Tom Squires entrou na drogaria para comprar uma escova de dentes, uma lata de talco, um gargarejo, sabonete Castile, sais Epsom e uma caixa de charutos. Tendo vivido sozinho por muitos anos, era um sujeito metódico e, enquanto esperava para ser servido, já tinha a lista na mão. Era a semana de Natal, e Minneapolis estava com sessenta centímetros de uma deliciosa neve, constantemente renovada. Com a bengala, Tom tirou dois flocos limpos da galocha. Em seguida, ao olhar para cima, viu a loura.
Ela chamaria a atenção até na Terra Prometida dos escandinavos, onde louras bonitas não são raras. Havia uma cor morna em suas faces, em seus lábios e nas mãozinhas róseas que embrulhavam talcos; o cabelo, em longas tranças presas em volta da cabeça, era brilhante e vivo. Pareceu a Tom, de repente, a pessoa mais limpa que já vira, e ele prendeu a respiração ao dar um passo à frente e encarar os olhos cinza da moça.
“Uma lata de talco.”
“Qual deles?”
“Qualquer um... está bom.”
A moça o olhou de volta, aparentemente sem se dar conta. À medida que a lista diminuía, o coração dele começou a apostar uma louca corrida contra ela.
“Não sou velho”, ele queria dizer. “Aos cinqüenta anos, sou mais jovem do que muitos de quarenta. Não lhe desperto interesse algum?”
Mas a moça disse apenas:
“Que marca de gargarejo?”
E ele respondeu:
“O que você recomendar... está bom.”
Quase com pena, ele afastou dela o seu olhar, saiu e tomou seu cupê.
Se aquela idiotinha soubesse o que um velho imbecil como eu poderia fazer por ela, pensou, divertido, os mundos que eu poderia lhe abrir.
Ao sair com seu carro pelo crepúsculo invernal, foi seguindo essa linha de pensamento até chegar a uma conclusão totalmente sem precedentes. Talvez a hora do dia fosse responsável por isso — as vitrines das lojas incandescendo no frio, os sinos tilintantes de um trenó de entregas, o brilho branco das pás nas calçadas, as estrelas a uma enorme distância, tudo isso lhe trazia a sensação de outras noites trinta anos antes. Por um instante, as moças que ele conheceu na juventude saíram, como fantasmas, das matronas informes em que haviam se transformado e esvoaçaram a seu redor com um riso gelado e sedutor, até que um agradável arrepio percorreu-lhe a espinha.
“Jovens! Jovens! Jovens!”, ele repetiu, irritado, cônscio de sua falta de originalidade, e, como um homem de certa forma cruel e dominador, sem nenhuma moral, pensou em voltar à drogaria e pegar o endereço da moça loura. Mas como não era seu estilo, a intenção passou; a idéia permaneceu.
“Jovens, pelo amor de Deus — jovens!”, repetia, entre dentes. “Quero mulheres bem jovens perto de mim, em volta de mim, antes que eu fique velho demais.”
Era alto, magro e bonito, com o rosto bronzeado e vermelho de um esportista e um bigode que só agora começava a ficar grisalho. No passado, estivera entre os melhores partidos da cidade, organizava quermesses e bailes de caridade e era popular entre várias gerações de homens e mulheres. Depois da guerra, sentiu-se subitamente pobre, dedicou-se aos negócios e, em dez anos, acumulou quase um milhão de dólares. Tom Squires não era um homem introspectivo, mas percebia agora que a roda da vida dera mais uma volta, recuperando sonhos e aspirações esquecidos, mas familiares. Ao entrar em casa, examinou uma pilha de correspondência desprezada para ver se tinha sido convidado para alguma festa naquela noite.
Mais tarde, jantando sozinho no Downtown Club, seus olhos estavam semicerrados e em seu rosto havia um vago sorriso. Treinava para aprender a rir de si mesmo sem sofrer, caso fosse necessário.
“Não sei nem do que as moças falam hoje em dia”, admitiu. “Sei que são bem avançadas — importante financista vai a uma festa moderna com uma jovem. O que é uma festa moderna? Servem bebida alcoólica? Vou ter de aprender a tocar saxofone?”
