Último beijo

Estar por cima era uma grande sensação. Podia-se ter certeza de que tudo daria certo, de que os refletores cairiam sobre belas mulheres e homens importantes, de que os pianos emitiriam as notas certas e de que tantos lábios jovens e cantando dirigiam-se a corações felizes. Todos aqueles lindos rostos, por exemplo, deviam estar completamente felizes.

Foi então que, em meio a uma rumba, passou pela mesa de Jim um rosto decididamente infeliz. Antes mesmo que ele chegasse a essa conclusão, o rosto desapareceu, permanecendo porém em sua retina por alguns segundos. Era o rosto de uma garota quase tão alta quanto ele, com olhos castanhos e opacos e uma tez delicada como uma louça chinesa.

“Pronto”, disse a anfitriã, seguindo seu olhar. Ela suspirou: “Aconteceu em apenas um segundo. E eu, que venho tentando há anos...”.

Jim pensou em responder:

— Mas você já teve a sua chance — três maridos! E eu? Estou com trinta e cinco anos e ainda tentando encontrar em cada mulher um amor perdido na infância, ainda me apaixonando pelas semelhanças e não pelas diferenças.

Quando as luzes voltaram a diminuir, ele perambulou entre as mesas até o salão de entrada. De vez em quando era saudado por amigos — mais que os de costume, porque seu contrato como produtor havia sido noticiado pelo Hollywood Reporter naquela manhã. Jim, porém, já dera passos parecidos antes e estava habituado àquilo. Era uma festa beneficente e, no bar, pronto para entrar em cena, estava um homem que imitava papel de parede, e Bob Bordley, fazendo-se de homem-sanduíche, mostrava um cartaz que dizia:

Às 22:00
no Hollywood Bowl
SONJA HEINE
estrelando em
HOT SOUP

Nas proximidades, Jim viu o produtor que ele substituiria no dia seguinte tomando um inesperado drinque com o agente que provocara sua ruína. Ao lado do agente, a garota de rosto triste que dançara a rumba.

“Jim”, gritou o agente. “Quero que conheça Pamela Knighton, sua futura estrela.”

Ela se virou para ele com ansiedade profissional. O agente lhe cochichara: “Acorde! Esse cara é importante!”.

“Pamela agora está comigo”, disse o agente. “Estou pensando em mudar o nome dela para Boots.”

“Pensei que você tinha dito Toots”, riu a garota.

“Toots ou Boots. É por causa do som. Oots! Pamela é inglesa. Seu nome verdadeiro é Sybil Higgins.”

Pareceu a Jim que o produtor destituído o olhava de um jeito indefinível — não com ódio nem inveja, mas com um profundo e curioso espanto, como que perguntando: “Por quê? Por quê?”. Perturbado por isso, Jim surpreendeu-se tirando a inglesa para dançar. Quando se viram abraçados na pista de dança, sua euforia do começo da noite voltou.

“Hollywood é um bom lugar”, disse, como se antecipando a qualquer crítica dela. “Você vai gostar. A maioria das inglesas se dá bem aqui — talvez por não esperarem muito. Tenho tido sorte trabalhando com inglesas.”

“Você é diretor?”

“Já fui de tudo — de agente para cima. Assinei um contrato de produção que começa amanhã.”

“Também gosto daqui”, ela disse, depois de um minuto. “Não se pode evitar uma certa expectativa. Mas, se nada acontecer, posso voltar à minha profissão de professora.”

Jim recuou para olhá-la melhor. Parecia-se tão pouco com uma professora — mesmo aquelas mostradas nos faroestes — que ele riu. Mas, ainda uma vez, viu algo triste e perdido no triângulo formado por seus lábios e olhos.

“Está com quem esta noite?”, ele perguntou.

“Com Joe Becker”, ela respondeu, dizendo o nome do agente. “Eu e mais três garotas.”

“Olhe, tenho que sair durante meia hora, para encontrar um sujeito. Não, não é um truque. Quer vir comigo para me fazer companhia e respirar um pouco de ar fresco?”

Ela fez que sim.

No caminho, passaram pela anfitriã, que olhou fixo para a garota e balançou a cabeça ligeiramente para Jim. Lá fora, sob a noite estrelada da Califórnia, ele gostou pela primeira vez de seu carro novo, principalmente por não precisar dirigir. As ruas por onde passaram estavam tranqüilas àquela hora e a limusine deslizou silenciosamente pela escuridão. A srta. Knighton esperou que ele falasse.

“O que você ensina na escola?”, ele perguntou.

“Aritmética. Dois mais dois, cinco, coisas assim.”

“É um belo salto, da sala de aula para Hollywood.”

“É também uma longa história.”

“Não pode ser tão longa. Você não tem mais que uns dezoito anos.”

