Lyrna
A égua fora um presente dos eorhil, tinha um metro e meio até a altura da cernelha e era branca do focinho ao rabo, exceto por um tufo de pelo negro entre as orelhas. Lyrna encontrara a eorhil chamada Sabedoria esperando com a égua quando saiu da tenda naquela manhã. A mulher ofereceu as rédeas com uma mesura formal surpreendentemente bem-executada.
— Ela tem um nome? — perguntou Lyrna.
— A tradução é “uma flecha invisível quando corre na neve e no vento”, Alteza — respondeu Sabedoria com perfeição na língua do Reino. — Meu povo não é famoso pela brevidade.
— Então será Flecha — decidiu Lyrna, coçando o focinho da égua e provocando uma leve bufada.
— Ela sente falta do seu cavaleiro — disse Sabedoria. — Ele tombou diante da cidade. Sinto que a senhora conseguirá curar o coração dela.
— Obrigada. — Lyrna retribuiu a mesura. — Poderia cavalgar comigo hoje? Eu gostaria muito de saber mais sobre o seu povo.
Havia um tom sardônico na voz da mulher ao responder:
— A senhora já não leu todos os livros da sua biblioteca que falam dos eorhil, Alteza?
— Percebo cada vez mais que a sagacidade proporcionada pelos livros é limitada quando comparada com a experiência.
— Como queira. — Sabedoria virou-se e montou no próprio cavalo, olhando com expectativa para Lyrna. — Meu povo cavalga agora.
Iltis e Benten foram obrigados a correr até os próprios cavalos enquanto Lyrna montava e partia a trote com Sabedoria. Cavalgaram até a extremidade leste do acampamento, onde o exército eorhil já se encontrava em movimento, os vários bandos de guerra galopando aparentemente a esmo. Não havia fileiras ou colunas devidamente ordenadas ali, apesar de cada cavaleiro parecer se mover com um propósito, e Lyrna notou como o exército assumiu uma formação definida, ainda que não muito rígida, ao encimarem as colinas a leste e descerem para as planícies mais além.
— Uma região boa para cavalos — comentou Lyrna com Sabedoria por volta de uma hora antes do meio-dia. A cavalgada havia sido difícil, mas não exaustiva; a sua jornada pelo Domínio Lonak a deixara bem adaptada a longas horas na sela. Além disso, ela achava a sua nova montaria encantadora, mais veloz do que o pobre e velho Sable e menos irascível do que Passofirme.
— Ainda há colinas demais para o gosto de meu povo — retorquiu Sabedoria, tomando um longo gole do seu odre. — E não se vê um alce desde que chegamos aqui. Alguns dos jovens estão irritados; a verdadeira maioridade só começa quando se abate o primeiro alce.
Lyrna olhou para os cavaleiros ao seu redor, notando como os olhos deles constantemente encontravam o seu rosto, mas não revelavam nenhum traço do assombro demonstrado pelos habitantes do Reino. Na verdade, detectou um desconforto pela proximidade dela.
— Vocês chamam de Trevas — disse Sabedoria, de alguma forma sentindo a pergunta que Lyrna estava prestes a fazer. — Nós simplesmente chamamos de Exilla, “poder”, na sua língua.
— Não um que eu possuo — observou Lyrna.
— Não importa. Sabemos que existe, mas poucos de nós recebem tais dons.
— Presumo que aqueles que os recebem sejam evitados.
Sabedoria soltou uma leve risada.
— Não nos julgue pelos padrões de seu povo, Alteza. Aqueles que possuem dons não são evitados, são respeitados. Quanto maior o poder, maior o respeito, e respeito pode transformar-se em medo caso o poder seja grande o bastante. Até hoje não há conto ou canção em nossa história que mencione um poder maior do que o usado para curá-la. Eles estão preocupados com o que isso pode significar.
— Você está preocupada?
Os lábios de Sabedoria, rachados pela idade, formaram um sorriso pequeno, mas cheio de solidariedade.
— Não, grande e terrível Rainha, sei muito bem o que significa.
Sanesh Poltar aproximou-se a trote em seu alto garanhão malhado, fazendo um cauteloso aceno de cabeça para Lyrna.
— Batedores dizem muitos homens ao sul — informou o chefe de guerra à Sabedoria. — A Rainha fica aqui enquanto nós vamos ver.
— Acho que não — disse Lyrna, lançando um sorriso radiante ao eorhil.
— Senhor da Torre diz para mantê-la a salvo mais do que todos os outros — retorquiu Sanesh Poltar. — E nós respondemos a ele, não a senhora.
— E eu não respondo a ninguém. — Lyrna puxou as rédeas de Flecha, apontando o focinho da égua para o sul e saindo a galope.
Os eorhil logo a alcançaram, é claro, embora ela tenha ficado satisfeita pelo olhar severo que Sanesh Poltar lhe lançou ao passar galopando. Iltis e Benten aproximaram-se pelos dois lados enquanto seguiam no encalço dos cavaleiros; Lyrna se viu piscando para afastar dos olhos a poeira que era levantada à medida que o sol se erguia para secar a terra. Eles chegaram ao topo de uma pequena colina uma hora mais tarde, parando ao lado do chefe de guerra, que observava o vale não muito fundo mais além. A leste e oeste os seus batedores galopavam numa formação perfeitamente coordenada, enquanto o grosso de seus cavaleiros aguardava no alto da colina. Ela notou que a maioria colocara uma flecha nos arcos de chifre.
