Os nadadores

Sobre a Place Benoit, uma massa suspensa de descargas de gasolina cozinhava lentamente ao sol de junho. Era terrível porque, ao contrário do calor normal, aquela onda de fumaça não dava o menor indício de que iria deslocar-se para o campo. Nos escritórios da Promissory Trust Company, filial de Paris, contemplando a praça, um americano de trinta e cinco anos respirava o ar infecto e, de súbito, aquele tornou-se o cheiro do que ele tinha a fazer. Um horror negro assaltou-o, e ele foi à toalete, onde se deixou ficar por alguns momentos, tremendo um pouco.

Pela janela da toalete, seus olhos pousaram sobre o anúncio de uma loja — 1000 Chemises. As camisas em questão lotavam a vitrine da loja, recheadas de manequins engravatados, ou estavam simplesmente expostas, dobradas, nos mostruários. 1000 Chemises — quem contou? À esquerda, ele podia ler Papeterie, Pâtisserie, Solde, Réclame e Constance Talmadge em Déjeuner de Soleil; à direita, seu olho pousou sobre anúncios ainda mais sombrios: Vêtements Ecclésiastiques, Déclaration de Décès e Pompes Funèbres. A Vida e a Morte!

O leve tremor de Henry Marston tornou-se intenso; seria ótimo se aquilo fosse o fim e nada mais houvesse a fazer, pensou, e, com alguma esperança, sentou-se num banquinho. Mas essas coisas nunca chegam ao fim e, pouco depois, quando já estava muito cansado para se importar com aquilo, a tremedeira passou e ele se sentiu melhor. Descendo as escadas, tentando parecer tão alerta e seguro quanto qualquer funcionário do banco, dirigiu-se a dois clientes que conhecia.

“Ora, Henry Clay Marston!” Um velho elegante apertou-Ihe a mão e sentou-se à sua mesa. “Henry, gostaria de lhe falar a respeito do que conversamos na outra noite. Que tal almoçarmos naquele restaurante simpático entre as árvores?”

“Não posso, juiz Waterbury. Tenho um compromisso.”

“Então precisamos falar agora, porque vou viajar esta tarde. Quanto esses plutocratas estão lhe pagando para você parecer importante?”

Henry Marston sabia o que estava a caminho.

“Dez mil dólares por ano e mais algum para as despesas”, respondeu.

“Gostaria de voltar para Richmond pelo dobro disso? Já está aqui há oito anos e não sabe as oportunidades que perdeu. Por exemplo, meus dois rapazes...”

Henry ouviu com educação, mas, naquela manhã, não conseguia concentrar-se em nada. Falou vagamente a respeito de viver com mais conforto em Paris e controlou-se para não ser muito franco sobre a idéia de voltar aos Estados Unidos.

O juiz Waterbury fez sinal para um homem alto e pálido no balcão.

“Este é o senhor Wiese”, disse. “Uma espécie de meu sócio.”

“Prazer. Parece que o juiz está lhe fazendo uma proposta.”

“Sim”, respondeu secamente Henry. Reconhecia e detestava o tipo — cavador, suarento, quase certamente um misto de novo-rico e aventureiro. Quando Wiese se afastou, o juiz disse, como se desculpando:

“É um dos homens mais ricos do Sul, Henry.” E depois de uma pausa: “Precisa voltar para lá, rapaz”.

“Vou pensar no assunto, juiz.”

Por um momento, a cabeça grisalha e avermelhada do velho pareceu-lhe simpática, mas não demorou a recuperar o antigo contorno unidimensional, mecânico, desolado, não europeu. Henry Marston respeitava aquela franqueza — lidava com ela diariamente no banco com agrado, como num museu um curador deve tocar um objeto precioso removido de seu tempo e espaço. Mas não havia jeito: as perguntas que a vida de Henry Marston propusera só poderiam ser respondidas na França. Suas sete gerações de ancestrais da Virgínia ficavam definitivamente para trás todos os dias quando ele voltava para casa ao meio-dia.

A casa era um apartamento de pé-direito alto, copiado do palácio de um cardeal renascentista, na rue Monsieur — o tipo de coisa a que Henry não poderia se dar ao luxo na América. Sua mulher, Choupette, superando o rígido tradicionalismo do gosto francês, conseguira embelezá-lo ainda mais, e ali viviam com seus filhos. Era uma loura frágil, com lindos traços e olhos vivos e tristes, que tinham fascinado Henry pela primeira vez numa pension em Grenoble, em 1918. Os dois garotos saíram a Henry, considerado o homem mais bonito da universidade de Virgínia alguns anos antes da guerra.

Subindo os dois largos lances de escadas, Henry permitiu-se ofegar por alguns instantes no hall de seu apartamento. Sentia-se novamente fresco e tranqüilo e, no entanto, pensava vagamente na coisa horrível que iria acontecer. Ouviu o relógio de casa bater uma hora e enfiou a chave na porta.

A empregada, a serviço da família de Choupette havia mais de trinta anos, ficou estarrecida ao vê-lo — de boca aberta, como a pronunciar um som que não saía.

Bonjour, Louise.”

Monsieur!” Ele jogou o chapéu numa cadeira. “Mas, monsieur... pensei que monsieur havia telefonado para dizer que iria a Tours buscar as crianças!”

“Mudei de idéia, Louise.”

Henry deu mais um passo — sua última dúvida estava desfeita diante do terror no rosto da empregada.

