Reva
Ela tinha visto cadáveres suficientes para saber que os mortos raramente conservavam alguma expressão. Os sorrisos largos e as caretas aterrorizadas eram simplesmente o resultado do retesamento de tendões e músculos conforme os humores do corpo se esvaíam. Assim, foi uma surpresa ver no rosto do sacerdote o retrato de tamanha serenidade; não fosse pelo corte fundo e estreito em sua garganta, ele poderia ter sido facilmente confundido com um homem adormecido, pois suas feições mostravam uma alma contente com o mundo.
Contente, pensou ela, afastando-se do cadáver e sentando-se. Quão apropriado ele encontrar a paz apenas na morte.
— É ele? — perguntou Vaelin.
Ela assentiu e levantou-se quando Alornis se aproximou, tocando-lhe a mão para tranquilizá-la. Vaelin ergueu o esboço feito pela irmã, seus olhos indo do rosto do sacerdote para a representação no pergaminho.
— Que talento você tem — disse a ela com um sorriso antes de virar-se para o homem corpulento parado próximo da parede da tenda. — E o senhor, Mestre Marken. Um olhar aguçado para detalhes.
A barba de Marken contraiu-se com um leve sorriso e Reva notou como ele apertava com força uma das mãos na outra e recusava-se com veemência a olhar para o segundo cadáver. O corpo estava deitado ao lado do sacerdote, as feições mais típicas da experiência de Reva, a pele de um azul-claro, os lábios arreganhados e a língua para fora por entre os dentes expostos, parcialmente cortada durante os espasmos finais. Contudo, assim como com o sacerdote, suas feições eram reconhecíveis o suficiente para corresponderem ao esboço de Alornis.
— Meu tio Sentes falou que o nome dele era Lorde Brahdor — disse ela a Vaelin. — A Senhora Veliss me disse que ele possuía terras um pouco a leste daqui, com vinhedos excelentes. Famoso mais pelo vinho branco do que pelo tinto.
— Isso é tudo? — perguntou Vaelin. — Nenhuma suspeita? Histórias fantásticas sobre poderes estranhos ou eventos inexplicáveis?
— Isso é tudo. Apenas um nobre menor com algumas centenas de acres de uvas… e um celeiro.
Vaelin olhou de forma indagadora para Marken. O homenzarrão rangeu os dentes por um momento e então apontou um dedo grosso para o cadáver de Lorde Brahdor, ainda se recusando a olhar para ele.
— Não tocarei nesse, meu senhor. Posso sentir, saindo dele como veneno. Perdoe minha covardia. Mas… — Ele sacudiu a cabeça desgrenhada. — Não posso. Eu…
— Está tudo bem, Marken — assegurou-lhe Vaelin, indicando o sacerdote com a cabeça. — E ele?
Marken soltou um suspiro de alívio e virou-se para se agachar ao lado do sacerdote, arregaçando a manga e colocando a mão grande na testa do cadáver. Ele se contraiu após um momento, como se estivesse sentindo dor, sua boca contorceu-se em repugnância quando pareceu que estava prestes a afastar a mão, mas Reva o viu fortalecer a sua determinação, fechando os olhos e ficando imóvel como uma estátua durante vários minutos. Por fim, ele respirou fundo e devagar, o suor brilhando em meio aos cabelos que pendiam sobre a testa vincada. Marken levantou-se, olhando para Reva com solidariedade e pesar.
— Minha senhora… — começou ele.
— Eu sei — disse Reva. — Eu estava lá. Mestre Marken, por favor, conte a Lorde Al Sorna tudo o que viu.
