O diamante do tamanho do Ritz

John T. Unger era de uma tradicional família de Hades, cidadezinha à beira do rio Mississípi. O pai de John conservara o título de campeão amador de golfe ao longo de várias disputas memoráveis; a sra. Unger era famosa “do palanque ao beliche”, como se dizia na cidade, por seus discursos políticos; e o jovem John T. Unger, que acabara de fazer dezesseis anos, já dançara todas as últimas novidades de Nova York antes de vestir calças compridas. E agora, por algum tempo, iria para longe de casa. A reverência pela educação típica da Nova Inglaterra, que é a perdição das cidades provincianas da América e que anualmente as priva de seus jovens mais promissores, acometera seus pais. Para eles, a única alternativa viável seria John estudar no colégio St. Midas, perto de Boston — Hades era muito pequena para aquele filho tão querido e inteligente.

Em Hades, porém — como você deve saber se já andou por lá —, os nomes das escolas e faculdades mais em voga não querem dizer grande coisa. Seus moradores vivem fora do mundo há tanto tempo que, embora finjam estar atualizados a respeito de moda, costumes e literatura, dependem em grande parte do que ouvem falar, e um evento que em Hades se consideraria chique seria classificado por uma princesa dos açougues de Chicago como “talvez um pouco tosco”.

John T. Unger estava na véspera da partida. A sra. Unger, com obtusidade maternal, recheou suas malas com ternos de linho e ventiladores elétricos, e o sr. Unger muniu o filho de uma carteira cheia de dinheiro.

“Lembre-se, garoto, você sempre será bem-vindo aqui”, disse. “E pode ter certeza de que aqui será sempre a sua casa.”

“Eu sei”, respondeu John com emoção na voz.

“Não se esqueça de quem é e de onde veio”, continuou seu pai, cheio de orgulho. “Se fizer isso, nada de mau lhe acontecerá. Você é um Unger — de Hades.”

Assim, o velho e o jovem apertaram-se as mãos e John partiu com lágrimas nos olhos. Dez minutos depois, já ultrapassara o perímetro urbano e parou para olhar para trás pela última vez. O lema vitoriano antiquado de boas-vindas, inscrito nos portões da cidade, pareceu-lhe estranhamente bonito. Várias vezes seu pai tentara mudá-lo para algo mais vibrante e inventivo, como “Hades — Eis a sua oportunidade”, ou mesmo uma tabuleta simples com as palavras “Bem-vindo!”, só que pendurada logo acima de um forte aperto de mãos desenhado com lâmpadas elétricas. O velho lema era um pouco deprimente, pensava o sr. Unger, mas agora...

De modo que John deu sua última olhada e virou o rosto resolutamente na direção de seu destino. E, enquanto ele se afastava, as luzes de Hades contra o céu lhe pareceram de uma cálida e apaixonada beleza.

O colégio St. Midas fica a meia hora de Boston num automóvel Rolls-Pierce. A verdadeira distância nunca será conhecida, visto que ninguém, exceto John T. Unger, já viajara até lá exclusivamente de Rolls-Pierce, e provavelmente ninguém voltará a fazê-lo. St. Midas é o internato masculino mais caro e exclusivo do mundo.

Os primeiros dois anos de John em St. Midas transcorreram de forma agradável. Os pais de todos os seus colegas eram podres de ricos e John passava o verão em suas elegantes propriedades. Embora gostasse muito dos rapazes que visitava, achava os pais deles de uma impressionante mesmice. Com seu jeito juvenil, muitas vezes meditara sobre a semelhança marcante que os caracterizava. Sempre que lhes dizia de onde vinha, eles perguntavam jovialmente: “Faz muito calor lá?”, e John armava um sorriso amarelo para responder: “Faz, muito”. Sua resposta seria mais cordial se todos eles não fizessem a mesma piada — no máximo, variavam a pergunta para “É quente que chegue para você, lá?”, o que ele também detestava.

Na metade de seu segundo ano na escola, um rapaz discreto e bonito chamado Percy Washington entrara para sua classe. O novato era muito bem-educado e extremamente bem vestido, mesmo para os padrões de St. Midas, mas por alguma razão guardava distância dos outros colegas. A única pessoa com quem tinha intimidade era John T. Unger, mas mesmo com John ele era inteiramente reservado a respeito de sua procedência e sua família. Que era rico, isso ninguém precisava dizer, mas, além de algumas poucas deduções, John quase nada sabia do amigo. Por isso, foi um prato cheio para sua curiosidade quando Percy o convidou a passar o verão em sua casa “no Oeste”. John aceitou sem hesitar.

Foi somente quando já estavam no trem que Percy ficou, pela primeira vez, bastante comunicativo. Um dia, enquanto os dois almoçavam no vagão-restaurante e discutiam as imperfeições de caráter de seus colegas, Percy de repente mudou de tom e fez a seguinte observação:

“Meu pai é, de longe, o homem mais rico do mundo.”

“Nossa”, disse John educadamente. Não lhe ocorria nenhuma resposta àquela confidência. Pensou em dizer “Que bom”, mas lhe pareceu vazio, e estava a ponto de perguntar “É mesmo?”, quando se conteve para não parecer que duvidava da afirmação de Percy. E uma afirmação impressionante daquelas não podia ser posta em dúvida.

“Disparado o mais rico”, repetiu Percy.

“Andei lendo no World Almanac”, balbuciou John, “que havia um homem nos Estados Unidos com uma renda de mais de cinco milhões de dólares por ano e quatro homens com renda superior a três milhões por ano, e...”

“Ah, isso não é nada.” A boca de Percy fazia uma meia-lua de desprezo. “São uns capitalistas de meia-tigela, financistas arraia-miúda, vendedores de ninharias e agiotas baratos. Meu pai pode botar todos eles no bolso sem nem se dar conta.”

“Mas como ele...”

“Por que não publicam o que ele paga de impostos? Porque ele não paga nada. Um pouco ele paga, mas não o imposto sobre sua renda verdadeira.”

“Deve ser mesmo muito rico”, disse John com simplicidade. “Fico feliz por isso. Gosto de gente muito rica.

“Quanto mais rico o sujeito, mais gosto dele”, continuou John. Havia uma expressão de ardente franqueza em seu rosto moreno. “Passei a última Páscoa na casa da família Schnlitzer-Murphy. Vivian Schnlitzer-Murphy tinha rubis do tamanho de ovos, e safiras que pareciam globos com luzes por dentro, e...”

“Adoro jóias”, concordou Percy com entusiasmo. “Claro, não quero que ninguém no colégio fique sabendo, mas eu próprio tenho uma coleção e tanto. Em vez de colecionar selos, eu colecionava jóias.”

“E diamantes”, prosseguiu John, empolgado. “Os Schnlitzer-Murphy tinham diamantes do tamanho de nozes...”

“Isso não é nada.” Percy se inclinara e falava num tom de voz muito baixo, num sussurro: “Isso não é absolutamente nada. Meu pai tem um diamante do tamanho do Ritz-Carlton Hotel”.

II.

O sol de Montana se punha entre duas montanhas como uma ferida gigantesca da qual artérias escuras se espalhavam sobre um céu envenenado. A uma imensa distância do céu encolhia-se a cidade de Fish, pequena, triste e esquecida. Eram doze homens na cidade de Fish, assim se dizia, doze almas sombrias e inexplicáveis que extraíam um leite ralo da rocha quase literalmente nua sobre a qual uma misteriosa força populacional os engendrara. Tinham se tornado uma raça à parte, os doze homens de Fish, como uma espécie desenvolvida por um capricho primevo da natureza, que, depois de novas considerações, abandonara-os à luta e ao extermínio.

Da ferida negro-azulada da imensidão rastejava uma longa fila de luzes em movimento sobre a desolação da terra, e os doze homens de Fish se aglomeravam como fantasmas na estação em ruínas para assistir à passagem do trem das sete, o Transcontinental Express de Chicago. Seis vezes por ano, ou nem isso, o Transcontinental, por alguma inconcebível jurisdição, parava na cidade de Fish e, quando isso acontecia, alguém desembarcava, subia em uma carruagem a cavalo que sempre surgia da penumbra e desaparecia na direção do castigado pôr-do-sol. A observação desse fenômeno sem sentido e quase absurdo tornara-se uma espécie de culto entre os homens de Fish. Observar, e nada mais — não lhes restava nem sombra da qualidade vital da ilusão, que os faria refletir ou especular; não fosse isso, alguma espécie de religião poderia ter surgido em torno daquelas visitas misteriosas. Mas os homens de Fish estavam fora do alcance de qualquer religião — nem os dogmas mais rasos e selvagens, inclusive os do cristianismo, teriam como vingar naquela rocha árida —, por isso não havia altar, nem padre, nem sacrifício; simplesmente todas as noites às sete horas lá estava a silente congregação junto à estação em ruínas, uma congregação que erguia uma prece de espanto apagado e anêmico.

Naquela noite de junho, o Grande Guarda-Freios, que, tivessem eles divinizado alguém, poderiam muito bem ter escolhido como protagonista celestial, ordenara que o trem das sete horas deveria deixar sua carga humana (ou inumana) em Fish. Às sete horas e dois minutos Percy Washington e John T. Unger desceram do trem, passaram correndo diante dos olhos enfeitiçados, embasbacados e atemorizados dos doze homens de Fish, subiram à carruagem que obviamente saíra do nada e foram embora.

Meia hora depois, quando a meia-luz já se coagulara em escuridão, o negro silencioso que dirigia a carruagem saudou um corpo opaco que se postava em algum lugar diante deles, na treva. Em resposta ao grito, esse corpo opaco apontou para eles um disco luminoso que parecia observá-los como um olho maligno saindo da noite intangível. À medida que se aproximaram, John viu que era o farol traseiro de um imenso automóvel, o maior e mais majestoso que já vira. Seu corpo era de um metal cintilante mais rico que o níquel e mais leve que a prata, e os cubos centrais de suas rodas eram cravejados de figuras geométricas iridescentes verdes e amarelas — John não se atreveu a apostar se eram vidro ou jóias.

Dois negros, vestidos de librés reluzentes como as que se vêem nas imagens dos cortejos reais em Londres, estavam em posição de sentido ao lado do carro, e, quando os dois jovens desceram da carruagem, foram cumprimentados numa língua que o hóspede não conseguiu entender, mas que parecia ser uma forma extrema do dialeto negro sulista.

“Entre”, disse Percy ao amigo, enquanto suas malas eram atiradas para o topo de ébano da limusine. “Desculpe tê-lo feito viajar até aqui naquela carruagem, mas claro que seria um erro deixar as pessoas do trem ou os homens de Fish verem esse carro.”

“Puxa! Que carro!” Essa exclamação foi provocada pelo interior do veículo. John viu que a forração dos bancos consistia em mil tapeçarias de seda, minúsculas e refinadas, entremeadas com jóias e bordaduras, montadas sobre um fundo que era um tecido de ouro. O estofamento das duas poltronas sobre as quais os rapazes se refestelaram era de um material que lembrava veludo, mas que parecia uma trama das incontáveis cores das extremidades das penas dos avestruzes.