“Madame está em casa?”

Naquele momento, ele percebeu o chapéu e a bengala de um homem sobre a mesa do hall e, pela primeira vez, conseguiu ouvir o silêncio — um silêncio cantante, tonitroante, tão opressivo como o som de canhões ou trovões. Depois, quando aquele momento interminável foi quebrado pelo grito de terror da empregada, Henry atravessou as portières que davam para a sala.

Uma hora depois, o dr. Derocco, de la Faculté de Médecine, tocou à porta do apartamento. Choupette Marston, com uma expressão ligeiramente tensa, foi abrir. Trocaram as formalidades de praxe na França:

“Meu marido não vinha se sentindo bem há algumas semanas”, disse ela, “mas não se queixou para não me deixar preocupada. Hoje, teve um colapso súbito; não consegue falar nem mover os membros. Devo dizer que tudo isto pode ter se precipitado por uma certa indiscrição de minha parte — tivemos uma cena, uma violenta discussão e, algumas vezes, quando está muito agitado, meu marido não consegue compreender bem o francês.”

“Deixe-me vê-lo”, disse o médico, pensando: “Algumas coisas são compreensíveis em qualquer língua”.

Nas quatro semanas seguintes, várias pessoas ouviram estranhas divagações a respeito de mil camisas e de como toda a população de Paris estava sendo intoxicada pela gasolina, mas, consultado um psiquiatra, ele não pareceu inclinado a acreditar em nenhum distúrbio mental. Henry foi cuidado por uma enfermeira do American Hospital e por uma assustada e desafiadora Choupette, que, à sua maneira, parecia profundamente arrependida. Um mês depois, quando Henry acordou em seu antigo quarto, à luz de uma lâmpada mortiça, encontrou-a à sua cabeceira e procurou sua mão.

“Eu ainda amo você”, ele disse, “isso é que é estranho.”

“Durma, meu repolhinho.”

“Bem”, ele continuou, não sem certa ironia, “nunca é tarde para se adotar uma atitude de marido francês...”

“Por favor! Você rasga o meu coração.”

Quando se sentou na cama, sentiram-se unidos de novo — mais unidos do que haviam estado em anos.

“E agora vocês terão novas férias”, disse Henry aos dois garotos que retornavam do campo. “Papai precisa ir para a praia, a fim de se recuperar.”

“Vamos aprender a nadar?”

“Para se afogarem, queridos?”, disse Choupette. “Na idade de vocês? De jeito nenhum!”

E assim, em St. Jean de Luz, ficaram sentados na praia, observando os ingleses, americanos e alguns franceses que mergulhavam ou velejavam. Havia navios ao largo e lindas ilhas para se olharem, montanhas e villas vermelhas e amarelas chamadas Fleur des Bois, Mon Nid ou Sans-Souci; e, mais adiante, sonolentas aldeias francesas de pedra cinzenta.

Choupette sentava-se ao lado de Henry na areia, segurando uma sombrinha para proteger do sol sua pele de pêssego.

“Olhe!”, ela costumava dizer, ao ver um grupo de garotas americanas bronzeadas. “Acha bonito? A pele delas parecerá couro quando tiverem trinta anos. Uma maneira de esconder as rugas. E mulheres de cem quilos naqueles maiôs! As roupas não foram feitas para ocultar os equívocos da natureza?”

Henry Clay Marston era o tipo de americano que se sente mais orgulhoso em ser da Virgínia do que americano. Seu avô havia libertado os escravos em 1858, lutado do Manassas até Appomattox, lido Huxley e Spencer para se distrair e só acreditava em castas quando elas expressavam o melhor da raça.

Para Choupette, tudo isso era vago. Suas críticas mais diretas contra os patrícios dele dirigiam-se às mulheres.

“Como você as definiria? Mulheres finas, burguesas, aventureiras — são todas iguais. Olhe! Onde eu estaria se tentasse agir como sua amiga Madame de Richepin? Meu pai era professor de uma universidade na província. Há certas coisas que eu não faria, porque minha classe e minha família poderiam não gostar. Madame de Richepin não faria outras coisas, porque poderia não agradar à sua classe ou família.” Apontou para uma garota americana que se encaminhava para a água: “Mas aquela jovem pode ser uma estenógrafa e, no entanto, anda, veste-se e comporta-se daquele jeito como se tivesse todo o dinheiro do mundo”.

“Talvez ela venha a ter, algum dia.”

“É o que dizem a elas, mas isso só acontece a uma, não a noventa e nove. É por isso que, aos trinta anos, estão todas descontentes e infelizes.”

Embora Henry concordasse com ela em termos, não conseguia deixar de achar divertido o alvo que Choupette escolhera naquela tarde. A garota — de, talvez, uns dezoito anos — comportava-se realmente como se ninguém mais importasse; era o que seu pai teria classificado de uma puro-sangue. Tinha um rosto profundo e pensativo, tornado ainda mais bonito por causa da irreprimível determinação de seus traços perfeitos — um rosto que poderia até ter passado sem eles.

Em sua perfeição ao mesmo tempo graciosa e rígida, era o tipo de garota americana que nos faz imaginar se o macho não está sendo sacrificado por ela, assim como, no século passado, os estratos sociais mais baixos da Inglaterra eram sacrificados para produzir a classe dominante.