Essas perguntas, até havia pouco tão remotas quanto a China num cinejornal, ficaram vivas para ele. Eram perguntas importantes. Às dez horas, Tom subiu as escadas do College Club para uma festa, com a mesma sensação de penetrar num mundo novo que tivera ao chegar ao campo de treinamento em 1917. Falou com uma mulher de sua idade e com a filha dela, que pertencia esmagadoramente a outra geração, e sentou-se num canto para se aclimatar.
Não ficou sozinho por muito tempo. Um jovem pateta chamado Leland Jaques, que morava no outro lado de sua rua, notou sua presença e foi gentilmente iluminar sua vida. Era tão boboca que, a princípio, Tom ficou aborrecido, mas depois percebeu que ele lhe podia ser útil.
“Olá, senhor Squires. Como vai?”
“Bem, obrigado, Leland. Que festa, hein?”
Como de um homem do mundo para outro, o jovem Jaques sentou-se, ou espreguiçou-se, sobre o sofá e acendeu — ou pelo menos assim pareceu a Tom — três ou quatro cigarros ao mesmo tempo.
“O senhor devia ter vindo ontem, senhor Squires. Aquilo é que foi festa! As Caulkin! Foram pras cabeças!”
“Quem é aquela moça que troca de par toda hora?”, Tom perguntou. “Não, aquela de branco, passando pela porta.”
“É Annie Lorry.”
“Filha de Arthur Lorry?”
“Sim.”
“Parece muito disputada.”
“Deve ser a moça mais disputada da cidade — pelo menos nos bailes.”
“Não é disputada fora dos bailes?”
“Ah, claro, mas não desgruda de Randy Cambell nem por um minuto.”
“Qual Cambell?”
“D. B.”
Muitos nomes novos na cidade, nos últimos dez anos.
“É um namoro firme.” Satisfeito com a definição, Jaques tentou repeti-la: “Namoro firme... sabe aquele tipo de namoro firme?...” Desistiu e acendeu vários outros cigarros, apagando a primeira série no colo de Tom.
“Ela gosta de beber?”
“Não muito. Pelo menos, nunca a vi desmaiar... Olhe lá, Randy Cambell acaba de tirá-la para dançar.”
Formavam um belo casal. A beleza dela refulgia contra a compleição alta e forte do rapaz, e os dois deslizavam pelo salão flutuando delicadamente, como duas pessoas num sonho lindo e divertido. Quando passaram mais perto, Tom pôde admirar a fina camada de pó sobre sua frescura, a doçura contida de seu sorriso, a fragilidade de seu corpo calculada pela natureza até o último milímetro para sugerir um botão de rosa e, apesar disso, garantir que se abrisse em flor. Seus olhos inocentes e apaixonados eram castanhos, talvez; mas quase violeta à luz prateada.
“Ela ficará por aqui este ano?”
“Quem?”
“A senhorita Lorry.”
“Sim.”
Embora Tom estivesse caído pela moça, não se via entrando na fila para cortejá-la. Melhor esperar até que as férias terminassem e a maioria daqueles rapazes voltasse para a universidade, “onde era o lugar deles”. Tom Squires era velho, podia esperar.
Esperou por quinze dias, até que a cidade mergulhasse no interminável apogeu do inverno, em que o cinza do céu se revelasse mais amistoso que o azul-metálico e em que a penumbra, cujas luzes eram um reconfortante lampejo da continuidade da alegria entre os homens, se revelasse mais calorosa do que as tardes de sol implacável. A neve perdeu sua urgência e ficou suja e surrada, as rodas dos carros congelavam nas ruas; algumas mansões da Crest Avenue se esvaziaram, já que seus moradores fugiram para o sul. Naqueles dias frios, Tom convidou Anne e seus pais a comparecer ao último Baile dos Solteiros.
Os Lorry eram uma família antiga de Minneapolis, meio castigada e empobrecida desde a guerra. A sra. Lorry, contemporânea de Tom, não se surpreendeu que ele mandasse orquídeas para a mãe e a filha e lhes oferecesse um lauto jantar em seu apartamento, com caviar, codornas e champanhe. Annie só o viu vagamente — ele lhe pareceu um homem sem vivacidade, como os mais velhos parecem aos jovens —, mas percebeu seu interesse por ela e executou o tradicional ritual de beleza da juventude — distribuiu sorrisos, deu-lhe uma atenção curiosa e educada, exibiu-lhe o perfil sob esta ou aquela luz. Na festa, ele dançou com ela duas vezes e, embora aquilo a incomodasse, estava orgulhosa de que um homem do mundo — era o que ele se tornara, em vez de apenas um velho — a tivesse escolhido. Aceitou seu convite para ir a um concerto na semana seguinte, por achar que seria grosseiro recusar.