— A infância dele é confusa — disse Marken a Vaelin. — Parece que ele foi criado pela Igreja do Pai do Mundo. Não há imagens de seus pais, então imagino que fosse órfão, aprendiz de um sacerdote, um destino comum para órfãos cumbraelinos, creio eu. O sacerdote que o criou era bondoso, um ex-soldado da Guarda do Senhor, chamado à igreja mais tarde do que o normal, determinado a fazer com que os seus pupilos adquirissem tanto as suas habilidades marciais quanto o fervor de sua devoção. O garoto passou longos anos mergulhado no estudo dos Dez Livros e treinando para a guerra. Adulto, suportou longos anos de vergonha quando olhava para mulheres. Quanto mais jovem a mulher, maior era a vergonha, e mais ele olhava. Senti uma compulsão de se esconder nos Dez Livros, para se refugiar de seus desejos nos ensinamentos da igreja.
“Alltor e a catedral possuem um lugar de destaque em suas lembranças, e acredito que ele foi enviado para lá para se preparar para o sacerdócio. Eu o vi se encontrar com o Leitor e receber o seu nome sacerdotal. Eles nunca se encontravam em público e senti que o sacerdote havia sido escolhido para um papel secreto. Vi uma viagem para longe de Alltor ser interrompida quando ele encontrou um homem com uma cicatriz, aqui. — Marken parou para tocar a própria bochecha. — O homem está falando diante de uma grande multidão e o jovem sacerdote é tomado por uma nova paixão ao ouvir a sua voz. Ele retorna ao Leitor e é enviado mais uma vez. Então há muitos meses de encontros em salas escuras e locais isolados, homens reunidos e temendo serem descobertos enquanto trocavam cartas e juntavam armas em esconderijos. Ele nunca mais vê o homem com a cicatriz, mas se lembra com frequência daquela ocasião. Então, em outro encontro secreto, ele encontra esta coisa. — Marken indica com a cabeça o segundo corpo, fazendo uma careta ao olhar para o rosto morto de Brahdor. — A coisa fala, mas não posso ouvir as palavras, como sabe, meu senhor. Mas elas fazem com que a paixão do sacerdote se torne ainda mais intensa. A coisa o leva até uma casa de fazenda à noite, onde um casal idoso está sentado diante de uma lareira cuidando de uma menininha. — Ele olha de novo para Reva e engole em seco. — A vergonha do sacerdote é maior do que nunca quando olha para ela.
— Eles mataram os meus avós, não? — perguntou Reva. — Eles os mataram e me roubaram.
Ele assentiu.
— Eles esperaram até a senhora ter sido colocada na cama. O casal idoso foi morto, a menina tirada da cama e a casa incendiada.
— E então muitos anos felizes num celeiro — murmurou Reva enquanto Marken procurava as palavras certas a serem ditas.
— Algum nome? — perguntou Vaelin ao dotado.
— Alguns, meu senhor. O sacerdote os anotava para memorizá-los. Ele queimava o papel, mas as lembranças permaneceram.
— Faça uma lista e a entregue à Senhora Reva.
Ela se afastou do cadáver do sacerdote, sentindo uma grande tentação de esmagar com a bota o rosto satisfeito dele, de estragar para sempre o seu sono.
— Reva — disse Alornis, puxando a manga dela. — Não há mais nada a se conseguir aqui.
— Eu… — gaguejou Marken. — Eu tenho o nome dele, minha senhora. O Leitor o anotou quando o deu ao sacerdote.
— Não — disse ela, virando-se e indo até a aba da tenda. — Queime-o se tiver terminado — disse Reva a Vaelin. — Ninguém dirá nenhuma palavra por ele.
— Meu senhor — prosseguiu Marken enquanto se dirigiam à entrada da tenda. — Com a sua permissão. Sobre o Irmão Caenis…
— Estou ciente da questão, Mestre Marken — disse Vaelin.
— Nós não seguimos o senhor até aqui para nos tornarmos servos da Fé…
— Discutiremos isso esta noite — afirmou Vaelin com firmeza. — Com Lorde Nortah. O senhor deixou as suas preocupações devidamente claras.