Os dois rapazes que saíam da água enquanto ela entrava tinham ombros largos e rostos vazios. Ela dirigiu-lhes o sorriso que eles mereciam, como se dissesse que aquilo devia bastar, enquanto ela não escolhesse um deles como pai de seus filhos. Henry Marston admirou-a quando seus braços, como peixes voadores, afastaram as ondas e seu corpo mergulhou como um cisne ou saltou, dobrado como um canivete, do pequeno trampolim e veio novamente à tona, enquanto ela tirava do rosto as mechas úmidas.

Os dois rapazes passaram por eles.

“Eles nadam”, disse Choupette, “depois vão para outra praia e nadam de novo. Passam meses na França e não sabem nem o nome do presidente. Há mais de cem anos a Europa não conhecia tais parasitas.”

Mas Henry tinha se posto de pé, como, subitamente, quase todas as pessoas na praia. Algo estava acontecendo a poucos metros da areia: a cabeça loura apareceu na superfície, mas, em vez de afastar os cabelos, agora gritava: “Au secours! Socorro!”, com voz fraca e assustada.

“Henry!”, gritou Choupette. “Pare, Henry!” A praia estava quase deserta àquela hora, mas Henry e diversos outros correram em direção à água. Os dois jovens americanos também ouviram o grito e correram atrás. Naqueles frenéticos segundos, uma meia dúzia de homens atirou-se ao mar. Choupette, ainda agarrada a seu parasol, mas conseguindo agitar os braços ao mesmo tempo, corria pela praia gritando: “Henry! Henry!”.

Agora havia mais gente ajudando e, de repente, formaram-se dois grupos ao redor de figuras prostradas na areia. O rapaz que salvara a moça conseguiu fazê-la voltar a si num minuto ou pouco mais, mas os outros tiveram mais trabalho para tirar a água de Henry, que nunca aprendera a nadar.

II.

“Este é o homem que não sabia se sabia nadar porque nunca tinha tentado.”

Henry levantou-se de sua cadeirinha na praia, rindo. Era a manhã seguinte, e a garota que havia sido salva acabara de chegar à praia com o irmão. Sorriu de volta para Henry, um sorriso aparentando mais casualidade que gratidão.

“No mínimo devo-lhe isto: ensiná-lo a nadar”, disse ela.

“Gostaria de aprender. Foi o que decidi ontem, antes de engolir água pela décima vez.”

“Pode confiar em mim. Nunca mais tomarei sorvete de chocolate antes de mergulhar.”

Quando ela caiu n’água, Choupette perguntou: “Quanto tempo mais vamos ficar aqui? Depois de algum tempo, isto cansa”.

“Vamos ficar até eu aprender a nadar. E os garotos também.”

“Está bem. Vi um calção bonito em dois tons de azul, por cinqüenta francos, que vou lhe comprar esta tarde.”

Sentindo-se um pouco gordo e doentiamente branco, Henry tomou as crianças pela mão e caminhou até o mar. A arrebentação veio até ele, açoitando-o, enquanto os meninos gritavam em êxtase; a maré vazante enroscou-se ameaçadoramente em seus pés, deixando-o num equilíbrio instável. Avançou mais uns passos até ficar com água pela cintura, juntamente com outras almas temerosas, e observou os corajosos que subiam à torre para mergulhar. Esperava que a jovem aparecesse para cumprir sua promessa. Mas ficou embaraçado quando ela surgiu.

“Vou começar com o mais velho. Observe e tente fazer igual.”

Henry espojou-se na água. Ela penetrou por seu nariz, cegou-o momentaneamente e invadiu-lhe os ouvidos, fazendo-os chacoalhar como seixos ainda horas depois. O sol também o descobriu e castigou suas costas, provocando-lhe várias noites de agonia e desfazendo-o depois em longas tiras de pele. Em uma semana já conseguia nadar, penosa e desajeitadamente, e não muito longe. A moça ensinou-lhe uma espécie de crawl, porque ele descobrira que o nado de peito era uma técnica obsoleta, própria para velhos e ineptos. Choupette surpreendeu-o admirando sua própria face bronzeada ao espelho, e o garoto mais novo contraiu uma micose na areia que o afastou da competição. Um dia, Henry nadou desesperadamente até a balsa e conseguiu chegar — sem fôlego, mas vitorioso.

“Bem, isso resolvido”, ele disse à moça, “já posso deixar St. Jean amanhã.”

“Lamento muito.”

“O que fará agora?”, perguntou ele.

“Meu irmão e eu vamos a Antibes; em outubro, lá é ótimo para nadar. Depois iremos à Flórida.”

“Só para nadar?”, ele perguntou com divertido espanto.

“Sim.”

“Por que gosta tanto de nadar?”

“Para ficar limpa”, ela respondeu, de maneira surpreendente.

“Limpa de quê?”

Franziu a testa. “Não sei por que disse isso. Não sei, o mar me parece tão limpo.”

“Os americanos são muito exigentes quanto a isso”, ele comentou.

“São?”

“Quero dizer, às vezes somos difíceis de contentar até quanto a limpar nossas mazelas.”

“Não sei.”

“Mas, diga-me, por que você...” Calou-se. Ia lhe pedir que explicasse uma série de coisas — como o que era limpo ou não, o que valia a pena conhecer ou o que não passava de conversa fiada — para abrir-lhe novos horizontes de vida. Olhando pela última vez dentro de seus olhos, cheios de frios segredos, deu-se conta de quanto iria sentir falta daquelas manhãs, embora não soubesse se era a garota que tanto o interessava ou se era o que ela representava de seu país distante.

