O amor à noite

Val delirou com estas palavras. Elas lhe tinham ocorrido naquela tarde dou rada de abril e ele não parou de repeti-las: “O amor à noite; o amor à noite”. Sabia dizê-las em russo e francês, mas descobriu que ficavam melhor em inglês. Nas outras línguas, pareciam significar outra espécie de noite e outra espécie de amor. Em inglês, para ele, a noite era mais amena e suave, como uma poeira cristalina de estrelas. E o amor lhe soava como o mais frágil e romântico dos sentimentos — um vestido branco, um rosto pálido e olhos que brilhassem como luzes. Mas, ao me lembrar de que ele estava pensando numa noite francesa, talvez devesse contar a história do começo.

Val era metade russo, metade americano. Sua mãe era filha do célebre Morris Hasylton, que ajudou a patrocinar a Feira Mundial de Chicago, em 1892, e seu pai — vide o Almanach de Gotha de 1910 — era o príncipe Paul Serge Boris Rostoff, filho do príncipe Vladimir Rostoff, neto de um grão-duque e primo em terceiro grau do czar. Impressionante, como se vê. Casa em São Petersburgo, cabana de caça em Riga e uma villa, quase um palácio, com vista para o Mediterrâneo. Era nesta villa em Cannes que os Rostoff passavam o inverno, mas não ficava bem recordar ao príncipe que sua villa na Riviera, da fonte de mármore (inspirada em Bernini) aos copos dourados, era paga com o ouro americano.

Os russos, naturalmente, esbaldavam-se no continente, nos dias de gala antes da guerra. Entre os povos que faziam do Sul da França um jardim de delícias, eles estavam facilmente em primeiro lugar. Os ingleses eram muito sovinas, e os americanos, embora gastassem a rodo, não tinham um comportamento tradicionalmente romântico. Mas os russos eram tão galantes quanto os latinos, com a vantagem de que tinham dinheiro! Quando os Rostoff chegavam a Cannes no fim de janeiro, os proprietários de restaurantes telegrafavam para o norte, a fim de perguntar pelas marcas favoritas do príncipe e colá-las em seus champanhes, ao passo que os joalheiros expunham seus mais incríveis artigos na vitrine, enquanto a Igreja russa paramentava-se de alto a baixo no caso de o príncipe resolver ir lá para pedir o perdão ortodoxo por seus pecados. O próprio Mediterrâneo parecia vermelho como vinho nas noites de primavera, enquanto os barcos de pescadores ostentavam velas roxas ao zarpar.

De alguma maneira, o jovem Val sabia que tudo isso acontecia por sua causa e de sua família. Era um paraíso privilegiado, esta branca cidadezinha à beira-mar em que ele fazia o que queria, porque era rico e jovem e porque o sangue de Pedro, o Grande, corria como corante em suas veias. Tinha apenas dezessete anos em 1914, quando esta história começa, mas já havia duelado contra um homem quatro anos mais velho, do qual só restara como lembrança uma pequena cicatriz no alto de sua bonita cabeça.

Mas a questão do amor à noite era a que lhe falava mais de perto ao coração. Era ainda um vago sonho, uma coisa que iria acontecer-lhe um dia, única e incomparável. E não sabia mais nada a respeito, a não ser que haveria uma linda garota e que aconteceria sob o luar da Riviera.

O interessante não é que ele acalentasse essa esperança quase espiritual de um romance (afinal, todos os jovens com imaginação passam por isso), mas o fato de que a coisa realmente aconteceu. E, quando aconteceu, foi absolutamente inesperado. Uma mistura de emoções e impressões, de frases que saltavam de seus lábios, de imagens e sons que lhe acorriam, perdiam-se e tornavam-se passado, e que ele mal podia entender. Talvez fosse o caráter vago de tudo aquilo que tivesse se eternizado em seu coração, de modo a fazê-lo incapaz de esquecer.

Havia uma atmosfera de amor a seu redor naquela primavera — como os namoricos de seu pai, por exemplo, que eram muitos e indiscretos, e dos quais Val tomou conhecimento aos poucos, pelos comentários da criadagem, e definitivamente, ao deparar sem aviso com sua mãe, que era americana, e encontrá-la jogando histericamente o retrato do pai contra a parede do salão. No retrato, seu pai usava um uniforme branco com dólmã de pele e olhava impassivamente para a esposa como se dissesse: “Por acaso, querida, julgou ter se casado com um padre?”.