Houve vários “convites agradáveis” como aquele. Sentada a seu lado, cochilou à sombra morna de Brahms e pensou em Randy Cambell e em outras nebulosidades românticas que poderiam acontecer no dia seguinte. Numa tarde em que se sentia casualmente doce, provocou de propósito Tom a beijá-la, mas teve vontade de rir quando ele tomou suas mãos e disse fervorosamente que estava se apaixonando por ela.
“Mas como?”, ela protestou. “Olhe, você não deveria dizer uma coisa tão louca. Se continuar, paro de sair com você, e você vai se arrepender.”
Alguns dias depois, sua mãe dirigiu-se a ela, enquanto Tom a esperava lá fora, no carro:
“Quem é aquele, Annie?”
“É o senhor Squires.”
“Feche a porta. Você está saindo muito com ele.”
“Por que não?”
“Ora, querida, ele tem cinqüenta anos!”
“Mas, mamãe, não sobrou quase ninguém na cidade.”
“Sim, mas tire da cabeça qualquer idéia sobre ele.”
“Não se preocupe. Para dizer a verdade, me mata de tédio a maior parte do tempo.” Tomou uma súbita decisão. “Vou parar de sair com ele. É que não consegui me livrar dele esta tarde.”
E naquela noite, de pé, diante da porta de sua casa, nos braços de Randy Cambell, Tom e o solitário beijo que haviam trocado já não significavam nada para ela.
“Ah, eu amo tanto você”, sussurrou Randy. “Me beije de novo.”
Suas faces frias e seus lábios quentes se encontraram na crespa escuridão e, ao contemplar a lua gelada sobre o ombro do rapaz, Annie sabia que era só dele. Puxou o rosto dele para baixo e beijou-o de novo, trêmula de emoção.
“Quando vamos nos casar?”, ele sussurrou.
“Quando você... quando nós teremos condições para isso?”
“Não podemos nem anunciar o noivado? É horrível saber que você está saindo com outro homem e que ele está se declarando a você.”
“Ah, Randy, você está pedindo muito.”
“É horrível ter de me despedir toda noite. Posso entrar, só por um minuto?”
“Pode.”
Sentados juntinhos, numa espécie de transe junto à lareira tremulante e quase extinta, eles nem se davam conta de que seu destino estava sendo friamente calculado por um homem de cinqüenta anos, deitado numa banheira quente, a poucos quarteirões dali.
II.
Tom Squires percebera que, pelo jeito de Anne naquela tarde, distante e delicado, ele fracassara em provocar-lhe uma impressão. Prometera a si mesmo que, no caso de isso acontecer, entregaria os pontos, mas agora descobria que não estava a fim de fazer isso. Não queria se casar com ela; queria apenas vê-la e estar com ela de vez em quando; e, até o momento daquele beijo docemente casual, semitórrido, mas totalmente sem emoção, só o fato de pensar nela fazia seu coração deslocar-se alguns centímetros dentro do peito e bater mais rápido.
“Este é o momento de cair fora”, pensou. “Por causa de minha idade... Não tenho como me meter na vida dela.”
Saiu da banheira, enxugou-se, penteou-se diante do espelho e, ao depositar a escova na bancada, disse, decidido: “É isso mesmo”. E, depois de ler por uma hora, apagou a luz e repetiu: “É isso mesmo”.
Em outras palavras, não era nada disso, e o clique do interruptor do abajur não apagou Annie Lorry de sua cabeça, ao contrário de uma decisão comercial, que pode ser fechada pelo tamborilar de um lápis numa mesa.
“Vou insistir mais um pouco”, ele decidiu, por volta das quatro e meia. E, com isso, virou-se para o canto e conseguiu dormir.
De manhã, a lembrança dela parecia ter diminuído, mas, por volta das quatro da tarde, já o tomara de novo por inteiro — o telefone esperava que ele ligasse para ela, os passos de mulher que ele ouvia perto de seu escritório eram os dela e a neve lá fora caía, quem sabe, sobre seu rosto.