“Está bem”, disse a Choupette naquela noite. “Vamos embora amanhã.”

“Para Paris?”

“Para a América.”

“Eu também vou? E as crianças também?”

“Sim.”

“Mas isso é absurdo”, ela protestou. “Na última vez que fomos, custou-nos mais do que seis meses aqui. E éramos só três naquela época. Justamente agora que estávamos equilibrando as...”

“É por isso mesmo. Estou cansado de equilibrar as finanças, obrigando-a a economizar e a não comprar vestidos. Preciso ganhar mais dinheiro. Os americanos não existem sem dinheiro.”

“Então vamos morar lá?”

“É bem possível.”

Olharam-se bem nos olhos e, muito a contragosto, Choupette entendeu. Durante oito anos, por um processo de incessante adaptação, ele vivera a vida dela, trocando a confusão moral de seu próprio país pela tradição, sabedoria e sofisticação da França. Depois daquele incidente em Paris, Henry decidira que a melhor política seria compreender, perdoar e tentar preservar o casamento como algo alheio aos caprichos do amor. Só agora, vendendo uma saúde de que não gozava havia anos, é que identificava sua verdadeira reação. Sentia-se livre. Apesar de toda a sensação de perda, sentia-se possuído novamente da firmeza masculina que lhe permitira conquistar aquela esperta garota provençal oito anos antes.

Ela resistiu um pouco.

“Mas você está numa boa posição e temos bastante dinheiro. Podemos viver mais barato aqui.”

“Os meninos estão crescendo, e não sei se quero que eles sejam educados na França.”

“Mas isso já estava decidido!”, ela gemeu. “Você mesmo admitiu que a educação na América é superficial e sujeita a modas tolas e passageiras. Quer que eles sejam como aqueles dois bobocas na praia?”

“Talvez estivesse pensando mais em mim, Choupette. Garotos mal saídos da universidade, que me pediam empréstimo no banco há oito anos, hoje andam em carros de dez mil dólares. Nunca me importei. Dizia a mim mesmo que eu tinha outras vantagens, só porque sabíamos escolher as melhores lagostas nos restaurantes. Talvez isso já não seja tão importante para mim agora.”

Ela se empertigou. “Se é assim...”

“Cabe agora a você. Vamos começar tudo de novo.”

Choupette pensou um pouco. “Claro, minha irmã pode ficar com nosso apartamento.”

“Claro!” Ele se entusiasmou. “E você vai adorar. Teremos um carro enorme, uma geladeira e todas aquelas maquininhas engraçadas que dispensam os empregados. Será ótimo. Você aprenderá a jogar golfe e a falar de crianças o dia inteiro. E iremos todos os dias ao cinema.”

Choupette grunhiu.

“Será horrível a princípio”, ele admitiu, “mas ainda há umas boas cozinheiras negras, e talvez possamos ter dois banheiros.”

“Sou incapaz de usar mais de um ao mesmo tempo.”

“Você vai aprender.”

Um mês depois, quando a bela ilha branca parecia flutuar em sua direção nos Estreitos, Henry sentiu um nó na garganta e teve ganas de gritar para Choupette e todos os estrangeiros: “Olhem lá! Estão vendo?”.

III.

Quase três anos depois, Henry Marston saiu de sua sala na Calumet Tobacco Company e atravessou o saguão em direção ao gabinete do juiz Waterbury. Parecia mais velho, com um traço de amargura no rosto e o começo de uma obesidade que o terno de linho branco não se dispunha a esconder.

“Está ocupado, juiz?”

“Entre, Henry.”

“Vou para a praia amanhã, nadar um pouco para tentar derreter a gordura. Gostaria de falar-lhe antes de viajar.”

“As crianças também vão?”

“Ahn? Ah, sim, claro.”

“Choupette irá à França, pelo que suponho.”

“Este ano, não. Acho que irá comigo, se não ficar aqui em Richmond.”

O juiz pensou: Não há dúvida de que ele sabe de tudo. Esperou.

“Gostaria de comunicar-lhe, juiz, que vou embora no fim de setembro.”

“Vai se demitir, Henry?”

“Não exatamente. Walter Ross quer voltar para cá; assim, vou ficar com o lugar dele na França.”

“Rapaz, sabe quanto pagamos a Walter Ross?”

“Sete mil dólares por ano.”

“E você está ganhando vinte e cinco mil!”

“Talvez o senhor tenha ouvido dizer que ganhei alguma coisinha na Bolsa”, disse Henry, meio em tom de zombaria.

“Ouvi dizer qualquer coisa entre cem mil e quinhentos mil dólares.”

“Nem tanto, nem tão pouco.”

“Então, por que aceitar um emprego de sete mil dólares por ano? Choupette está querendo voltar?”

“Não, acho que Choupette gosta daqui. Aliás, adaptou-se espantosamente.”

Ele sabe, pensou o juiz. Por isso resolveu ir embora.

Quando Henry saiu, o juiz olhou para o retrato de seu avô na parede. Naquele tempo, o assunto seria resolvido de maneira mais simples. Um duelo à pistola ao cair da tarde. Ainda bem, para Henry, que as coisas eram diferentes hoje.

O motorista de Henry deixou-o em frente a uma casa georgiana, num bairro novo, afastado da cidade. Henry pendurou seu chapéu no hall e foi direto à varanda lateral. Choupette sorria, sentada num balanço. Exceto por uma certa agudeza nos traços e uma indefinível vocação para ajeitar as coisas, poderia passar por americana. Falava as gírias locais com sotaque francês e, nos bailes, os rapazes da faculdade vinham tirá-la para dançar.