Val recuou, surpreso, confuso — e excitado. Aquilo não o chocou, como teria acontecido com qualquer garoto americano da sua idade. Sabia havia anos o que era a vida para os ricos do continente, e só condenava em seu pai o fato de ter feito sua mãe chorar.

O amor existia a seu redor — tanto o legítimo quanto o ilícito. Caminhando pela calçada da praia, por volta de nove horas, com as estrelas competindo em brilho com as lâmpadas nos postes, parecia sentir o amor por todos os lados. Dos cafés com mesas na calçada, fervilhantes de saias vindas de Paris, saía um aroma doce e pungente de flores, licores, café fresco e cigarros — e, misturado a isso tudo, ele identificava outro cheiro, o misterioso aroma do amor. Mãos tocavam outras mãos, que refulgiam de jóias sobre as mesas brancas. Alegres vestidos e peitilhos brancos de camisa deslizavam juntos pela pista de dança, enquanto mãos levemente trêmulas acendiam cigarros com lentidão. Do outro lado da calçada, amantes menos sofisticados, como os jovens franceses que trabalhavam nas lojas de Cannes, passeavam sob as árvores com suas noivas, mas os olhos de Val raramente dignavam-se a contemplá-los. A música luxuriante, as cores brilhantes, as conversas em voz grave faziam parte de seu sonho. Eram as armadilhas essenciais do Amor naquela noite.

Mas, com toda a expressão feroz que se espera de um jovem e elegante russo passeando sozinho pelas ruas, Val começava a sentir-se infeliz. A penumbra de abril sucedera-se à penumbra de março, a temporada estava quase no fim e ele já não sabia o que fazer daquelas mornas noites de primavera. As garotas de dezesseis, dezessete anos, que ele conhecia passeavam com suas chaperones, do entardecer à hora de dormir — não se esqueçam de que estamos antes da guerra — e as outras que de bom grado passeariam com ele eram uma afronta a seu romântico desejo. E assim passou-se abril — uma, duas, três semanas.

Val havia jogado tênis até as sete e zanzado pelas quadras por mais uma hora. Portanto eram mais ou menos oito e meia quando a carruagem que o conduzia chegou ao topo da colina sobre a qual se debruçava a fachada da villa Rostoff. Os faróis da limusine de sua mãe esperavam acesos por ela na entrada, e a princesa, abotoando as luvas, saía pela porta da mansão. Val jogou dois francos para o cocheiro e foi beijá-la na face.

“Não me toque”, ela disse rispidamente. “Você acabou de pegar em dinheiro.”

“Mas não com a boca, mamãe”, ele protestou, rindo.

A princesa olhou-o com impaciência.

“Estou furiosa. Por que chegou tão tarde? Vamos jantar num iate e você também estava convidado.”

“Qual iate?”

“De uns americanos.” Havia sempre uma breve ironia na voz da mãe quando mencionava a terra em que nascera. Sua América era a Chicago do fim de século, o que, para ela, significava uma espécie de fundos de um açougue. Nem os deslizes do marido, o príncipe Paul, lhe pareciam um preço tão alto por sua fuga dali.

“Dois iates”, ela continuou. “Na realidade, não sabemos em qual. O convite era vago. Gente extremamente descuidada.”

Americanos. A mãe de Val o ensinara a desprezá-los, mas não conseguira fazê-lo desgostar deles. Os americanos o notavam, apesar de ele ter apenas dezessete anos. Gostava dos americanos. Embora fosse russo dos pés à cabeça, não o era de forma tão imaculada — apenas 99,9 por cento.

“Quero ir”, ele disse. “Vou correr e...”

“Já estamos atrasados.” A princesa virou-se quando o marido chegou à porta. “Val agora está querendo ir.”

“Impossível”, disse o príncipe Paul. “Chegou muito atrasado.”

Val concordou. Os aristocratas russos, apesar de tolerantes consigo mesmos, eram admiravelmente espartanos quando se tratava dos filhos. Não havia o que discutir.

“Desculpem”, disse.

O príncipe Paul resmungou. O criado, de farda vermelha e prata, abriu a porta da limusine. Mas aquele resmungo decidiu a coisa a favor de Val, porque a princesa Rostoff, naquele dia e hora, tinha certas queixas contra o marido que a deixavam senhora da situação.

