Uma página virada

Era o primeiro dia agradável para que se pudesse almoçar ao ar livre no Bois de Boulogne. As flores dos castanheiros pendiam sobre as mesas e caíam petulantes sobre a manteiga e o vinho. Julia Ross comeu algumas com o pão enquanto ouvia os peixes dourados ondulando na piscina e os pardais chilreando sobre uma mesa vazia. Podia-se ver todo mundo ali de novo — os garçons, com suas caras profissionais; as francesas, cheias de olhos e bocas; Phil Hoffman, sentado à sua frente com o coração equilibrado num garfo; e aquele homem extraordinariamente bonito que acabara de surgir no terraço.

... o poder transparente da tarde.

O hálito leve da umidade

Cercando as flores em botão.

Julia chegou a tremer, mas controlou-se. Por pouco não saiu aos saltos, cantando e empurrando o maître sobre o canteiro de lírios. Ficou ali sentadinha, como uma moça bem-comportada de vinte e um anos, apenas ligeiramente abalada.

Phil levantou-se com o guardanapo na mão: “Olá, Dick”.

“Oi, Phil!”

Era o homem lindo. Phil foi até ele e falaram coisas de que Julia só ouviu pedaços.

“... vi Carter e Kitty na Espanha...”

“... choveu em Bremen...”

“... aí fui para...”

O homem seguiu seu caminho entre as mesas e Phil sentou-se de novo.

“Quem é?”, ela perguntou.

“Um amigo — Dick Ragland.”

“Sem dúvida, é o homem mais bonito que já vi na vida.”

“É, ele é bonito”, concordou Phil sem entusiasmo.

“Bonito?! Ele é um arcanjo, ele é um leão da montanha, dá vontade de comer inteiro! Por que não me apresentou?”

“Porque ele é o americano com pior fama em Paris.”

“Bobagem. Aposto que não passam de intrigas — um bando de maridos morrendo de ciúme porque suas mulheres não tiram os olhos dele. Sou capaz de jurar que nunca faz nada na vida além de comandar cargas de cavalaria e salvar criancinhas de afogamentos.”

“O fato é que ninguém o recebe em lugar nenhum — e não por uma razão, mas por umas mil.”

“Que razões?”

“Todas. Bebedeiras, mulheres, prisões, escândalos, vadiagem, matar alguém com um automóvel...”

“Não acredito em nada disso”, disse Julia com firmeza. “Ele é tremendamente atraente. E você falou como se também achasse...”

“Realmente”, respondeu Phil com relutância, “como a maioria dos alcoólatras, ele tem um certo charme. Se aprontasse suas confusões sozinho e em outro lugar, tudo bem, mas bem no colo das pessoas? E quando alguém tenta recuperá-lo e faz um espalhafato a respeito, ele entorna sopa no decote da anfitriã, beija a copeira e desmaia na casinha do cachorro. Já fez isso várias vezes. Agora cansou todo mundo, não sobrou ninguém.”

“Sobrei eu”, disse Julia.

Sobrava Julia, que era um pouco demais para qualquer um e que às vezes lamentava ter nascido tão bem-dotada. Há um preço a pagar por tudo que se soma à beleza — quer dizer, as qualidades que costumam substituir a beleza passam a ser defeitos quando somadas à beleza. O brilhante olhar de gazela de Julia já devia ser bastante, sem o raio de inteligência que ele continha; seu irreprimível senso de ridículo revelava-se no relevo da boca; e a perfeição de seu corpo seria ainda mais evidente se ela não mantivesse a postura rígida herdada da disciplina imposta pelo pai.

Rapazes igualmente perfeitos tinham-lhe aparecido diversas vezes trazendo presentes, mas quase sempre com um ar de que já se sentiam completos e acabados, sem espaço para maiores aperfeiçoamentos. Por outro lado, ela descobrira que os homens que realmente admirava tinham sido menos que perfeitos na juventude, só que ela era ainda muito nova para apreciar isso. Phil Hoffman, sentado à sua frente, era o exemplo típico: com tudo para ser um brilhante advogado, praticamente a seguira até Paris. Gostava dele, mais talvez do que de qualquer outro que conhecia, mas agora ele se revelava tão repressor como o filho de um chefe de polícia.