“Vinte.” Ela perguntou ansiosa: “Isso já é ser velha demais?”.

“Meu Deus, claro que não! É uma idade linda. Sei disso, porque tenho vinte e um e só agora as artérias começaram a endurecer.”

Ela o olhou atentamente, calculando sua verdadeira idade, mas guardando para si sua opinião.

“Que tal se me contasse a longa história?”, ele perguntou.

Ela suspirou.

“Bem, um monte de homens se apaixonou por mim. Todos muito velhos. Eu era a favorita dos velhinhos.”

“Você quer dizer, anciãos de vinte e dois anos?”

“Entre sessenta e setenta. É verdade. Com isso, arranquei bastante dinheiro deles para ir para Nova York. Fui ao 21 na primeira noite e Joe Becker me viu.”

“Então ainda não trabalhou em nenhum filme?”, ele perguntou.

“Ah, sim — fiz um teste hoje de manhã.”

Jim sorriu.

“E não se sentia mal tomando dinheiro dos velhos?”, perguntou.

“Não muito”, ela respondeu, bem franca. “Eles gostavam de me agradar. Além disso, não era dinheiro vivo. Quando queriam me dar presentes, eu os mandava ir a determinado joalheiro e, em seguida, levava o presente ao joalheiro, que me devolvia quase todo o dinheiro.”

“Ora, ora, uma picaretinha esperta!”

“Isso mesmo”, ela admitiu placidamente. “Uma pessoa me ensinou a fazer isso. Quero tudo que puder agarrar.”

“Eles não se importavam, digo, os velhos, quando você não usava os presentes?”

“Mas eu usava — pelo menos uma vez. Depois de certa idade as pessoas já não enxergam muito bem, ou não se lembram. Por isso é que não tenho nem uma jóia em casa.” Calou-se. “Imagino que aluguem jóias aqui.”

Jim olhou-a de novo e riu alto.

“Se eu fosse você, não ficaria preocupada. A Califórnia está cheia de velhinhos.”

Entraram num bairro residencial. Quando dobraram uma esquina, Jim abriu o vidro e disse ao motorista: “Pare aqui”. Virou-se para Pamela: “Tenho que fazer um trabalhinho sujo”.

Consultou o relógio, saiu e subiu a rua em direção a um edifício com o nome de vários médicos numa placa. Passou pela placa lentamente, até que um homem saiu do edifício e começou a segui-lo. No ponto mais escuro entre dois postes, Jim deixou-o aproximar-se, entregou-lhe um envelope e falou alguma coisa. O homem voltou para o edifício e Jim entrou no carro.

“Também estou explorando uns velhos”, ele disse. “Algumas coisas são piores que a morte.”

“Ah, mas parei de fazer isso”, ela assegurou. “Estou noiva.”

“Ah!” Depois de um instante ele perguntou: “De um inglês?”.

“Claro! Acha que...” Parou, mas já era tarde.

“Somos tão desinteressantes assim?”, ele perguntou.

“Ah, não.” Mas o tom descomprometido com que falou piorou ainda mais as coisas. E quando ela sorriu, no exato momento em que a luz da rua a vestiu com uma beleza radiante, foi ainda mais irritante.

“Agora é a sua vez”, ela disse. “Que coisa misteriosa foi essa que você fez?”

“Dinheiro”, ele respondeu, com uma voz ausente. “Um medicozinho grego anda dizendo a uma determinada senhora que ela precisa extrair o apêndice. Mas precisamos dela no filme, então dei-lhe algum para calar a boca. É a última vez que faço o trabalho sujo dos outros.”

Ela franziu o cenho. “Mas ela não precisa tirar o apêndice?”

Ele deu de ombros. “Talvez não. E, se precisar, não é esse rato que vai saber. É cunhado dela e quer explorá-la.”

Depois de algum tempo, Pamela falou:

“Um inglês jamais faria isso.”

“Alguns talvez façam, assim como alguns americanos não fariam.”

“Um cavalheiro inglês jamais faria isso”, ela insistiu.

“Não está começando com o pé errado, se pretende trabalhar aqui?”

“Ah, eu gosto dos americanos — pelo menos dos civilizados.”

Do jeito que ela falou, Jim imaginou que aquilo o incluía, mas, longe de ficar envaidecido, demonstrou alguma indignação.

“Você está se arriscando. Não sei como ousou sair comigo. Já imaginou o que pode haver debaixo do meu chapéu?”

“Você não estava de chapéu”, ela disse, tranqüila. “Além disso, Joe Becker me autorizou. Disse que seria bom para minha carreira.”

Jim, agora, era produtor e, quando se atinge tal eminência, não se perde o controle por tão pouco — exceto de propósito.

“Tenho certeza de que será bom para você”, disse, com um ronronado ligeiramente traiçoeiro na voz.