Sempre há o plano que armei ontem à noite, pensou. Em dez anos, já estarei com sessenta e, a partir daí, não haverá juventude nem beleza para mim.
Numa espécie de pânico, pegou uma folha em branco e compôs uma carta cuidadosamente estudada para a mãe de Annie, pedindo permissão para cortejar sua filha. Levou-a pessoalmente até o hall, mas, antes que a carta escorregasse pela caixinha, rasgou-a e atirou os pedaços numa escarradeira.
Não posso aplicar golpe tão baixo, pensou. Não na minha idade.
Mas esse gesto nobre foi prematuro, porque reescreveu a carta e a pôs no correio ao sair do escritório naquela noite.
No dia seguinte, a resposta que esperava chegou — era capaz de adivinhar palavra por palavra. Era uma recusa curta e indignada.
Terminava assim:
O melhor é que o senhor e minha filha não se vejam mais.
Sem mais, cordialmente,
MABEL TOLLMAN LORRY
“E agora”, calculou Tom friamente, “vamos ver o que a menina diz a isto.”
Escreveu uma carta para Annie. A carta da mãe dela o surpreendera, escreveu, mas talvez fosse melhor mesmo que não se vissem mais, por causa da atitude de sua mãe.
Pela volta do correio chegou a desafiadora resposta de Annie ao decreto de sua mãe: “Não estamos na Idade das Trevas. Vou continuar vendo você sempre que quiser”. Sugeriu um encontro para a tarde seguinte. A miopia de sua mãe provocou o que ele não conseguira despertar diretamente; porque Anne, que estava a ponto de mandá-lo passear, parecia agora determinada a fazer exatamente o contrário. E o segredo criado pela desaprovação materna contribuiu com a excitação que faltava. À medida que fevereiro se arrastava naquele profundo, solene e interminável inverno, encontrou-se muitas vezes com ele, só que agora em novas bases. Às vezes iam de carro para St. Paul, para assistir a um filme ou jantar; ou então estacionavam o cupê num distante bulevar, com o granizo cobrindo o pára-brisa e vestindo os faróis com arminho. Quase sempre ele trazia algo especial para beberem — o suficiente para deixá-la alegre, mas, cuidadosamente, não mais que isso. Misturada a suas outras emoções, havia também uma espécie de preocupação paternal.
Pondo as cartas na mesa, ele lhe disse que fora a mãe dela quem, sem querer, a empurrara para ele, mas Annie apenas riu da sua ambigüidade.
Estava se divertindo muito mais com ele do que com qualquer outro rapaz que já tinha conhecido. Em vez das exigências egoístas dos mais jovens, ele demonstrava uma infalível consideração por ela. E daí se seus olhos estavam cansados ou seu rosto áspero e estriado de veias? Sua vontade continuava forte e masculina. Mais ainda, sua experiência era uma janela que se abria para um mundo mais vasto e mais rico; e, ao se encontrar com Randy Cambell no dia seguinte, ela se sentia menos cuidada, menos valorizada, menos exclusiva.
Mas, agora, era Tom quem se sentia vagamente descontente. Conseguira o que queria — a juventude dela —, mas achava que qualquer coisa além disso seria um equívoco. Sua liberdade lhe era preciosa e ele só podia lhe oferecer talvez mais uns dez anos antes de ficar velho. Mas ela se tornara algo precioso demais para ele e percebeu que cair fora não seria justo. Então, em fins de fevereiro, o problema se resolveu sozinho.
Estavam voltando de St. Paul e pararam no College Club para tomar um chá, atravessaram juntos as lascas de gelo que cobriam a alameda e orlavam a porta. Era uma porta giratória; um jovem passou por ela e, ao entrarem por onde ele saíra, sentiram o cheiro de cebolas e uísque. A porta completou o giro e o rapaz voltou ao salão, encarando-os. Era Randy Cambell; seu rosto estava afogueado; os olhos, opacos e duros.
“Olá, beleza”, ele disse, aproximando-se de Annie.
“Não chegue tão perto”, ela protestou com delicadeza. “Você está cheirando a cebola.”
“Por que tão exigente de repente?”
“Sempre fui exigente.” Annie fez um ligeiro movimento em direção a Tom.
“Nem sempre”, respondeu Randy, num tom desagradável. E, com crescente ênfase e um olhar rápido para Tom: “Nem sempre”. Com essa observação, pareceu encaminhar-se ao mundo hostil lá fora. “E vou lhe dar uma pista”, continuou. “Sua mãe está lá dentro.”