“Estou indo para Londres esta noite e, na quarta-feira, tomo o navio”, ele disse. “Enquanto isso, você ficará na Europa todo o verão, com um namorado novo por semana.”

“Depois de uma série de observações como essa, acho bom fazer jus à fama”, disse Julia. “Apenas para não desapontá-lo, por que não me apresenta ao rapaz?”

“Nas minhas últimas horas aqui!”, gemeu Hoffman.

“Mas eu lhe dei três dias para tentar alguma tática que funcionasse. Seja civilizado e convide-o a tomar café conosco.”

Quando Dick Ragland juntou-se a eles, Julia respirou fundo de prazer. Era um belo homem, louro e queimado de sol, com um rosto cheio de uma particular luminosidade. Sua voz era suave e intensa, parecendo às vezes tremer um pouco, numa espécie de alegre desespero; olhava para Julia de um jeito que a fazia sentir-se irresistível. Durante meia hora, enquanto conversavam entre o aroma das violetas, dos miosótis e dos amores-perfeitos, seu interesse por ele cresceu. Até gostou quando Phil disse:

“Acabo de lembrar que preciso pegar meu visto na embaixada inglesa. Vou ser obrigado a deixar vocês dois, pombinhos apaixonados, juntos, mesmo sabendo que isso é um erro. Posso contar com você na Gare St. Lazare às cinco da tarde para o bota-fora?”

Olhou para Julia como que esperando que ela dissesse: “Vou com você”. Julia sabia perfeitamente que não era aconselhável ficar sozinha com aquele homem, mas ele a fazia rir, e ela não havia achado coisa nenhuma divertida ultimamente. Assim, preferiu dizer: “Vou ficar mais um pouco. Está ótimo aqui!”.

Quando Phil foi embora, Dick Ragland sugeriu um bom champanhe.

“Ouvi dizer que você tem uma péssima reputação”, ela disse impulsivamente.

“Terrível. Ninguém mais me convida para nada. Quer que eu ponha meu bigode postiço?”

“Que estranho!”, continuou Julia. “Como consegue não morrer de fome? Sabe que Phil me advertiu a seu respeito antes de apresentá-lo a mim? Eu poderia perfeitamente ter me recusado.”

“E por que não recusou?”

“Achei-o tão bonito que seria uma pena.”

O rosto dele revelou o vazio; Julia sentiu que aquela observação já lhe havia sido feita tantas vezes que não lhe dizia mais nada.

“Nem é da minha conta”, ela tentou corrigir. Ainda não havia percebido que o fato de ele ser um rejeitado é que aumentava seu fascínio por ele, e não a sua dissipação, porque, nunca a tendo conhecido, esta era uma espécie de abstração, mas que fazia dele alguém tão sozinho. Um ser tão diferente prometia-lhe o inesperado, prometia-lhe aventuras.

“Vou lhe dizer uma coisa”, ele disse. “Vou parar de beber para sempre no dia 5 de julho, quando eu fizer vinte e oito anos. Não acho mais graça na bebida. Ficou claro para mim que não sou dessas poucas pessoas que podem beber.”

“Tem certeza de que vai conseguir?”

“Sempre cumpro o que digo. Além disso, estou voltando para Nova York a fim de trabalhar.”

“Fico feliz em saber disso.” Era mentira, mas ela deixou escapar.

“Quer outro bom champanhe?”, sugeriu Dick. “Ficará mais feliz ainda.”

“Então vai parar mesmo no seu próximo aniversário?”

“Espero que sim. Nesse dia estarei em alto-mar, no Olympic.”

“Que coincidência! Eu também!”, ela exclamou.

“Então poderá ver. Estarei em forma para o concerto no navio.”