Henry dirigiu-se ao sr. Charles Wiese, sentado numa cadeira de vime, com um gin fizz ao lado.

“Quero falar com vocês”, disse Henry, sentando-se.

Wiese e Choupette trocaram um rápido olhar antes de olharem para ele.

“Você é um homem livre, Wiese”, disse Henry. “Por que não se casa com Choupette?”

Choupette saltou do balanço, os olhos faiscando.

“Calma”, disse Henry, voltando-se para Wiese. “Tenho deixado essa coisa correr há cerca de um ano, enquanto acertava minha situação financeira. Mas esta idéia brilhante que vocês tiveram há pouco me perturbou, fazendo com que me sentisse meio sórdido, e não quero me sentir assim.”

“O que está querendo dizer?”, perguntou Wiese.

“Na minha última viagem a Nova York, vocês mandaram alguém me seguir. Imagino que com a intenção de reunir provas contra mim, tendo em vista um possível divórcio. Pois fracassaram.”

“Não sei de onde tirou essa idéia, Marston; você...”

“Não minta!”

“Mas...”

“Não quero saber de mas, e não tente se fazer de valente. Você não está falando com um matuto assustado. Não quero fazer uma cena; minhas emoções não estão exigindo isso. Quero providenciar o divórcio.”

“Por que tratar as coisas desse jeito?”, gritou Choupette em francês. “Não poderíamos falar a sós, se você acha que tem tanto contra mim?”

“Espere um pouco: podemos acertar isto agora”, disse Wiese. “Choupette também quer se divorciar. A vida dela com você não a satisfaz, e a única razão pela qual manteve esse casamento é porque é uma idealista. Para você, isso talvez não queira dizer nada, mas a verdade é que ela não gostaria de destruir este lar.”

“Muito tocante.” Henry olhou para Choupette com amargo divertimento. “Mas vamos aos fatos. Gostaria de decidir isso antes de voltar para a França.”

Wiese e Choupette trocaram outro olhar.

“Parece simples”, disse Wiese. “Choupette não quer um centavo seu.”

“Eu sei. O que ela quer são os filhos. O problema é o seguinte: ela não ficará com os filhos.”

“Mas isso é o fim!”, gritou Choupette. “Chegou a pensar por um minuto que eu ficaria sem meus filhos?”

“Quais são seus planos, Marston?”, perguntou Wiese. “Levá-los de volta para a França e transformá-los em expatriados como você?”

“De modo algum. Irão estudar em St. Regis e depois em Yale. E não tenho a menor intenção de impedi-los de ver a mãe, quando ela quiser — o que, a julgar pelos últimos dois anos, não será coisa freqüente. Mas pretendo manter toda a custódia legal.”

“Por quê?”, eles perguntaram juntos.

“Por causa do lar.”

“O que quer dizer?”

“Prefiro que eles aprendam uma profissão a deixá-los crescer no tipo de lar que você e Choupette vão construir.”

Houve um momento de silêncio. De repente, Choupette pegou seu copo, atirou a bebida em Henry e prorrompeu em soluços.

Henry enxugou o rosto com o lenço e levantou-se.

“Eu temia isto, mas acho que deixei clara minha posição.”

Subiu para seu quarto e deitou-se na cama. Nas mil horas que passara acordado no último ano, ruminara em sua mente o problema de conservar os meninos sem tomar as medidas legais a que talvez fosse obrigado contra Choupette. Sabia que ela queria as crianças porque, sem elas, se tornaria suspeita, até mesmo déclassée, para sua família na França; mas, com aquelas características típicas das pessoas bem-nascidas, Henry reconhecia isso como um motivo perfeitamente legítimo. Além disso, nenhum escândalo público deveria ferir a mãe de seus filhos — e era isso que tornara seu desafio tão tímido naquela tarde.

Quando as dificuldades ficaram insuperáveis, inevitáveis, Henry procurou consolo no mar. Durante três anos, nadar se tornara uma espécie de fuga, e ele dedicou-se àquilo como quem se dedica à música ou à bebida. Houve um ponto em que parou de pensar e decidiu ir para a costa da Virgínia, a fim de nadar e afogar as mágoas no oceano. Além da arrebentação, podia contemplar o horizonte verde e castanho do Old Dominium com a tranqüila impessoalidade de um cetáceo. A carga de seu casamento destruído dissolvia-se no choque de seu corpo contra as ondas e ele parecia mover-se no espaço de um sonho de criança. Namoradas de juventude até então esquecidas nadavam com ele em sua imaginação; às vezes, imaginando ter os filhos a seu lado, Henry sonhava que suas braçadas podiam atingir a lua. Por que os americanos não nasciam com nadadeiras?, pensava Henry; mas quem sabe nasciam (não seria o dinheiro uma espécie de nadadeira?). Na Inglaterra, a propriedade trazia uma forte sensação de segurança; os americanos, porém, inquietos e sem raízes, precisavam de asas e nadadeiras. Era comum na América a idéia de que a educação deveria deixar de lado a história e o passado, para estimular um tipo de aventureirismo que não seria tolhido pelos lastros da hereditariedade ou da tradição.