“Tem mesmo?”, ela perguntou. “Acha que posso me firmar? Ou sou apenas uma entre milhares?”

“Você já se firmou”, ele continuou no mesmo tom. “Todo mundo na festa estava olhando para você.”

Perguntou-se se aquilo era mesmo verdade, ainda que remotamente. Ou se ele tinha sido o único a ver nela alguma coisa.

“Você é um tipo novo”, ele prosseguiu. “Um rosto como o seu poderá dar aos filmes americanos um toque mais... mais civilizado.”

Era a sua flecha, mas, para sua surpresa, não pareceu atingir o alvo.

“Acha mesmo? Você vai me dar uma chance?”

“Claro.” Era difícil de acreditar que a ironia em sua voz estivesse errando o alvo. “Mas, depois desta noite, haverá tanta competição que...”

“Ah, mas eu preferiria trabalhar para você”, ela declarou. “Vou dizer a Joe Becker que...”

“Não, não lhe diga nada”, ele interrompeu.

“Está bem, não direi nada. Como você quiser”, ela prometeu.

Os olhos dela estavam dilatados e expectantes. Perturbado, ele notou que palavras estavam sendo postas em sua boca ou brotando dele sem querer. Era impressionante que tanta inocência e tanta fúria predatória saíssem ao mesmo tempo daqueles lindos lábios da inglesa.

“Seria um desperdício usar você em pontas”, ele disse. “Precisamos arranjar um grande papel...” Fez uma pausa e recomeçou: “Você tem uma personalidade tão forte que...”.

“Ah, pare.” Ele viu lágrimas no canto de seus olhos. “Deixe-me apenas dormir com isso esta noite. Telefone pela manhã — ou quando precisar de mim.”

O carro parou a poucos centímetros do tapete vermelho que levava à festa. Ao ver Pamela sob os refletores, a multidão forçou a corda grotescamente, com os caderninhos de autógrafos à mão. Como não a reconheceram, deram um suspiro em uníssono e a corda recuou com eles.

No salão, ele a conduziu dançando até a mesa de Becker.

“Não vou lhe dizer nada”, ela garantiu. De sua bolsa tirou um cartão com o nome do hotel escrito a lápis e lhe entregou. “Se surgirem outras ofertas, prometo recusar.”

“Não, não faça isso”, ele disse rapidamente.

“Ah, sim.” Sorriu para ele e, por um instante, a sensação que Jim tivera ao vê-la pela primeira vez voltou. Era uma impressão de calor, juventude e sofrimento, tudo junto. Tentou estourar a bolha que ele próprio havia criado:

“Daqui a um ano ou pouco mais...”, começou. Mas a música e a voz dela o abafaram.

“Esperarei pelo seu chamado. Você é... você é o americano mais civilizado que já conheci.”

Deu-lhe as costas, como que embaraçada pela magnitude de seu elogio. Jim voltou para sua mesa, mas, ao ver a anfitriã conversando com uma mulher ao lado de sua cadeira vazia, mudou subitamente de direção. A sala e a festa haviam se tornado desagradáveis, a mistura de música e vozes soava estridente, sem harmonia, e, ao percorrer o salão com os olhos, viu apenas ódio e inveja — egos batendo como tambores. Não estava ainda tão imune à batalha como tinha pensado.

Caminhou até a chapeleira, pensando em mandar, pelo garçom, um bilhete à anfitriã. “Você estava dançando, portanto eu...” Mas, ao passar pela mesa de Pamela Knighton, mudou de idéia e saiu em direção à porta.

II.

Um executivo de cinema pode se virar sem inteligência ou criatividade, mas não chegará a lugar nenhum sem um pouco de habilidade. Habilidade era agora a única preocupação de Jack Leonard. O poder normalmente deveria despachar a diplomacia para um segundo plano, mas, em vez disso, intensifica todas as suas relações — com os executivos, diretores, roteiristas, atores e técnicos de sua unidade, além dos chefes de departamento, dos censores e dos “homens de Nova York”. Portanto, driblar uma garota inglesa armada apenas de um telefone e de um bilhete deixado por ela na portaria do estúdio não deveria ser problema.

Passei por aqui e me lembrei de você e de nosso passeio. Tive algumas ofertas, mas continuo cozinhando Joe Becker. Se me mudar daqui, mando-lhe o novo endereço.

A juventude e a esperança transpiravam do bilhete em duas óbvias mentiras e na corajosa falsidade de seu tom. Era como se nada lhe importasse — todo o dinheiro e a glória por trás das intransponíveis paredes do estúdio. E ela tinha apenas passado por ali — apenas passado por ali.