“Que carro!”, exclamou John de novo, assombrado.

“Isto aqui?”, Percy riu. “Ora, é um ferro-velho que usamos para o transporte de passageiros.”

Àquela altura eles deslizavam pela escuridão rumo à fenda entre as montanhas.

“Estaremos lá em uma hora e meia”, disse Percy, olhando para o relógio. “É bom você saber que nunca viu nada igual na sua vida.”

Se o carro era uma indicação do que John ainda estava por ver, ele imaginou que teria razões de sobra para se espantar. Na religiosidade simples que prevalecia em Hades, o respeito e a adoração pela riqueza eram o principal artigo do credo — se John não se sentisse radiantemente humilde diante dela, seus pais teriam considerado aquilo uma blasfêmia digna de horror.

Agora chegavam à fenda entre as montanhas, na qual entraram, e quase imediatamente a estrada ficou muito mais acidentada.

“Se a luz da lua chegasse até aqui, você veria que estamos numa grande ravina”, disse Percy, tentando espiar pela janela. Falou alguma coisa pelo bocal e em seguida o empregado de libré ligou um refletor que banhou as colinas num intenso jato de luz.

“É rochoso, está vendo? Um carro comum se despedaçaria em meia hora. Na verdade, o ideal seria um tanque para explorar a área, a não ser que se conheça o caminho. Repare que agora estamos subindo.”

Inquestionavelmente, estavam subindo e, em poucos minutos, o carro cruzou um promontório alto, de onde foi possível vislumbrar uma lua pálida nascendo na distância. O carro parou de súbito e várias figuras tomaram forma na escuridão a seu redor — também eram negros. Mais uma vez, os dois jovens foram saudados no mesmo dialeto quase incompreensível; em seguida os negros se puseram a trabalhar e quatro cabos imensos pendentes do alto foram presos com ganchos aos cubos centrais das grandes rodas adornadas com jóias. Ouvindo um retumbante “Hey-yah!”, John sentiu o carro ser lentamente erguido do chão — cada vez mais alto —, desvencilhando-se das mais altas rochas de ambos os lados — e chegar até acima delas, e então pôde enxergar um vale ondulado, banhado pelo luar, que se estendia à sua frente em agudo contraste com o tremedal de rocha que tinham deixado para trás. Somente em um dos lados ainda se viam rochas — e, dali a pouco, já não havia rochas por perto ou em lugar algum.

Era evidente que eles tinham superado uma imensa lâmina de pedra que se projetava perpendicularmente no ar. No instante seguinte desciam de novo e, por fim, com um delicado solavanco, foram depositados sobre a terra macia.

“O pior já passou”, disse Percy, olhando atentamente para fora da janela. “São apenas oito quilômetros daqui até lá, e em nossa própria estrada — um tapete atijolado. Isto é nosso. É aqui que os Estados Unidos terminam, diz papai.”

“Estamos no Canadá?”

“Não. Estamos no meio das Rochosas de Montana. Mas agora você está nos únicos catorze quilômetros quadrados de terra do país que nunca foram topografados.”

“Por quê? Se esqueceram?”

“Não”, disse Percy com satisfação. “Já tentaram topografar por três vezes. Na primeira vez, meu avô corrompeu todo um departamento estadual de topografia. Na segunda, conseguiu com que os mapas oficiais dos Estados Unidos fossem alterados — isso os manteve à distância durante quinze anos. A última vez foi mais difícil. Meu pai deu um jeito e as bússolas dos topógrafos ficaram no campo magnético artificial mais forte já criado até hoje. Depois, mandou fazer um jogo completo de instrumentos de medição com um ligeiro defeito, de modo que este território não aparecesse, e colocou-os no lugar dos que deveriam ser usados. Em seguida, desviou o curso de um rio e construiu o que parecia ser uma cidade às suas margens — para que eles a vissem e pensassem que era uma cidade quinze quilômetros mais adiante no vale. Meu pai só tem medo de uma coisa”, ele concluiu, “da única coisa no mundo que poderia ser usada para nos localizar.”

“E o que é?”

Percy baixou o tom de voz e falou num murmúrio.

“Aviões”, sussurrou. “Temos meia dúzia de baterias antiaéreas e até agora nos demos bem, mas houve algumas mortes e um grande número de prisioneiros. Não que a gente se importe com isso, sabe, meu pai e eu, mas mamãe e as meninas ficam aborrecidas, e sempre existe a possibilidade de, numa dessas, a coisa dar errado.”

Nuvens lembrando farrapos e tiras de chinchila passavam pela lua verde no céu como preciosos tecidos orientais submetidos à inspeção de algum cã tártaro. John tinha a sensação de que era dia e de que o que estava vendo eram pessoas velejando no espaço e despejando panfletos e instruções sanitárias com mensagens de esperança para os povoados prisioneiros entre as rochas. Quase podia vê-las perscrutando entre as nuvens e olhando aqui para baixo — para o que quer que existisse naquele lugar para onde ele estava indo. E depois? Seriam talvez induzidas a aterrissar por algum truque insidioso e, ali, emparedadas até o Juízo Final — ou, se escapassem à armadilha, um jato de fumaça e a rajada de um artefato explosivo não seriam suficientes para derrubá-las —, “aborrecendo” a mãe e as irmãs de Percy? John balançou a cabeça e o espectro de um riso vazio escapou silenciosamente de seus lábios. Que desesperadas negociações se escondiam ali? Que recurso moral de um bizarro Creso? Que mistério tão terrível e dourado?...

As nuvens de chinchila tinham se dissipado e a noite de Montana brilhava como o dia. A estrada atapetada de tijolos respondia com suavidade aos pneus quando eles circundaram um lago tranqüilo e iluminado pela lua; por um momento a escuridão voltou, ao passarem por um pequeno bosque de pinheiros, pungente e frio. Mas, em seguida, foram dar a uma larga avenida gramada, e a exclamação de prazer de John foi simultânea à taciturna informação de Percy:

“Chegamos.”

À plena luz das estrelas, um belo castelo ergueu-se das margens do lago, subindo em sua radiação marmórea até a metade da altura de uma montanha adjacente, e dissipou-se com graça, em perfeita simetria e com translúcido langor feminino, na massa escura da floresta. As muitas torres, o delicado lavor da pedra dos parapeitos oblíquos, a maravilha cinzelada de mil janelas amarelas com seus retângulos, hectágonos e triângulos de luz dourada, a maciez despedaçada de brilhos estelares e azul-sombra se entrecortando, tudo tremia no espírito de John como um acorde musical. No topo de uma das torres, a mais alta e mais escura na base, um arranjo de luzes externas produzia uma espécie de terra dos sonhos flutuante — e, quando John olhou para cima, em um mágico encantamento, um som de violinos pareceu se erguer pelos ares numa harmonia rococó diferente de tudo o que ele já tivesse escutado. O carro parou diante de largos e altos degraus de mármore, em torno dos quais o ar da noite despejou a fragrância de uma braçada de flores. No alto da escadaria, duas grandes portas se abriram silenciosamente e uma luz âmbar escapou rumo à escuridão, revelando a silhueta de uma bonita senhora, de cabelo preto e penteado num coque, que estendeu os braços para eles.

“Mamãe”, disse Percy, “este é meu amigo John Unger, de Hades.”

Depois, John recordaria aquela primeira noite como um atordoamento de muitas cores, de rápidas impressões sensoriais, de música suave como uma voz apaixonada e da beleza das luzes e sombras, dos movimentos e rostos. Havia um homem de cabelos brancos tomando uma bebida colorida num copinho de cristal equilibrado sobre uma haste dourada. Havia uma moça de rosto animado, vestida como Titânia e com safiras trançadas no cabelo. Havia uma sala onde o sólido mas suave ouro das paredes cedia à pressão de sua mão, e uma sala que era como uma concepção platônica do prisma definitivo — o teto, o chão, tudo delineado por uma massa ininterrupta de diamantes, diamantes de todos os tamanhos e formas, até que, iluminada por altas lâmpadas violetas, ofuscava os olhos com uma brancura que só podia ser comparada a si mesma, fora do alcance de todo sonho ou vontade humana.

Os dois rapazes percorreram o dédalo de salas. Às vezes, o chão iluminado a seus pés parecia incendiar-se em padrões bárbaros de cores que se chocavam, em delicadeza pastel, em pura brancura ou em sutis e intrincados mosaicos, sem dúvida vindos de alguma mesquita no mar Adriático. Outras vezes, sob camadas de pesado cristal, ele podia ver torvelinhos de água azul ou verde, habitada por peixes inquietos e tufos de folhagem multicolorida. Em seguida caminhavam sobre peles de todas as texturas e cores ou por corredores de um marfim sem emendas, como se trinchado inteiro das presas de gigantescos animais extintos muito antes da chegada do homem...

Então, dá-se uma transição recordada entre névoas e eles já estão à mesa do jantar, onde cada prato consistia em duas camadas quase imperceptíveis de diamante sólido, entre as quais havia uma finíssima filigrana de esmeraldas, como que talhada de ar verde. Plangente e em surdina, ouvia-se música a percorrer compridos corredores. Sua cadeira, de encosto emplumado e com uma curva insidiosa às suas costas, parecia engolfá-lo e absorvê-lo, enquanto ele bebia sua primeira taça de porto. Quase cochilando, tentou responder a uma pergunta que lhe fora feita, mas a doce luxúria que se apossava de seu corpo contribuía para a ilusão do sono — jóias, tecidos, vinhos e metais confundiam-se diante de seus olhos como uma névoa suave...

“É”, ele respondeu com um educado esforço, “sem dúvida lá é quente.”

Conseguiu dar uma risada quase muda e em seguida, sem movimento, sem resistência, pareceu flutuar, deixando no prato uma sobremesa gelada, cor-de-rosa como um sonho... Adormeceu.

Quando acordou, soube que várias horas já tinham se passado. Estava num quarto grande e silencioso com paredes de ébano e uma iluminação muito tênue e sutil para ser chamada de luz. Seu jovem anfitrião estava de pé a seu lado.

“Você dormiu durante o jantar”, disse Percy. “Quase dormi também — que maravilha ter tanto conforto depois de todo este ano na escola. Os criados tiraram a sua roupa e lhe deram um banho enquanto você dormia.”

“Isso é uma cama ou uma nuvem?”, suspirou John. “Percy, Percy, antes de você sair, quero pedir desculpas.”

“Por quê?”

“Por duvidar de você quando disse que tinha um diamante do tamanho do Ritz-Carlton Hotel.”

Percy sorriu.

“Eu percebi que você não tinha acreditado. É esta montanha, você sabe.”

“Que montanha?”

“A montanha que fica embaixo do castelo. Não é muito grande para uma montanha. Mas, exceto por uns cento e cinqüenta metros de vegetação e cascalho no topo, o resto é diamante sólido. Um único diamante, mais de um quilômetro cúbico sem jaça. Está me ouvindo? Você...”