Os garçons começaram a limpar as mesas. Julia achou que era hora de ir, mas não tolerava a idéia de deixá-lo ali, com aquele sorriso tão triste. Pensou, maternalmente, que devia dizer qualquer coisa para ajudá-lo a manter sua resolução.

“Por que você bebe tanto? Talvez haja alguma razão obscura, que nem você conheça.”

“Ah, sei muito bem como começou.”

Passou uma hora contando. Fora para a guerra aos dezessete anos e, quando voltou, ser calouro em Princeton não parecia algo tão emocionante. Por isso, foi para a Boston Tech e, dali, resolveu enfrentar a Beaux Arts em Paris. Foi lá que algo lhe aconteceu.

“Quando tive algum dinheiro para gastar, descobri que, com uns poucos drinques, ficava descontraído e agradava mais às pessoas. Isso me virou a cabeça. Foi então que comecei a beber muito mais para ficar sempre desse jeito e todo mundo pensar que eu era maravilhoso. Naturalmente, as pessoas começaram a me achar meio chato e briguei com a maioria dos meus amigos, até que encontrei uma nova turma. Mas às vezes eu pensava: ‘O que estou fazendo com esses caras?’. Eles percebiam e não gostavam. Finalmente, quando um táxi no qual eu estava atropelou e matou um sujeito, fui processado. Foi um acidente, mas os jornais exploraram o caso e, mesmo depois que ele acabou, a impressão era a de que eu tinha matado o homem. Portanto, nos últimos cinco anos, a única coisa que tenho a apresentar é o tipo da reputação que faz com que as mães tranquem as filhas nos quartos quando sabem que estou hospedado no mesmo hotel.”

Um garçom impaciente adejava por ali, e ela olhou para o relógio.

“Puxa, temos que nos despedir de Phil às cinco. Passamos a tarde toda aqui!”

No caminho para a Gare St. Lazare, ele perguntou: “Posso vê-la de novo? Ou acha melhor não?”.

Ela devolveu seu olhar comprido. Não havia sinal de dissipação no rosto dele, nas suas bochechas coradas nem em seu andar firme.

“Estou sempre bem na hora do almoço”, ele acrescentou, como um inválido.

“Não estou preocupada com isso”, ela riu. “Vamos almoçar depois de amanhã.”

Subiram correndo os degraus da Gare St. Lazare, apenas a tempo de ver o último vagão da Golden Arrow desaparecer em direção ao canal. Julia sentiu-se culpada, porque Phil tinha vindo de tão longe para estar com ela.

Como uma espécie de compensação, foi ao apartamento onde vivia com sua tia e tentou escrever uma carta para ele, mas Dick Ragland intrometia-se em seus pensamentos. Pela manhã, o efeito do rosto de Dick em sua lembrança dissipara-se um pouco; estava até inclinada a lhe escrever um bilhete, dizendo que não queria mais vê-lo. No entanto, ele fora tão pouco incisivo que aquilo a impressionara. Ao meio-dia e meia do dia marcado, postou-se à espera.

Julia não dissera nada a sua tia, a qual estava recebendo amigas para o almoço e talvez mencionasse o nome dele — era estranho ir almoçar com alguém cujo nome não podia ser mencionado. Dick estava atrasado e ela esperava na sala, pouco atenta ao alarido das convidadas durante o almoço. À uma hora, foi atender à campainha.

Ao abrir a porta, viu um homem que pensara nunca ter visto antes. Era um rosto mortalmente pálido, barbado, chapéu esmagado sobre a cabeça, colarinho sujo, gravata desgrenhada. Mas, no momento em que percebeu a figura de Dick Ragland, tudo mais deixou de importar: o que importava era a mudança na expressão dele. Todo o seu rosto era um prolongado ar de escárnio: as pálpebras mal se mantinham sobre os olhos vidrados, os lábios caíam com um esgar e seu queixo parecia feito de uma parafina que houvesse escorrido — um rosto que inspirava e expressava repulsa.

“Oi”, ele disse.

No primeiro momento, ela recuou. Depois, diante do súbito silêncio da sala e inspirada por esse silêncio, ela quase o empurrou para fora, saiu e fechou a porta atrás de si.