Eles voltaram em silêncio para o passadiço, Reva absorta na história do dotado, Vaelin sem dúvida ponderando a respeito da revelação do Irmão Caenis à Rainha. Alornis seguia a uma distância discreta, perscrutando as muralhas da cidade e com o onipresente embrulho de lona com seus desenhos junto ao peito, já sendo preenchido com reproduções da destruição por trás das muralhas. Ela chorara no dia em que encontrou Reva parada em meio às ruas tomadas de cadáveres. Ao vê-la, Alornis abraçara Reva, convulsionando de alívio, causando uma dor antiga que Reva notou que não lhe doía mais da mesma forma.
— A Sétima Ordem — disse ela a Vaelin ao pararem diante do passadiço. — Não é uma lenda, afinal de contas. Mas imagino que você saiba disso há algum tempo.
— Sim. — O rosto dele estava sombrio, não tão cansado quanto estivera recentemente, mas ainda assim ele parecia ter envelhecido muito em poucos dias. — Embora houvesse algo de que eu devia ter conhecimento, mas não tinha.
— O Irmão Caenis?
Ele assentiu e mudou de assunto.
— O que você fará com os nomes que Marken lhe deu?
— Irei encontrá-los e levá-los a julgamento. Se for provado que são Filhos, irei enforcá-los.
— Minha Senhora Governadora favorece uma justiça severa.
— Eles tramaram a morte do meu tio, com pleno apoio da igreja que há séculos instiga o povo deste feudo a um respeito servil. Eles conspiraram com criaturas imundas das Trevas para me submeterem a uma vida de abusos antes de me enviarem atrás de você na esperança de que eu morresse. E não nos esqueçamos da tentativa deles de matar a Rainha. Devo continuar?
Vaelin examinou o rosto dela por um momento e Reva sentiu a dureza de sua expressão suavizar sob o escrutínio.
— Sinto muito por tudo o que lhe aconteceu aqui, Reva. Se eu tivesse tido a mínima noção…
— Eu sei. — Ela forçou um sorriso. — Junte-se a nós esta noite. Veliss encontrou um novo cozinheiro, ainda que só possamos oferecer dois pratos e nenhum vinho.
— Não posso. Há muito a ser feito. — Ele olhou para trás na direção do acampamento onde soldados estavam ocupados guardando equipamentos e suprimentos para a marcha do dia seguinte e o início do que estava tornando-se rapidamente conhecido como a Cruzada da Rainha. — Ela queria que eu perguntasse quantos homens você enviará conosco — disse ele, virando-se para Reva.
— Não enviarei nenhum. Vou liderá-los, a Guarda da Casa inteira e mais quinhentos arqueiros.
— Reva, você já fez o bastante…
O rosto flácido e sem vida de Arken, a espada em suas costas… Os arqueiros debatendo-se no rio enquanto as flechas caíam… Tio Sentes morrendo nos degraus da catedral…
— Não — retorquiu ela. — Não, não fiz.
Veliss foi encontrá-la em algum momento após a meia-noite. Elas haviam voltado a ficar em quartos separados após o cerco, mais por insistência da Conselheira do que dela. Suas numerosas indiscrições podiam ter passado despercebidas no tumulto das batalhas diárias, mas a cidade começara a retomar uma estranha normalidade agora que os cadáveres e o grosso dos escombros haviam sido removidos e a catedral havia sido reaberta.
— Tem certeza de que quer se encontrar sozinha com eles? — perguntou Veliss. Elas estavam deitadas lado a lado, cobertas por um leve brilho de suor, e Reva desfrutava da sensação do cabelo solto da Conselheira grudado em sua pele.
— Eles precisam saber que falo por conta própria — disse Reva. — Considerando o que preciso lhes contar.
— Eles não vão gostar…
— É o que espero. — Ela puxou Veliss para perto, beijando-lhe os lábios para evitar mais discussões.
— A Senhora Alornis — disse Veliss, algum tempo depois. — Você gosta dela.
— Ela é minha amiga, assim como o irmão dela.
— Não mais do que isso?
— Com ciúmes, Conselheira Honorável?