Mas John T. Unger tinha dormido de novo.

III.

De manhã. Ao acordar, ainda letárgico, percebeu que o quarto ficara denso com a luz do sol. Os painéis de ébano de uma parede tinham deslizado numa espécie de trilho, deixando o quarto semi-aberto para o dia. Um negro forte de uniforme branco estava de pé ao lado de sua cama.

“Boa noite”, tartamudeou John, tentando convocar seu cérebro, que andava perdido por regiões selvagens.

“Bom dia, senhor. Está pronto para o banho? Não se levante, eu o levo até lá, deixe-me apenas desabotoar seu pijama — pronto. Obrigado, senhor.”

John deixou-se ficar quieto enquanto seu pijama era retirado. Estava deliciado com aquilo, esperava ser levantado como uma criança por aquele negro gigantesco que cuidava dele, mas nada disso aconteceu; ao contrário, sentiu que a cama se virava e se inclinava lentamente para um lado; ele começou a rolar, assustado a princípio, na direção da parede, mas quando se aproximou dela as cortinas se afastaram e, inclinando-se ainda mais, a cama deslizou-o cuidadosamente para dentro da água, a qual estava à mesma temperatura de seu corpo.

Olhou em volta. A rampa ou escorrega voltara à posição normal. Tinha sido projetado para outra câmara e estava sentado numa banheira com a cabeça pouco acima do nível do chão. Ao redor, contornando as paredes do quarto e as laterais e o fundo da própria banheira, havia um aquário azul. Ao observar a superfície de cristal sobre a qual estava sentado, pôde ver muitos peixes nadando entre luzes de âmbar ou deslizando indiferentes perto de seus pés, separados deles apenas pela espessura do cristal. Do alto, a luz do sol penetrava por uma clarabóia verde-marinho.

“Imagino, senhor, que esta manhã o senhor gostará de um banho quente de espuma com água de rosas e, talvez, água salgada fria ao terminar.”

O negro estava de pé a seu lado.

“Sim”, concordou John, sorrindo amarelo, “tudo bem.” A simples idéia de exigir aquele banho, segundo seus modestos padrões de vida, seria pedante e mais que um pecado.

O negro apertou um botão e uma chuva morna caiu, aparentemente do teto, mas na verdade, como John percebeu logo depois, de uma fonte nas proximidades. A água mudou para uma cor rosa-pálido e jatos de sabão líquido misturaram-se a ela saindo de quatro cabeças de morsa em miniatura nos cantos da banheira. Num instante, cerca de dez pequenas pás-de-roda, presas às laterais, tinham transformado a mistura num radiante arco-íris de espuma rosa que o envolveu com deliciosa leveza e explodiu em bolhas róseas e brilhantes pelo ambiente.

“Devo ligar o projetor de filmes, senhor?”, sugeriu o negro com deferência. “Há uma boa comédia na máquina, mas posso também trocá-la por um drama, se preferir.”

“Não, obrigado”, respondeu John, com voz delicada mas firme. Estava gostando muito do banho para se permitir qualquer distração. Mas ela aconteceu mesmo assim. Ao ouvir com atenção, percebeu um som de flautas vindo de fora, flautas tocando uma melodia que lembrava uma cascata, fria e verde como o próprio quarto, acompanhando um piccolo mais frágil do que a teia de bolhas que o envolvia e encantava.

Depois de uma ducha fria de água salgada arrematada por água doce também fria para terminar, saiu da banheira e enfiou-se num roupão felpudo. Sobre um divã coberto do mesmo tecido, foi esfregado com óleo, álcool e ervas. Mais tarde, sentou-se numa voluptuosa cadeira enquanto o barbeavam e lhe aparavam o cabelo.

“O senhor Percy o espera em sua sala de estar”, disse o negro ao fim dessas operações. “Meu nome é Gygsum, senhor Unger. Estarei à sua disposição todas as manhãs.”

John caminhou em direção à brusca claridade da suíte, onde encontrou uma mesa com o café-da-manhã à sua espera. Percy, gloriosamente vestido de knickerbockers brancos, fumava numa poltrona.

IV.

Esta é a história da família Washington, como Percy a contou para John durante o café-da-manhã.

O pai do atual sr. Washington era da Virgínia, descendente direto de George Washington e de lorde Baltimore. No fim da Guerra Civil, ele estava com vinte e cinco anos, era coronel, proprietário de uma fazenda esgotada e possuía cerca de mil dólares em ouro.

Fitz-Norman Culpepper Washington, pois este era o nome do jovem coronel, decidiu doar a fazenda na Virgínia para seu irmão mais novo e se mudar para o Oeste. Escolheu vinte e quatro de seus escravos mais fiéis — homens e mulheres que, naturalmente, o adoravam — e comprou vinte e cinco passagens para o Oeste, onde planejava comprar terras em nome deles e fundar um rancho para criar bois e carneiros.

Quando estava em Montana havia menos de um mês e as coisas não iam nada bem, tropeçou na sua grande descoberta. Tinha se perdido ao passear a cavalo nas colinas e, depois de um dia sem comer, começou a ficar faminto. Como não levara seu rifle, foi obrigado a perseguir um esquilo e, no meio dessa perseguição, notou que ele carregava algo brilhante na boca. Pouco antes de se meter num buraco — a Providência não quis que o esquilo aliviasse sua fome —, o bichinho soltou o que vinha carregando. Sentando-se para considerar a situação, o olho de Fitz-Norman foi surpreendido por um reflexo na grama perto dele. Em dez segundos, perdeu completamente o apetite e ganhou cem mil dólares. O esquilo, que se recusara irritantemente a servir-lhe de alimento, dera-lhe de presente um enorme e perfeito diamante.

Mais tarde, já de noite, encontrou o caminho para seu acampamento e, doze horas depois, todos os seus escravos homens estavam de volta à toca do esquilo, cavando furiosamente um dos lados da montanha. Disse-lhes que descobrira uma mina de cristal de rocha e, como só um ou dois deles já tinham visto um pequeno diamante, não vacilaram em acreditar. Quando percebeu a magnitude de sua descoberta, Fitz-Norman viu-se num dilema. A montanha era um diamante — literalmente, um único diamante sólido. Encheu quatro sacolas com reluzentes amostras e foi a cavalo para St. Paul, em Minnesota. Lá conseguiu negociar meia dúzia de pequenas pedras; quando tentou se desfazer de uma bem maior, o dono da loja desmaiou e Fitz-Norman foi preso por perturbação da ordem. Escapou da cadeia e pegou o trem para Nova York, onde vendeu alguns diamantes de tamanho médio por cerca de duzentos mil dólares em ouro. Mas não se atreveu a mostrar nenhuma gema excepcional — na verdade, escapou de Nova York em cima da hora. Já se criara uma tremenda excitação no círculo de joalheiros, não tanto pelo tamanho de seus diamantes, mas pela aparição deles na cidade, vindos não se sabia de onde. Surgiram rumores de que uma mina de diamantes fora descoberta nos Catskills, na costa de Nova Jersey, em Long Island e até debaixo da Washington Square. Trens de excursionistas, apinhados de homens carregando pás e picaretas, começaram a deixar Nova York de hora em hora, rumo a vários eldorados vizinhos. Mas, já então, o jovem Fitz-Norman estava a caminho de Montana.

Ao fim de uma quinzena, calculou que o diamante na montanha era aproximadamente igual em quantidade a todo o montante de diamantes que se sabia existir no mundo. Mas não havia como avaliá-lo pelos padrões tradicionais, porque se tratava de um sólido diamante. Se fosse posto à venda, não apenas o mercado despencaria, mas também, se o valor por seu tamanho seguisse a costumeira progressão aritmética, não haveria ouro suficiente no mundo para comprar nem uma décima parte dele. E o que alguém poderia fazer com um diamante daquele tamanho?

Era uma situação extraordinária. De certa forma, Fitz-Norman era o homem mais rico que já existira, mas, ainda assim, ele não era nada nem ninguém. Se seu segredo transpirasse, seria impossível prever que medidas o governo tomaria para evitar o pânico no mercado de ouro e jóias. Talvez até se apoderassem da montanha para instituir um monopólio.

Não havia alternativa — teria de comerciar sua montanha em segredo. Mandou chamar seu irmão mais novo no Sul e o pôs à testa dos escravos — negros que nunca souberam que a escravidão fora abolida. Para se certificar disso, leu uma proclamação que ele mesmo escrevera, anunciando que o general Forrest reorganizara os combalidos exércitos sulistas e derrotara o Norte numa esmagadora batalha. Os escravos acreditaram irrestritamente e até comemoraram com um culto religioso.

Fitz-Norman, por sua vez, rumou para o exterior com cem mil dólares em dinheiro e duas arcas cheias de diamantes brutos de todos os tamanhos. Partiu para a Rússia num junco chinês e, seis meses depois, estava em São Petersburgo. Hospedou-se numa pensão barata e procurou imediatamente o joalheiro da corte, anunciando que tinha um diamante para o czar. Ficou duas semanas em São Petersburgo, correndo um constante risco de ser assassinado, mudando-se de pensão em pensão e temendo visitar suas arcas mais que três ou quatro vezes por quinzena.

Sob a promessa de voltar em um ano, com pedras maiores e melhores, foi-lhe permitido viajar para a Índia. Antes de partir, no entanto, o Tesouro da Corte russa depositou a seu crédito, em bancos americanos, a soma de quinze milhões de dólares — sob quatro diferentes pseudônimos.

Voltou à América em 1868, tendo ficado fora pouco mais de dois anos. Visitara a capital de vinte e dois países e falara com cinco imperadores, onze reis, três príncipes, um xá, um cã e um sultão. Naquela época, Fitz-Norman estimava sua riqueza em um bilhão de dólares. Um fato contribuiu firmemente para a preservação de seu segredo. Nenhum de seus maiores diamantes levou mais de uma semana até lhe atribuírem histórias de mortes, tragédias amorosas, revoluções e guerras que teria provocado desde os dias do primeiro império babilônico.

De 1870 até sua morte, em 1900, a história de Fitz-Norman Washington foi um longo épico tecido em ouro. Houve façanhas paralelas, naturalmente — ele escapou às inspeções, casou-se com uma moça rica da Virgínia, com a qual teve um único filho, e, devido a uma série de complicações, foi obrigado a matar seu irmão, cujo infeliz hábito de beber o levava a cometer indiscrições que punham em risco a segurança deles. Mas poucos assassinatos mancharam aqueles lindos anos de progresso e expansão.

Pouco antes de morrer, ele mudou de estratégia e, dispondo de alguns milhões de dólares de sua fortuna visível, comprou minerais raros a granel, que depositava na caixa-forte de bancos em todo o mundo, classificados como antiguidades. Seu filho, Braddock Tarleton Washington, seguiu essa política em escala ainda mais intensa. Os minerais eram convertidos no mais raro de todos os elementos — o rádio —, de forma a que o equivalente a um bilhão de dólares em ouro pudesse caber num receptáculo do tamanho de uma caixa de charutos.