Isso foi duas semanas depois da festa. Na semana seguinte, Joe Becker foi procurá-lo. “Sobre aquela inglesa, Pamela Knighton, lembra? O que achou dela?”

“Gostei.”

“Por algum motivo, ela não quer que eu fale com você”, disse Joe, olhando pela janela. “Por isso achei que vocês não se deram muito bem naquela noite.”

“Claro que nos demos.”

“A garota é noiva de um sujeito na Inglaterra.”

“Ela me contou”, disse Jim, aborrecido. “Não dei em cima dela, se é isso que está querendo saber.”

“Não se preocupe, entendo essas coisas. Apenas queria lhe dizer uma coisa sobre ela.”

“Não há mais ninguém interessado?”

“Ela está aqui há um mês. Todo mundo tem que começar em algum lugar. Só quero lhe dizer que, quando Pamela entrou no 21, os homens do bar caíram em cima dela como moscas. Em menos de um minuto, só se falava nela.”

“Deve ter sido fantástico”, disse Jim secamente.

“E foi. Heddy Lamarr estava lá naquela noite. Escute só, Pam estava sozinha, vestida à inglesa, com uma roupa bem-comportada e um casaco de pele de coelho, acho. Mas brilhou mais que um diamante.”

“Foi mesmo?”

“Mulheres poderosas derramavam lágrimas dentro de suas vichyssoises. Elsa Maxwell...”

“Joe, estou ocupadíssimo hoje...”

“Quer dar uma olhada no teste dela?”

“Esses testes só servem para os maquiadores, Joe.” Jim estava impaciente. “Não confio em nenhum teste bom. E sempre desconfio dos ruins.”

“Acha que sabe tudo, não é?”

“Mais ou menos”, Jim admitiu. “Há muitos canastrões por aí que se saíram bem nos testes.”

“Executivos também”, disse Joe, levantando-se.

Mais uma semana e mais um bilhete:

Quando lhe telefonei ontem, uma secretária disse que você tinha saído; a outra disse que estava em reunião. Se está querendo fugir, basta me dizer. Não estou ficando nem um pouco mais jovem. Os vinte e um anos estão à minha espera. Como vão os velhinhos da sua área?

O rosto dela estava agora quase apagado de sua memória. Lembrava-se das maçãs delicadas e dos olhos assustados, como num retrato visto havia muito tempo. Teria sido fácil ditar uma carta falando de mudança de planos, de alterações no elenco, de dificuldades que tornavam impossível...

Sentia-se mal quando se lembrava dela, mas, enfim, era um caso encerrado. Enquanto comia um sanduíche na lanchonete de seu bairro, pensou em seu trabalho durante o primeiro mês e considerou-o satisfatório. Exalava habilidade. O departamento estava funcionando bem. Mas as sombras que controlavam seu destino não demorariam a entrar em cena.

Havia poucas pessoas na lanchonete. Pamela Knighton era a garota diante da banca de revistas. Tinha nas mãos um exemplar de The Illustrated London News e olhava-o surpresa.

Ao assinar a nota que lhe tinham posto no balcão, Jim tentou fingir que não a vira. Virou-se ligeiramente, prendeu a respiração e ficou à escuta. Mas, embora ela o tivesse visto, nada aconteceu. Odiando sua típica covardia hollywoodiana, virou-se de novo e falou com ela:

“Fica sempre acordada até tarde?”

Pamela investigou seu rosto por alguns momentos. “Estou morando ali na esquina”, disse. “Acabei de me mudar. Escrevi-lhe sobre isso hoje.”

“Também moro perto daqui.”

Ela repôs a revista na pilha. A habilidade de Jim fugiu-lhe desta vez. Sentiu-se subitamente velho, assediado, e fez a pergunta errada.

“Como vão as coisas?”

“Ah, muito bem. Estou trabalhando numa peça — uma peça de verdade, no teatro New Faces, em Pasadena. Apenas para ganhar experiência.”

“Isso é ótimo.”

“Vamos estrear daqui a duas semanas. Gostaria que fosse me ver.”

Saíram juntos e pararam sob o luminoso vermelho de neon. Na rua, jornaleiros gritavam os resultados dos jogos daquela noite.

“Esquerda ou direita?”, ela perguntou.

Qualquer uma, menos a sua, ele pensou, mas, quando ela indicou um dos lados, ele foi junto com ela. A simples menção de Pasadena o fez lembrar de quando ele viera para a Califórnia, dez anos antes, verde e fresco como ela.

Pamela parou diante dos pequenos bangalôs que circundavam uma praça.

“Boa noite”, disse. “Não se preocupe por não ter podido me ajudar. Joe me explicou como as coisas estão difíceis, com a guerra e tudo mais. Eu sei que tentou.”

Ele assentiu solenemente, no fundo se desprezando.

“É casado?”, ela perguntou.