“Ah-h-h!”, disse ela, aos poucos.

“Não vou para casa desde ontem. Fui a uma festa e...”

Repugnada, agarrou-o pelo braço e desceu com ele as escadas, passando pela mulher do concièrge, que os espiou por sua janelinha. No térreo, saíram à plena luz do sol da Rue Guynemer.

Exposto ao frescor da primavera dos Jardins de Luxemburgo, ele parecia ainda mais grotesco. Assustava-a; ela procurou desesperadamente um táxi, mas o único que dobrou a esquina da Rue de Vaugirard fez que não ao seu sinal.

“Onde vamos almoçar?”, ele perguntou.

“Você não está em condições de almoçar. Não está vendo? Precisa ir para casa e dormir.”

“Estou bem. Mais um drinque e ficarei ótimo.”

Outro táxi parou quando ela acenou.

“Vá para casa e durma. Você não está em condições de ir a lugar nenhum.”

Ele forçou a vista e viu-a subitamente como uma pessoa nova, fresca, adorável, diferente do mundo turbulento e enfumaçado em que passara as últimas horas. Uma fugidia corrente de razão fluiu em seu íntimo.

“Você tem razão. Desculpe.”

“Onde você mora?”

Ele deu o endereço e atirou-se num canto do assento, o rosto lutando ainda contra a realidade. Julia bateu a porta.

Quando o táxi arrancou, ela atravessou correndo a rua em direção ao jardim. Sentia-se como se alguém a estivesse seguindo.

II.

Por coincidência, ela própria atendeu quando ele telefonou às sete daquela noite. A voz dele estava tensa e trêmula:

“Acho que não adianta me desculpar pelo que aconteceu esta manhã. Não sabia o que estava fazendo, embora isso não seja desculpa. Mas, se pudesse vê-la por uns minutos amanhã — não mais que alguns minutos — talvez lhe pudesse dizer o quanto lamento...”.

“Estarei ocupada amanhã.”

“Bem, sexta-feira então, ou qualquer outro dia.”

“Desculpe, mas estarei ocupada a semana inteira.”

“Não pretende me ver nunca mais?”

“Senhor Ragland, não vejo por que continuar com isso. O que aconteceu hoje de manhã foi um pouco demais para mim. Lamento muito. Espero que esteja se sentindo melhor. Adeus.”

Ela o tirou completamente do pensamento. Nunca poderia ter associado a má fama dele a tal espetáculo — para ela, um bêbado era alguém que bebia champanhe até altas horas e voltava para casa cantando. Aquele papelão ao meio-dia era outra coisa. Julia não queria mais saber.

Enquanto isso, houve outros homens com quem ela almoçou no Ciro’s e dançou no Bois. Houve também uma recriminativa carta que Phil enviou da América. Gostou um pouco mais de Phil, porque ele provara ter razão a respeito daquele assunto. Passaram-se duas semanas e ela já teria esquecido Dick Ragland se não fosse por ouvir seu nome mencionado com desprezo em uma ou outra conversa. Era evidente que ele já fizera coisas como aquela anteriormente.

Uma semana antes de embarcar, topou com Dick no escritório da White Star Line. Estava tão bonito quanto antes — ela mal podia acreditar. Tinha um cotovelo fincado sobre o balcão, o resto do corpo rígido e as luvas amarelas tão impecáveis quanto seus olhos claros e brilhantes. Sua forte personalidade afetara o funcionário, que o atendia com total reverência; as estenógrafas trocavam olhares sugestivos. Foi então que ele viu Julia; ela o cumprimentou em silêncio e, com uma rápida mudança de expressão, ele tirou o chapéu.

Ficaram juntos diante do balcão, em opressivo silêncio, por alguns momentos.

“Não é uma chatice tudo isto?”, ela perguntou.

“Também acho”, ele respondeu. “Vai no Olympic?”

“Vou.”

“Pensei que tivesse mudado de navio.”

“Claro que não”, disse ela friamente.