— Você não quer me ver com ciúmes, acredite. — Ela se ergueu, abraçando os joelhos. — Eu ia embora de qualquer forma, sabia? Quando a guerra acabasse, se o seu tio tivesse sobrevivido. Pegaria o ouro que ele ofereceu e partiria. Nunca me importei com todos os nomes de que me chamavam, ou com a condescendência escarnecedora do Leitor. Mas eu estava ficando cansada de tudo, das mentiras e das intrigas. Isso pode acabar cansativo mesmo para uma ex-espiã.
Reva estendeu a mão para acariciar as costas nuas de Veliss.
— E agora?
— Agora não consigo imaginar estar em outro lugar. — Reva a sentiu ficar tensa em antecipação às próximas palavras. — A Cruzada da Rainha…
— É minha cruzada. E não é um tópico a ser discutido.
— Acha que ela seria tão receptiva se soubesse da sua verdadeira natureza? Se ela soubesse sobre nós?
— A não ser que isso se mostrasse um impedimento para a libertação do Reino, duvido que ela fosse dar a mínima. — Reva lembrou-se do seu primeiro encontro com a Rainha, da inteligência ardente que brilhava por trás da máscara queimada do seu rosto e da determinação implacável, da singularidade de propósito que Reva reconheceu pelos poucos olhares imaturos que ela dispensava ao próprio reflexo. Mas eu fui enviada em busca de um mito, pensou ela. O objetivo dela é muito real, e duvido que fique satisfeita com qualquer número que encontremos em Varinshold. — Para falar a verdade, aquela mulher me assusta mais do que os volarianos — confessou ela a Veliss.
— Então por que segui-la?
— Porque ele segue. Ele me diz que é necessário. Não dei ouvidos às palavras dele uma vez e não cometerei o mesmo erro de novo.
— Ele é apenas um homem — murmurou Veliss, embora Reva pudesse ouvir a incerteza na voz dela. A história estava na boca de todos, cumbraelinos tão arrebatados pelo relato quanto os demais, espalhando-se mais cada vez que era contada. Um homem, abrindo caminho através de um exército a golpes de espada para salvar uma cidade, e vivendo para contar a história.
Vivendo? Reva lembrou-se de como as feições de Vaelin ficaram abatidas naquele dia, das lágrimas dela e da chuva constante lavando o sangue enquanto ela gritava para que ele não a deixasse. Mas ele a deixara, Reva vira claramente. Durante aqueles breves segundos, ele não esteve em seu corpo.
— Precisarei que você cuide das coisas enquanto eu estiver fora — disse Reva. — Que reconstrua da melhor forma que puder. Deixarei Lorde Arentes aqui como garantia da minha palavra, embora ele sem dúvida vá me odiar por isso. Que tal um novo título? Talvez Vice-Governadora? Tenho certeza de que você consegue elaborar algo melhor.
Veliss abraçou as pernas com mais força.
— Não quero títulos, só quero você.
Os Lordes Arentes e Antesh entraram primeiro na catedral, atravessando o interior cavernoso na direção dos aposentos do Leitor enquanto ela os seguia acompanhada por vinte Guardas da Casa. Os dois sacerdotes de guarda na porta dos aposentos foram dominados sem muita dificuldade, então Lorde Arentes abriu as portas e ficou de lado para lhe dar passagem. Reva parou ao ver o sacerdote preso contra a parede por Lorde Antesh, um homem de rosto emaciado com uma das mãos enfaixada e um nariz deformado.
— Nunca me disseram o seu nome — disse Reva.
O sacerdote franziu o cenho e nada disse até Antesh lhe dar uma sacudida nem um pouco gentil.
— Meu nome diz respeito apenas ao Pai.
— E creio que Ele quer que você o compartilhe. — Ela fez sinal para dois guardas se aproximarem. — Levem-no para a Senhora Veliss. Digam a ela que eu acho que algumas ervas medicinais fariam bem a esse homem.
Reva virou-se para a porta aberta enquanto arrastavam dali o sacerdote, caminhando tranquilamente e cumprimentando animada os sete velhos que encontrou sentados a uma mesa circular.