“Não.”

“Então me dê um beijo de boa-noite.”

Quando ele hesitou, ela disse: “Gosto de ganhar um beijo de boa-noite. Durmo melhor”.

Ele a enlaçou timidamente e curvou-se sobre seus lábios, mal os roçando — pensando na carta sobre sua escrivaninha, que ele não poderia mandar agora, mas, acima de tudo, gostando de abraçá-la.

“Como você vê, não foi nada de mais”, ela disse. “Um beijo de amigos. Um beijo de boa-noite.”

Caminhando para casa, Jim disse alto “Raios me partam!”, e continuou repetindo essa sinistra profecia por algum tempo depois de já estar na cama.

III.

Na terceira noite da peça de Pamela, Jim foi a Pasadena e comprou um lugar na última fila. Entrou num pequeno auditório e foi o primeiro a chegar, exceto pelos lanterninhas e por algumas vozes que se ouviam dos bastidores. Pensou em retirar-se discretamente, mas, ao ver chegar um grupo de cinco pessoas, entre as quais o principal assistente de Joe Becker, resolveu ficar. As luzes se apagaram; ouviu-se um gongo; e, para uma platéia de seis pessoas, a peça começou.

Jim observou Pamela; à sua frente, o grupo dos cinco inclinava-se e cochichava depois de cada cena. Ela tinha talento? Jim podia dizer que sim. Mas, com o cinema atraindo meio mundo, dificilmente poderia existir uma coisa chamada talento “natural”. Havia apenas possibilidades — e sorte. Ele tivera sorte. Talvez ele fosse a sorte daquela garota — se achasse que o que ela lhe provocava fosse de apelo universal. As grandes estrelas já não eram criadas pela vontade de um homem, como nos tempos do cinema mudo. Quando o pano finalmente baixou, como uma doméstica persiana, ele foi aos bastidores, limitando-se, para isso, a abrir uma porta a seu lado. Ela esperava por ele.

“Torci para que você não viesse esta noite”, disse Pamela. “Foi um fracasso. Mas, na primeira noite, a casa estava cheia e procurei por você.”

“Você estava ótima”, ele disse timidamente.

“Ah, não. Você devia ter me visto na estréia.”

“Vi o suficiente”, ele disse de repente. “Acho que tenho um pequeno papel para você. Não quer ir ao estúdio amanhã?”

Ele observou a mudança em sua expressão. De seus olhos, da curva de sua boca, brilhou uma súbita e repentina piedade.

“Ah, que pena. Joe apresentou-me a algumas pessoas outro dia e assinei um contrato com Bernie Wise.”

“Assinou?”

“Achei que você me queria, mas, a princípio, não percebi que você era apenas uma espécie de supervisor. Pensei que tivesse mais poder...” Cortou o que estava dizendo e emendou às pressas. “Não, pessoalmente, gosto muito mais de você. É muito mais civilizado que Bernie Wise.”

Ela não poderia ter escolhido palavras mais ásperas para feri-lo. Está bem, ele era civilizado.

“Quer uma carona para Hollywood?”

No caminho, a noite de outubro lembrava as de abril. Quando atravessaram uma ponte, ele fez um gesto em direção às grades de proteção e ela entendeu.

“Sei para que servem”, ela disse. “Mas é estúpido! Os ingleses nunca cometem suicídio quando não conseguem o que querem.”

“Eu sei. Eles vêm para os Estados Unidos.”

Ela riu e olhou-o como se o avaliasse positivamente. Sim, ele lhe serviria para alguma coisa. Deixou sua mão descansar sobre a dele.

“Um beijo de boa-noite?”, ele sugeriu depois de alguns momentos.

Pamela olhou para o motorista, insulado em sua cabine.

“Está bem, um beijo de boa-noite.”

Ele voou para Nova York no dia seguinte, em busca de uma atriz exatamente como Pamela Knighton. E buscou tanto que quaisquer olhos com ar de distante melancolia e o mínimo sotaque britânico já o predispunham a favor. Tentava desesperadamente encontrar alguém parecido com ela, quando um impaciente telegrama chamou-o de volta a Hollywood e ele viu Pamela ser atirada em seu colo.

“Você ganhou uma segunda oportunidade, Jim”, disse Joe Becker. “Não a perca de novo.”

“Qual foi o problema?”

“Não tinham um bom papel para ela. Estão perdidos numa confusão burocrática. Assim, rasgamos o contrato.”

Mike Harris, o chefe do estúdio, investigou o assunto. Por que Bernie Wise, que era tão esperto, estava soltando a moça?

“Bernie diz que ela não sabe representar”, disse a Jim. “E que é uma criadora de casos. Fico pensando em Simone e naquelas duas austríacas.”