Ao pensar nisso enquanto nadava, na tarde seguinte, Henry lembrou-se das crianças; virou-se e, com lentas braçadas, dirigiu-se para a praia. Quase sem fôlego, descansou numa balsa a meio caminho e, levantando os olhos, defrontou-se com olhos familiares. No momento seguinte, estava falando com a moça a quem ele tentara salvar havia apenas quatro anos.

Ficou radiante. Nunca tinha se dado conta de como sempre se lembrava dela. Era também da Virgínia — e por que ele não percebera isso antes? A mesma preguiça, a mesma tranqüilidade displicente tentando mascarar uma infalível gentileza e consideração, a forma desprovida de formas. Ao ouvir seu sobrenome pela primeira vez, ele o reconheceu como tão “bom” quanto o seu.

Deitados ao sol, falaram como velhos amigos — nada sobre os problemas de suas cidades ou de como Henry estava sofrendo por causa de Choupette, mas apenas sobre aquilo com que concordavam — falaram de tudo que gostavam ou que achavam divertido. Ela lhe ensinou um certo salto do trampolim, meio sentado, meio de pé, e ele tentou aprender — foi engraçado. Falaram sobre as delícias dos caranguejos e ela lhe mostrou como, devido à curiosa acústica da água, podiam escutar dali a conversa dos hóspedes na varanda do hotel, a alguns metros. Quando tentaram fazer isso, duas senhoras estavam dizendo:

“Porque no Lido...”

“Porque em Asbury Park...”

“Ora, ela passou a noite se coçando, se coçou a noite inteira...”

“Mas, meu bem, em Deauville...”

“... se coçou a noite inteira.”

Em pouco tempo, o mar tingiu-se do típico azul das quatro da tarde e a moça lhe disse que, aos dezenove anos, divorciara-se de um espanhol que a trancava no quarto do hotel quando saía para a farra.

“Mas isso já passou”, ela disse, rindo. “Falando de coisas mais animadas, como vai sua bela esposa? E os meninos, aprenderam a nadar? Por que todos vocês não jantam comigo esta noite?”

“Acho que não será possível”, ele disse depois de pensar um pouco. Não poderia fazer nada, nem o mais corriqueiro, nada que pudesse alimentar os argumentos de Choupette, e, com uma sensação de desgosto, ocorreu-lhe que poderia estar sendo vigiado naquele próprio momento. No entanto, rejubilou-se por sua precaução quando, inesperadamente, Choupette apareceu no restaurante do hotel naquela noite.

Depois que os garotos foram dormir, os dois se defrontaram durante o café na varanda do hotel.

“Pode me explicar por que não posso ter direito a meus filhos?”, disse Choupete. “Você não é do tipo vingativo, Henry.”

Foi difícil para Henry explicar. Disse-lhe novamente que ela poderia ver os filhos quando quisesse, mas que ele deveria exercer absoluto controle sobre eles, por causa de certas convicções antiquadas. Mas, ao ver que o rosto dela ficava mais duro, minuto a minuto, concluiu que não adiantava, e desistiu. Ela fez um som de desprezo.

“Apenas tentei lhe dar uma oportunidade de ser razoável antes de Charles chegar.”

Henry levantou-se: “Ele vai estar aqui esta noite?”.

“Felizmente. E acho que isso pode balançar o seu egoísmo, Henry. Você agora não está lidando com uma mulher.”

Quando Wiese entrou, uma hora depois, Henry viu que seus lábios estavam brancos como giz; o sangue parecia lhe ter subido todo à testa e havia uma dura expressão de confiança em seus olhos. Estava pronto para agir e não queria desperdiçar tempo. “Temos uma coisa para conversar, Marston. Estou com a lancha aqui, talvez seja o melhor lugar.”

Henry assentiu friamente. Cinco minutos depois, os três navegavam por Hampton Roads, sob intenso luar. Era uma noite tranqüila e, a meia milha da costa, Wiese reduziu a marcha e deixou o motor roncando baixinho na água prateada. Sua voz quebrou abruptamente o silêncio.

“Marston, vou lhe falar com toda a franqueza. Amo Choupette e não preciso pedir-lhe desculpas por isso. Já aconteceu antes e vai acontecer outras vezes. O único problema é a custódia dos filhos de Choupette. Você parece decidido a tomá-los da mãe”, as palavras de Wiese pareciam agora mais articuladas, como se saíssem de uma boca maior, “mas esqueceu-se de me incluir nos seus cálculos. Está sabendo que eu sou, neste momento, um dos homens mais ricos da Virgínia?”

“Ouvi dizer.”

“Pois bem, dinheiro é poder, Marston. Repito, dinheiro é poder.”

“Ouvi dizer isso também. Na verdade, você é um chato, Wiese.” Mesmo à luz da lua, Henry podia ver o rosto dele ficar escarlate de ódio.

“E vai ouvir de novo, Marston. Ontem você nos pegou de surpresa e eu não estava preparado para sua brutalidade para com Choupette. Mas hoje de manhã recebi uma carta de Paris que esclarece algumas coisinhas. É um atestado de um especialista em doenças mentais, declarando-o desequilibrado e incapaz de deter a custódia dos filhos. Esse especialista é o que o atendeu no seu colapso nervoso há quatro anos.”

Henry riu, incrédulo, e olhou para Choupette, como se esperasse que ela risse também, mas ela virou o rosto para o outro lado, ofegante. De repente, ele se deu conta de que Wiese falava sério — que, através de algum extraordinário suborno, tinha realmente conseguido aquele documento e pretendia usá-lo.