O gênio enciumado do rapaz atingiu Tom de forma quase imperceptível, como o protesto de uma criança. Mas, a esse aviso impertinente, ele se eriçou:
“Vamos, Annie”, disse bruscamente. “Vamos entrar.”
Desconfortável, evitando o olhar de Randy, Annie seguiu Tom pelo salão.
Estava quase vazio, apenas três senhoras de meia-idade sentavam-se perto do fogo. Annie recuou por um segundo, mas depois caminhou resoluta em direção a elas.
“Olá, mamãe... Como vai, senhora Trumble? Olá, tia Caroline.”
As duas últimas responderam; a sra. Trumble até fez um gesto para Tom. Mas a mãe de Annie se pôs de pé sem uma palavra, os olhos gelados, a boca contraída. Por um momento, olhou firme para a filha; depois, virou-se rispidamente e saiu da sala.
Tom e Annie foram para uma mesa no outro lado da sala.
“Ela não foi horrível?”, disse Annie, ofegante. Ele não respondeu.
“Há três dias que não fala comigo.” De repente, explodiu: “Ah, como as pessoas podem ser tão mesquinhas? Eu iria cantar na parte principal do show da escola e, ontem, minha prima Mary Betts, que é presidente do grêmio, veio me dizer que não vou mais”.
“Por que não?”
“Porque uma representante do grêmio não pode desafiar a mãe. Como se eu fosse uma pirralha!”
Tom olhou para uma fileira de xícaras no aparador — duas ou três delas tinham seu nome. “Talvez ela tenha razão”, ele disse de supetão. “Se estou começando a prejudicar você, talvez seja hora de terminar.”
“O que você quer dizer com isso?”
À voz chocada da menina, seu coração despejou um líquido quente pelo interior de seu corpo, mas ele respondeu com tranqüilidade: “Lembra-se de eu ter lhe dito que iria viajar para o Sul? Pois bem, vou viajar amanhã”.
Houve uma discussão, mas ele já tinha decidido. Na noite seguinte, na estação, ela chorou e se agarrou a ele.
“Obrigado pelos melhores meses que tive em muitos anos”, ele disse.
“Mas você vai voltar, Tom.”
“Vou ficar dois meses no México; depois vou para o Leste, por algumas semanas.”
Tentou passar uma impressão de felicidade, mas a cidade congelada que ele deixava para trás parecia estar florindo. O hálito gelado da moça era uma flor em pleno ar, mas seu coração despencou quando ele se deu conta de que algum rapaz deveria estar esperando lá fora, para levá-la para casa num carro cheio de flores.
“Adeus, Annie. Adeus, meu doce.”
Dois dias depois, ele passou a manhã em Houston com Hal Meigs, seu velho colega de Yale.
“Você é um velho de sorte”, disse Meigs ao almoço, “porque vou apresentá-lo à companheira de viagem mais graciosa que você já viu, e que também está indo para a Cidade do México.”
A dama em questão ficou francamente satisfeita ao saber na estação que não iria viajar sozinha. Ela e Tom jantaram juntos no trem e, depois, jogaram cartas por uma hora; mas quando, às dez horas, parados na porta do salão nobre, ela lhe dirigiu um olhar franco e inconfundível, e sustentou esse olhar por um longo momento, Tom Squires viu-se presa de uma emoção que nada tinha a ver com aquilo. Teve uma desesperada vontade de rever Annie, de falar com ela por um segundo ao telefone, e só depois dormir, sabendo que ela continuava jovem e pura como uma estrela, e bem quietinha em sua cama.
“Boa noite”, ele disse, tentando esconder qualquer repulsa na voz.
“Ah! Boa noite!”
Ao chegar a El Paso no dia seguinte, cruzou de táxi a fronteira mexicana, até Juarez. Estava um dia ensolarado e quente, e, depois de deixar as malas na estação, ele foi ao bar tomar algo gelado. Quando começou a bebericar, a voz de uma mulher dirigiu-se asperamente a ele, vinda de trás.
“Você é americano?”
Ao entrar, ele a vira debruçada sobre a mesa. Agora, ao virar-se, percebeu uma jovem de, no máximo, dezessete anos, obviamente bêbada e, mesmo assim, com alguma nobreza na voz instável e embargada. O empregado do balcão, também americano, inclinou-se confidencialmente para ele.