“Pensando bem, é melhor vir, Val”, disse ela friamente. “Como já está atrasado, vá depois do jantar. O iate é o Minnehaha ou o Privateer.” Entrou na limusine. “Vá no que estiver mais animado — provavelmente, o dos Jackson...”

“Use a cabeça”, grunhiu o príncipe, deixando claro que Val não poderia errar se não fosse de todo burro. “Mande meu empregado dar uma olhada em você antes de sair. Use uma gravata minha, no lugar daquele barbante que você pôs no pescoço em Viena. Vire homem. Já é tempo.”

Quando a limusine se afastou esmagando as pedrinhas da estrada, o rosto de Val estava queimando.

II.

Estava escuro no porto de Cannes, ou talvez apenas parecesse escuro em comparação com o brilho da avenida que Val deixara para trás. Três faróis iluminavam palidamente inúmeros barcos de pesca que se amontoavam como conchas na praia. Mais adiante, outras luzes iluminavam uma frota de iates que se deixavam sacudir pelas ondas com lenta dignidade e, ainda mais adiante, uma dourada lua cheia fazia do mar uma pista de dança lustrosa. De vez em quando, ouvia-se o ruído rascante de um barco a remo entre os cascos das elegantes lanchas de pesca. Val caminhou pela areia, tropeçando num sonolento barqueiro com o típico hálito de alho e vinho barato. Sacudindo-o pelos ombros, acordou-o e perguntou:

“Sabe onde está ancorado o Minnehaha ou o Privateer?”

Deslizando pela baía, Val estirou-se no barquinho e contemplou com vaga desesperança o luar da Riviera. Belo luar, sem dúvida, e pelo menos cinco vezes por semana. Havia um encanto no ar, assim como o som de muitas orquestras. A leste ficava a sombria Cap d’Antibes, depois Nice e, mais além, Monte Carlo, onde a noite soava como ouro. Algum dia ele desfrutaria daquilo, conheceria todos os seus prazeres — quando já fosse velho demais.

Mas aquela noite — em que a lua parecia refletir uma corrente de prata sobre as ondas, com as românticas luzes de Cannes tão próximas e com o irresistível aroma do amor no ar —, aquela noite parecia perdida para sempre.

“Qual deles?”, perguntou o barqueiro.

“Qual o quê?”, replicou Val, subitamente desperto.

“Qual barco?”

Ele indicou. Val olhou; sobre sua cabeça, a proa de um iate apontava como uma espada. Enquanto ele sonhava, tinham navegado meia milha.

O nome dizia: Privateer. Mas as luzes eram mortiças, e não se ouvia música nem vozes, apenas o marulho das ondas contra o casco.

“É o outro”, disse Val. “O Minnehaha.”

“Não vá embora”, disse alguém.

Val parou. A voz, grave e suave, saíra da penumbra do barco.

“Por que essa pressa?”, continuou a voz. “Pensei que alguém tivesse vindo me visitar e ficado desapontado.”

O barqueiro levantou os remos e olhou hesitante para Val. Como Val não disse nada, deitou as pás na água e remou com decisão em direção ao luar.

“Espere!”, gritou Val.

“Adeus”, disse a voz. “Volte outro dia, quando puder ficar.”

“Mas vou ficar agora!”, respondeu Val, quase sem fôlego.

Deu a ordem ao barqueiro e este remou de volta até junto da escadinha. Alguém muito jovem, num misterioso vestido branco, alguém com uma bela voz grave, o chamara na noite aveludada. “Se ela tiver olhos como...”, Val murmurou para si mesmo, sem saber por quê. Gostou do som da frase e repetiu baixinho: “Se ela tiver olhos como...”.

“Quem é você?” Agora, ela estava exatamente acima dele. Val subiu a escadinha e, quando seus olhos se encontraram, ambos começaram a rir.

“Quem é você?”, ela repetiu, recuando e rindo, quando a cabeça dele apontou na amurada. “Agora estou com medo e quero saber.”

“Sou um cavalheiro”, disse Val, curvando-se.

“Que espécie de cavalheiro? Porque há todas as espécies de cavalheiros. Havia um — um senhor de cor — na mesa ao lado da nossa em Paris, e aí...” Ela parou. “Você não é americano, é?”

“Sou russo”, ele respondeu, como se estivesse anunciando um arcanjo. Pensou depressa e acrescentou: “E sou o russo mais feliz do mundo. O dia inteiro, a primavera inteira, sonhei em me apaixonar numa noite como esta. E agora você caiu do céu!”.