“Já a vi trabalhar”, insistiu Jim “Tenho alguma coisa para ela. Não é preciso nem promovê-la. Vou encaixá-la num pequeno papel e você vai ver.”

Uma semana depois, Jim entrou ansiosamente pela porta do palco três. Alguns figurantes fantasiados viraram-se para ele na semi-escuridão e olhos se arregalaram.

“Onde está Bob Griffin?”, perguntou Jim.

“Naquele bangalô, com a senhorita Knighton.”

Estavam sentados lado a lado sob as luzes dos maquiadores e, pela resistência no rosto de Pamela, Jim sabia que o problema era sério.

“Não é nada”, insistia Bob efusivamente. “Nos damos muito bem, não é, Pam?”

“Você cheira a cebola”, disse Pamela.

Griffin tentou de novo.

“Há um estilo inglês e um estilo americano. Estamos buscando um meio-termo, só isso.”

“Há um estilo educado e um estilo mal-educado”, cortou Pamela. “Não quero começar a carreira como uma idiota.”

“Por favor, Bob, deixe-nos a sós, está bem?”, pediu Jim.

“Claro. O tempo que quiserem.”

Jim ainda não a tinha visto naquela semana cheia de testes, provas de roupas e ensaios, e só então se deu conta de como a conhecia mal, e ela a eles.

“Bob parece furioso com você”, ele disse.

“Quer que eu diga coisas que ninguém em sã consciência diria.”

“Está bem, talvez você esteja certa”, ele concordou. “Pamela, desde que está trabalhando aqui, já esqueceu alguma fala?”

“Ora, acontece com todo mundo às vezes.”

“Escute, Pamela, Bob Griffin ganha dez vezes mais do que você por uma razão muito simples. Não porque seja o diretor mais brilhante de Hollywood — ele não é —, mas porque nunca esquece as falas dele.”

“Mas ele não é ator”, ela protestou, confusa.

“Refiro-me às falas na vida real. Escalei-o para este filme porque, às vezes, costumo explodir, mas ele não. Assinou um contrato por uma montanha de dinheiro — que ele não merece, que ninguém merece. Mas a delicadeza é a quarta dimensão desse negócio, e Bob já esqueceu como se diz “eu”. Gente com o triplo do talento dele costuma afundar por não conseguir esquecer isso.”

“Sei que estou sendo repreendida”, ela disse, hesitante. “Mas não entendo. Uma atriz tem sua própria personalidade...”

Ele concordou.

“E nós lhe pagamos cinco vezes mais do que ganharia em outro lugar para evitar que essa personalidade atrapalhe o resto do trabalho — e você está atrapalhando, Pamela.”

Pensei que você fosse meu amigo, disseram os olhos dela.

Ele falou por mais alguns minutos. Acreditava em tudo que dissera, mas, como já havia beijado duas vezes aqueles lábios, sabia que eles só queriam apoio e proteção. Pamela ficou chocada ao descobrir que ele não estava do seu lado. Meio confuso e lamentando a solidão de Pamela, Jim foi à porta do bangalô e gritou:

“Bob!”

Depois foi tratar de outras coisas. Quando voltou à sua sala, encontrou Mike Harris esperando.

“Aquela garota está criando caso de novo.”

“Acabei de vir de lá.”

“Refiro-me aos últimos cinco minutos!”, gritou Harris. “Depois que você saiu, já houve outro problema! Bob Griffin teve de parar a filmagem. Está vindo para cá.”

Bob entrou.

“É do tipo que não dá para entender.”

Houve um momento de silêncio. Mike Harris, aborrecido pela situação, suspeitou que Jim estava tendo um caso com a moça.

“Me dê até amanhã de manhã”, pediu Jim. “Acho que posso descobrir o que está havendo.”

Griffin hesitou, mas havia uma espécie de apelo pessoal nos olhos de Jim.

“Está bem, Jim.”

Quando eles saíram, Jim discou o número de Pamela. O que ele quase esperava aconteceu, mas nem por isso seu coração deixou de bater quando a voz de um homem atendeu o telefone.

IV.

Com exceção das enfermeiras, as atrizes são a presa mais fácil para qualquer homem inescrupuloso. Jim sabia que, por trás dos problemas ou fracassos dessas moças, havia sempre um confidente, alguém que exercia sua masculinidade através de um ombro amigo ou de um mau conselho. A técnica desse homem era invariavelmente diminuir a importância do trabalho da mulher ou a inteligência dos outros com quem ela trabalhava.

Já passava das seis quando Jim chegou ao hotel em Beverly Hills para onde Pamela se mudara. No pátio, uma fonte de água fria esguichava absurdamente contra a névoa de dezembro e ele ouviu a voz forte do major Bowes soar a partir de três aparelhos de rádio.