“Pensei em mudar; aliás, vim aqui para isso.”

“Isso é absurdo.”

“Talvez detestasse me ver. Podia ficar enjoada quando nos cruzássemos no navio.”

Ela sorriu. Ele tentou se aproveitar:

“Melhorei um pouco desde a última vez que me viu.”

“Prefiro não falar sobre isso.”

“Está bem, então, mas você melhorou! Acho que nunca vi uma mulher tão bem vestida!”

O que, obviamente, era falso, mas ela gostou do elogio.

“Que tal”, disse ele, “tomarmos um café aqui perto, para nos recuperarmos desta provação?”

Seria uma fraqueza da parte dela deixar-se submeter. Mas era como estar sob o encanto de uma cobra.

“Não sei se tenho tempo.” Uma expressão terrivelmente tímida e vulnerável passou pelo rosto dele, repercutindo imediatamente no coração dela. “Está bem”, ouviu-se dizendo, chocada.

Sentados a uma mesa de calçada à luz do sol, nada havia nele que lembrasse aquele dia horrível apenas duas semanas antes. O médico e o monstro. Estava gentil, encantador e divertido. E, como antes, fazia-a sentir-se tão atraente!

“Já parou de beber?”, ela perguntou.

“Não antes do dia cinco.”

“Ah!”

“Nunca disse que pararia antes. Mas, nesse dia, vou parar.”

Quando Julia se levantou para ir embora, balançou a cabeça negativamente quando ele sugeriu um novo encontro.

“Nos veremos no navio. Depois que você completar vinte e oito anos.”

“Está bem. Estou apenas sendo punido por algo horrível que devo ter feito à única garota pela qual me apaixonei na vida.”

Ela o viu de passagem no primeiro dia a bordo, e seu coração não a deixou em paz, quando se deu conta de quanto o queria. Não importava seu passado, nem o que tivesse feito — o que não significava que o deixaria saber disso —, mas ele a mobilizava quimicamente mais do que qualquer outra pessoa que havia conhecido. Comparados a ele, todos os outros não tinham a mínima importância.

Ele se tornou rapidamente conhecido no navio e ela ouviu dizer que haveria uma festa na noite dos seus vinte e oito anos. Julia não foi convidada; quando se encontravam, falavam-se cordialmente, nada mais.

No dia seguinte à festa, ela o viu estirado numa cadeira do convés, pálido e exangue. Havia rugas ao redor de seus olhos, e sua mão tremia ao pegar a xícara de bouillon. Continuava lá no fim da tarde, visivelmente sofrendo. Ao passar por ele pela terceira vez, Julia não resistiu a falar com ele:

“Começou a nova era?”

Ele fez um frágil esforço para se levantar, mas ela dispensou-o do sacrifício e sentou-se na cadeira a seu lado.

“Você parece cansado.”

“Apenas um pouco nervoso. É o primeiro dia em cinco anos em que ainda não bebi nada.”

“Daqui a pouco se sentirá melhor.”

“Eu sei”, disse amargamente.

“Não desista.”

“Não vou desistir.”

“Posso ajudá-lo de alguma forma? Quer um refrigerante?”

“Não suporto refrigerantes”, respondeu, irritado. “Obrigado.”

Julia levantou-se. “Sei que prefere ficar sozinho. As coisas lhe parecerão melhores amanhã.”

“Não vá embora — se puder me tolerar.”

Julia sentou-se de novo.

“Cante alguma coisa. Sabe cantar?”, ele perguntou.

“O que quer que eu cante?”

“Qualquer coisa triste — um blues, por exemplo.”

Ela cantou “This is how the story ends”, de Libby Holman, com uma voz grave e triste.

“Lindo. Cante outra coisa. Ou cante isso de novo.”

“Está bem. Se quiser, posso cantar para você a noite inteira.”

III.

No segundo dia em Nova York, ele telefonou para ela.

“Senti sua falta”, ele disse. “Sentiu a minha?”

“Acho que sim”, ela respondeu com relutância.

“Muito?”