Sanesh Poltar permaneceu em silêncio, esquadrinhando o vale como uma águia. Lyrna acompanhou o seu olhar e viu apenas uma terra vazia.
— Quantos homens foram vistos? — perguntou ela ao chefe de guerra.
— Menos do que havia na cidade — informou o eorhil sem se virar. — Mais do que temos.
Outra força volariana enviada por Tokrev para saquear o sul?, perguntou-se. Mestre Marken vasculhara a mente do general morto, revelando o que ele descrevera como um pântano de ambições vãs e invejas medíocres, mas nenhum indício de outra força considerável nos arredores. Poderiam ter desembarcado antes do esperado?, ponderou Lyrna. Teria Tokrev chamado a segunda onda para acelerar a conquista?
Sanesh Poltar endireitou-se na sela e apontou. Passaram-se alguns segundos até Lyrna avistá-los: um pequeno bando de cavalaria galopando para o vale e parando de repente ao verem tantos cavaleiros no horizonte acima. Eles se espalharam, ainda distantes demais para que quaisquer detalhes pudessem ser discernidos, e um deles partiu a galope e desapareceu por sobre a orla do vale. Ao lado de Lyrna, Sabedoria soltou o arco da sela e colocou uma flecha na corda. Velha como é e ela ainda espera lutar, pensou Lyrna.
Os cavaleiros no vale aguardaram por vários minutos; Lyrna achou estranho que nenhum ainda tivesse desembainhado a espada. O olhar de Sanesh Poltar mudou novamente de direção quando um estandarte alto surgiu da orla do vale, balançando na frente de uma coluna de infantaria liderada por um homem a cavalo. Eles marcharam para dentro do vale em fileiras cerradas, sem fazerem menção de assumir uma formação de batalha, e Lyrna compreendeu o motivo quando o símbolo no estandarte ficou visível: uma torre erguendo-se das ondas de um oceano.
Ela riu e avançou com Flecha, ignorando o protesto horrorizado de Iltis, que seguia galopando atrás. A coluna em marcha parou quando a Rainha se aproximou, sargentos gritavam ordens ignoradas por homens que olhavam para ela com franco assombro. Lyrna dirigiu-se até o cavaleiro na frente da coluna, erguendo uma das mãos e sorrindo calorosamente. O homem desmontou, não sem alguma dificuldade, e agachou-se lentamente sobre um joelho.
— Que surpresa agradável, meu senhor! — exclamou Lyrna.
O Senhor da Torre Al Bera olhou para ela com uma expressão pálida, porém firme, levantando-se com esforço quando a Rainha saltou da sela e aproximou-se dele de mãos estendidas.
— Alteza — disse ele, a voz rouca e as costas rígidas ao colocar os lábios nas mãos de Lyrna, os olhos mal deixando o rosto da Rainha ao se empertigar. — Ouvimos tantas histórias terríveis. É uma felicidade imensa descobrir que pelo menos uma é falsa. — Ele se virou, erguendo um braço para os homens às suas costas à medida que mais surgiam marchando. — Apresento o Exército da Costa Sul. Vinte mil cavaleiros e soldados de infantaria prontos para marchar e morrer pela Palavra da Rainha.
— Eles enviaram cerca de cinco mil homens para os condados do sul — relatou o Senhor da Torre ao conselho de capitães naquela noite.
Lyrna fora obrigada a ordenar que ele se sentasse, visto que o homem corria o risco de tombar a qualquer momento pela exaustão e dor evidentes. Ele se sentou num banco dobradiço, com os braços aninhados no colo, o esquerdo bastante enfaixado e o direito pendendo frouxo do ombro caído. Lyrna sugeriu levá-lo até Artesão, mas a expressão chocada do Senhor da Torre foi suficiente para que ela deixasse o assunto de lado.
— Principalmente soldados-escravos — prosseguiu Al Bera. Lyrna sabia que este era um homem promovido por mérito em vez de sangue, e havia na voz dele as vogais bem enunciadas que eram uma característica do povo do sul de Asrael. — Além de mil cavaleiros. E traficantes de escravos, é claro. Arrasaram várias aldeias antes que as notícias chegassem na Torre. Marchei com a Guarda do Sul e os homens que pude recrutar do litoral. Nós os alcançamos enquanto terminavam um massacre em Cais de Draver, nas margens mais baixas do Ferrofrio. Tive a impressão de que não esperavam uma resposta tão ligeira. O que era de imaginar, visto que eu deveria estar morto. — Al Bera parou para dar um leve sorriso. — Fizemos com que pagassem. As forças eram praticamente iguais, de modo que o confronto foi acirrado, mas fizemos com que pagassem.
— Prisioneiros? — perguntou Vaelin.
— Os soldados-escravos não se rendem, mas capturamos alguns cavaleiros e traficantes de escravos. Entreguei-os às pessoas que libertamos. Provavelmente eu devia apenas tê-los enforcado, mas sangue se paga com sangue.
— De fato, meu senhor — disse Lyrna. — Continue, por favor.
— Desde então, tenho reunido homens e os treinado da melhor forma possível. Recebemos notícias há duas semanas de que a frota meldeneana estava subindo o Ferrofrio, então julguei que era hora de ir para o norte.
— O senhor julgou corretamente — assentiu Lyrna. — Porém, estamos com uma escassez de suprimentos.