Quando Fitz-Norman estava morto havia três anos, seu filho, Braddock, decidiu que o negócio já fora longe demais. A quantidade de dinheiro que ele e seu pai haviam extraído da montanha estava além de qualquer cálculo exato. Abriu uma caderneta em código, na qual anotou a quantidade aproximada de rádio em cada um dos milhares de bancos em que tinha conta, com os respectivos pseudônimos que passavam por titulares. E, então, fez uma coisa muito simples: lacrou a mina.

Lacrou a mina. O que saíra dela sustentaria em luxo indescritível todos os Washington ainda por nascer por muitas gerações a seguir. Sua única preocupação era proteger o segredo, já que o possível pânico provocado por sua descoberta o reduziria, assim como a todos os proprietários do mundo, à total pobreza.

Essa era a família que hospedava John T. Unger. Foi essa a história que ele ouviu num quarto forrado de ouro, na manhã seguinte à sua chegada.

V.

Depois do café-da-manhã, John achou o caminho para a grande entrada de mármore e olhou com curiosidade para o cenário à sua frente. Todo o vale, da montanha de diamante até o penhasco de granito a oito quilômetros de distância, desprendia um hálito de bruma dourada que pairava sobre os gramados, lagos e jardins. Aqui e ali, feixes de olmos criavam delicados sulcos de sombra, contrastando estranhamente com a massa de pinheiros que sustentava as colinas com um abraço de um verde azul-escuro. Enquanto John espiava, três corças enfileiradas surgiram de uma moita a quinhentos metros e desapareceram com sua graça desajeitada atrás de outra moita escura. John não ficaria surpreso se visse um fauno tocando flauta entre as árvores ou se captasse de relance uma pele rósea de ninfa e cabelos dourados esvoaçando entre o verde das folhas.

Como se esperasse por isso, desceu os degraus de mármore, perturbando ligeiramente o sono de dois sedosos cães russos ao pé da escadaria, e dirigiu-se a uma alameda de tijolos brancos e azuis que parecia não levar a nenhum lugar definido.

Estava adorando tudo. A felicidade da juventude, assim como sua insuficiência, é a de que ela nunca pode viver no presente. Precisa estar sempre comparando aquele dia com seu próprio futuro, radiantemente imaginado — flores e ouro, garotas e estrelas, são apenas prefigurações ou profecias daquele sonho jovem, incomparável e inatingível.

John dobrou uma esquina onde um grande número de roseiras enchia o ar com um aroma intenso e cruzou um parque na direção de uma área coberta de musgo sob algumas árvores. Nunca se deitara sobre musgo e queria verificar se ele era mesmo macio a ponto de justificar o uso da palavra como parâmetro de maciez. Nesse momento viu uma garota vindo em sua direção pelo gramado. Era a pessoa mais bonita que já vira na vida.

Estava vestida com uma camisola branca que lhe chegava até logo abaixo dos joelhos e usava no cabelo uma grinalda de minhonetes presa com fatias azuis de safira. Seus róseos pés descalços espalhavam o orvalho à medida que se aproximava. Era mais nova do que John — não mais que dezesseis anos.

“Olá”, ela disse suavemente. “Eu sou Kismine.”

Para John, ela já era muito mais do que isso. Ele avançou em sua direção, mas parou ao chegar perto, para não pisar seus pés nus.

“Ainda não nos conhecemos”, disse a voz suave. Os olhos azuis acrescentaram: “E você não sabe o que está perdendo!”... A voz suave continuou: “Ontem à noite você conheceu minha irmã Jasmine. Eu estava doente, com uma intoxicação de alface” — e a frase seguinte estava escrita em seus olhos: “Quando estou doente, sou uma gracinha e quando não estou...”.

“Você provocou uma enorme impressão em mim”, disseram os olhos de John, “e eu também não sou de se jogar fora.” — “Prazer em conhecê-la”, disse sua voz, “espero que esteja se sentindo melhor” — “querida”, seus olhos, trêmulos, completaram.

John se deu conta de que estavam passeando por uma alameda. Por sugestão dela, sentaram-se no musgo, cuja suavidade ele se esqueceu de conferir.

Ele era muito crítico em relação às mulheres. Um simples defeito — um tornozelo mais grosso, uma voz rouca, um par de óculos — era suficiente para torná-lo terrivelmente indiferente à pessoa. E agora, pela primeira vez em sua vida, via-se diante de uma garota que lhe parecia a encarnação da perfeição física.

“Você é de Boston?”, perguntou Kismine com um interesse encantador.

“Não, sou de Hades”, respondeu John com simplicidade.

Ou ela nunca ouvira falar de Hades, ou não lhe ocorreu nada agradável para comentar a respeito, porque não voltou a tocar no assunto.

“No outono, vou para uma escola no Leste”, ela disse. “Será que vai ser bom? Vou para Nova York, para a escola da senhorita Bulge. Ela é muito severa, mas posso passar os fins de semana com minha família em nossa casa de Nova York, porque papai ouviu dizer que as moças têm de andar sempre em duplas.”

“Seu pai quer que você seja uma moça altiva”, observou John.

“Nós somos”, ela respondeu, os olhos brilhando de dignidade. “Sabe que nunca recebemos um castigo? Papai disse que não podemos ser castigadas. Certa vez, quando minha irmã Jasmine era pequena, ela empurrou papai pelas escadas e ele só se levantou e saiu mancando.

“Mamãe ficou, como direi, meio espantada”, continuou Kismine, “quando você disse a ela que era de... enfim, desse lugar de onde você veio. Ela contou que quando era jovem... mas, enfim, ela é espanhola e meio antiquada.”

“Você passa muito tempo aqui?”, perguntou John, tentando esconder o fato de que estava magoado por aquela observação. Parecia uma alusão nada agradável a seu provincianismo.

“Percy, Jasmine e eu passamos sempre o verão aqui, mas no próximo verão Jasmine irá para Newport. Ela irá a Londres daqui a um ano. Vai ser apresentada à corte.”

“Você sabia”, hesitou John, “que é muito mais sofisticada do que pensei assim que vi você?”

“Ah, não, não sou mesmo”, exclamou Kismine rapidamente. “Nem quero ser. Esses jovens sofisticados são tremendamente vulgares, você não acha? Não sou mesmo. E, se você disser que sou, vou acabar chorando.”

Estava tão passada que seu lábio tremia. John sentiu-se obrigado a se corrigir:

“Não, eu não quis dizer isso. Só falei para provocar você.”

“Porque, se eu fosse, não me importaria”, ela insistiu, “mas acontece que não sou. Sou muito inocente e infantil, não fumo, não bebo e não leio nada, só poesia. Sou fraca em matemática e química, me visto de maneira simples — na verdade, nem ligo para roupas. Sofisticada é a última coisa que você pode dizer de mim. Acho que os jovens devem aproveitar a juventude o máximo que puderem.”

“Eu também acho”, concordou John, de coração.

Kismine estava alegre de novo. Sorriu para ele, e uma lágrima nascente brotou do canto de um olho azul.

“Gostei de você”, ela sussurrou com intimidade. “Vai ficar o tempo todo com Percy enquanto estiver aqui, ou será bonzinho comigo? Pense só — sou um território absolutamente virgem. Nunca tive um rapaz apaixonado por mim em toda a minha vida. Nunca me deixaram a sós com rapazes — só com Percy. Aliás, vim até o jardim porque pensei que poderia encontrar você, sem a família por perto.”

Profundamente envaidecido, John se curvou, como tinham lhe ensinado na escola de dança em Hades.

“É melhor voltarmos”, disse Kismine com doçura. “Tenho que encontrar mamãe às onze horas. Você ainda não me pediu nem um beijo. Pensei que todos os rapazes fizessem isso hoje em dia.”

John se aprumou orgulhosamente.

“Alguns, sim”, respondeu, “mas eu não. As moças não fazem esse tipo de coisa — em Hades.”

Lado a lado, voltaram para a casa.

VI.

John pôde finalmente ver o sr. Braddock Washington à luz do dia. Tinha cerca de quarenta anos, um rosto orgulhoso e neutro, olhos inteligentes e compleição robusta. De manhã, ele recendia a cavalos — cavalos de raça. Carregava um bastão comum com uma opala grande como castão. Ele e Percy mostravam a propriedade a John.

“O alojamento dos escravos é ali.” Seu bastão apontou para a esquerda, indicando um claustro de mármore em estilo gótico, que se estendia paralelo à montanha. “Na juventude, andei confundindo temporariamente o lado comercial da vida com um absurdo idealismo. Nesse período, eles gozaram de todos os luxos. Cheguei até a equipar seus quartos com banheira.”

“Imagino”, arriscou John, com um sorriso cativante, “que eles tenham usado as banheiras para guardar carvão. O senhor Schnlitzer-Murphy me contou que...”

“As opiniões do senhor Schnlitzer-Murphy têm pouca importância, a meu ver”, cortou secamente Braddock Washington. “Meus escravos não estocavam carvão nas banheiras. Tinham ordem para tomar banho todos os dias, e obedeciam. Se não obedecessem, eu seria capaz de submetê-los a jatos de ácido sulfúrico. Removi as banheiras por um motivo bem diferente. Muitos ficavam resfriados e morriam. A água não faz bem a certas raças — exceto para beber.”

John riu e decidiu fazer que sim com a cabeça, em sóbria concordância. Sentia-se mal na presença de Braddock Washington.

“Todos esses negros são descendentes dos primeiros que meu pai trouxe para o Norte. São cerca de duzentos e cinqüenta atualmente. Pode notar que eles têm vivido tão fora do mundo que seu dialeto original tornou-se um patoá quase incompreensível. Criamos alguns para falar inglês — meu secretário e dois ou três criados da casa.

“Esse é o campo de golfe”, continuou, ao caminharem por um aveludado gramado de inverno. “É um green inteiriço, como vê — sem partes lisas, sem acidentes, sem obstruções.”

Sorriu simpaticamente para John.

“Muita gente na jaula, papai?”, perguntou Percy de repente.

Braddock Washington deu um passo em falso e soltou um palavrão involuntário.

“Um a menos do que deveria haver”, respondeu sombriamente — e, após breve hesitação, acrescentou: “Temos tido dificuldades”.

“Mamãe estava me contando”, disse Percy, “sobre aquele professor italiano...”

“Erro terrível”, disse Braddock Washington com raiva. “Mas há uma boa chance de o pegarmos. Talvez tenha caído em algum buraco da floresta ou despencado de um penhasco. E há também a probabilidade de que, se conseguiu escapar, ninguém acreditará em sua história. Mesmo assim, estou com uns vinte homens procurando por ele nas cidades vizinhas.”

“Já conseguiu alguma coisa?”

“Sim. Quatorze deles informaram a meu agente que cada um matou um homem que correspondia à descrição. Mas é claro que podem estar apenas atrás da recompensa...”

Interrompeu o relato. Tinham chegado a uma grande cavidade na terra, com a circunferência de um carrossel e coberta por uma pesada grade de ferro. Braddock Washington acenou para John e apontou seu bastão para a grade. John caminhou até a borda e espiou. Imediatamente seus ouvidos foram assaltados por um violento clamor vindo lá de baixo:

“Quer conhecer o Inferno?”