— Caros bispos! — Deveria haver dez, mas três haviam perecido no cerco, e ela suspeitava de que não tivesse sido por virtude de qualquer ato corajoso.
Um dos bispos levantou-se com dificuldade quando ela caminhou até a única cadeira desocupada na mesa, um homem mirrado e semelhante a um pássaro que Reva se lembrava de haver protestado quando ela ordenara que catedral fosse usada como lugar de tratamento dos feridos.
— Este é o sagrado conclave dos dez bispos — balbuciou ele. — Você não tem permissão para…
Ele se calou quando Lorde Arentes esmurrou a mesa com uma manopla.
— A forma correta de se dirigir à Senhora Governadora é “minha senhora” — disse ele ao clérigo amedrontado. — E ela pode atravessar qualquer porta nesta cidade.
Reva parou junto à cadeira vazia, naturalmente a mais ornamentada da sala, com uma almofada grande para o traseiro ossudo do velho desgraçado. Ela suspirou e empurrou a cadeira para longe. Não posso matá-lo duas vezes, infelizmente.
— Ora, meu senhor comandante — disse ela a Arentes. — Devemos respeitar a privacidade dos prezados bispos. Deixe-nos, pois temos muito a discutir.
Eles permaneceram sentados num silêncio atônito quando as portas foram fechadas com um estrondo ecoante. Reva esperou que o som se dissipasse antes de falar, a voz já sem qualquer vestígio de respeito.
— Então, escolheram?
Apenas um deles manifestou-se, um homem esguio de nariz proeminente, um pouco mais novo do que os colegas.
— Ainda não contamos os votos, minha senhora. — Ele indicou uma caixa simples de madeira no centro da mesa.
— Então contem agora.
Reva o observou atentamente quando ele pegou a caixa, percebendo que se lembrava de seu rosto do dia em que o Leitor morreu, aquele que sorrira quando ela atacara o velho. Um possível aliado? Ela deixou tal sugestão de lado; as revelações de Marken não deixavam espaço para boa vontade. Não tenho amigos nesta sala.
— O Bispo da Paróquia do Sul — informou o bispo magro após contar os votos. — Por unanimidade.
Reva passou os olhos pelos rostos ao redor da mesa e encontrou seis velhos assustados e um ancião adormecido que não erguera a cabeça desde que ela entrara.
— Quem é? — perguntou Reva.
O bispo magro pigarreou, pouco à vontade.
— Sou eu, minha senhora.
Ela deu uma risada curta e virou-se para ele, e seu olhar foi atraído para uma alcova iluminada por luz de velas nos fundos da sala, onde havia dez tomos grandes sobre leitoris. Os livros eram antigos, as capas descascadas e rachadas pela idade. Os primeiros a serem encadernados na terra de Cumbrael, ela sabia, achando estranho que não sentisse nenhum arroubo de assombro ao vê-los. Apenas uma coleção de livros velhos numa sala de homens velhos.
— Tenho em minha posse — disse Reva, voltando-se para a mesa — o que acredito ser uma lista completa dos que aderiram à seita herege conhecida como Filhos do Lâmina Fiel. No devido tempo, cada nome desta lista será capturado e interrogado. Tenho certeza de que vocês celebrarão comigo essa notícia, dada a quantidade de informações que eles sem dúvida fornecerão.
Ela examinou um rosto de cada vez, encontrando confusão na maioria deles, mas medo em outros. Eles sabiam, compreendeu ela. Não todos, mas alguns. Reva viu como o Bispo da Paróquia do Sul evitou o seu olhar, e algumas gotas de suor estavam se formando em sua testa enrugada. Ele em particular. Ela tinha razão; não havia aliados ali.
Reva andou lentamente em volta da mesa, observando cada uma das costas curvadas estremecer ao passar por elas. Não estava portando armas naquele dia, tendo colocado a espada de seu avô de volta no lugar na biblioteca, mas Reva não tinha dúvidas de que poderia quebrar cada pescoço naquela sala se quisesse. Ela parou atrás da cadeira ocupada pelo Leitor eleito e apontou para os votos empilhados com esmero ao lado dele.