— Suprimentos eu consegui, Alteza. A senhora minha esposa tem laços familiares dos dois lados do Erineano. Aparentemente alguns mercadores alpiranos estavam dispostos a fazer negócios conosco. Os termos não foram favoráveis, e o tesouro da Torre Sul está praticamente vazio, mas, uma vez que o Imperador revogou o embargo, imagino que eles não podiam deixar passar uma oportunidade de lucrar.
Lyrna viu Lorde Verniers erguer a cabeça ao ouvir aquilo. Ele era uma presença deliberadamente obscura no exército, determinado a evitar conversas com qualquer um que não Vaelin e a Rainha, embora Lyrna tivesse deixado claro que ele era bem-vindo em todas as reuniões e livre para registrar todas as palavras ditas. O Escudo de certa forma o exaltara após a batalha, declarando-o “O escriba que matou um general!” com uma gargalhada estrondosa, imitada por sua tripulação. Entretanto, Verniers parecia evitar quaisquer recompensas que o seu heroísmo pudesse oferecer, embora tivesse pedido com insistência por uma reunião particular.
— Seu Imperador parece estar mais disposto com o nosso Reino, meu senhor — disse ela a Verniers.
O cronista remexeu-se um pouco quando os capitães se viraram para olhá-lo, dando voz somente a uma resposta curta.
— Parece que sim, Alteza.
— Acha que ele sabe sobre o grande plano dos volarianos? Poderia ser essa a razão para ter mudado de opinião?
— Os propósitos do Imperador nunca são determinados com facilidade, Alteza. Porém, qualquer coisa que possa prejudicar o Império Volariano provavelmente irá agradá-lo muito. Eles são nossos inimigos há muito mais tempo do que de vocês.
— Devíamos enviar um embaixador — disse Vaelin. — Forjar uma aliança, se possível.
— Tudo ao seu devido tempo, meu senhor — ponderou Lyrna, virando-se de novo para Al Bera. — Escreverei uma carta para a Senhora Al Bera garantindo que quaisquer dívidas contraídas na compra de mais suprimentos serão plenamente quitadas ao encerramento das hostilidades. Ela terá liberdade para concordar com condições adequadas de juros com qualquer mercador. Enquanto isso, metade dos seus suprimentos disponíveis será enviada para Alltor para ajudar os cumbraelinos no decorrer do inverno. A outra metade virá até nós — ela passou um dedo pelo mapa até uma cidade na costa renfaelina — em Warnsclave, onde nos encontraremos com os nossos aliados meldeneanos em quinze dias. Por ora, meu senhor, descanse um pouco, por favor.
Lyrna passou a viagem até Warnsclave na companhia de um contingente diferente todos os dias. Um dia com os cumbraelinos da Senhora Reva, o seguinte com um regimento de mineiros dos Confins, o terceiro com a Guarda do Sul. Cada rosto revelava assombro, fascinação ou, no caso da Companhia Livre de Lorde Nortah, uma lealdade intensa e resoluta.
— Os Finados a abençoaram, minha Rainha! — gritou um homem quando ela se aproximou a cavalo de Lorde Nortah, o grito logo repetido por seus companheiros combatentes.
— Silêncio nas fileiras! — berrou o sargento da companhia, um jovem atlético de cabelos longos e com uma espada atravessada nas costas ao estilo da Sexta Ordem.
— Perdão, Alteza — disse Lorde Nortah ao seguirem caminho. — Eles não são fáceis de controlar. E não é como se eu pudesse chicoteá-los.
— Não, meu senhor — disse Lyrna. — O senhor certamente não pode. — Ela achou estranho que viajassem em silêncio durante boa parte da manhã; o garoto de quem se lembrava como o filho do Primeiro-Ministro de seu pai raramente era silencioso, um fanfarrão e por vezes valentão, que não demorava em provocar e chorava ainda mais depressa quando essas provocações eram devolvidas. Lyrna não via nada daquele garoto no guerreiro barbado ao seu lado, que tinha um sorriso leve nos lábios ao observar a grande gata que os acompanhava aos saltos.
— Pretendo lhe oferecer a restituição das terras e títulos de seu pai — disse ela quando o silêncio tornou-se cansativo. — Contudo, Lorde Vaelin me informou que o senhor não teria interesse em tais honrarias.
— Nunca foram de muita serventia para o meu pai, não é, Alteza? — retorquiu Lorde Nortah com bastante cordialidade, mas com uma leve aspereza na voz.
— Eu não estive a par da decisão do Rei sobre essa questão — disse Lyrna. — Creio que tenha sido… lamentável.
— Não guardo mágoa alguma, Alteza. O tempo turvou as minhas lembranças de um homem que eu amava tanto quanto odiava. Seja como for, sem a morte dele eu não teria seguido o caminho que me levou à minha esposa, aos meus filhos e ao lar pelo qual anseio. E a Fé nos ensina a aceitar as dádivas que o destino nos traz.
— O senhor ainda segue a Fé?
— Eu deixei a Ordem, Alteza, não a Fé. Meu irmão pode ter perdido a sua em algum lugar do deserto, mas a minha ainda existe. Embora minha esposa espere que eu a abandone em favor do sol e da lua. — Lorde Nortah deu uma risada baixa e Lyrna pôde perceber nela a saudade que ele sentia de casa. — É a única coisa pela qual discutimos, na verdade.