“Não sei o que fazer com ela”, disse. “Chegou por volta das três com dois rapazes, um deles seu namorado. Brigaram, os rapazes foram embora e ela está aqui até agora.”
Um espasmo de desgosto percorreu Tom — as regras de sua geração tinham sido ofendidas e desafiadas. Uma garota americana abandonada, bêbada, numa cidade como aquela... Tal coisa podia acontecer, quem sabe, com Annie. Olhou para o relógio e hesitou:
“Ela está devendo alguma coisa?”, perguntou.
“Tomou cinco gins. Mas e se os rapazes voltarem?”
“Diga que está hospedada no Roosevelt Hotel, em El Paso.”
Aproximou-se e pôs a mão em seu ombro. Ela olhou para cima.
“Você parece o Papai Noel”, disse, confusa. “Você não é o Papai Noel, é?”
“Vou levá-la para El Paso.”
“Bem”, ela pareceu pensar. “Acho que posso confiar em você.”
Era tão jovem — uma rosa encharcada. Ele quase chorou por sua lamentável inconsciência da vida, da dureza da vida. Sentiu-se lutando contra o nada, numa arena vazia e com uma lança trêmula. O táxi movia-se muito devagar pela noite subitamente envenenada.
Depois de explicar as coisas ao relutante porteiro da noite, saiu e encontrou a agência do telégrafo.
“Desisti da viagem mexicana”, escreveu para Annie. “Parto daqui esta noite. Por favor, espere meu trem na estação de St. Paul e vamos juntos para Minneapolis, já que não posso ficar nem mais um minuto sem você. Com todo o meu amor.”
Assim, ele poderia pelo menos ficar de olho nela, acompanhar o que ela fazia com sua vida. Aquela mãe idiota!
No trem, à medida que as sazonadas terras tropicais davam lugar ao Norte com seus retalhos de neve e, depois, a campos inteiros cobertos com ela, ventos ferozes nas plataformas e fazendas sombrias e hibernadas, Tom andava para cima e para baixo pelos corredores do trem, com intolerável inquietação. Quando chegou à estação de St. Paul, atirou-se do trem como um colegial e procurou ansiosamente pela plataforma, mas seus olhos não conseguiam encontrar Annie. Estava contando com aqueles minutos entre as duas cidades; eles tinham se tornado o símbolo de sua fidelidade ao amor de ambos e, quando o trem se pôs de novo em movimento, procurou desesperadamente do vagão-fumante ao observatório. Mas, ali também, não a encontrou, e agora sabia que estava louco por ela; à idéia de que tivesse seguido seu conselho e mergulhado em namoros com outros homens, seu coração foi tomado pelo medo.
Ao chegar a Minneapolis, suas mãos se atrapalharam tanto que teve de chamar o carregador para prender as fivelas das malas. Depois, houve a interminável espera no corredor enquanto a bagagem era retirada, e ele se viu espremido de encontro a uma moça com um casaco com gola e punhos de pele de esquilo.
“Tom!”
“Ora, eu...”
Os braços dela envolveram seu pescoço. “Mas, Tom”, ela chorava, “estou aqui neste vagão desde St. Paul!”
A bengala dele caiu no chão. Ali mesmo, no corredor, ela a puxou ternamente para si e seus lábios se fundiram como corações famintos.
III.
A intimidade permitida pela definição do noivado encheu Tom de uma jovem felicidade. Acordava nas manhãs de inverno com uma sensação de alegria imerecida pairando em seu quarto; na rua, ao passar por rapazes, via-se comparando o vigor de seu corpo e mente com o deles. De repente, sua vida parecia ter um propósito e uma base; sentia-se pleno e completo. Nas tardes cinzentas de março, quando ela transitava com familiaridade por seu apartamento, as mornas certezas de sua juventude voltavam a inundá-lo — êxtase e pungência, o mortal e o eterno em sua trágica justaposição e, para seu relativo espanto, ele se via saboreando até a terminologia dos jovens apaixonados. Mas era mais sóbrio do que um jovem apaixonado e, para Annie, ele parecia “saber tudo” — como manter os portões abertos para sua passagem para um mundo verdadeiramente dourado.
“Vamos primeiro à Europa”, ele disse.