— Dê-me esses papéis.
As mãos ossudas e manchadas tremiam ao fazer o que lhe fora ordenado, derrubando os votos e os recolhendo às pressas para colocá-los de forma desajeitada na palma de Reva.
— “O logro é tanto um pecado quanto uma bênção” — citou ela ao pegar os votos com o Leitor, o Quinto Livro, o Livro da Razão, que já estava se tornando o seu favorito. Ela se virou e caminhou lentamente de volta para a alcova, com os votos na mão. — “São muitos os caminhos que nos são apresentados pelo Pai e por demais sinuosos. A cada curva os amados se veem diante de inúmeras escolhas à medida que os seus caminhos se bifurcam, divididos por guerra ou fome, amor e traição. É impossível percorrer os variados caminhos da vida sem logro.” — Ela parou diante da alcova, erguendo os votos sobre uma das velas, deixando que a chama consumisse metade do papel antes de jogá-los no chão de pedra, onde continuaram a queimar, e em pouco tempo não eram mais do que um amontoado de cinzas enegrecidas. — “Mas” — continuou, com um sorriso aos bispos, que agora a encaravam ultrajados ou horrorizados — “o Pai perdoa a mentira dita por bondade, ou a serviço de um propósito maior.”
Reva permaneceu no mesmo lugar e o sorriso desapareceu de seus lábios, esperando que uma única voz se erguesse em contestação. Porém, todos os bispos simplesmente continuaram sentados e a encarando, instigando a raiva dela com a sua paralisia silenciosa. Essa igreja corrupta colaborou com assassinos. Eles se aliaram aos servos de um inimigo que trouxe carnificina e escravidão para esta terra. O povo desta cidade enforcaria todos vocês das torres desta catedral se eu assim desejasse. Eu ganhei o amor do povo, enquanto vocês se escondiam aqui e rezavam por milagres que nunca ocorreram. Ganhei o amor do povo com espada e arco.
Uma palavra a Arentes e estaria feito: os bispos seriam arrastados para fora, as acusações lidas enquanto a população assistia e ela atiçava a fúria dos habitantes com algumas verdades bem escolhidas. Todos agora eram assassinos, exceto as crianças, e mesmo elas estavam calejadas por verem tanta morte. Não haveria protestos, nenhuma mão se ergueria para impedi-la e ela teria aquilo pelo qual o sacerdote outrora a fizera ansiar: uma nova igreja moldada pela visão de seu pai.
A visão de meu pai louco. O pensamento dissipou a sua raiva, substituindo-a por uma compreensão cansada. Eles haviam perdido tanto, mas a igreja resistira por séculos e aquela terra não se curaria se Reva causasse ainda mais feridas.
O ancião adormecido se mexeu, despertando e lançando um olhar embaçado pela sala.
— Almoço! — gritou ele, batendo com a bengala na mesa.
Reva aproximou-se do ancião, sorrindo diante da careta de reprovação.
— E quem seria você, caro bispo?
— Eu — começou ele, empertigando-se — sou o Santo Bispo da… — Ele franziu o cenho, confuso, os ombros caíram um pouco, e passou a língua pelos lábios. — O Bispo da…
— Da Paróquia da Terra dos Rios — informou o bispo à esquerda dele num sussurro tenso.
— Sim! — O bispo ancião animou-se, fixando um olhar arrogante em Reva. — Sou o Bispo da Paróquia da Terra dos Rios e exijo o meu almoço.
— Você o terá — assegurou-lhe Reva com uma mesura. — E muito mais. — Ela andou até a porta, parando para fazer um gesto expansivo na direção dos outros bispos. — Pois os seus colegas o elegeram Santo Leitor da Igreja do Pai do Mundo. Aceite, por favor, as minhas sinceras congratulações, Leitor, e saiba que tem a mais devota lealdade da Casa Mustor. Aguardo o seu primeiro sermão com o mais profundo interesse.