Eles pararam ao meio-dia para descansar; Lyrna desmontou de Flecha e empertigou-se alarmada quando uma mulher correu das fileiras da Companhia Livre com uma adaga em cada mão. A espada de Iltis saiu da bainha num borrão, mas, em vez de se lançar sobre Lyrna, a mulher caiu de joelhos, de cabeça baixa e com as adagas erguidas no alto.
— Minha Rainha! — disse ela com voz trêmula. — Imploro à senhora para que abençoe estas adagas para que possam realizar o seu serviço.
Os outros combatentes livres imediatamente caíram de joelhos, e todos sacaram as suas armas e as ergueram. Aquela era nitidamente uma cerimônia planejada durante a marcha, sobre a qual Lorde Nortah nada sabia, a julgar por sua expressão cansada e de descontentamento.
Nunca tema um pouco de espetáculo. Lyrna respirou fundo e pôs um sorriso bondoso nos lábios ao se aproximar da mulher ajoelhada, reconhecendo-a como a figura esguia que havia sido a primeira a gritar em Alltor.
— Como você se chama? — perguntou ela.
— F-Furelah, minha Rainha — gaguejou a mulher, sem erguer a cabeça.
Lyrna segurou gentilmente as mãos trêmulas da mulher.
— Abaixe as suas lâminas, irmã. Levante-se, olhe para mim.
Furelah ergueu lentamente a cabeça, os olhos arregalados ao absorverem o rosto dela, ficando de pé enquanto Lyrna ainda lhe segurava as mãos.
— Quem você perdeu? — perguntou ela à mulher.
— M-minha filha — sussurrou a mulher esguia, com lágrimas escorrendo dos olhos. — Ilegítima, desprezada e chamada de bastarda durante toda a sua vida, mas sempre muito meiga. Eles e-esmagaram a cabeça dela com uma pedra. — A mulher perdeu as forças ao ser tomada pelos soluços chorosos, caindo de joelhos. Lyrna a abraçou enquanto ela chorava, ainda segurando firme as adagas.
— Não posso abençoar as lâminas dessa mulher — disse ela aos combatentes, muitos dos quais agora choravam abertamente. — Pois ela me abençoa. Todos vocês abençoam. Eu sou a sua lâmina, e vocês são as minhas. — Ela ergueu a ainda soluçante Furelah, levando-a de volta às fileiras da companhia. — Portanto, eu os nomeio o Décimo Sexto Regimento de Infantaria da Guarda do Reino, a serem conhecidos doravante como as Adagas da Rainha. — Eles abriram caminho diante dela quando soltou Furelah, a mulher caindo de joelhos mais uma vez no mesmo instante, todos os seus companheiros estendendo mãos hesitantes para tocar o vestido de Lyrna enquanto ela andava por entre eles, uma devoção fervorosa em cada rosto. Não posso me embriagar com isso, pensou ela, sorrindo e tocando cabeças abaixadas em súplica. A tentação é grande demais.
— Luta, sangue e justiça! — começou o grito, um clamor espontâneo de uma voz sem rosto nas fileiras ajoelhadas, repetido sem parar enquanto brandiam as variadas armas. — Luta! Sangue! E justiça!
Lyrna sentiu a sedução do grito invadi-la, o poder que havia nele, a consciência de que aquelas centenas de almas feridas morreriam por ela num instante. Ela estava à beira de entregar-se completamente a ele quando algo a deteve, um único rosto que não havia sido tomado pela adoração. Lorde Nortah estava parado ao lado de seu cavalo, passando a mão sobre a cabeça da grande gata agachada ao seu lado, o seu olhar de leve descontentamento agora substituído por um de profunda e óbvia desaprovação.
* * *
Ela se encontrou com o Irmão Caenis à noite, sozinha, uma vez que Vaelin parecia determinado a evitar o seu antigo irmão, uma atitude compartilhada por muitos nas fileiras do exército. Até mesmo Orena, que lhe parecia uma mulher muito prática, pedira para retirar-se mais cedo em vez de permanecer para receber o irmão. O medo das Trevas não desaparece de uma hora para outra, concluiu Lyrna.
O recém-revelado irmão da Sétima Ordem estava sentado em posição de sentido num banco dobradiço, recusando a bebida oferecida com uma sacudida cortês de cabeça. Apesar de toda a sua robustez evidente e renome como guerreiro, havia uma nítida timidez naquele homem compacto e calejado pela guerra, um movimento nos olhos como se esperasse um ataque a qualquer momento. Tanto tempo vivendo nas sombras, pensou ela. A luz do dia pode ser tão assustadora quanto as Trevas.
— Meus irmãos e irmãs me pediram para lhe agradecer, Alteza — disse ele. — Por sua consideração.
— Uma rainha importa-se com todos os seus súditos, meu senhor.
— Por favor, Alteza, prefiro ser chamado de “irmão”. Sou um homem da Fé em todas as coisas.
— Como queira. — Lyrna pegou o pergaminho que ele lhe entregara ao chegar, uma lista completa dos membros de sua Ordem e de seus vários dons. — Você tem um irmão que pode ver o passado?
— O dom do Irmão Lucin é limitado, Alteza. A visão dele se restringe à localidade em que ele estiver no momento.
Lyrna assentiu, franzindo a testa diante da descrição seguinte na lista.
— E essa Irmã Merial realmente consegue puxar raios do ar?