“Ei, garoto, como está o tempo aí?”

“Ei, você! Jogue uma corda!”

“Tem uns biscoitos ou sanduíches sobrando?”

“Escute, moleque, se empurrar esse cara aqui embaixo, nós ensinamos para você um truque de fazer desaparecer!”

“Dê na cara dele por mim!”

Estava muito escuro no poço para se ver com nitidez, mas John podia perceber, pelo áspero humor e vitalidade daquelas vozes e piadas, que se tratava de americanos de classe média e do tipo gozador. Então, o sr. Braddock Washington estendeu seu bastão e tocou um botão na grama, iluminando o cenário lá dentro.

“São alguns infelizes fuzileiros que tiveram a má sorte de descobrir El Dorado”, informou.

O fundo da cavidade tinha a forma de uma tigela. As laterais eram altas e aparentemente de vidro polido, e, em sua superfície ligeiramente côncava, havia cerca de vinte homens vestidos com uma mistura de roupas comuns e uniformes de aviadores. Seus rostos virados para o alto estampavam o ódio, a malícia, o desespero, o humor cínico. Estavam cobertos por longas barbas, mas, com exceção de alguns nitidamente estiolados, pareciam bem alimentados e saudáveis.

Braddock Washington puxou uma cadeira de jardim para a borda do poço e sentou-se.

“Como vão, rapazes?”, perguntou jovialmente.

Um coro de insultos a que todos se juntaram, menos os que estavam muito fracos para gritar, subiu rumo ao ar ensolarado, mas Braddock Washington escutou aquilo com imperturbável compostura. Quando o eco do último xingamento se dissipou, voltou a falar:

“Já imaginaram alguma forma de sair dessa situação difícil?”

De várias partes do poço, subiram respostas.

“Não, resolvemos ficar. Adoramos este buraco.”

“Se nos tirar daqui, prometemos encontrar um jeito de sair.”

Braddock Washington esperou até que se acalmassem de novo. Então disse:

“Já expliquei a situação. Não queria vocês aí. Por mim, nunca teria visto nenhum de vocês. Foi a curiosidade que os trouxe até aqui e, se acharem um jeito de ir embora que me proteja e aos meus interesses, terei prazer em pensar no assunto. Mas, enquanto limitarem seus esforços a cavar túneis — isso mesmo, estou sabendo que acabaram de começar um novo —, isso não os levará muito longe. Sei que não está sendo tão difícil para vocês como querem que eu acredite — toda essa lamúria por suas mulheres ou família. Se fossem do tipo que se interessassem muito por mulheres ou família, não teriam escolhido a aviação.”

Um homem bem alto separou-se dos outros e levantou a mão, para chamar a atenção de seu captor.

“Posso lhe fazer algumas perguntas?”, gritou. “O senhor se diz um homem justo.”

“Que absurdo! Como um homem na minha posição pode ser justo com vocês? É o mesmo que pedir a um espanhol para ser justo com um bife.”

Diante dessa dura observação, a cara dos vinte e poucos bifes lá embaixo caiu. Mas o homem continuou:

“Está bem!”, gritou. “Já discutimos isso antes. Você não é um filantropo e também não quer ser justo. Mas é humano — pelo menos, diz que é — e deve ser capaz de se pôr no nosso lugar, nem que seja um pouco, para se convencer de que é...”

“É o quê?”

“É desnecessário...”

“Não para mim.”

“E cruel...”

“Isso também já está resolvido. A crueldade deixa de existir quando se trata de autodefesa. Vocês são soldados e sabem disso. Tentem outra.”

“Mas é estúpido!”

“Ah, sim”, admitiu Washington. “Com isso, eu concordo. Mas tente pensar numa alternativa. Já lhes ofereci uma execução indolor, individual ou coletiva, como preferirem. Já ofereci seqüestrar suas mulheres, namoradas, filhos, mães, e trazer todo mundo para cá. Posso também aumentar as instalações aí embaixo e vestir e alimentar todo mundo pelo resto da vida. Se houvesse alguma maneira de produzir amnésia permanente, já teria operado todos vocês e os libertado imediatamente, em algum lugar fora das minhas propriedades. Mas, com isso, esgotei minhas idéias.”

“Que tal confiar em que não vamos entregá-lo?”, gritou um deles.

“Esta não é uma sugestão séria”, disse Washington, com uma expressão de desprezo. “Mandei vir um professor para ensinar italiano à minha filha. Na semana passada, ele fugiu.”

Ouviu-se um urro coletivo de júbilo, saído de vinte e quatro gargantas, seguindo-se um pandemônio de alegria. Os prisioneiros dançavam e davam vivas e cantavam e lutavam uns contra os outros numa súbita explosão de delírio animal. Alguns até se atiraram nas laterais de vidro da tigela o mais alto que podiam, e deslizavam de volta para o fundo, caindo sobre as almofadas naturais que eram seus corpos. O homem alto começou a cantar, sendo logo seguido por outros:

Vamos enforcar o cáiser

No alto da macieira...

Braddock Washington continuou sentado em inescrutável silêncio, esperando a canção terminar.

“Estão vendo?”, continuou, quando sentiu que teria um mínimo de atenção. “Não tenho rancor por vocês. Gosto de vê-los se divertindo. Foi por isso que não lhes contei a história inteira. O homem — como se chamava mesmo? — foi fuzilado por alguns de meus agentes em quatorze lugares diferentes.”

Sem adivinhar que os lugares a que ele se referira eram cidades, os prisioneiros diminuíram imediatamente o tumulto.

“De qualquer maneira”, gritou Washington com fúria na voz, “ele tentou escapar. Acham que vou correr o risco com vocês depois dessa experiência?”

De novo, ouviu-se um coro de gozações.

“Claro!”

“Sua filha não quer aprender chinês?”

“Olhe, eu sei falar italiano. Minha mãe era carcamana!”

“Quem sabe ela não quer falar novaiorquês?”

“Se for aquela pequeninha de olhos azuis, posso ensinar-lhe coisa melhor que italiano!”

“Conheço algumas canções irlandesas...”

O sr. Washington inclinou-se para a frente com seu bastão, apertou o botão na grama e o quadro lá embaixo apagou-se num instante, só restando a grande boca escura tristemente coberta pelos dentes negros da grade.

“Escute”, gritou uma voz solitária, “já vai embora sem nos dar sua bênção?”

Mas o sr. Washington, seguido pelos dois rapazes, já se encaminhava para o nono buraco do campo de golfe, como se o poço e seu conteúdo não passassem de uma pequena elevação na grama, facilmente dominável por seu taco.

VII.

Julho, sob o manto da montanha de diamante, era um mês de noites abafadas e dias quentes e gloriosos. John e Kismine estavam apaixonados. Ele não sabia que a bolinha de ouro que lhe dera (com a inscrição gravada Pro deo et patria et St. Mida) descansava em seu peito, presa a uma corrente de platina. E Kismine, por sua vez, não percebeu que uma grande safira que um dia se desprendera de seu cabelo estava carinhosamente guardada na caixinha de jóias de John.

Num certo fim de tarde, quando a sala de música, nas cores rubi e arminho, ficou silenciosa, eles passaram uma hora juntos ali. Ele lhe segurou a mão e ela respondeu com um olhar que o fez sussurrar seu nome em voz alta. Ela se inclinou para ele — e hesitou.

“Você disse ‘Kismine’?”, ela perguntou suavemente, “ou...”

Queria ter certeza. Pensou que tivesse entendido mal.

Os dois ainda não tinham se beijado, mas, no decorrer de uma hora, isso pareceu não fazer diferença.

A tarde se dissipou. Naquela noite, quando o último suspiro de música volatizou-se da torre mais alta, nenhum dos dois conseguia dormir, sonhando com cada minuto do dia. Tinham decidido casar-se o mais rápido possível.

VIII.

Todos os dias, o sr. Washington e os dois rapazes iam caçar ou pescar no fundo da floresta, jogar golfe — John, diplomaticamente, deixava seu anfitrião ganhar — ou nadar no lago frio da montanha. John achava o sr. Washington um homem difícil — totalmente desinteressado de quaisquer idéias ou opiniões que não fossem as suas. A sra. Washington era distante e reservada. Parecia indiferente às duas filhas e inteiramente concentrada em seu filho Percy, com quem tinha intermináveis conversas em espanhol no jantar.

Jasmine, a filha mais velha, era parecida com Kismine — exceto pelas pernas ligeiramente arqueadas e pelos pés e mãos grandes —, mas era completamente diferente em temperamento. Seus livros favoritos contavam histórias de garotas pobres que sustentavam pais enviuvados. John soube por Kismine que Jasmine nunca se recuperara do choque e desapontamento provocados pelo fim da Guerra Mundial, porque estava prestes a ir para a Europa como especialista em cantinas de acampamento. Ficara até deprimida por algum tempo, e Braddock Washington tomara medidas para promover uma nova guerra nos Bálcãs, mas Jasmine viu uma foto de soldados sérvios feridos e perdeu o interesse pelo negócio. Percy e Kismine pareciam ter herdado a postura arrogante do pai, em toda a sua cruel magnificência. Um egoísmo casto e consistente permeava cada uma de suas idéias.

John estava encantado pelas maravilhas do castelo e do vale. Braddock Washington — foi o que Percy lhe contou — providenciara o seqüestro de um paisagista, um arquiteto, um decorador de interiores e um decadente poeta francês, sobrevivente do último século. Pôs os negros às suas ordens, garantiu-lhes que teriam toda espécie de material disponível no mundo e deixou-os livres para desenvolver suas próprias idéias. Mas, um por um, eles começaram a se mostrar inúteis. O poeta decadente quase imediatamente foi tomado de saudade dos bulevares na primavera — fez algumas vagas observações sobre ervas, macacos e marfins, mas não disse nada de valor prático. O decorador, por sua vez, queria fazer de todo o vale uma série de truques e efeitos sensacionais — algo de que os Washington não demorariam a se cansar. E, quanto ao arquiteto e ao paisagista, só pensavam em termos convencionais. Isto tinha de ser feito de um jeito e aquilo de outro.

Mas, pelo menos, tinham resolvido o problema do que fazer com eles — certa manhã, todos enlouqueceram depois de passar a noite num único quarto tentando decidir sobre a localização de um chafariz, e estavam agora confortavelmente internados num hospício em Westport, Connecticut.

“Mas”, perguntou John com curiosidade, “quem planejou esses magníficos quartos e salões, corredores e banheiros...?”

“Olhe”, respondeu Percy, “tenho até vergonha de contar, mas foi um sujeito do cinema. Foi o único que encontramos habituado a lidar com uma quantidade ilimitada de dinheiro, embora não soubesse ler nem escrever.”

À medida que agosto chegava ao fim, John começou a lamentar que logo tivesse de voltar para a escola. Ele e Kismine haviam decidido fugir em junho do ano seguinte.

