Ele aguardava no cais quando cheguei com minha prisioneira. Empertigado como sempre, as feições retas voltadas para o horizonte, enrolado no manto para se proteger do vento marinho. Minha perplexidade inicial por encontrá-lo ali desapareceu tão logo avistei o navio deixando o porto, uma embarcação de casco estreito à moda meldeneana, enviada aos Confins do Norte com um importante passageiro de quem eu sabia que ele sentiria muita falta.
Ele se virou na minha direção com um sorriso receoso nos lábios, e percebi que ele ficara para presenciar a minha partida. As nossas interações haviam sido breves desde a libertação de Alltor, um tanto bruscas, na verdade, distraído como ele estava pelo incessante tumulto da guerra e por alguma enfermidade que o acometera após o seu já lendário ataque. A fadiga transformara as feições outrora firmes numa máscara letárgica de olhos avermelhados, e a voz estridente porém incisiva num sussurro rascante. Eu podia ver que tais transformações haviam sido revertidas a essa altura. As batalhas recentes de algum modo o haviam curado, e eu me perguntei se ele encontrava alguma forma de sustento no sangue e no horror.
— Meu senhor — cumprimentou-me ele com o esboço de uma mesura formal, e então acenou com a cabeça para a minha prisioneira. — Minha senhora.
Fornella retribuiu o aceno, mas nada disse, encarando-o de forma impassível enquanto os seus cabelos esvoaçavam ao vento salgado, uma única madeixa grisalha visível em meio à cabeleira castanho-avermelhada.
— Já recebi instruções suficientes… — comecei, mas Al Sorna acenou com a mão.
— Não vim para dar instruções, meu senhor — disse ele. — Vim apenas para me despedir e desejar boa sorte em sua empreitada.
Observei a sua expressão enquanto ele aguardava uma resposta, o sorriso receoso agora diminuindo, os olhos negros cautelosos. Será possível?, pensei comigo mesmo. Ele está buscando perdão?
— Obrigado, meu senhor — retorqui, colocando o pesado saco de lona no ombro. — Mas precisamos embarcar antes da maré matutina.
— É claro. Eu irei acompanhá-los.
— Não precisamos de um guarda — disse Fornella, seca. — Eu dei a minha palavra, atestada pelo seu interrogador. — Realmente, caminhávamos sozinhos naquela manhã, sem escolta ou formalidade. A corte restaurada do Reino Unificado tinha pouco tempo ou inclinação para cerimônias.
— De fato, Honorável Cidadã — retorquiu Al Sorna num volariano desajeitado e de sotaque carregado. — Contudo, tenho… palavras para este homem de cinza.
— Homem livre — corrigi-o antes de mudar para a língua do Reino. — O cinza indica posição financeira, e não social.
— Ah, sem dúvida, meu senhor. — Ele ficou de lado e fez sinal para que eu continuasse ao longo do cais até onde os navios estavam atracados, uma longa fileira de belonaves e navios mercantes meldeneanos. Naturalmente, a nossa embarcação se encontrava na extremidade oposta da fileira.
— O presente do Irmão Harlick? — perguntou ele, indicando com a cabeça o saco que eu carregava.
— Sim. Quinze dos livros mais antigos da Grande Biblioteca, os que pude identificar como úteis durante o pouco tempo que me foi permitido em seus arquivos. — Na verdade, eu esperara algum protesto da parte do irmão bibliotecário quando fiz meu pedido, mas o homem apenas fez um aceno cortês com a cabeça e ordenou a um dos seus assistentes que buscasse os pergaminhos necessários nos carroções que serviam como a sua biblioteca móvel. Eu sabia que a sua aparente indiferença a esse roubo devia-se em parte ao seu dom; ele sempre podia simplesmente redigir novos exemplares, e abertamente, uma vez que a necessidade de manter tais coisas ocultas havia desaparecido. As Trevas, como chamavam esse dom, haviam sido reveladas e agora eram discutidas abertamente, e os dotados estavam livres para praticar os seus talentos sem medo de serem torturados e executados, pelo menos em teoria. Eu podia ver o medo que ainda permanecia no rosto daqueles não tão talentosos, assim como a inveja, e me perguntava se o caminho mais sensato não teria sido manter os dotados nas sombras. Porém, haveria como sombras perdurarem em meio aos fogos da guerra?
— Acha mesmo que ele está aí em algum lugar? — perguntou Al Sorna enquanto caminhávamos em direção ao navio. — O Aliado?