“Espere um pouco”, ela disse, ofegante. “Há um engano. Eu não sou o que você está pensando. Por favor!”

“Como?” Olhou-a fascinado, inconsciente de que a tinha dado por fácil muito rapidamente. Mas logo se recompôs: “Peço-lhe desculpas. Se me der licença, vou retirar-me”.

E virou-se. Sua mão já estava na amurada.

“Não vá”, ela disse, afastando dos olhos uma invisível madeixa. “Pensando bem, pode dizer o que quiser, desde que não vá. Estou muito deprimida e não quero ficar só.”

Val hesitou — havia alguma coisa ali que não entendia. Sempre achara que uma garota que se dirige de noite a um estranho, mesmo que de um iate, está em busca de romance. E ele queria ardentemente ficar. Então lembrou-se que este era um dos iates que procurava.

“O jantar não é no outro iate?”, perguntou.

“Jantar? Ah, sim, é no Minnehaha. Estava indo para lá?”

“Estava... mas isso há muito tempo.”

“Como se chama?”

Estava a ponto de dizer seu nome quando uma pergunta lhe ocorreu:

“E você? Por que não está na festa?”

“Porque preferi ficar aqui. A senhora Jackson disse que iriam alguns russos — como você.” Olhou-o com algum interesse. “Você é muito jovem, não é?”

“Sou mais velho do que pareço”, respondeu Val com voz firme. “As pessoas vivem comentando isso. Acham incrível.”

“Qual é a sua idade?”

“Vinte e um”, mentiu Val.

Ela riu:

“Que mentira! Aposto que não tem mais que dezenove.”

Val ficou tão evidentemente aborrecido que ela se apressou em consertar as coisas: “Não fique assim. Também só tenho dezessete. Eu teria ido à festa se soubesse que haveria alguém com menos de cinqüenta anos”.

Gostou de que ela mudasse de assunto.

“Então preferiu ficar sentada aqui, contemplando a lua?”

“Estava pensando sobre como as pessoas se enganam.” Sentaram-se em duas cadeiras de lona no convés. “É um assunto interessante, este de como as pessoas se enganam. As mulheres quase não pensam nisso. São muito mais propensas a esquecer do que os homens. Mas quando se lembram...”

“Você cometeu algum engano?”, perguntou Val.

“Acho que sim”, ela respondeu. “Não tenho certeza. Era nisso que eu estava pensando quando você chegou.”

“Talvez eu possa ajudá-la. Talvez não seja uma coisa assim tão irreparável.”

“Acho que é. Portanto, vamos esquecer o assunto. Estou meio farta dele e preferia que você me contasse sobre as coisas alegres que estão acontecendo em Cannes esta noite.”

Eles olharam para a praia e viram o colar de luzes e as casinhas de brinquedo, como se tivessem velas dentro — na realidade, os grandes hotéis de luxo, o relógio luminoso, o brilho embaçado do Café de Paris e as janelas iluminadas das villas, superpondo-se em direção ao céu escuro.

“O que estará acontecendo lá?”, ela murmurou. “É como se estivesse havendo alguma coisa fantástica, só que não sei o que é.”

“Estão fazendo amor”, disse Val tranqüilamente.

“Será?” Olhou por mais algum tempo, com uma estranha impressão nos olhos. “Então quero voltar para a América. Há amor demais aqui. Gostaria de ir embora amanhã.”

“Tem medo de se apaixonar?”

Ela fez que não.

“Não é isso. É só porque — porque não há amor aqui para mim.”

“Nem para mim”, acrescentou Val. “É triste que duas pessoas como nós estejam num lugar tão bonito, numa noite como esta, e... nada.”

Val debruçou-se sobre ela, com uma espécie de inspiração romântica e casta, mas ela recuou.

“Fale mais sobre você”, ela sugeriu, depressa. “Se é russo, como fala inglês tão bem?”

“Minha mãe era americana”, ele revelou. “Meu avô também. Ela não tinha escolha.”

“Então você também é americano!”

“Sou russo”, disse Val com dignidade.

Ela o olhou, atenta, sorriu e decidiu não discutir. “Bem, então”, disse diplomaticamente, “suponho que tenha um nome russo.”