“Seria tão melhor se a gente se casasse aqui”, confessou Kismine. “Mas é claro que papai nunca me deixaria casar com você. É terrível para pessoas ricas se casarem nos Estados Unidos hoje em dia — precisam plantar notas na imprensa dizendo que vão se casar usando material de segunda mão, quando estão se referindo a pérolas ou a um colar que pertenceu um dia à imperatriz Eugênia.”

“Eu sei”, concordou John entusiasticamente. “Quando eu estava visitando a família Schnlitzer-Murphy, a filha mais velha, Gwendolyn, se casou com um sujeito que era dono de metade da Virgínia. Ela escreveu para os pais dizendo como era duro viver com o salário dele, de funcionário de banco, e terminava dizendo ‘Graças a Deus, tenho quatro empregadas, e isso ajuda um pouco’.”

“É um absurdo”, comentou Kismine. “Pense nos milhões e milhões de pessoas no mundo, trabalhadores e gente assim, que sobrevivem com apenas duas empregadas.”

Certa tarde, no fim de agosto, uma observação casual de Kismine mudou a situação e pôs John num estado de terror.

Estavam em sua alameda favorita e, entre um beijo e outro, John se entregava a certas digressões românticas que, para ele, davam um tom mais pungente a seu relacionamento.

“Às vezes acho que nunca vamos nos casar”, ele disse com tristeza. “Você é rica demais, maravilhosa demais. Uma pessoa tão rica não pode ser como as outras moças. Eu devia me casar era com a filha de algum próspero atacadista de ferragens de Omaha ou Sioux City, e me contentar com o meio milhão de dólares que ela vai herdar.”

“Conheci a filha de um atacadista de ferragens”, disse Kismine. “Não acho que você fosse gostar dela. Era amiga de minha irmã. Veio nos visitar.”

“Ah, então vocês tiveram outros hóspedes?”, perguntou John, surpreso.

Kismine pareceu arrependida de ter aberto a boca.

“Ah, sim”, respondeu apressada, “alguns.”

“Mas vocês... seu pai não tem medo de que as pessoas falem sobre isto aqui?”

“Até certo ponto, até certo ponto. Vamos falar de coisas mais agradáveis.”

Mas a curiosidade de John tinha sido aguçada.

“Coisas mais agradáveis?”, ele perguntou. “O que há de desagradável nisso? Não eram pessoas interessantes?”

Para sua grande surpresa, Kismine começou a chorar.

“Eram... elas... esse é o prob... problema. Fiquei mu... muito ligada a algumas delas. Jasmine também, mas ela continuou convidando-as do mesmo jeito. Eu não conseguia entender.”

Uma negra suspeita surgiu no coração de John.

“Você quer dizer que elas falaram e que seu pai teve de removê-las?”

“Pior que isso”, ela murmurou, aos soluços. “Papai não quis se arriscar... e Jasmine continuou escrevendo para elas voltarem. E elas tinham se divertido tanto!”

Kismine foi tomada por um paroxismo de dor.

Chocado com o horror dessa revelação, John sentou-se, de boca aberta, sentindo tremer cada nervo de seu corpo, como se milhares de pardais bicassem sua espinha.

“Pronto, já contei, e não devia ter contado”, ela disse, acalmando-se subitamente e enxugando os olhos azuis.

“Isso significa que seu pai as matou enquanto elas estavam aqui?”

Ela concordou.

“É quase sempre em agosto — ou no começo de setembro. Mas, antes, tiramos todo o prazer que podemos ter com essas visitas.”

“Mas isso é abominável! Como... ora, devo estar ficando louco! Você acabou de admitir que...?”

“Foi”, interrompeu Kismine, dando de ombros. “Elas não podem ficar presas aqui, como aqueles aviadores, porque seria uma vergonha para nós, todos os dias. E papai sempre procurou tornar as coisas mais fáceis para Jasmine e para mim, fazendo a coisa antes que a gente esperasse. Assim, nós éramos poupadas de alguma cena de despedida...”

“Então vocês as matavam!”, gritou John.

“Mas sempre foi feito de maneira muito boa. Eram drogadas enquanto dormiam, e suas famílias eram comunicadas de que tinham morrido de escarlatina em Butte.”

“O que eu não entendo é... por que continuaram convidando?”

“Eu nunca convidei ninguém”, explodiu Kismine. “Jasmine, sim. E elas sempre se divertiram muito. Ela lhes dava os presentes mais lindos, quando já estava perto do fim. Eu também terei minhas visitas, eu acho... vou acabar me acostumando. Não podemos deixar que uma coisa inevitável como a morte nos impeça de gozar a vida. Pense em como isto aqui seria tão solitário se nunca tivéssemos ninguém. Ora, papai e mamãe sacrificaram alguns de seus melhores amigos, assim como nós sacrificamos os nossos.”

“E com isso”, gritou John, acusadoramente, “você me deixou namorá-la, e fingia corresponder, falando de casamento, sabendo muito bem que eu nunca vou sair vivo daqui...”

“Não”, ela protestou apaixonadamente. “Não mais. No começo, sim. Você estava aqui. Eu não podia evitar, e pensei que os seus últimos dias podiam ser o mais agradável possível para nós dois. Mas aí eu me apaixonei por você e... e estou sofrendo porque você terá de... ser removido... embora eu prefira isso a saber que você está beijando outra moça.”

“Ah, é? Ah, é?”, a voz de John tremia de ódio. “Pra mim, chega. Se você não tem orgulho e decência, e se dispõe a namorar um sujeito que já é quase um cadáver, não quero mais saber de você.”

“Você não é um cadáver!”, ela disse com horror. “Você não é um cadáver! Não vou deixar você dizer que beijei um cadáver!”

“Eu não disse isso!”

“Disse, sim. Disse que eu beijei um cadáver!”

“Não disse!”

Suas vozes tinham se levantado, mas, depois de uma súbita interrupção, ambas reduziram-se a um imediato silêncio. Ouviram passos vindos da alameda em sua direção e, daí a um momento, as roseiras se separaram, dando passagem a Braddock Washington, cujos olhos inteligentes no rosto vazio e bonito fixaram-se neles.

“Quem beijou um cadáver?”, ele perguntou, obviamente irritado.

“Ninguém”, respondeu Kismine. “Estávamos só brincando.”

“O que estão fazendo aqui?”, continuou, com voz brusca. “Kismine, você deveria estar... estar lendo ou jogando golfe com sua irmã. Vá ler! Vá jogar golfe! Não quero encontrá-la por aqui quando voltar!”

Curvou-se para John e saiu pela estrada.

“Está vendo?”, disse Kismine, contrariada. “Você estragou tudo! Nunca mais poderemos nos encontrar. Ele não vai me deixar ver você de novo. Ele envenenará você se descobrir que estamos apaixonados.”

“Mas não estamos! Não estamos mais”, gritou John. “Ele pode ficar descansado quanto a isso. Além do mais, não se iluda se acha que vou continuar aqui. Em menos de seis horas estarei longe dessas montanhas, nem que tenha de roer a pedra para abrir uma passagem de volta para casa.”

Os dois tinham se posto de pé e, ao ouvir aquilo, Kismine aproximou-se e enlaçou-o.

“Eu vou com você!”

“Você deve estar louca...”

“Claro que vou.”

“Claro que não vai. Você...”

“Está bem”, ela disse com tranqüilidade. “Vamos correr atrás de papai agora e falar a respeito com ele.”

Derrotado, John deixou escapar um sorriso amarelo.

“Está bem, querida”, concordou, com um afeto pálido e pouco convincente. “Vamos juntos.”

O amor por ela voltou e instalou-se placidamente em seu coração. Ela lhe pertencia — ela o acompanharia para partilhar seus perigos. Enlaçou-a e se beijaram com fervor. Afinal, ela o amava; e, na verdade, o salvara.

Discutindo o assunto, caminharam lentamente de volta para o castelo. Decidiram que, como Braddock Washington os vira juntos, seria melhor partirem na noite seguinte. Mesmo assim, os lábios de John estavam extraordinariamente secos durante o jantar e ele, nervoso, despejou uma colherada de sopa de pavão em seu pulmão esquerdo. Teve de ser carregado para o salão de jogos e levar tapas nas costas, aplicados pelos mordomos, o que Percy achou muito divertido.

IX.

Alta madrugada, John teve um espasmo nervoso e, com um rompante, aprumou-se na cama, olhando para os véus de sonolência que ornavam o quarto. Pelos quadrados de azul-escuro das janelas abertas, ouviu um som fraco e à distância, que foi levado pelo vento antes que sua memória, turvada por sonhos inquietos, pudesse identificá-lo. Mas o ruído agudo que o sucedera viera de mais perto e estava bem do lado de fora do quarto — o clique de uma maçaneta, alguns passos, um sussurro, ele não sabia dizer. Um bolo duro formou-se na boca de seu estômago e todo seu corpo pareceu doer enquanto ele se esforçava, agoniado, para escutar. Depois, um dos véus pareceu dissolver-se e viu uma vaga figura de pé junto à porta, uma figura só a custo discernível e envolta pela escuridão, tão misturada às dobras do cortinado a ponto de parecer distorcida, como um reflexo visto por um vidro sujo.

Com um brusco movimento de medo ou resolução, John apertou o botão de sua cabeceira e, um instante depois, estava sentado na banheira do quarto adjacente, acordado e alerta pelo choque da água fria que a enchia pela metade.

Pulou dali e, com seu pijama ensopado deixando um pesado rastro de água pelo chão, correu para a porta que ele sabia dar para o deque de marfim no segundo andar. A porta se abriu sem barulho. Uma única lâmpada vermelha acesa na cúpula iluminava com uma beleza pungente o magnífico lance de escadas. Por um momento John hesitou, esmagado pelo esplendor maciço e silente ao redor, cujas dobras e contornos pareciam envolver sua figura frágil, ensopada e trêmula no chão de marfim. Então, simultaneamente, duas coisas aconteceram. A porta da sala de estar se escancarou e por ela se precipitaram três negros nus — e, enquanto John se desviava aterrorizado rumo à escadaria, outra porta deslizou, abrindo-se numa parede no lado contrário do corredor — e John viu Braddock Washington de pé, no elevador iluminado, usando um casaco de pele e botas de montaria que chegavam aos joelhos e deixavam entrever o brilho de seu pijama rosa.

Naquele momento, os três negros — John nunca os vira antes e ocorreu-lhe que deviam ser os carrascos profissionais — estacaram diante de John e olharam, expectantes, para o homem no elevador, o qual emitiu uma ordem explosiva:

“Venham cá! Os três! Já!”

No mesmo instante, os três negros correram para o elevador, cuja porta se fechou apagando o oblongo de luz, e John viu-se de novo sozinho na sala. Deixou-se cair, vencido, sobre um degrau de marfim.