Por um momento, Henry reagiu como se tivesse levado uma bofetada. Ouviu sua própria voz dizendo: “É a coisa mais ridícula que já ouvi!” — e a voz de Wiese, calmamente: “Nem sempre eles dizem às pessoas que elas estão com problemas mentais”.

Henry queria rir, e, por um instante terrível, chegou a imaginar se não haveria uma sombra de verdade na alegação do documento. Virou-se para Choupette, mas, novamente, ela desviou os olhos.

“Como foi capaz de uma coisa destas, Choupette?”

“Quero meus filhos comigo”, ela começou a dizer, mas Wiese cortou-a:

“Se você tivesse sido ao menos razoável, Marston, não precisaríamos ter apelado para isto.”

“Está tentando me fazer acreditar que arranjou esse truque sujo ontem à tarde?”

“Gosto de estar preparado, no caso de as pessoas não serem razoáveis; na realidade, se você for mais flexível, esse atestado não precisará ser usado.” Sua voz pareceu, de repente, quase paternal, quase amável: “Seja esperto, Marston. Seu único trunfo é uma fanática obstinação; os meus são quarenta milhões de dólares. Deixe-me repetir, Marston, que dinheiro é poder. Você ficou fora tanto tempo que talvez tenha se esquecido disso. O dinheiro fez este país, construiu suas grandes e gloriosas cidades, criou suas indústrias e cortou-o com uma rede de estradas de ferro. É o dinheiro que doma as forças da natureza, cria as máquinas. Elas funcionam quando o dinheiro quer e só param quando o dinheiro quer”.

Quase interpretando aquilo como uma ordem, o motor emitiu um som roufenho e parou.

“O que foi isto?”, perguntou Choupette.

“Não foi nada.” Wiese pisou no acelerador. “Repito, Marston, que dinheiro... a bateria está arriada. Um minuto enquanto tento com a chave da ignição.”

Girou a chave durante mais de quinze minutos, mas o barco limitou-se a descrever um pequeno círculo na água.

“Choupette, abra essa gaveta atrás de você e veja se há um foguete dentro dela.”

Com voz de pânico, Choupette respondeu que não havia. Wiese olhou para a costa.

“Gritar seria inútil; estamos a meia milha. Vamos ter que esperar por aqui até que alguém apareça.”

“Não vamos esperar aqui”, disse Henry.

“Por que não?”

“Estamos sendo levados em direção à baía. Não está vendo? A correnteza está nos levando.”

“Impossível!”, gritou Choupette.

“Veja aquelas duas luzes na costa — acabamos de passar por uma delas. Viu?”

“Faça alguma coisa!”, ela gemeu, e depois explodiu em francês: “Ah, c’est épouvantable! N’est-ce pas qu’il y a quelque chose qu’on peut faire?”.

A correnteza agora parecia mais intensa, levando o barco em direção ao mar. Os vagos borrões de luzes de dois navios passaram por eles a enorme distância e, naturalmente, ignoraram seus gritos de socorro. Um farol também pareceu piscar, mas era impossível avaliar se passariam longe ou perto dele.

“Parece que nossos problemas se resolverão por si”, disse Henry.

“Que problemas?”, perguntou Choupette. “Quer dizer que não há nada a fazer? Como pode ficar sentado aí, esperando para morrer?”

“Talvez seja melhor para as crianças, afinal de contas.” Choupette começou a chorar, mas Henry preferiu ignorar. Uma idéia sombria começava a tomar forma em sua mente.

“Olhe aqui, Marston. Sabe nadar?”, perguntou Wiese.

“Sei. Mas Choupette, não.”

“Nem eu. Não quis dizer isso. Se você pudesse nadar até a costa e achar um telefone, a guarda-costeira viria nos salvar.”

Henry perscrutou a costa, escura e distante.

“É muito longe”, disse.

“Não pode tentar?”, perguntou Choupette.

Henry fez que não.

“É muito arriscado. Além disso, há a possibilidade de alguém vir nos apanhar.”

O farol passou por eles, longe, à esquerda, fora do alcance de seus gritos. Outro farol, o último, brilhava meia milha adiante.

“Quem sabe poderíamos ir à deriva até a França, como aquele sujeito, o tal de Gerbault”, brincou Henry. “Não, não, aí seríamos expatriados, e Wiese não gosta disso, não é, Wiese?”

Wiese, tentando desesperadamente ligar o motor, gritou-lhe:

“Veja o que consegue com isso!”

“Não entendo nada desse assunto”, respondeu Henry. “Além disso, estou cada vez mais interessado nessa solução que o destino nos propôs. Supondo que você fosse canalha o suficiente para usar aquele atestado médico e tomar meus filhos de mim, eu não teria muita vontade de continuar vivendo. Somos todos uns fracassos — eu, como chefe do meu lar; Choupette, como esposa e mãe; e você, Wiese, como ser humano. Nada de mais sermos despachados os três juntos.”

“Não é hora de discursos, Marston.”

“Como não? Agora é a sua vez: fale de novo a respeito de dinheiro e poder.”

Choupette sentou-se rígida; Wiese continuava lutando contra o motor, mordendo nervosamente os lábios.

“Não vamos passar muito perto daquele farol.” Uma idéia subitamente lhe ocorreu. “Não consegue nadar até ele, Marston?”

“Claro que ele conseguiria!”, gritou Choupette.