“Lembrei muito de você. Sente-se melhor?”

“Estou bem agora. Apenas um pouco nervoso, mas vou começar a trabalhar amanhã. Quando posso vê-la?”

“Quando quiser.”

“Esta noite então. Olhe... diga aquilo de novo.”

“O quê?”

“Que acha que sentiu a minha falta.”

“Acho que senti”, disse Julia obedientemente.

“Que sentiu a minha falta”, ele completou.

“Acho que senti a sua falta...”

“Vindo de você, parece música.”

“Até logo, Dick.”

“Até logo, Julia querida.”

Ela ficou em Nova York dois meses em vez das duas semanas que planejara, porque ele não a deixava ir embora. Trocou a bebida pelo trabalho durante o dia, mas, depois do expediente, seu mundo era Julia.

Às vezes ela sentia ciúmes de seu trabalho, quando ele telefonava dizendo que estava muito cansado para ir ao teatro. Sem beber, a vida noturna passara a significar pouco ou nada para ele — algo sem sentido ou interesse. Para Julia, que nunca bebia, a noite era o próprio estímulo — a música, os vestidos e o belo casal que eles faziam quando dançavam juntos. No começo eles se encontravam com Phil Hoffman de vez em quando, mas Julia achou que ele reagiu mal ao namoro e, com isso, pararam de procurá-lo.

Alguns incidentes desagradáveis aconteceram. Uma antiga colega, Esther Cary, perguntou a Julia se ela conhecia a fama de Dick Ragland. Em vez de se irritar, Julia apresentou-a a Dick e adorou a facilidade com que os preconceitos de Esther desapareceram. Houve outros pequenos aborrecimentos, mas, felizmente, todas as arruaças de Dick tinham se limitado a Paris e, em Nova York, soavam distantes e exageradas. Os dois se amavam profundamente agora, e a lembrança daquela manhã desaparecia lentamente da memória de Julia. Mesmo assim, ela queria ter certeza.

“Se as coisas continuarem correndo desse jeito pelos próximos seis meses, ficaremos noivos. E, dentro de outros seis meses, nos casaremos.”

“É muito tempo”, ele resmungou.

“Mas houve cinco anos antes disso”, respondeu Julia. “Confio em você do fundo do coração, mas algo me diz para esperar. Lembre-se, estou decidindo pelos meus filhos.”

Cinco anos passados e perdidos, ele pensou.

Em agosto, Julia foi à Califórnia para passar dois meses com sua família. Queria ver como Dick se sairia sozinho. Escreviam-se diariamente, e as cartas dele alternavam estados de euforia, depressão, desânimo e esperança. Estava indo bem no emprego. À medida que ia recuperando a prática, o tio passava a confiar nele para valer, mas nada o fazia esquecer sua Julia. Foi quando um certo tom de desespero começou a aflorar que ela resolveu antecipar em uma semana sua volta a Nova York.

“Ah, que bom ter você de volta!”, ele exclamou, enquanto saíam abraçados da Grand Central Station. “Tem sido horrível. Pelo menos uma meia dúzia de vezes quase fiz uma loucura, mas então pensava em você. E você tão longe!”

“Querido, você está pálido e cansado. Tem trabalhado demais.”

“Não, é que a vida tem sido vazia sem você. Quando vou para a cama, minha cabeça não pára. Não podemos nos casar já?”

“Não sei. Vamos ver. Sua Julia chegou e nada mais importa.”

Uma semana depois, a depressão de Dick passou. Quando o via triste, Julia tratava-o como criança, deitando a cabeça dele em seu peito; mas ela gostava mais quando ele se mostrava confiante e a fazia rir e sentir-se segura. Julia alugara um apartamento com outra moça e estava estudando biologia em Columbia. Quando chegou o outono, os dois passaram a ir juntos aos jogos de futebol e às comédias musicais, a caminhar na neve no Central Park e, várias vezes por semana, ficavam longas noites ao pé do fogo no apartamento dela. Mas o tempo se arrastava e ambos estavam impacientes. Pouco antes do Natal, uma visita já não muito familiar bateu à sua porta — Phil Hoffman. Era a primeira vez que Julia o via em muitos meses. Nova York, com seus muitos escaninhos independentes, dificulta os encontros até de amigos íntimos; no caso de relações estremecidas, esses encontros são ainda mais fáceis de evitar.