“Iremos à Europa à beça, não? Vamos passar nossos invernos na Itália e a primavera em Paris.”
“Mas, Annie querida, e os negócios?”
“Bem, vamos ficar fora o máximo que pudermos. Detesto Minneapolis.”
“Ah, não.” Ele estava um pouco chocado. “Minneapolis é ótimo.”
“Só quando você está aqui.”
A sra. Lorry custou, mas curvou-se ao inevitável. A contragosto admitiu o noivado, pedindo apenas que o casamento não se realizasse antes do outono.
“É muito tempo”, suspirou Annie.
“Afinal de contas, sou sua mãe. É tão pouco o que peço.”
Foi um longo inverno, mesmo numa terra de invernos longos. Março chegou cheio de correntes encapeladas e, quando enfim parecia que o frio seria derrotado, houve uma série de nevascas desesperadas, como se ele se recusasse a acabar. As pessoas esperavam; sua energia inicial para resistir se exauriu; e todo mundo, a exemplo do tempo, se conformou. Havia pouco que fazer agora e a inquietação geral se exprimia pela rispidez nos contatos diários. Finalmente, no começo de abril, com um longo suspiro, o gelo se rompeu, a neve infiltrou-se no terreno e a primavera, verde e ansiosa, despontou.
Certo dia, ao passarem por uma estrada de lama, onde uma grama asfixiada e faminta lutava para brotar, Annie começou a chorar. Às vezes chorava sem motivo, mas, desta vez, Tom freou de súbito e a abraçou.
“Por que está chorando assim? Está infeliz?”
“Não, não!”, ela protestou.
“Mas ontem você chorou do mesmo jeito. E não quis me dizer por quê. Você precisa me contar.”
“Não é nada, é a primavera. Tem um cheiro tão bom, e me traz lembranças e pensamentos tristes.”
“É a nossa primavera, querida”, ele disse. “Annie, não vamos esperar. Vamos nos casar em junho.”
“Prometi a mamãe, mas, se você quiser, vamos anunciar nosso casamento para junho.”
A primavera agora passava depressa. As calçadas ficaram úmidas, depois secas, e as crianças patinavam nelas e os meninos jogavam beisebol nos terrenos baldios. Tom promovia elaborados piqueniques para os amigos de Annie e a estimulava a jogar golfe e tênis com eles. De repente, como se a natureza desse uma guinada final e triunfante, já parecia pleno verão.
Numa linda noite de maio, Tom atravessou a alameda da casa dos Lorry e sentou-se na varanda com a mãe de Annie.
“Está tão agradável”, ele disse. “Acho que Annie e eu vamos dar um passeio a pé, em vez de pegar o carro. Quero mostrar a ela a velha casa em que nasci.”
“Na rua Chambers, não é? Annie deve chegar daqui a pouco. Foi dar uma volta com a turma depois do jantar.”
“Sim, na rua Chambers.”
Consultou o relógio, esperando que Annie voltasse enquanto ainda houvesse luz suficiente. Quinze para as nove. Fez cara feia. Ela já o fizera esperar na outra noite e por uma hora na tarde anterior.
Se eu tivesse vinte e um anos, pensou, faria uma cena e ambos nos sentiríamos péssimos.
Enquanto isso, conversava com a sra. Lorry. A temperatura, perto da casa dos trinta graus, precipitava uma lassitude que os amolecia e, pela primeira vez desde que começara a se dedicar a Annie, as arestas entre eles pareciam aparadas. Aos poucos, os silêncios ficaram mais longos, quebrados apenas pelo riscar de um fósforo ou pelo rangido de sua cadeira. Quando o sr. Lorry chegou, Tom atirou fora seu segundo charuto e olhou surpreso para o relógio; já passava das dez.
“Annie está atrasada”, disse a sra. Lorry.
“Espero que não tenha acontecido nada”, disse Tom, ansioso. “Com quem ela está?”
“Só sei que, quando saíram, eram quatro. Randy Cambell e um casal — não percebi quem. Foram tomar um refrigerante.”
“Espero que esteja tudo bem. Talvez... será que eu deveria ir procurá-los?”
“Dez horas não é tarde hoje em dia. Você vai descobrir...” Lembrando-se de que Tom Squires ia se casar com Annie, não adotá-la, a sra. Lorry se conteve para não dizer: “Você vai se acostumar”.