A sala das espadas estava quase vazia, os cavaletes outrora cheios agora sem lâminas, exceto por umas poucas penduradas alto demais na parede para serem alcançadas com facilidade. Ela passou uma hora treinando com a espada do avô, dançando a sua dança com a lâmina pesada, rodopiando e cortando, forçando os músculos.
— Eu poderia vê-la fazer isso por horas.
Reva parou no meio de uma pirueta e viu Alornis parada na porta, os dedos manchados de carvão ainda segurando a sua pasta de couro.
— Duvido que você tivesse gostado da visão alguns dias atrás — disse Reva, massageando as costas.
O olhar de Alornis tornou-se sombrio.
— Foi terrível, eu sei. Tantas partes da cidade destruídas. Na marcha até aqui eu vi coisas… Coisas que senti que precisava desenhar. — Ela bateu na pasta. — Achei que colocá-las no papel pudesse tirá-las da minha cabeça, mas ainda continuam lá.
As cabeças cortadas caindo do alto… O olhar desafiador do volariano ao ser conduzido até o bloco…
— Como deveriam continuar — disse Reva. — Você irá para Varinshold? Há quartos de sobra aqui, caso queira ficar. E tenho certeza de que a Senhora Veliss gostaria da companhia.
Alornis sorriu, mas sacudiu a cabeça.
— Alucius e Mestre Benril. Preciso encontrá-los. — Ela hesitou e então entrou na sala, arregalando os olhos ao apreciar os quadros no alto das paredes, os espadachins em suas várias poses. — Foram pintados por uma mão habilidosa.
— E ao custo do dinheiro do meu bisavô, sem dúvida, que parece ter sido um pouco generoso demais com suas moedas, de acordo com os registros de Veliss. Talvez seja por isso que ele tenha perdido tantas guerras para os asraelinos. Tenho visto que governar um feudo é em grande parte uma questão de dinheiro.
Alornis franziu a testa ao olhar para Reva, sacudindo a cabeça um pouco espantada.
— Tão mudada em tão pouco tempo.
Reva achou difícil suportar o escrutínio e virou-se, erguendo a espada.
— Você é pesada demais — disse ela à arma.
— O que aconteceu à sua antiga espada? — perguntou Alornis. — Era belíssima.
Parada sobre o corpo de Arken, o seu braço movendo-se num arco incessante e mortal, a fúria brotando de seus lábios numa torrente sem sentido…
— Eu a quebrei. — Ela ergueu a cabeça para as poucas lâminas restantes nos cavaletes mais altos, avistando uma espada asraelina que de algum modo passara despercebida pelos criados enviados para revirar o lugar em busca de armas. — Você pode me ajudar a encontrar outra.
Ela juntou as mãos para fazer um apoio e Alornis colocou um pé ali, estendeu a mão para cima ao ser erguida por Reva e tirou a espada do cavalete antes de perder o equilíbrio e cair. Reva a apanhou, segurando-a com força enquanto ela ria, afastando-se para olhá-la nos olhos.
— Meu irmão disse que a Senhora Veliss já foi uma espiã a serviço do Rei Janus — disse Alornis.
— Eu sei. Ela foi muitas coisas.
— Bem, eu a acho adorável. — Ela ficou na ponta dos pés para beijar a testa de Reva. — Fico feliz por você.
Alornis virou-se, recolheu a pasta de desenhos e partiu. Reva fechou os olhos, sentindo o calor do beijo deixar a sua pele. O olhar dela sempre foi perspicaz demais. Seria tolice imaginar que ela não soubesse.
Ela ergueu a espada, sacou a lâmina da bainha e viu que era antiga, mas não estava enferrujada; o gume embotado, mas não tanto que não pudesse ser afiado.
— Bem — disse ela, deixando a bainha de lado e assumindo uma posição de luta. — Vamos ver se você é mais apropriada. Temos muito trabalho a fazer.