Era visível que algo importante acontecera, algo que, pelo menos por enquanto, adiara seu destino. Mas o quê? Os negros teriam se revoltado? Os aviadores teriam conseguido forçar as barras de ferro da jaula? Ou seriam os homens de Fish que teriam se aventurado cegamente pelas colinas e espiado, com seus olhos baços e sem alegria, as maravilhas do vale? John não sabia. Ouviu um silvo fugidio de vento quando o elevador zuniu ao subir de novo e, de novo, um momento depois, ao descer. Era provável que Percy estivesse ajudando o pai, e ocorreu a John que esta era sua oportunidade para procurar Kismine e planejarem uma fuga imediata. Esperou até que o elevador ficasse silencioso por vários minutos. Tremendo com o frio da noite que o chicoteava através do pijama molhado, voltou para seu quarto e se vestiu correndo. Depois, subiu um longo lance de escadas e virou no corredor acarpetado de marta que levava à suíte de Kismine.

A porta da ante-sala estava aberta e as lâmpadas acesas. Kismine, num quimono angorá, postava-se junto à janela numa atitude de escuta e, quando John entrou sem fazer barulho, ela se virou.

“Ah, é você!”, sussurrou, correndo em sua direção. “Você ouviu?”

“Ouvi os escravos de seu pai em meu...”

“Não”, ela interrompeu, excitada. “Os aviões!”

“Aviões? Vai ver que foi esse o som que me acordou.”

“Devem ser pelo menos uma dúzia. Vi um deles agorinha mesmo, delineado contra a lua. O vigia no alto do penhasco disparou o rifle e foi isso que acordou papai. Vamos ter de atirar contra eles.”

“Estão aqui de propósito?”

“Sim... foi aquele italiano que escapou...”

Simultaneamente com sua última palavra, uma sucessão de estampidos agudos penetrou pela janela aberta. Kismine deu um gritinho, tirou com dedos nervosos uma moeda de uma caixa em sua penteadeira e correu para uma das lâmpadas elétricas. Num instante, todo o castelo estava em trevas — ela havia queimado um fusível.

“Venha!”, gritou para ele. “Vamos para o jardim da cobertura, de onde se pode ver melhor.”

Jogando uma capa nos ombros, ela o tomou pela mão e eles encontraram o caminho no escuro até a porta. Era só um passo até o elevador da torre e, ao apertar o botão que os levaria para cima, ele a abraçou e a beijou na boca. O romance finalmente acontecera na vida de John Unger. Um minuto depois, já tinham chegado à plataforma estrelada. Lá em cima, entrando e saindo das nesgas de nuvens sob a lua baça, flutuavam dez ou mais corpos de asas escuras num constante movimento circular. De alguns pontos do vale, jatos de fogo subiam na direção deles, seguidos por detonações. Kismine batia palmas de prazer, prazer este que, logo depois, converteu-se em terror quando os aviões, seguindo alguma senha pré-combinada, começaram a despejar bombas e todo o vale tornou-se um espetáculo de som e luz que reverberava como uma tempestade.

Em pouco tempo, o alvo dos atacantes concentrou-se nos pontos onde se situavam as baterias antiaéreas, e uma delas foi reduzida a um monte de cinzas ardendo entre os arbustos cor-de-rosa.

“Kismine”, implorou John, “esse ataque aconteceu na véspera de meu assassinato. Se eu não tivesse ouvido o tiro do vigia no penhasco, estaria morto agora...”

“Não estou ouvindo”, gritou Kismine, concentrada na cena à sua frente. “Fale mais alto!”

“Eu disse”, berrou John, “que é melhor darmos o fora daqui antes que eles comecem a bombardear o castelo!”

De repente, o pórtico do alojamento dos negros explodiu. Um gêiser de fogo elevou-se das colunatas e grandes fragmentos de mármore foram atirados tão longe que quase chegaram às margens do lago.

“Lá se vão cinqüenta mil dólares de escravos”, disse Kismine, “preço de antes da guerra. As pessoas neste país já não têm respeito pela propriedade.”

John esforçou-se de novo para convencê-la a saírem dali. A mira dos aviões estava ficando mais precisa a cada minuto, e apenas dois dos ninhos antiaéreos continuava disparando. Era evidente que a guarnição, cercada pelo tiroteio, não resistiria por muito tempo.

“Vamos!”, gritou John, puxando o braço de Kismine, “temos de cair fora. Os aviadores nos matarão assim que nos encontrarem.”

Ela consentiu com relutância.

“Temos de avisar Jasmine!”, disse, correndo para o elevador. E acrescentou, com deleite quase infantil: “Vamos ser pobres, não vamos? Como as pessoas nos livros. Eu serei uma órfã, completamente livre. Livre e pobre! Que maravilha!”. Parou e levou seus lábios aos dele num beijo encantado.

“É impossível ser as duas coisas ao mesmo tempo”, disse John com voz amarga. “As pessoas já descobriram isso. E, se for preciso escolher, prefiro ser livre. Por via das dúvidas, é melhor você despejar o conteúdo da sua caixa de jóias nos seus bolsos.”

Dez minutos depois, as duas garotas encontraram John no corredor escuro e eles desceram até o piso principal do castelo. Atravessando pela última vez a magnificência dos salões, pararam por um momento no terraço para observar o alojamento dos escravos se incendiando e as brasas flamejantes de dois aviões que haviam caído no outro lado do lago. Uma arma solitária ainda mantinha uma firme resistência, e os atacantes pareciam temerosos de voar mais baixo, mas continuavam despejando foguetes trovejantes em volta do alojamento, até que um tiro mais feliz aniquilasse o resto dos etíopes.

John e as duas irmãs desceram a escadaria de mármore, viraram à esquerda e começaram a subir por uma passagem estreita que serpenteava pela montanha de diamante. Kismine conhecia um lugar com uma espessa vegetação na metade da encosta; lá, poderiam se esconder e ainda espiar a noite selvagem no vale — e finalmente escapar, quando fosse necessário, por um caminho secreto num barranco rochoso.

X.

Eram três da manhã quando chegaram a seu destino. Jasmine, apagada e apática, dormiu imediatamente, recostada ao tronco de uma árvore grossa, enquanto John e Kismine sentaram-se abraçados e contemplaram o fluxo e o refluxo da batalha entre as ruínas de um cenário que, naquela mesma manhã, fora um jardim. Pouco depois das quatro, a última arma remanescente produziu seu derradeiro clangor e desapareceu numa língua de fumaça vermelha. Embora a lua estivesse baixa, eles podiam ver as aeronaves voando em círculos cada vez mais perto da terra. Quando os aviões se certificassem de que os sitiados já não tinham recursos de defesa, iriam aterrissar, e o reinado sombrio e brilhante dos Washington estaria terminado.

Com o cessar-fogo, o vale se aquietou. As brasas dos dois aviões abatidos incandesciam sobre a grama como os olhos de um monstro agonizante. O castelo estava escuro e silencioso, lindo mesmo sem luz, como era lindo ao sol, enquanto o rufar de Nêmesis enchia o ar de lamúria. Então John percebeu que, a exemplo da irmã, Kismine também adormecera.

Passava muito das quatro quando ele ouviu passos no caminho por onde tinham vindo, e esperou em silêncio, sem respirar, até que as pessoas que os produziam passassem por eles. Houve um pequeno rebuliço na atmosfera, que não parecia de origem humana, e o orvalho estava frio; ele sabia que o dia não demoraria a nascer. John esperou até que os passos estivessem a uma distância segura na montanha e ficassem inaudíveis. A meio caminho do penhasco, as árvores definhavam e uma lombada de rocha se espalhava sobre o diamante. Pouco antes de chegar a esse ponto, retardou o passo, advertido por algum sentido animal de que havia vida nas proximidades. Chegando a uma pedra alta e arredondada, levantou a cabeça aos poucos sobre a borda. Sua curiosidade foi recompensada, pois foi isto o que ele viu:

Braddock Washington de pé, imóvel, silhuetado contra o céu cinzento, sem um som ou sinal de vida. A alvorada, ao surgir do leste e ao emprestar à terra uma luz fria e verde, revelava a figura solitária em insignificante contraste com o novo dia.

Sob as vistas de John, seu anfitrião ficou por alguns momentos absorto em alguma contemplação inescrutável. Em seguida, fez sinal para dois negros, que se agacharam para levantar do chão uma carga. Quando, com esforço, eles se aprumaram, o primeiro raio amarelo do sol atingiu os inúmeros prismas de um enorme diamante, lindamente cinzelado, e gerou uma radiação branca que atravessou o ar como fragmentos de uma estrela da manhã. Os carregadores cambalearam ao seu peso, mas depois seus músculos se encresparam e endureceram sob o brilho úmido da pele, e as três figuras estavam de novo imóveis em sua desafiadora impotência diante dos céus.

Mais um pouco e o homem branco levantou a cabeça e lentamente esticou os braços como quem pede atenção — como quem pede silêncio a uma multidão. Mas não havia multidão, apenas o vasto silêncio da montanha e do céu, quebrado por fugidios pios de pássaros nas árvores. A figura de pé na pedra começou a falar lentamente e com um orgulho inextinguível.

“Você...”, gritou com voz trêmula. “Você!” Fez uma pausa, os braços ainda erguidos, a cabeça levantada como quem esperasse uma resposta. John forçou os olhos para ver se via alguém descendo a montanha, mas ela parecia nua de vida humana. Só havia o céu e a flauta brincalhona de vento no arvoredo. Washington estaria rezando? Por um momento, foi o que John pensou. Então a ilusão se dissipou — havia algo na atitude do homem que era o contrário de uma prece.

“Ei! Você aí em cima!”

A voz se tornara forte e confiante. Não havia súplica ou desalento. No máximo, parecia tingida de uma monstruosa condescendência.

“Você aí...”

Palavras ditas muito depressa para ser entendidas brotavam umas atrás das outras. John ouvia sem respirar, captando uma frase aqui e ali, enquanto a voz falhava, era retomada, falhava de novo — ora forte e argumentativa, ora turvada por uma lenta e confusa impaciência. Então, uma certeza começou a nascer na mente do ouvinte solitário e, assim que foi tomado por ela, um jato de sangue percorreu-lhe as artérias. Braddock Washington estava tentando subornar Deus!

Era isso, não havia dúvida. O diamante nos braços dos escravos era uma espécie de adiantamento, uma amostra do que ele poderia oferecer.

Essa, como John estava percebendo, era a mensagem que se entendia nas frases. Um Prometeu Enriquecido invocava sacrifícios, rituais esquecidos, preces obsoletas antes do nascimento de Cristo. Por um momento, seu discurso tentou lembrar Deus desta ou daquela oferenda que a Divindade já se dignara a aceitar dos homens — grandes igrejas para salvar cidades de alguma peste, presentes de ouro e mirra, vidas humanas, belas mulheres e exércitos cativos, crianças e rainhas, animais do campo e da floresta, carneiros e bodes, safras e cidades, vastas terras ofertadas em luxúria e sangue para apaziguá-Lo, tudo para comprar um quinhão de alívio na ira divina — e agora, ele, Braddock Washington, Imperador dos Diamantes, rei e pároco da idade do ouro, árbitro do esplendor e da luxúria, oferecia-Lhe um tesouro com que nenhum príncipe antes dele sequer sonhara, oferecia-Lhe não em súplica, mas com orgulho.