— Não exatamente, Alteza. Ela consegue jorrar um poder, uma energia pelas mãos. Na escuridão ou nas sombras pode se parecer com raios. O dom é muito desgastante, fatal se o uso for exagerado.
— Ela pode matar com esse dom?
O Irmão Caenis hesitou, e então assentiu lentamente.
— Então ela e o seu dom são muito bem-vindos neste exército. — Lyrna leu o resto da lista e olhou para ele com uma sobrancelha erguida. — Vejo que está faltando um nome, irmão.
O desconforto dele aumentou visivelmente, mas o olhar permaneceu firme e não havia nota alguma de concessão em seu tom.
— Meu dom não pode ser revelado, Alteza. Por ordem expressa do meu Aspecto.
Lyrna ficou tentada a lembrá-lo que a Fé servia à Coroa, mas achou melhor não dizer nada. Há muita serventia no que ele me trouxe. E esse não é um bom momento para conflitos com a Fé, especialmente por continuarem escondendo coisas demais.
— Passei muitos anos à procura da sua gente — disse ela, deixando de lado a lista. — Até mesmo arrisquei a minha vida nas montanhas para encontrar evidências de sua existência. E, no entanto, parece que tudo o que eu tinha de fazer era aguardar pelo curso da história e eu seria confrontada por mais evidências do que poderia desejar.
O Irmão Caenis limitou-se a assentir com cautela em resposta e a desviar o olhar quando ela continuou.
— Deve ter sido difícil viver escondido por tanto tempo. Mentir para os seus irmãos durante anos.
— A Fé o exigia, Alteza. Eu não tive escolha. Mas, sim, foi um dever árduo.
— Lorde Vaelin me disse que você era o súdito mais leal que meu pai poderia desejar. Que o seu entusiasmo pela guerra do deserto era grande. Tanto que ele achou que o seu coração havia sido despedaçado quando isso não serviu de nada.
— O Aspecto Grealin foi bastante preciso quanto ao papel que queria que eu desempenhasse. Minha devoção pela Fé era tão forte que ele achou melhor que fosse mascarada como devoção pelo Rei. Porém, meu irmão tinha razão. Meu entusiasmo pela guerra era genuíno, inflamado por meu Aspecto, que me disse que ela era a peça-chave para garantir o futuro da Fé. Por suas próprias razões, ele não me contou como essa garantia seria alcançada, ou o destino de meu irmão. Sempre achei os argumentos do Aspecto Grealin infalíveis, ele nunca me conduziu ao caminho errado, nunca cometeu erros.
— Teve notícias dele desde a tomada da capital?
— Infelizmente não, Alteza. — Caenis baixou a cabeça, a tristeza aparente na voz. — O Irmão Lernial possui uma facilidade para ouvir os pensamentos das pessoas que já encontrou, mesmo a grandes distâncias. Sabemos que o Aspecto se refugiou na Urlish com um bando de combatentes livres. Os detalhes são vagos, pois o dom de Lernial é limitado. Ele sofreu um ferimento na cabeça em Alltor e acordou dois dias depois com um grande grito. Eu esperava que as suas palavras fossem apenas um sintoma de uma mente abalada, mas ele se recuperou muito desde então e o seu dom lhe diz que não há mais pensamentos a serem ouvidos vindo do Aspecto Grealin.
Vendo o seu sofrimento evidente, Lyrna apertou a mão do irmão.
— Meus pêsames, irmão.
Ele se remexeu pouco à vontade, forçando um sorriso. Ele tem medo de mim? Um dos nomes na lista aparentemente possuía certa facilidade para ver o futuro, e ela imaginou de que revelações Caenis estaria a par, lembrando-se do semblante carregado de Lorde Nortah e das palavras de Sabedoria no primeiro dia de marcha. Sei muito bem o que significa.
— Durante o interrogatório do Irmão Harlick, a volariana que capturamos em Alltor falou de um Aliado — disse Lyrna, afastando-se. — Lorde Vaelin parece achar que você pode ser capaz de explicar o que ela queria dizer.
— O Irmão Harlick já lhe contou tudo o que sabemos, Alteza. Aquela coisa se encontra no Além e trama a nossa destruição. Não sabemos por quê.
— Se essa coisa existe num lugar além da morte, isso não faz pressupor que já tenha vivido? Que já foi um homem, ou uma mulher?
— Sim, Alteza. Mas nenhum membro de nenhuma Ordem conseguiu descobrir até agora como essa coisa veio a se tornar o que é, nem que intervenção maligna poderia tê-la corrompido e transformado em tamanho mal.
— Deve haver registros, textos antigos que descrevam a sua origem.
— A Terceira Ordem passou séculos reunindo as palavras mais antigas escritas por mãos humanas, pagando somas consideráveis por pedaços de pergaminho ou fragmentos de cerâmica. O Aliado está lá, mas sempre como uma sombra, uma catástrofe inexplicada ou um assassinato cometido por ordem de um espírito sombrio e vingativo. Separar verdade de mito costuma ser uma tarefa infrutífera.
As palavras do irmão instigaram a memória impecável de Lyrna, que se lembrou de uma frase dos Cantos de ouro e pó de Lorde Verniers: “A verdade é a maior arma do estudioso, mas com frequência também a sua perdição.” Ela chegou à conclusão de que já havia passado muito da hora de uma audiência particular com o cronista alpirano.
— Suponho que a sua Ordem agora precise de um novo Aspecto, não? — perguntou ela a Caenis.