Mas ele não tinha nenhuma intenção de dizer seu nome por enquanto. Qualquer nome — mesmo Rostoff — seria uma profanação daquela noite. Suas vozes, seus rostos bastavam. Tinha certeza, sem nenhuma razão para isto — apenas o instinto que cantava triunfalmente em seu coração — de que, em pouco tempo, um minuto ou uma hora, ele estaria se iniciando na vida romântica. Seu nome não importava em comparação com o que ardia dentro dele.

“Você é linda”, ele disse de repente.

“Como sabe?”

“Porque, para as mulheres, a luz da lua é a mais severa de todas.”

“E como sou eu à luz da lua?”

“A coisa mais linda que já vi.”

“Ah.” Ela pensou antes de dizer. “Eu sabia que não devia tê-lo deixado subir aqui. Devia ter imaginado sobre o que acabaríamos conversando... com esta lua. Mas não podia ficar sozinha, olhando para a praia. Sou muito nova para isto. Não acha?”

“Muito nova.”

E, subitamente, os dois se deram conta da música que parecia ao alcance da mão, que parecia brotar do mar ao redor, não da praia distante.

“Escute!”, ela gritou. “É o Minnehaha. Eles terminaram o jantar.”

Por um momento, ouviram em silêncio.

“Obrigado”, disse Val.

“Por quê?”

Ele mal se lembrava de ter falado. Estava agradecendo à orquestra por ter feito a brisa cantar, ao mar por murmurar contra a proa, ao leite que as estrelas derramavam, até que ele se sentisse inundado por uma substância mais espessa que o ar.

“É lindo”, ela suspirou.

“O que vamos fazer?”

“Temos que fazer alguma coisa? Pensei que podíamos apenas olhar...”

“Não, não pensou”, ele interrompeu calmamente. “Você sabe que temos de fazer alguma coisa. Vou beijá-la, e você vai gostar.”

“Não posso”, ela disse baixinho. Teve vontade de rir, dizer alguma coisa engraçada, para que a situação voltasse a navegar nas águas tranqüilas de um flerte casual. Mas era tarde. Val sabia que a música havia completado o que a lua começara.

“Vou dizer-lhe a verdade”, ele falou. “Você é o meu primeiro amor. Tenho dezessete anos, o mesmo que você.”

Havia qualquer coisa terrivelmente desarmante na revelação de que tinham a mesma idade. Tornou-a indefesa diante do destino que os unira. As cadeiras de lona rangeram e ele percebeu o leve aroma de um perfume enquanto se deixavam ondular juntos, como duas crianças.

III.

Se a beijou uma ou diversas vezes, Val não se lembraria depois, embora tivessem passado uma hora sentados juntos, com ele segurando sua mão. O que mais o surpreendeu foi a absoluta ausência de paixão selvagem — lamento, desejo, desespero —, compensada pela delirante promessa da felicidade de viver, como ele nunca havia sentido antes. E este era apenas o seu primeiro amor — o primeiro! O que devia ser o amor em sua plenitude e perfeição! Val ainda não sabia que o que já estava experimentando, aquela sensação irreal de êxtase e paz, nunca mais seria recapturada.

A música já havia parado quando o silêncio foi quebrado por um barco a remo perturbando as ondas. Ela se pôs rapidamente de pé e seus olhos perscrutaram a baía.

“Escute!”, disse de repente. “Como você se chama?”

“Não.”

“Por favor!”, ela implorou. “Vou embora amanhã.”

Ele não respondeu.

“Não quero que me esqueça”, ela continuou. “Meu nome é...”

“Não vou esquecê-la. Prometo lembrar-me para sempre de você. Não importa quem eu ame, terei de compará-la com você, meu primeiro amor.”

“Quero que se lembre de mim”, ela disse entre soluços. “Ah, isto significou muito mais para mim do que para você, muito mais.”

Estava de pé, tão próxima de seu rosto que ele podia sentir seu hálito doce. E mais uma vez ondularam juntos. Apertou-lhe as mãos e os pulsos entre as suas, como parecia correto fazer, e beijou-a. O beijo exato, ele pensou, o beijo romântico — nem muito, nem pouco. No entanto, havia neste beijo a promessa de outros que poderiam ter acontecido, e foi com um peso no coração que ele ouviu o barco aproximar-se do iate e se deu conta de que a família dela havia chegado. A noite terminara.

“E isto é apenas o começo”, disse a si mesmo. “Toda a minha vida será como esta noite.”

Ela tentava dizer qualquer coisa que ele ouvia com grande tensão.

“Preciso lhe dizer uma coisa — sou casada. Há três meses. Era esse o engano a que me referia quando a lua o trouxe aqui. Dentro de um minuto você entenderá.”