Ele daria a Deus, continuou (e descendo a especificações), o maior diamante do mundo. Esse diamante seria cortado com milhares de facetas a mais do que havia de folhas numa árvore e, mesmo assim, o diamante inteiro teria a perfeição de uma pedra não maior que uma mosca. Muitos homens trabalhariam nele por muitos anos. Seria colocado num domo de ouro lavrado, maravilhosamente esculpido e equipado com portões de opala e incrustações de safira. No centro seria escavada uma capela encimada por um altar de rádio iridescente e mutante, que queimaria os olhos de qualquer fiel que levantasse os olhos durante a prece — e, nesse altar, dar-se-iam sacrifícios para o Benfeitor Divino de qualquer vítima que Ele escolhesse, mesmo que fosse o maior e mais poderoso homem do mundo.

Em troca, Braddock pedia apenas uma coisa, uma coisa que, para Deus, seria absurdamente fácil — que a situação revertesse à de ontem àquela mesma hora e assim continuasse. Tão simples! Bastava fazer com que os céus se abrissem, engolindo aqueles homens e seus aviões — e depois se fechasse de novo, trazendo seus escravos mais uma vez à vida.

Nunca existira alguém com quem Braddock precisasse apostar ou barganhar.

Ele se perguntava apenas se sua oferta de suborno era grande o bastante. Deus teria Seu preço, é claro. Deus era feito à imagem do homem, assim se dizia. Ele devia ter Seu preço. Mas sua oferta era esplêndida — nenhuma catedral cuja construção tivesse consumido muitos anos, nenhuma pirâmide levantada por dez mil operários poderiam comparar-se à sua catedral, à sua pirâmide.

Fez uma pausa. Aquela era a sua proposta. Tudo seguiria suas especificações e não havia nada de vulgar em sua afirmação de que pedia pouco para o que estava dando. Queria dizer que, para a Providência, era pegar ou largar.

Ao se aproximar da conclusão, suas frases saíram trêmulas, curtas e incertas, e seu corpo parecia tenso e cansado para captar o mais leve sussurro de vida nos espaços em volta. Seu cabelo ficara gradualmente branco enquanto falava e, agora, ele levantava a cabeça na direção do céu como um profeta antigo, deslumbrantemente louco.

Enquanto John a tudo observava com atônita fascinação, parecia-lhe que um curioso fenômeno acontecia em algum lugar ao redor. Foi como se o céu escurecesse por um instante, como se houvesse um súbito murmúrio numa rajada do vento, um som de trombetas distantes, um suspiro como o farfalhar de um grande roupão de seda — por algum tempo, toda a natureza partilhou essa escuridão; os pássaros pararam de cantar; as árvores ficaram imóveis; e, no alto da montanha, ouviu-se o ronco de um trovão surdo e ameaçador.

Só isso. O vento morreu na vegetação alta do vale. A aurora e o dia retomaram seu lugar no tempo e o sol despejou ondas quentes de bruma amarela que iluminaram a estrada a seus pés. As folhas gargalharam ao sol, e esse riso sacudiu as árvores até que cada galho lembrasse uma escola de meninas na terra das fadas. Deus recusara o suborno.

Por outro momento, John contemplou o triunfo do dia. Em seguida, ao virar-se, viu um alvoroço marrom perto do lago, depois outro alvoroço, depois outro mais, como a dança de anjos dourados aterrissando das nuvens. Eram os aviões descendo à terra.

John deslizou pela pedra e desceu correndo a montanha até o bosque, onde as duas moças estavam acordadas e esperando por ele. Kismine pôs-se de pé, com as jóias tilintando em seus bolsos e uma pergunta nos lábios abertos. Mas o instinto disse a John que não havia tempo para muitas palavras. Tinham de abandonar a montanha sem perder um momento. Tomou cada uma pela mão e, em silêncio, caminharam entre os troncos, todos agora banhados de luz e da bruma nascente. Às suas costas, no vale, não se ouvia um som, exceto o produzido pelos pavões e o agradável meio-tom das manhãs.

Quando já tinham caminhado cerca de um quilômetro, desviaram-se do parque e ingressaram por outro caminho que levava à próxima elevação do terreno. No ponto mais alto dele, pararam e olharam para trás. Seus olhos pousaram sobre a montanha que tinham acabado de deixar — sufocada por alguma negra sensação de iminência.

Recortado contra o céu, um homem alquebrado e de cabelos brancos descia lentamente a encosta, seguido por dois negros gigantescos e apáticos, carregando algo que ainda faiscava e refulgia ao sol. A meio caminho, duas outras figuras juntaram-se a eles — John podia ver que eram a sra. Washington e seu filho, em cujo braço ela se apoiava. Os aviadores tinham descido de suas máquinas no gramado defronte ao castelo e, com os rifles em punho, começavam a subir a montanha de diamante em formação dispersa.

Mas o grupo de cinco pessoas que se formara lá no alto e atraía a atenção de todos os observadores parara numa saliência da rocha. Os negros se abaixaram e puxaram o que parecia ser um alçapão no lado da montanha, pelo qual todos desapareceram — primeiro o homem de cabelo branco, depois a mulher e o filho e, finalmente, os dois negros, com o brilho das jóias em seus turbantes refletindo o sol por um instante antes que o alçapão se fechasse e engolfasse a todos.

Kismine segurou o braço de John.

“Ah”, gritou, desesperada, “para onde estão indo? O que vão fazer agora?”

“Deve ser algum caminho subterrâneo de fuga...”

Os gritos das duas meninas interromperam sua frase.

“Mas você não sabe!”, soluçou Kismine histericamente. “A montanha é eletrificada.”

John fez de suas mãos um escudo para proteger a vista. Diante de seus olhos, a superfície inteira da montanha mudou subitamente para um amarelo flamejante, que brotou da camada de turfa como a luz que atravessa a mão humana. O brilho insuportável continuou por alguns segundos e depois desapareceu, como um filamento que se extinguisse, revelando um deserto negro do qual saiu lentamente uma fumaça azul, levando com ela o que restara de vegetação e de carne humana. Dos aviadores, não sobrou sangue nem osso — tinham sido consumidos tão completamente quanto as cinco almas que haviam entrado pelo alçapão.

Simultaneamente, e com uma tremenda concussão, o castelo literalmente despedaçou-se no ar, explodindo em fragmentos incendiários que, ao descer, assentaram-se numa pilha enfumaçada, metade da qual foi parar no lago. Não havia fogo — apenas a fumaça, levada pelo vento e misturada à luz do sol, e, por mais alguns minutos, a grossa poeira do mármore, espanada da grande pilha disforme que, um dia, tinha sido a casa das jóias. Já não se ouvia nenhum som e os três jovens estavam sozinhos no vale.

XI.

Ao pôr-do-sol, John e suas duas companheiras chegaram ao penhasco que definia os limites do domínio dos Washington e, olhando para trás, contemplaram o vale tranqüilo e adorável sob o lusco-fusco. Sentaram-se para comer o que sobrara na cesta trazida por Jasmine.

“Olhe”, ela disse, estendendo a toalha no chão e empilhando alguns sanduíches sobre ela. “Não são uma tentação? Sempre achei que a comida fica mais gostosa ao ar livre.”

“Com essa observação”, disse Kismine, “Jasmine ingressa na classe média.”

“Bem”, disse John, com ansiedade, “virem os bolsos pelo avesso e vamos ver que jóias vocês trouxeram. Se souberam escolher, nós três podemos viver com conforto pelo resto da vida.”

Obedientemente, Kismine enfiou a mão em seu bolso e tirou dois punhados de pedras brilhantes.

“Nada mal”, gritou John, entusiasmado. “Não são muito grandes, mas...” Sua expressão mudou ao examinar uma das pedras contra a luz já fugidia. “Isso não são diamantes! Há alguma coisa errada!”

“Meu Deus!”, exclamou Kismine com um olhar espantado. “Como sou burra!”

“Ora, isto é bijuteria!”, gritou John.

“Eu sei”, ela riu. “Abri a gaveta errada. Eram do vestido de uma menina que visitou Jasmine. Troquei com ela por diamantes de verdade. Nunca tinha visto nada a não ser pedras preciosas.”

“E foi isto que você trouxe?”

“Acho que sim.” Manuseou os brilhantes sofregamente. “No fundo, gosto mais deles. Estou um pouco cansada de diamantes.”

“Muito bem”, disse John, amuado. “Vamos ter de morar em Hades. E você vai envelhecer contando a amigas incrédulas que um dia abriu a gaveta errada. Infelizmente, os talões de cheques de seu pai queimaram junto com ele.”

“E daí, qual o problema com Hades?”

“Se eu voltar para casa com uma menina da minha idade, meu pai é bem capaz de não me deixar um tostão.”

Jasmine intercedeu.

“Gosto de lavar roupa”, disse com tranqüilidade. “Sempre gostei de lavar meus lenços. Vou lavar roupa para viver e sustentar vocês dois. Eles precisam de lavadeiras em Hades?”, perguntou inocentemente.

“Claro”, respondeu John. “É como em qualquer lugar.”

“Pensei... pensei que, como é muito quente, talvez não usassem roupas.”

John riu.

“Experimente!”, sugeriu. “Você será expulsa da cidade só por pensar nisso!”

“Papai estará lá?”, ela perguntou.

John virou-se para Kismine, espantado.

“Seu pai está morto”, respondeu com gravidade. “E por que ele iria para Hades? Você confundiu o nome com o de outro lugar que também se extinguiu há muito tempo.”*

Terminando de comer, dobraram a toalha e espalharam seus cobertores para passar a noite.

“Que sonho foi aquilo tudo”, suspirou Kismine, olhando para as estrelas. “Como é estranho estar aqui com um único vestido e um noivo sem dinheiro!

“Essas estrelas”, ela continuou. “Nunca tinha reparado nelas. Sempre pensei que fossem diamantes enormes que pertencessem a alguém. Agora elas me assustam. Me fazem achar que foi tudo um sonho, toda a minha juventude.”

Foi um sonho”, disse John. “Toda juventude é um sonho, uma espécie de loucura química.”

“Então, como é bom ser louco!”

“É o que dizem”, disse John com melancolia. “Já não sei mais. De qualquer maneira, vamos nos amar por um ano ou dois, você e eu. É uma forma de embriaguez divina que todos deveriam experimentar. O mundo está cheio de diamantes — de diamantes e, talvez, da triste dádiva da desilusão. Bem, eu tive esta última e, como sempre, não vou fazer nada com ela.” Sentiu um calafrio. “Vire a gola do seu casaco, garota. A noite está fria e você pode pegar uma pneumonia. Que grande pecado, o de quem inventou a consciência. Vamos perder a nossa por algumas horas.”

Embrulhando-se em seu cobertor, John virou-se para o canto e dormiu.

(1922)


* Fitzgerald refere-se a Hades, que é um outro nome para Hell — inferno. (N. T.)