Seu marido pediu licença e entrou para dormir, enquanto a conversa tornou-se mais forçada e desconexa. Quando o relógio da igreja bateu onze horas, eles silenciaram e ouviram as pancadas. Vinte minutos depois, quando Tom, impaciente, esmagava seu último charuto, um automóvel desceu a rua e estacionou em frente à porta.
Por um minuto, ninguém se moveu na varanda ou dentro do carro. Em seguida, Annie, com o chapéu na mão, saiu e veio correndo pela alameda. Desafiando a quietude da noite, o carro saiu guinchando.
“Olá!”, ela disse. “Desculpe! Que horas são? Estou muito atrasada?”
Tom não respondeu. A luz no poste jogava uma cor vinho sobre o rosto de Annie e expressava com uma sombra o rubor vivo de sua face. Seu vestido estava amarrotado e o cabelo tinha um leve e expressivo desarranjo. Mas foram as estranhas pausas em sua voz que o fizeram ter medo de falar, que o fizeram desviar os olhos.
“O que aconteceu?”, perguntou casualmente a sra. Lorry.
“Ah, um pneu estourou e depois houve alguma coisa errada com o motor — e nos perdemos no caminho. É tão tarde assim?”
Com Annie de pé diante deles, o chapéu ainda na mão, peito subindo e descendo um pouco e olhos abertos e brilhantes, Tom percebeu, chocado, que ele e a mãe dela eram pessoas da mesma idade olhando para uma pessoa de outra geração. Por mais que tentasse, não conseguia se distinguir da sra. Lorry. Quando ela pediu licença para entrar, ele reprimiu uma frenética vontade de dizer: “Mas por que entrar agora, depois que ficou sentada aqui a noite inteira?”.
Agora estavam sozinhos. Annie chegou-se a ele e apertou sua mão. Ele nunca tivera tanta consciência de sua beleza; as mãos dela estavam úmidas de orvalho.
“Você saiu com o jovem Cambell”, ele disse.
“Foi. Não fique bravo. Estou me sentindo... sentindo tão chateada.”
“Chateada?”
Ela se sentou, quase choramingando.
“Não pude evitar. Por favor, não fique bravo. Ele queria tanto dar uma volta comigo e estava uma noite tão maravilhosa, por isso aceitei passear por uma hora. Começamos a conversar e não vimos o tempo passar. Senti muita pena dele.”
“Como pensa que eu me senti?” Temeu estar se menosprezando, mas agora já tinha falado.
“Não fique assim, Tom. Já lhe disse que fiquei chateada. Quero ir dormir.”
“Entendi. Boa noite, Annie.”
“Ah, por favor, não fique assim, Tom! Você não entende?”
Mas ele estava entendendo, e esse era o problema. Com um gesto de cortesia das velhas gerações, desceu os degraus e saiu sob o luar encobridor. Em instantes, reduzira-se a uma sombra que passava pelos lampiões e, depois, a fugidios passos na rua.
IV.
Durante todo aquele verão, ele saía para passear à noite. Gostava de parar por um minuto em frente à casa onde nascera e, depois, em frente à outra casa onde morara em criança. Em seus trajetos mais costumeiros havia outros pontos de referência da década de 1890, cenários de belle-epoquices já convertidos em alguma outra coisa — a casca do estábulo de Jansen e o velho rinque de Nushka, onde todo inverno seu pai fazia piruetas no gelo bem conservado.
“Que pena”, ele murmurava. “Que pena.”
Tinha também a tendência a passar diante das luzes de uma certa drogaria, porque lhe parecia conter a semente de outra época mais recente. Certa vez entrou e, ao perguntar pela caixeira loura, descobriu que ela se casara e saíra de lá havia alguns meses. Ficou sabendo seu nome e, num impulso, mandou-lhe um presente de casamento, “de um admirador secreto”, porque achava que lhe devia um pouco por sua felicidade e sua dor. Perdera a batalha contra a juventude e a primavera, e, com seu sofrimento, pagara um preço pelo pecado imperdoável da velhice — o de se recusar a morrer. Não se conformara em rumar para a treva sem primeiro se pôr à prova; o que ele quisera, no fim das contas, era magoar seu velho coração. A luta, em si, tem um valor que supera a vitória ou a derrota, e aqueles três meses com Annie... agora lhe pertenciam para sempre.
(1929)