Sentiam-se estranhos um para o outro. Desde que ele demonstrara todo o seu ceticismo a respeito de Dick, ela passara a encará-lo, automaticamente, como inimigo. Por outro lado, achou que Phil progredira; aparadas algumas arestas de sua personalidade, tornara-se um promissor advogado e demonstrava uma crescente confiança em sua profissão.

“Quer dizer que vai se casar com Dick?”, ele perguntou. “Quando?”

“Em breve. Quando mamãe vier a Nova York.”

Ele sacudiu a cabeça enfaticamente. “Julia, não se case com Dick. Escute, não se trata de ciúme — sei que perdi essa parada —, mas parece loucura uma garota como você dar um mergulho cego num rio cheio de pedras. Acha que as pessoas mudam tanto? Algumas vezes costumam dar uma parada ou então se viciarem em outra coisa, mas não conheço ninguém que tenha se curado.”

“Dick está curado.”

“Talvez. Mas a dúvida sempre continua. Se ele fosse feio e você gostasse dele, eu diria vá em frente. Posso estar errado, mas é tão óbvio que o fascinante nele para você é aquele rosto e aquelas boas maneiras.”

“Você não o conhece”, Julia respondeu protetoramente. “Ele é diferente comigo. Você não sabe como ele é gentil e responsável. Você não está sendo mesquinho?”

“Hummm.” Phil pensou por um momento. “Gostaria de revê-la daqui a alguns dias. Ou talvez seja melhor eu falar com Dick.”

“Deixe Dick em paz”, ela gritou. “Ele já tem muito com que se preocupar sem ninguém o aborrecendo. Se você fosse amigo dele, tentaria ajudá-lo, em vez de vir falar comigo pelas suas costas.”

“Sou seu amigo em primeiro lugar.”

“Dick e eu somos uma única pessoa agora.”

Mas, três dias depois, Dick veio vê-la numa hora em que, normalmente, deveria estar no escritório.

“Tive de vir aqui”, disse. “Phil Hoffman está ameaçando me denunciar.”

Ela pensou assustada: Será que ele voltou a beber?

“É a respeito daquela moça que você me apresentou no verão, Esther Cary, lembra? Você me pediu que eu fosse amável com ela.”

O coração de Julia passou a bater devagar.

“Quando você foi para a Califórnia, comecei a me sentir sozinho e a procurei. Ela gostou de mim e, durante algum tempo, passamos a sair juntos. Quando você voltou, rompi com ela. Foi um pouco difícil, eu não havia notado que ela estava tão envolvida.”

“Sei.” A voz de Julia soava distante.

“Tente compreender. Aquelas noites horríveis, sozinho. Acho que, se não fosse por Esther, eu teria voltado a beber. Claro que eu nunca a amei — a única pessoa que amo é você —, mas precisava de alguém que gostasse de mim.”

Tentou enlaçá-la, mas sentiu seu corpo gelado e recuou.

“Quer dizer que qualquer mulher teria servido”, disse Julia. “Não importava qual.”

“Não!”, ele gritou.

“Passei todo aquele tempo fora apenas para deixá-lo caminhar com seus próprios pés e recuperar o respeito próprio.”

“Só amo você, Julia.”

“Mas qualquer mulher podia ajudá-lo. Não precisa realmente de mim, não é?”

O rosto de Dick revelava aquele jeito vulnerável que Julia já tinha visto tantas vezes antes; ela se sentou no braço da cadeira dele e passou a mão por seu rosto.

“O que você tem a me oferecer?”, ela perguntou. “Pensei que tivesse acumulado força ao derrotar sua fraqueza. O que tem a me oferecer agora?”

“Tudo que tenho.”