A porta do apartamento se abriu e Jim entendeu tudo. O homem era um velho — um inglês curvado, com uma tez descorada de inverno. Estava de roupão e chinelos, e convidou Jim a sentar-se, como se estivesse em sua casa. Pamela não demoraria a chegar.

“O senhor é parente dela?”, Jim perguntou, intrigado.

“Não. Pamela e eu nos conhecemos aqui em Hollywood. Somos dois estranhos num lugar estranho. Também trabalha no cinema, senhor... senhor...”

“Leonard”, disse Jim. “No momento, sou o patrão de Pamela.”

Os olhos do homem se transformaram — o olhar aquoso tornou-se firme, as velhas pálpebras se enrijeceram. Os lábios curvaram-se para baixo e para trás, numa expressão maligna. Momentos depois, voltaram ao estado normal, velhos e grosseiros.

“Espero que Pamela esteja sendo bem tratada”, disse.

“Já trabalhou no cinema?”, perguntou Jim.

“Até onde minha saúde permitiu. Mas ainda estou ligado ao ramo, conheço tudo sobre este negócio e a alma das pessoas que trabalham nele...”

Parou de repente. A porta se abriu e Pamela entrou.

“Ora, ora!”, disse, surpresa. “Já se conhecem? O Honourable Chauncey Ward… o senhor Leonard.”

Sua beleza, que parecia ter sido trazida pelo vento da rua, deixou Jim momentaneamente sem fôlego.

“Achei que já tivesse me acusado de meus pecados esta tarde”, ela disse, em tom de desafio.

“Quis conversar com você fora do estúdio.”

“Não aceite redução de salário”, disse o velho. “É um truque antigo.”

“Não se trata disto, senhor Ward”, disse Pamela. “O senhor Leonard tem sido meu amigo até agora. Mas hoje o diretor tentou me fazer de boba, e o senhor Leonard ficou do lado dele.”

“São todos iguais”, disse o sr. Ward.

“Eu gostaria...”, disse Jim. “Será que poderia falar com você a sós?”

“Confio no senhor Ward”, disse Pamela. “Mora em Hollywood há vinte e cinco anos e é praticamente meu agente.”

Jim perguntou-se de que profunda solidão esse relacionamento surgira.

“Ouvi dizer que houve mais problemas depois que saí”, disse.

“Problemas!” Ela arregalou os olhos. “O assistente de Griffin me xingou e eu ouvi. Peguei minhas coisas e saí. E se Griffin o mandou para pedir desculpas, não aceito — nosso relacionamento, a partir de agora, será puramente profissional.”

“Ele não lhe mandou desculpas”, disse Jim. “Mandou um ultimato.”

“Um ultimato!”, ela gritou. “Tenho um contrato, e você é o chefe dele, não é?”

“Até certo ponto”, admitiu Jim. “Mas, como você sabe, fazer um filme é um trabalho em equipe...”

“Então deixe-me tentar outro diretor.”

“Lute por seus direitos”, disse o sr. Ward. “É a única coisa que os impressiona.”

“O senhor está fazendo tudo para acabar com a carreira da garota, não é?”, comentou Jim de passagem.

“Você não nos assusta”, respondeu Ward. “Conheço seu tipo.”

Jim olhou de novo para Pamela. Não havia nada que ele pudesse fazer. Se estivessem apaixonados, se fosse o momento de estimular o que poderia haver entre eles, ele poderia tê-la convencido naquele momento. Mas já era tarde. Lá fora, nas trevas de Hollywood, Jim quase podia ouvir as engrenagens rodando. Sabia que, quando o estúdio reabrisse amanhã, Mike Harris teria novos planos — que não incluiriam Pamela.

Por mais um momento, hesitou. Era um sujeito apreciado, ainda jovem e objeto de ampla aprovação. Poderia engambelá-los a respeito da garota, mandá-la para uma escola de arte dramática. Não conseguia tolerar que ela cometesse um engano daqueles. Por outro lado, achava que os outros já a haviam estragado para aquele tipo de carreira.

“Hollywood não é um lugar muito civilizado”, disse Pamela.

“É uma selva”, enfatizou o senhor Ward. “Cheia de aves de rapina!”

Jim levantou-se.

“Bem, esta ave aqui vai rapinar em outra parte”, ele disse. “Pam, lamento muito. Do jeito que você vê as coisas, acho que o melhor é voltar para a Inglaterra e se casar.”

Por instantes houve a sombra de uma dúvida nos olhos dela. Mas sua confiança, seu jovem egoísmo eram maiores que sua capacidade de avaliação. Não percebia que aquele exato minuto era sua última oportunidade e que a estava perdendo para sempre.