O barco encostou no iate e a voz de um homem ouviu-se na escuridão.

“É você, querida?”

“Sim.”

“De quem é este outro barco esperando?”

“Um dos convidados da senhora Jackson veio dar aqui por engano e convidei-o a subir para me distrair um pouco.”

Um momento depois, os cabelos brancos e o rosto cansado de um homem de sessenta anos surgiram na amurada. E só então Val compreendeu — tarde demais — que estava apaixonado.

IV.

Quando terminou a temporada na Riviera, em maio, os Rostoff e todos os outros russos fecharam suas villas e foram passar o verão em seu país. A Igreja ortodoxa russa fechou as portas, assim como as casas de vinhos raros, e até o luar de primavera pareceu sumir por uns tempos, à espera da volta deles.

“Voltaremos na próxima temporada”, disseram, como sempre.

Mas nunca mais voltariam. Os poucos que conseguiram escapar de novo para a França, depois de cinco trágicos anos, podiam dar-se por satisfeitos se conseguissem empregos como camareiras ou valets de chambre nos grandes hotéis em que, havia tão pouco, tinham se hospedado. Muitos, naturalmente, morreram durante a guerra ou a revolução; outros se tornaram parasitas e malandros baratos nas grandes cidades da Europa; e não poucos terminaram a vida num misto de estupor e desespero.

Quando o governo Kerensky caiu em 1917, Val servia como tenente na frente oriental, tentando desesperadamente impor sua autoridade à companhia, mesmo que já não houvesse o menor vestígio dela. E ainda estava tentando quando o príncipe Paul Rostoff e sua mulher largaram tudo numa manhã chuvosa para fugir às cegas, na trilha dos Romanoff — e, com isso, a invejável carreira da filha de Morris Hasylton acabou numa cidade que se parecia ainda mais com os fundos de um açougue do que a Chicago de 1892.

Depois daquilo, Val lutou com o exército de Denikin por uns tempos, até se dar conta de que estava participando de uma farsa e que a glória da Rússia imperial terminara. Dali foi para a França, onde se viu subitamente confrontado com o impressionante problema de sustentar seu corpo e alma ao mesmo tempo.

Seria natural que pensasse em ir para a América. Duas remotas tias, com quem sua mãe havia brigado muitos anos antes, ainda viviam lá, de certa forma ricas. Mas a idéia era repugnante em razão dos preconceitos que sua mãe lhe incutira e, além disso, não tinha dinheiro para a passagem. Até que uma possível contra-revolução restaurasse as propriedades dos Rostoff na Rússia, teria que se contentar em viver na França.

Por isso, foi para a cidadezinha que conhecia melhor. Foi para Cannes. Com seus últimos duzentos francos comprou um bilhete de terceira classe e, quando chegou, vendeu seu melhor terno para um simpático sujeito que comerciava essas coisas, recebendo em troca dinheiro para comer e dormir. Mais tarde lamentou ter feito o negócio, porque o terno poderia tê-lo ajudado a conseguir um emprego de garçom. Em vez disso, porém, arranjou trabalho como motorista de táxi, e sentiu-se igualmente satisfeito — ou melhor, igualmente infeliz — com aquilo.

Algumas vezes transportava americanos em busca de villas para alugar e costumava ouvir cochichos como: “... ouvi dizer que este rapaz era um príncipe russo” [...] “Psiu” [...] “Não, o motorista” [...] “Cale a boca, Esther”, seguidos de risos e chacotas.

Quando parava o carro, os passageiros costumavam olhá-lo. A princípio, sentia-se péssimo quando eram moças que faziam aquilo; depois, deixou de se importar. Certa vez, um americano bêbado perguntou-lhe se era verdade e convidou-o a jantar; de outra feita, uma senhora de idade apertou-lhe a mão ao sair do táxi, deixando-lhe entre os dedos uma nota de cem francos.

“Agora, Florence, já posso dizer para o pessoal lá da rua que apertei a mão de um príncipe russo.”

O americano bêbado que o convidara a jantar pensou a princípio que Val era filho do czar, e Val teve de explicar-lhe que, na Rússia, um príncipe significa o mesmo que um título honorífico na Inglaterra. Mesmo assim, o americano não compreendia como um homem da personalidade de Val não saísse a campo para ganhar dinheiro de verdade.

