava ligeiramente contraído e havia rugas novas e finas perto de sua boca, mas era a mesma Emily de sempre — dominadora, esfuziante, ampla. Era uma pena que tal beleza e personalidade tivessem acabado numa reles casa de cômodos no fim do mundo.

O homem de capa respondeu a uma batida na porta e passou um bilhete a Petrocobesco. Este o leu, gritou “Chut!” e o passou a Emily.

“Como você vê, não há carruagens”, disse a ela em francês, com voz de tragédia. “As carruagens foram destruídas. Todas, menos uma, que está num museu. Mas, enfim, prefiro um cavalo.”

“Não”, disse Emily.

“Sim, sim, sim!”, ele gritou. “A quem interessa como eu vou?”

“Não vamos fazer uma cena, Tutu.”

“Cena!”, ele fumegou. “Cena!”

Emily virou-se para Olive: “Vocês vieram de carro?”.

“Sim.”

“Um carro grande, de luxo? Com uma capota que abre?”

“Sim.”

“Pronto”, disse Emily para o príncipe. “Podemos mandar pintar as armas na lateral.”

“Espere aí”, disse Brevoort. “O carro pertence a um hotel de Budapeste.”

Pelo visto Emily não o escutou.

“Janierka poderia fazer isso”, ela continuou, pensativa.

Naquele ponto, houve outra interrupção. O homem derrubado num canto pôs-se subitamente de pé e fez menção de correr até a porta, enquanto o outro levantou o revólver e lhe deu com a coronha na cabeça. O homem vacilou e teria desmaiado se o outro não o tivesse trazido de volta à cadeira, onde se sentou, com um fio de sangue escorrendo lentamente pela testa.

“Sujeitinho imundo! Sujo, espião sujo!”, berrou Petrocobesco, trincando os dentes.

“Esse é o tipo de observação que você não devia fazer!”, disse Emily com contundência.

“Então por que não nos atendem?”, ele gritou. “Vamos ficar aqui sentados neste chiqueiro para sempre?”

Ignorando-o, Emily virou-se para Olive e começou a lhe fazer perguntas convencionais sobre Nova York. A Lei Seca estava dando certo? Quais eram os novos musicais em cartaz na Broadway? Olive tentava responder e, ao mesmo tempo, observava os olhos de Brevoort. Quanto mais depressa atingissem seu propósito, mais depressa tirariam Emily dali.

“Podemos falar com você a sós, Emily?”, perguntou Brevoort subitamente.

“Ora, no momento, estamos em falta de outro quarto.”

Petrocobesco atirara-se a uma agitada conversa com o rapaz de capa e, aproveitando-se disso, Brevoort falou rapidamente com Emily, em voz mais baixa:

“Emily, seu pai está ficando velho. Precisa de você em casa. Quer que você largue esta vida louca e volte para a América. Nos mandou aqui porque não podia vir ele mesmo, e ninguém conhecia você tão bem...”

Ela riu. “Ou seja, ninguém conhecia as enormidades de que eu seria capaz...”

“Não”, corrigiu Olive às pressas. “Que gostasse de você tanto quanto nós. Não sei nem dizer como é terrível ver você vagando por esses confins da Terra.”

“Mas já não estamos vagando”, explicou Emily. “Este é o país natal de Tutu.”

“Onde está seu orgulho, Emily?”, perguntou Olive sem paciência. “Sabia que aquele caso em Paris foi parar nos jornais? O que acha que as pessoas pensam disso em nosso país?”

“Aquele caso em Paris foi uma afronta.” Os olhos azuis de Emily provocaram um clarão no ambiente. “Alguém vai ter de pagar por ele.”

“Será do mesmo jeito em qualquer lugar. Descendo cada vez mais fundo, arrastada pela lama e, um dia, abandonada...”

“Pare, por favor!” A voz de Emily estava fria como gelo. “Não creio que você esteja entendendo...”

Emily parou de falar quando Petrocobesco voltou. O europeu atirou-se na cadeira e enterrou o rosto nas mãos.

“Não suporto mais isto”, sussurrou. “Quer tomar meu pulso? Acho que estou mal. O termômetro está em sua bolsa?”

Ela tomou o pulso dele em silêncio por um momento.

“Está tudo bem, Tutu.” Sua voz estava macia agora, quase um afago. “Sente-se direito. Seja homem.”

“Está bem.”

Ele cruzou as pernas como se nada tivesse acontecido e virou-se abruptamente para Brevoort.

“Como vai a situação financeira em Nova York?”, perguntou.

Mas Brevoort não estava com humor para prolongar essa cena absurda. A lembrança de um certo momento terrível havia três anos ainda o avassalava. Não era homem para ser feito de bobo duas vezes, e sua mandíbula acompanhou-o quando ele se pôs de pé.

“Emily, pegue suas coisas”, disse, com voz severa. “Vamos embora.”

Emily não se moveu; uma expressão de espanto e divertimento espalhou-se por seu rosto. Olive abraçou-a pelo ombro.

“Vamos, querida. Vamos sair deste pesadelo.”

“Estamos esperando”, disse Brevoort.