“Nada. Só a sua beleza — e o maître daquele restaurante de ontem também tinha isso.”

Conversaram durante dois dias e nada decidiram. Às vezes ela o puxava para si e procurava aqueles lábios que amava tanto, mas seus braços pareciam fechar-se sobre palha.

“Vou sumir por uns tempos para você pensar melhor”, ele disse, quase desesperado. “Não consigo imaginar a vida sem você, mas não creio que possa se casar com um homem em quem não confia ou não acredita. Meu tio pediu que eu vá a Londres tratar de um negócio...”

Na noite de sua partida, a despedida no navio foi triste. O que a consolava era saber que não era uma imagem de força que a estava deixando; ela continuaria tão forte quanto antes sem ele. Mas, quando as luzes do píer caíram sobre o rosto de Dick, uma terrível sensação de vazio abateu-se sobre ela, como que querendo dizer: “Não importa, querido, vamos tentar de novo”.

Mas tentar o quê? Era humano arriscar entre ganhar e perder, mas arriscar naquele jogo desesperado no qual perder significaria o desastre...

“Ah, Dick, não se deixe vencer. Volte para mim!”

“Até breve, querida.”

Quando ela o viu pela última vez, o fósforo com que ele acendeu um cigarro iluminou o seu perfil como o de um camafeu.

IV.

Phil Hoffman era quem deveria estar a seu lado no fim, como no começo. Ele lhe deu a notícia, tão cuidadosamente quanto possível. Chegou ao apartamento dela às oito e meia, jogou fora o jornal que encontrou à sua porta e contou-lhe: Dick Ragland desaparecera em alto-mar.

Depois que Julia passou pelo primeiro e violento espasmo de dor, ele se tornou propositadamente um pouco cruel.

“Dick se conhecia. Sua força de vontade acabara; não queria mais viver. Olhe, Julia, apenas para convencê-la de que não tem do que se culpar, vou lhe dizer uma coisa: há quatro meses, Dick quase não aparecia no escritório — desde que você foi para a Califórnia. Só não foi despedido por causa do tio; o tal negócio do qual ele fora tratar em Londres não tinha a menor importância. Quando seu entusiasmo inicial acabou, ele entregou os pontos.”

Ela o olhou agressivamente: “Mas ele não voltou a beber, voltou? Estava bebendo?”.

Phil hesitou por uma fração de segundo: “Não. Não voltou a beber. Manteve a promessa — pelo menos isso”.

“Então foi assim”, ela disse. “Manteve a promessa e morreu para cumpri-la.”

Phil ficou em silêncio, sentindo-se mal.

“Ele fez o que disse que iria fazer, mesmo que partisse o seu coração”, ela continuou, chorando. “Como a vida é cruel — tão cruel que não perdoa ninguém. Ele era tão corajoso!”

Phil ficou satisfeito por ter se livrado do jornal que falava da farra de Dick no bar do navio, na noite de sua morte — uma das muitas farras de que participara nos últimos meses. Sentia-se aliviado por aquilo ter acabado, porque a fraqueza de Dick ameaçava a mulher que ele, Phil, amava. Lamentava pelo amigo, mesmo compreendendo que seria inevitável para Dick canalizar seu desajuste na vida para uma tragédia ou outra, mas sentia-se sábio por tê-la deixado com o sonho de que escapara ao naufrágio.

Houve um momento difícil, um ano mais tarde, pouco antes de se casarem, quando ela disse:

“Você compreende o sentimento que tenho e sempre terei por Dick, não é, Phil? Não apenas porque ele era tão bonito, mas também porque eu acreditava nele — e, de certa forma, estava certa. Era desses que quebram, mas não se curvam; não tinha salvação, mas era uma boa pessoa. Meu coração me disse isso quando o vi pela primeira vez.”

Phil franziu o cenho, mas não falou nada. Talvez houvesse mais verdade naquilo do que ambos pudessem imaginar. Melhor deixar que tudo ficasse para trás, nas profundezas do mar ou do coração de Julia.

(1931)