“Estamos na Europa”, disse Val com gravidade. “Aqui não se ganha dinheiro. O dinheiro é herdado ou, então, economizado durante muitos anos, de forma que, talvez depois de três gerações, uma família possa ascender a uma classe mais alta.”

“Por que não tenta descobrir alguma coisa que as pessoas queiram comprar — como nós na América?”

“Porque não somos ambiciosos como os americanos. Aqui, tudo o que as pessoas desejam já existe há muito tempo.”

Mas, um ano depois, e com a ajuda de um jovem inglês com quem tinha jogado tênis antes da guerra, Val conseguiu um emprego na filial de Cannes de um banco britânico. Cuidava da correspondência e providenciava bilhetes e excursões para turistas impacientes. Às vezes, um rosto familiar vinha a seu guichê; se reconhecia Val, apertavam as mãos; se não, Val não se manifestava. Depois de dois anos, já não era apontado nas ruas como um antigo príncipe porque, àquela altura, a Rússia tinha saído de moda, e o esplendor dos Rostoff e seus amigos fora completamente esquecido.

Misturava-se muito pouco com outras pessoas. À noite, dava um passeio pela calçada, tomava lentamente um copo de cerveja num café e ia cedo para a cama. Raramente era convidado para qualquer coisa, porque todos o achavam triste e deprimido — mesmo assim, nunca aceitava. Agora usava roupas francesas baratas, no lugar das ricas flanelas e tweeds que seu pai encomendava da Inglaterra. Quanto a mulheres, não conhecia nenhuma. Aos dezessete anos, só tivera certeza de uma coisa — de que sua vida seria um eterno romance. Oito anos depois, descobrira que não seria assim. Não sabia por quê, mas nunca tivera tempo para amar. A guerra, a revolução e, agora, a pobreza conspiraram contra o seu coração. As nascentes de sua emoção, que haviam jorrado com tal abundância naquela noite de abril, tinham secado em seguida e delas só restara um pequeno filete.

Sua juventude terminara quase ao mesmo tempo que começara. Viu-se envelhecendo progressivamente e vivendo cada vez mais das lembranças de sua gloriosa infância. Às vezes, não se continha, puxava do bolso um velho relógio herdado e exibia-o aos colegas de banco, os quais ouviam com piscadelas incrédulas suas histórias sobre os Rostoff.

Estava pensando justamente nisso, numa noite de abril de 1922, enquanto caminhava pela calçada da praia e observava o eterno espetáculo das luzes. Ele já não acontecia por sua causa, como pensara um dia, mas, de qualquer maneira, continuava a existir, e isso o fazia feliz. No dia seguinte, sairia de férias, para um hotel barato na praia, onde poderia nadar, ler e descansar; quando elas terminassem, voltaria para o mesmo emprego. Todo ano, nos últimos três anos, tirara suas férias nas duas últimas semanas de abril, talvez porque naquela época a necessidade de recordar se aguçasse mais. Fora em abril que aquilo que estava destinado a ser a melhor parte de sua vida havia chegado ao fim, à luz do luar. E aquela recordação lhe era sagrada, pois o que ele imaginara que fosse a iniciação e o começo tinha sido, simplesmente, o final.

Parou defronte do Café des Étrangers e, movido por um impulso, atravessou a rua e caminhou pela praia. Alguns iates, prateados pela lua, estavam ancorados na baía. Já os tinha visto naquela tarde e lera seus nomes pintados na proa — por pura questão de hábito. Fazia aquilo há três anos, como se já fosse uma função natural do olho.

Un beau soir”, disse uma voz em francês atrás dele. Era um barqueiro que vivia por ali. “Monsieur não acha o mar lindo?”

“Muito bonito.”

“Eu também. Só que fora da temporada não dá para viver. Mas acho que, na semana que vem, vou ganhar um pouquinho de dinheiro. Vão me pagar bem só para ficar aqui, sem fazer nada, de oito horas até meia-noite.”

“Que ótimo”, disse Val educadamente.

“Uma viúva americana, muito bonita, cujo iate sempre ancora na baía na última quinzena de abril. Se o Privateer chegar amanhã, já serão três anos.”

V.

Val não dormiu aquela noite — não porque tivesse qualquer dúvida sobre o que deveria fazer, mas porque suas emoções, há muito adormecidas, tinham revivido violentamente. Claro que ele não a veria — um pobre-diabo, cujo sobrenome era agora apenas uma sombra, mas ficava feliz em saber que ela se lembrava. Aquilo deu uma nova dimensão a suas lembranças, revelou-as como se revela uma foto numa folha de papel branco. Deu-lhe a certeza de que ele não havia enganado a si próprio — certa vez seduzira uma jovem, e ela não o esquecera.