Petrocobesco falou algo para o homem de capa, que se aproximou e pegou Brevoort pelo braço. Brevoort livrou-se dele, irritado, fazendo-o recuar, a mão buscando o cinto.

“Não!”, gritou Emily imperativamente.

De novo, houve uma interrupção. A porta foi aberta sem que alguém houvesse batido antes, e dois homens fortes, de sobrecasaca e chapéu de seda, invadiram o quarto e se dirigiram a Petrocobesco. Eles riram e deram-lhe tapinhas nas costas, conversando numa língua estranha. Ele também riu e lhes deu tapinhas nas costas, e todos se beijaram. Depois, virando-se para Emily, Petrocobesco disse, excitado, em francês:

“Deu tudo certo. O caso nem chegou a entrar em discussão. Terei o título de rei.”

Com um profundo suspiro, Emily afundou-se na chaise longue e seus lábios se abriram num sorriso relaxado e tranqüilo.

“Muito bem, Tutu. Vamos nos casar.”

“Ah, meu Deus, como estou feliz!” Ele batia palminhas e olhava em êxtase para o teto descascado. “Estou tão feliz!” Caiu de joelhos diante dela e beijou-lhe o antebraço.

“Que história é essa de rei?”, perguntou Brevoort. “Isto aí... ele é... rei?”

“Ele é um rei. Não é, Tutu?” A mão de Emily acariciava seu cabelo oleoso e Olive viu que os olhos dela pareciam brilhar de modo incomum.

“Sou seu marido”, disse Tutu, chorando. “O homem mais feliz do mundo.”

“O tio dele era o príncipe de Czjeck-Hansa antes da guerra”, explicou Emily, a voz cantando de contentamento. “Depois, veio a República, mas o partido operário queria restaurar a Monarquia e Tutu era o primeiro na linha sucessória. Só que eu não me casaria se ele não se tornasse rei em vez de príncipe.”

Brevoort enxugou a testa molhada com a mão.

“Quer dizer que isso é um fato?”

Emily concordou. “A Assembléia votou hoje de manhã. E, se você nos emprestar sua limusine de luxo, faremos nossa entrada triunfal na capital esta tarde.”

IV.

Mais de dois anos depois, o sr. e a sra. Brevoort Blair e seus dois filhos estavam numa sacada do Carlton Hotel, em Londres, lugar indicado pela gerência para se assistir à passagem dos cortejos reais. Este começou com uma fanfarra de trompetes no Strand, seguida de uma fileira escarlate de guardas a cavalo.

“Mas, mamãe”, o garotinho perguntou, “tia Emily é rainha da Inglaterra?”

“Não, querido. É rainha de um país pequenininho, mas, quando ela vem a Londres de visita, viaja na carruagem da rainha.”

“Ah.”

“Graças às reservas de magnésio”, disse Brevoort secamente.

“Ela foi princesa antes de ser rainha?”, perguntou a garotinha.

“Não, querida, era uma garota americana normal e só depois se tornou rainha.”

“Por quê?”

“Porque nada era bom demais para ela”, disse o pai. “Imagine só, certa época ela ia se casar comigo. O que você preferia? Casar comigo ou ser rainha?”

A garotinha hesitou.

“Casar com você”, disse educadamente, mas sem convicção.

“Agora chega, Brevoort”, disse a mãe. “Lá vêm eles.”

“Estou vendo!”, gritou o garotinho.

O cortejo espalhou-se pela rua apinhada. Havia mais guardas a cavalo, uma companhia de dragões, pagens também montados, e Olive se viu prendendo a respiração e apertando o parapeito do balcão no momento em que, entre uma fila dupla de alabardeiros, desfilou um par de grandes coches ouro-carmesim. No primeiro vinham os monarcas, com seus uniformes refulgindo de fitas, cruzes e estrelas, e, no segundo, duas consortes reais, uma velha, a outra jovem. Havia por toda a cena o glamour habitualmente espalhado pelo velho Império, por seus navios e cerimônias, suas pompas e seus símbolos. A multidão o sentia, e um lento murmúrio antecipava o rodar da carruagem, levando a uma forte e firme ovação. As duas damas faziam mesuras à direita e à esquerda e, embora poucos soubessem quem era a segunda rainha, ela foi ovacionada também. Em mais um momento, a gloriosa panóplia passou debaixo da sacada e sumiu de vista.

Quando Olive se afastou da janela, havia lágrimas em seus olhos.

“Será que ela gosta disso, Brevoort? Duvido que seja feliz com aquele homenzinho.”

“Bem, ela conseguiu o que queria, não? Já é alguma coisa.”

Olive respirou fundo.

“Ah, ela é tão maravilhosa”, soluçou, “tão maravilhosa! Sempre conseguiu me comover, mesmo quando eu estava furiosa com ela.”

“É tudo tão bobo, não?”, disse Brevoort.

“Acho que é”, responderam os lábios de Olive. Mas seu coração, repleto de uma sublime adoração, seguia a prima pelos portões do palácio a mais de um quilômetro de distância.

(1925)


* A Ellis Island, em Nova York, é a ilha por onde entrava o grosso dos imigrantes europeus no começo do século XX. (N. T.)