— Como a senhora sabe, há formalidades para a escolha, Alteza. Minha Ordem permanecerá sem um Aspecto até que um conclave possa ser reunido. Porém, meus irmãos e irmãs manifestaram o desejo de aceitar a minha liderança nesse ínterim. — O olhar dele tornou a se firmar. — O que me leva a outra questão.
— As pessoas dos Confins.
— De fato, Alteza. Minha Ordem perdeu muitos irmãos e irmãs nesta guerra. As nossas fileiras estão diminuindo.
— E você levaria esses outros para a sua Ordem mesmo com as objeções veementes deles? Lorde Vaelin deixou muito claro o que eles pensam a respeito disso. Seguem a ele, não a você.
— Minha Ordem é o escudo dos dotados. Sem nós, todos eles teriam perecido há gerações.
— E ainda assim vocês continuaram se escondendo durante décadas enquanto eles corriam o risco de serem descobertos e mortos pelas mãos da Quarta Ordem.
— Um subterfúgio necessário. A maioria de nós é descoberta na infância, crianças dotadas nascidas de pais dotados e membros antigos da Ordem. Nem todos são tão afortunados, ou tornam-se bons de coração ou imunes à cobiça. Apesar de todo o nosso poder, temos almas humanas como qualquer outra pessoa. Antes da ascensão do Aspecto Tendris, os dotados encontrados pela Quarta Ordem eram avaliados para determinar se tinham condições de serem admitidos em nossas fileiras. Era escolha deles se juntarem ou não a nós.
— Mas não, suponho, se continuassem fora da Fé?
— A Sétima Ordem é da Fé, Alteza. Isso não pode mudar.
Tenho outro Tendris aqui?, ponderou Lyrna, vendo a crença implacável em seu olhar. Ela se perguntara com frequência por que o seu pai não havia ordenado que um de seus muitos agentes ocultos envenenasse o sempre problemático Aspecto da Quarta Ordem. Contudo, nem mesmo o velho maquinador fora imune à Fé, tampouco ignorava o poder que ela detinha.
— Este é um Reino livre — disse ela a Caenis. — Isso também não pode mudar. Você pode falar com os dotados dos Confins e lhes oferecer um lugar em sua Ordem. Porém, se recusarem, você deixará o assunto de lado e eu não o ouvirei ser mencionado novamente durante o meu reinado, que espero ser de considerável duração. A não ser que a sua irmã Verlia — Lyrna consultou a lista mais uma vez, apenas para dar um efeito dramático, pois havia memorizado o conteúdo à primeira vista — preveja um futuro diferente, é claro.
— As visões de minha irmã são… infrequentes — disse Caenis. — E necessitam de muita interpretação. Até o momento ela vê pouco no que diz respeito a Vossa Alteza.
— E que pouco é esse que ela vê?
Caenis empertigou-se, mais uma vez aparentemente um guerreiro e não um Aspecto temporário, o rosto carregado com a consciência da batalha que estava por vir.
— Fogo — respondeu ele. — Ela vê somente fogo.
Lyrna viajou com os seordah no dia seguinte, optando por andar tal como eles. A Senhora Dahrena a acompanhou como intérprete, um papel um tanto redundante, uma vez que poucos dentre o povo da floresta pareciam dispostos a falar com elas, e a maioria na verdade evitava olhar na direção das duas. Ela podia ver como isso afligia a senhora, o modo como o sorriso dela vacilava quando os guerreiros de feições aquilinas desviavam o olhar ou grunhiam respostas curtas às suas tentativas de conversa. Em comparação, a atitude deles para com Lyrna parecia ser mais de perplexidade curiosa do que de medo.
— Toque de cura muito raro na floresta — disse Hera Drakil, o único de seu povo a ficar ao lado de Dahrena por mais de alguns passos, e mesmo assim ela sentia uma relutância tensa vinda do chefe de guerra, como se cada passo fosse um teste de coragem. — Há muitas gerações não se vê.
— Seu povo possui livros? — perguntou Lyrna, seus pensamentos voltando-se para a vasta biblioteca da Mahlessa sob a Montanha. — Registros da época antes dos marelim sil?
— Livros? — O chefe de guerra franziu o cenho.
— Virosra san elosra dural — disse Dahrena ao homem. O seordah de Lyrna era mais precário do que o seu lonak, mas ela sabia o suficiente para uma tradução aproximada. As palavras que prendem o espírito.
— Não — respondeu o seordah a Lyrna. — Nada de livros para os seordah. Não agora, não nos tempos de antes. Tudo é falado e lembrado. Só a palavra falada é verdadeira.
Lyrna viu Dahrena hesitar e então dizer algo na língua seordah, rápido demais para ser traduzido com facilidade e com palavras além do conhecimento da Rainha. Qualquer que fosse o significado, as palavras foram suficientes para tornar sombrio o semblante de Hera Drakil, que se virou e afastou-se em meio às fileiras desordenadas de seu povo.
— Ele se ofendeu? — perguntou Lyrna a Dahrena.
O rosto da senhora estava tomado pela tristeza enquanto observava o chefe de guerra afastar-se.
— Só a palavra falada é verdadeira — disse ela. — Eu lhe disse a verdade. Ele não gostou.