Uma hora antes da chegada do trem no dia seguinte, ele já estava na estação, com sua valise, de modo a evitar qualquer encontro inesperado. Sentou-se na terceira classe de um vagão de espera.

Mas, enquanto esperava ali, começou a pensar diferente — uma espécie de esperança, tênue e ilusória — do que pensava apenas vinte e quatro horas antes. Talvez houvesse um jeito de revê-la dentro de alguns anos, se trabalhasse a valer, se se atirasse ao que lhe caísse em mãos. Sabia de pelo menos dois russos em Cannes que tinham começado tudo de novo, usando apenas suas boas maneiras e alguma esperteza, e que agora iam surpreendentemente bem. O sangue de Morris Hasylton começou a pulsar nas veias de Val e o fez recordar-se de algo a que nunca dera importância — que Morris Hasylton, que construíra para sua filha um palácio em São Petersburgo, também começara do nada.

Ao mesmo tempo foi possuído por outra emoção, menos estranha, menos dinâmica, mas igualmente americana — a da curiosidade. No caso de... bem, no caso de a vida possibilitar-lhe procurá-la de novo, precisava pelo menos saber seu nome.

Levantou-se num salto, pulou do trem e saiu correndo. Deixou a valise no bagageiro e apressou-se em direção ao consulado americano.

“Um iate chegou esta manhã”, disse esbaforido a um funcionário, “um iate americano, o Privateer. Gostaria de saber o nome do proprietário.”

“Um momento”, respondeu o funcionário, olhando-o com suspeita. “Vou tentar descobrir.”

Após o que pareceu a Val uma interminável demora, o homem voltou.

“Espere um minuto”, repetiu hesitante. “Estamos procurando.”

“O iate chegou?”

“Ah, sim, já está ancorado. Pelo menos, eu acho. Espere ali naquela cadeira.”

Outros dez minutos se passaram e Val olhou com impaciência para o relógio. Se não se apressassem, ele perderia o trem. Fez um gesto nervoso e levantou-se.

“Por favor, sente-se”, disse o funcionário, olhando-o de sua mesa. “Estou lhe pedindo.”

Val ficou desconfiado. Por que lhe importaria que ele esperasse ou não?

“Não posso perder o trem”, disse impaciente. “Desculpem pelo incômodo...”

“Fique aí! Finalmente você apareceu. Estávamos à sua espera há..., sabe, três anos.”

Val levantou-se e pôs o boné.

“Por que não me disse antes?”, perguntou furioso.

“Porque antes tínhamos de avisar nossa... nossa cliente. Por favor, não vá embora! Ah... tarde demais!”

Val se virou. Alguém linda e radiante, com olhos escuros e assustados, estava de pé atrás dele, emoldurada pelo portal ensolarado.

“Ora...”

Os lábios de Val se abriram, mas não produziram nenhum som. Ela deu um passo em sua direção.

“Eu...” Olhou-o com absoluta entrega, os olhos cheios de lágrimas. “Só queria dizer alô”, ela murmurou. “Há três anos que venho aqui para lhe dizer isso.”

Val continuava silente.

“Diga alguma coisa”, ela implorou, impaciente. “Pensei... pensei que tivesse morrido na guerra.” Virou-se para o funcionário. “Por favor, apresente-nos!”, gritou. “Não posso dizer-lhe alô, quando nem sabemos o nome um do outro.”

Os americanos sempre desconfiam desses casamentos internacionais. Acham que eles nunca dão certo. Algumas manchetes típicas são: “Duquesa troca o marido por namorado texano” ou “Nobre arruinado tortura sua mulher americana”. Mas a verdade é que as manchetes com final feliz nunca saem nos jornais, porque quem estaria interessado em ler: “Californiana vive feliz em seu castelo escocês” ou “Duque e filha do xerife celebram bodas”?

Até agora, os jovens Rostoff não saíram em jornal nenhum. O príncipe Val está muito ocupado com sua frota de táxis azuis para dar entrevistas. Ele e sua esposa só saem de Nova York uma vez por ano, mas há um barqueiro que se sente muito feliz quando o Privateer ancora na baía de Cannes em meados de abril.

(1925)