— Uma influência tão maligna e poderosa sem dúvida deixa rastros — respondi. — Um historiador é um caçador, meu senhor. À procura de sinais no mar de correspondências e autobiografias, no encalço da presa através do rastro da memória. Não espero encontrar uma história completa e imparcial dessa coisa, seja ela animal ou humana, ou nenhum dos dois. Mas haverá de ter deixado rastros, e pretendo ir atrás dela.
— Então o senhor precisa ter cuidado, pois suspeito que a sua atenção não passará despercebida por ela.
— Nem a do senhor. — Fiz uma pausa e olhei para o seu perfil, vendo ali uma fronte preocupada. Onde está sua certeza?, pensei. Esse havia sido um de seus traços mais irritantes durante a nossa prévia associação: a certeza implacável e inabalável. Agora havia somente um homem taciturno e preocupado com a perspectiva das privações por vir.
— Conquistar a capital não será fácil — falei. — O curso mais sensato seria aguardar aqui, reunindo forças até a primavera.
— Sensatez e guerra são raras companheiras, meu senhor. E tem razão, o mais provável é que o Aliado fique a par de tudo.
— Então por quê…?
— Não podemos simplesmente ficar aqui esperando que o próximo golpe seja desferido. Não mais do que o seu Imperador pode esperar permanecer imune à atenção do Aliado.
— Estou perfeitamente ciente de qual mensagem transmitir ao Imperador. — A bolsa de couro com o pergaminho selado pendia pesada de meu pescoço, mais pesada do que o meu saco de livros, embora na verdade fosse apenas uma fração do peso. Nada mais do que tinta, papel e cera, pensei. E, no entanto, podia enviar milhões à guerra.
Paramos ao chegar ao navio, uma larga embarcação mercantil meldeneana, a madeira ainda chamuscada pela Batalha dos Dentes, a amurada com marcas de lâminas e pontas de flechas, e as velas remendadas enroladas no cordame. Meu olhar também foi atraído até a serpentina figura de proa que, apesar de ter perdido boa parte do maxilar inferior, ainda era familiar. Meus olhos recaíram sobre o capitão no alto da rampa, com os braços grossos cruzados e uma carranca no rosto, um rosto do qual eu me lembrava muito bem.
— Por acaso o senhor teve algo a ver com a escolha dessa embarcação? — perguntei a Al Sorna.
Um traço de divertimento apareceu em seus olhos quando ele encolheu os ombros.
— Meramente uma coincidência, posso lhe assegurar.
Suspirei, percebendo que eu tinha pouco espaço no coração para ainda mais ressentimento, virei-me para Fornella e estendi a mão na direção do navio.
— Honorável Cidadã. Irei me juntar à senhora num instante.
Vi os olhos de Al Sorna a acompanharem enquanto ela subia a rampa até o navio, movendo-se com a graciosidade costumeira de séculos de prática.
— Apesar do que disse o revelador da verdade, tenha cuidado e não confie nela — disse ele.
— Fui escravo dela tempo suficiente para aprender essa lição por conta própria. — Ergui mais uma vez o meu saco e acenei com a cabeça em despedida. — Com sua licença, meu senhor. Aguardo pela oportunidade de ouvir a história de sua campanha…
— O senhor tinha razão — interrompeu ele, novamente com o sorriso receoso nos lábios. — Sobre a história que lhe contei. Houve algumas… omissões.
— Creio que o senhor queira dizer mentiras.
— Sim. — O sorriso desapareceu. — Mas acredito que o senhor mereça a verdade. Não faço ideia de como esta guerra terminará, nem mesmo se algum de nós viverá para ver a sua conclusão. Porém, se vivermos, encontre-me novamente e prometo que o senhor ouvirá de mim apenas a verdade.
Sei que eu deveria ter ficado grato. Pois que estudioso não ansiava pela verdade vinda de alguém como ele? Contudo, não havia gratidão quando olhei em seus olhos, nem pensamento algum, a não ser por um nome. Seliesen.
— Eu costumava me perguntar como um homem que havia tirado tantas vidas podia andar pelo mundo sem o peso da culpa — falei. — Como um assassino pode suportar o fardo de ter matado e ainda se chamar de humano? Mas ambos somos assassinos agora, e vejo que isso em nada pesa em minha alma. Porém, eu matei um homem mau, e o senhor, um homem bom.
Virei-me e subi a rampa sem olhar para trás.