O exército aumentava conforme seguia para leste; bandos ocultos de fugitivos e escravos fugidos surgiam de florestas e cavernas para se juntar a eles ou implorar por comida. Lyrna certificou-se de que todos fossem bem tratados, mesmo aqueles que relutavam em se juntar às suas fileiras, embora esses fossem poucos. Havia numerosos desgarrados da Guarda do Reino entre os novos recrutas, ávidos por retornarem a regimentos que àquela altura em grande parte já haviam sido dizimados. A pedido de Lyrna, o Irmão Caenis deixara o cargo de Lorde Comandante do contingente da Guarda do Reino, embora essa decisão tivesse causado certa desarmonia nas fileiras. Independentemente de qualquer toque das Trevas, muitos ainda o viam como um salvador, o comandante destemido que os liderara à libertação após uma derrota calamitosa. Outros estavam menos dispostos a aceitar tais desdobramentos, principalmente os homens que haviam servido sob o comando da Senhora Reva em Cumbrael e os fugitivos encontrados durante a marcha, o que levou a muitas discussões acaloradas e até mesmo a algumas brigas. Uma delegação formal de sargentos encontrara-se com Vaelin para pedir a reintegração de Caenis, e o Senhor da Batalha fora obrigado a acalmá-los promovendo um deles para o posto do irmão, um sargento veterano e robusto com um rosto feito couro marcado.
— Sargento Travick, Alteza — disse ele, ajoelhando-se diante dela no dia em que Lyrna juntou-se a eles na marcha. — Outrora do Décimo Sexto Regimento de Infantaria.
— Ah, os Ursos Negros, pelo que me lembro — disse Lyrna, fazendo um sinal para que Benten lhe trouxesse o item que buscara no arsenal itinerante do Irmão Hollun.
Travick piscou para ela, surpreso.
— Sim, Alteza. A memória da senhora é digna de respeito.
— Obrigada. Contudo, devo adverti-lo de que, em comparação, a sua etiqueta deixa muito a desejar.
O veterano abaixou a cabeça, franzindo a testa, embaraçado.
— Perdoe-me, Alteza. Não estou acostumado com tais coisas.
— Não é desculpa — disse Lyrna, estendendo a mão para pegar a espada oferecida por Benten, uma lâmina asraelina, condizente com a ocasião — para uma Espada do Reino referir-se a si mesmo como sargento. Devo dizer que estou chocada.
O homem ergueu a cabeça de repente, alarmado, arregalando os olhos ao ver a espada.
— Lorde Comandante Al Travick — disse Lyrna, invertendo a espada para colocá-la sobre o antebraço, com o punho da arma para a frente —, aceita esta espada oferecida por sua Rainha?
Atrás de Travick, a Guarda do Reino agitava-se em suas fileiras, menos organizada e bem barbeada do que ela lembrava, mas todos calejados e com ares de homens perigosos. Posso usar os perigosos, concluiu Lyrna. Que lutem entre eles se precisarem, contanto que lutem com ainda mais afinco contra os volarianos.
— A-aceito, Alteza — gaguejou Travick.
— Então a receba, meu senhor, e levante-se. — A mão grossa e cheia de cicatrizes fechou-se sobre o punho da espada e ele se levantou, erguendo a arma com uma expressão estupefata. — É meu desejo que a Guarda do Reino seja reorganizada, Lorde Comandante — prosseguiu Lyrna, atraindo de novo a atenção de Travick e fazendo-o retomar uma postura militar, com as costas retas, e desviando o olhar.
— O que quer que minha Rainha ordene.
— Respeito pelo passado é algo bom, mas não podemos permitir que isso obstrua o nosso propósito. Muitos regimentos admiráveis preservam agora meros fragmentos de seus antigos efetivos ou foram completamente dizimados. Caso meus cálculos estejam corretos, há pouco mais de seis mil Guardas do Reino sob o seu comando, e muitos deles ainda seguem laços regimentais que já não possuem significado. Dos regimentos que ainda restam, somente três podem de fato ser chamados assim, e mesmo eles estão bastante reduzidos. O senhor os deixará com efetivos completos e dividirá os homens remanescentes em três novos regimentos, cujos nomes e estandartes serão determinados pelos homens, sujeitos à minha aprovação. Além disso, o senhor acrescentará a companhia de Lorde Nortah ao rol da Guarda do Reino como o Sexagésimo Regimento de Infantaria.
Lyrna voltou o olhar para as fileiras da Guarda do Reino. A lealdade regimental dos soldados do Reino era lendária e ela viu o franco espanto em muitos rostos.
— Dou-lhes minha palavra que, quando esta guerra for vencida, a Guarda do Reino será reorganizada, e qualquer um que desejar juntar-se novamente ao seu antigo regimento terá permissão para fazê-lo — disse ela, erguendo a voz. — Por ora, temos uma guerra para ganhar e sentimentalidade não nos ajudará nesta empreitada.
Lorde Travick berrou uma ordem, sua voz de sargento ressoando como um trovão, colocando cada soldado ajoelhado e de cabeça baixa.
— A Guarda do Reino é da senhora, Alteza — disse ele. — Para moldar como queira, e — acrescentou, a voz alta chegando aos ouvidos de todos os soldados sob o seu comando — se eu ouvir algum homem dizer algo em contrário, irei chicoteá-lo até os ossos.
As muralhas de Warnsclave haviam sido negligenciadas por muitos anos; o longo período de paz que teve início com a ascensão do pai de Lyrna as tornara uma irrelevância custosa para sucessivos feitores da cidade. Vaelin dissera que haviam sido resistentes o suficiente para repelir um ataque volariano, mas no fim se provaram frágeis demais para aguentar um segundo. Estavam fendidas em diversos lugares, grandes brechas abertas na pedra, do solo ao parapeito, oferecendo uma visão desimpedida do que se encontrava além quando Lyrna aproximou-se montada em Flecha.