Henry tentou calcular a distância.

“Talvez. Mas não vou tentar.”

“Você tem que tentar!”

De novo ele fingiu ignorar o choro de Choupette. Ao mesmo tempo, viu que a hora tinha chegado.

“Tudo depende de uma coisinha”, disse rapidamente. “Wiese, tem papel e caneta?”

“Sim. Para quê?”

“Se escrever e assinar o que lhe vou ditar, nadarei até o farol e conseguirei socorro. Se não fizer isso, Deus me livre, mas seremos levados para o mar. É melhor decidir em menos de um minuto.”

“Qualquer coisa!”, gritou Choupette freneticamente. “Faça o que ele está dizendo, Charles! Ele está falando sério! Por favor, não espere mais!”

“Está bem, farei o que você quiser...”, a voz de Wiese tremia, “mas ande logo. O que quer? Uma declaração sobre as crianças? Eu lhe darei minha palavra de honra que...”

“Isto não é uma comédia, Wiese.” Cortou Henry selvagemente. “Comece a escrever!”

As duas páginas que Wiese escreveu, ditadas por Henry, declaravam que Wiese e Choupette abriam mão de todos os direitos sobre os filhos, para sempre. Quando ambos assinaram o documento, com mãos trêmulas, Wiese gritou:

“Agora vá, pelo amor de Deus, antes que seja tarde!”

“Só mais uma coisa: o atestado médico.”

“Não está comigo aqui!”

“É mentira!”

Wiese tirou-o do bolso.

“Escreva no verso quanto pagou por ele”, ordenou Henry, “e assine!”

Um minuto depois, de cuecas, e com os papéis protegidos numa bolsa de fumo encerada, amarrada ao pescoço, Henry mergulhou e nadou em direção à luz.

O primeiro choque com a água fria foi desagradável, mas, passado esse instante, o rio tornou-se morno e acolhedor. As próprias ondas pareciam encorajá-lo. Era a maior distância que já se propusera a nadar, mas a felicidade em seu coração dava-lhe forças. Bastava saber que estava salvo agora — e livre. Cada braçada era mais forte, ao ter certeza de que seus dois filhos, dormindo tranqüilos no hotel, estavam livres do que ele temia. Divorciada de seu próprio país, Choupette assimilara depressa certas características da vida americana que mais se identificavam com seu egoísmo. Teria sido insuportável para Henry que, protegida por uma decisão da Justiça, Choupette pudesse ficar com as crianças, valendo-se de uma farsa como a daquele atestado. Henry teria perdido seus filhos para sempre.

Virando-se para olhar, viu que o barco estava longe e o farol mais perto. Sentia-se muito cansado. Se se soltasse — e, no relaxar da tensão, sentiu um alarmante impulso de se soltar —, morreria depressa e sem dor, e todos os seus problemas de ódio e amargura desapareceriam. Mas o destino de seus filhos estava na bolsa de fumo ao redor do pescoço e, redobrando os esforços, concentrou todas as suas energias em direção ao farol.

Vinte minutos depois, ele tremia e pingava na sala de sinalização do farol, o qual transmitia para toda a guarda-costeira que uma lancha estava à deriva na baía.

“Não há muito perigo, desde que não caia uma tempestade”, disse o vigia. “A esta altura já devem ter pego uma corrente que os levará a Peyton Harbor.”

“Sim”, disse Henry, que freqüentara aquela costa nos últimos três verões, “eu sabia disso.”

IV.

Em outubro, Henry deixou os filhos internados na escola e embarcou no Majestic para a Europa. Tinha voltado para os Estados Unidos como quem volta para a própria mãe, e recebera até mais do que pedira — dinheiro, libertação de uma situação intolerável e novas forças para lutar por si. Contemplando a cidade que sumia e a costa que se afastava, de seu posto de observação no convés do Majestic, teve uma sensação de gratidão e alegria por saber que a América existia, e que, debaixo dos horrorosos detritos da indústria, a terra rica ainda pulsava, fértil e luxuriante; e que, no coração de seu povo ingovernável, a velha fé e generosidade se mantinham, às vezes convertendo-se em excesso e fanatismo, mas indomável e invencível. Naquele momento, uma geração perdida estava no comando, mas parecia-lhe que os homens que chegavam, os que haviam lutado na guerra, eram melhores; e sua antiga convicção de que a América era um estranho acidente, um feliz acaso histórico, desfez-se para sempre. O que havia de melhor na América era o que havia de melhor no mundo.

Ao se dirigir à cabine do comissário de bordo, esperou que uma passageira desocupasse o guichê. Quando ela se virou, ambos gritaram de surpresa e ele viu que era a moça.

“Olá!”, ela disse. “Que bom saber que você está aqui! Vim perguntar ao comissário quando seria aberta a piscina. O bom deste navio é que sempre se pode nadar.”

“Por que gosta tanto de nadar?”, ele perguntou.

“Você sempre me pergunta isso.” Ela riu.

“Talvez você me contasse, se jantássemos juntos esta noite.”

Mas quando se despediram, descobriu que ela nunca saberia lhe contar — nem ela nem ninguém. A França era a terra, a Inglaterra era o povo, mas a América era difícil de definir — eram os túmulos da Guerra Civil, os rostos cansados e nervosos de seus grandes homens, os rapazes morrendo no Oeste por uma frase que já não queria dizer nada antes mesmo que seus corpos estrebuchassem. Era um querer do coração.

(1929)