Acabou de perdê-la quando Jim se virou e saiu. Levou semanas para entender o que lhe acontecera. Recebeu seu salário por mais alguns meses — graças a Jim —, mas nunca mais pôs os pés no estúdio. Nem em nenhum outro. Foi colocada tranqüilamente na lista negra, que nunca chega a ser escrita, mas que existe e é comentada entre um jantar e outro ou durante as corridas de cavalos. Homens influentes olhavam-na com interesse nos restaurantes, mas, de alguma forma, acabavam sabendo que ela era um mau negócio.

Mas Pam não desistiu nos meses seguintes — nem mesmo depois que Becker a abandonou e ela parou de freqüentar os lugares a que as pessoas vão para serem vistas. Assim, não foi por desgosto ou fraqueza, mas por circunstâncias corriqueiras, que, em junho, ela morreu.

V.

Quando Jim ficou sabendo, pareceu-lhe inacreditável. Soube por acaso que ela estava num hospital com pneumonia — quando ele telefonou, informaram-lhe que ela havia morrido. “Sybil Higgins, atriz, inglesa. Idade, vinte e um anos.”

Ela tinha dado o nome do velho Ward como o da pessoa a ser informada sobre seu paradeiro e Jim fez chegar a ele algum dinheiro para as despesas do enterro, sob o pretexto de que se tratava de um acerto de contas de salário. Temeroso de que Ward descobrisse a fonte do dinheiro, preferiu não ir ao enterro, mas, uma semana depois, foi visitar seu túmulo.

Era um ensolarado dia de junho e ele ficou por lá cerca de uma hora. Em toda a cidade havia jovens felizes e bem vivos, e parecia-lhe absurdo que a inglesinha não fosse um deles. Tentou de todas as maneiras ajeitar as coisas de forma que desse tudo certo para ela, mas não adiantava mais. Despediu-se dela em voz alta e prometeu voltar outro dia.

De novo no estúdio, reservou uma sala de projeção e mandou que trouxessem seu teste e as poucas cenas do filme que ela chegara a rodar. Sentou-se numa poltrona de couro e apertou um botão para que a sessão começasse.

No teste, Pamela estava vestida como na noite em que haviam se conhecido. Parecia feliz, e ele ficou satisfeito de que, pelo menos, ela tivesse conseguido expressar aquela felicidade. O rolo de tomadas do filme começou a rodar e seguiu, aos solavancos, com a voz de Bob Griffin em off e as claquetes antes de cada cena. Então, na penúltima cena, Jim viu Pamela virar-se para a câmera e sussurrar:

“Prefiro morrer a ter que me submeter a isto.”

Jim levantou-se e voltou para o escritório. Abriu os três bilhetes que ela tinha lhe enviado e os releu.

... passei por aqui e me lembrei de você e de nosso passeio.

Passou pelo estúdio. Na primavera ela lhe telefonara duas vezes, e ele quisera vê-la. Mas não podia fazer nada por ela e não suportava ter de lhe dizer isso.

“Não sou muito corajoso”, Jim disse a si próprio. Mesmo agora, em seu coração, havia o medo de que essa lembrança não o abandonasse, e ele não queria ser infeliz.

Alguns dias depois, após trabalhar até tarde na sala de dublagem, deu um pulo à lanchonete de seu bairro para comer um sanduíche. Era uma noite de calor e havia muitos jovens no balcão. Estava pagando a conta, quando notou uma figura na banca de jornais, observando-o por trás de uma revista. Parou. Não queria virar-se para ver quem era, nem para descobrir qualquer semelhança. Mas também não queria ir embora dali.

Ouviu o ruído de uma página sendo virada e, pelo rabo do olho, viu a capa da revista: The Illustrated London News.

Não teve medo — estava pensando depressa e desesperadamente. Se aquilo fosse verdade e ele pudesse tê-la de volta, para começar tudo de novo, naquela mesma noite...

“Seu troco, senhor Leonard.”

“Obrigado.”

Ainda sem olhar, dirigiu-se para a porta. Então, ouviu a revista ser jogada sobre a pilha de outras revistas e uma respiração pesada perto dele. Na rua, os jornaleiros gritavam uma manchete qualquer. Dobrou a esquina errada em direção à casa dela, e ouviu que ela o seguia — tão nitidamente que chegou a diminuir o passo para que pudesse acompanhá-lo.

Defronte ao apartamento dela, tomou-a nos braços e puxou para si sua radiante beleza.

“Dê-me um beijo de boa-noite”, ela disse. “Gosto de ganhar um beijo de boa-noite. Durmo melhor.”

Então durma, ele pensou, ao ir embora — durma. Não pude fazer nada. Tentei, mas não consegui. Quando você nos trouxe sua beleza, não quis que ela se perdesse em vão, mas, de alguma forma, foi o que acabei fazendo. Só lhe resta agora dormir.

(1940)