— Não resta nada, Alteza — relatou Lorde Adal naquela manhã, após fazer o reconhecimento. — Nenhuma casa e nenhuma alma.
A leve esperança de que a Guarda do Norte tivesse exagerado desapareceu com cada passo dos cascos de Flecha: as cinzas e os escombros visíveis através das brechas revelavam uma destruição total. Ela encontrou Vaelin esperando no portão arruinado com uma expressão sombria no rosto.
— O porto, Alteza — disse ele.
As águas do porto estavam turvas pelo lodo e cobertas pelo óleo que vazava dos barcos abandonados da frota pesqueira da cidade, mas Lyrna podia vê-las claramente: um grande aglomerado de ovais pálidas, tingidas de verde pelas algas da água, de maneira que lembravam um monte de uvas após a colheita.
Lyrna passou os olhos pelo que sobrara do que se lembrava como uma cidade agitada, ainda que um tanto fedorenta, suja, na verdade, onde as pessoas falavam com um sotaque rústico, mais dispostas a olhá-la nos olhos do que em Varinshold e menos propensas a se curvarem. No entanto, haviam ficado felizes em vê-la, recordava Lyrna, vibrando quando ela passara a cavalo, oferecendo bebês para serem beijados e lançando pétalas de flores em seu caminho. Ela viera à cidade para abrir um albergue para pobres, pago pela Coroa e administrado pela Quinta Ordem. Lyrna não encontrou qualquer vestígio do albergue no trajeto até o porto, apenas rua após rua de tijolos amontoados e madeiras queimadas.
— Eles as acorrentaram juntas — disse Vaelin. — Empurraram as primeiras, que foram seguidas pelo resto. Talvez quatrocentas, as únicas sobreviventes quando tomaram a cidade, imagino.
— Não queriam ficar sobrecarregados com escravos na marcha para o norte — comentou Lorde Adal. Havia em sua voz o tom seco de emoções bem controladas, mas Lyrna viu como os músculos do maxilar do homem se retesaram quando olhou para a água.
— Marcha para o norte, meu senhor? — perguntou Lyrna.
A Senhora Dahrena adiantou-se com uma mesura, o rosto exibindo o tipo de palidez causada somente pelo frio mais intenso.
— Creio que eu possa ter informações úteis, Alteza.
— Desapareceu? — perguntou Lyrna a Dahrena pouco tempo depois. Ela ordenara que Murel buscasse uma bebida quente para a senhora, e ela agora estava sentada em sua tenda, agarrando com as pequenas mãos uma tigela de leite morno. Vaelin encontrava-se de pé olhando para Dahrena com evidente preocupação, após expressar a sua inquietação por ela usar o seu dom.
— Alltor lhe custou muito — disse ele. — Voar de novo tão cedo foi insensato.
— Sou uma soldado neste exército, como qualquer outro soldado — retorquiu a senhora, encolhendo os ombros. — E meu dom é minha arma.
Lyrna forçou-se a permanecer calada quando o ar pareceu ficar carregado entre eles, ciente que muito não havia sido dito, mas que os dois tinham se entendido como se as palavras tivessem sido gritadas. Enquanto eu conheço tão pouco do que há por trás dos olhos dele.
— Transformada em cinzas de ponta a ponta — confirmou Dahrena. — A Urlish está morta, Alteza.
Lyrna lembrava-se do dia em que Lorde Al Telnar implorara ao seu pai que revogasse as restrições quanto à obtenção de madeira da Urlish, de como fora enxotado da Câmara do Conselho, o rosto vermelho pela humilhação. A Urlish é o local de nascimento deste Reino, dissera Janus a um encolhido Al Telnar ao assinar outro decreto transferindo ainda mais terras que haviam pertencido ao Ministro das Obras Reais. O berço do meu reinado, que não será desmatado por gente como você.
Al Telnar e a Urlish, refletiu Lyrna. Agora ambos são apenas cinzas. Estranho que ele se sacrificasse por mim após tantos anos de tormentos com meu pai.
— E esse exército atravessando a fronteira renfaelina em direção a Varinshold? — perguntou ela a Dahrena. — A senhora conseguiu estimar quantos são?
— Mais de cinco mil, Alteza. A maioria a cavalo.
— Darnel está convocando os seus cavaleiros — ponderou Lyrna. — Certamente precisará deles em breve.
— Acho que não, Alteza — disse Dahrena. — Há uma alma entre eles, ardendo com intensidade, mas vermelha. Eu a vi antes, quando sobrevoei a Urlish. Tenho certeza de que estava enfrentando os volarianos lá.
Lyrna assentiu, recordando-se da noite que passara num forte renfaelino apenas alguns meses antes, mas que agora pareciam anos. Há muitos que consideram a ideia de serem governados por aquele homem uma mancha na honra, dissera Banders.
— E a escória que assassinou as pessoas no porto? — perguntou ela. — Algum sinal dela em seu voo, minha senhora?
Lyrna sentiu certa resignação na resposta de Dahrena, uma aceitação sombria das consequências das informações que ela fornecia.
— Cerca de quatro mil, Alteza. Trinta quilômetros a noroeste. A maioria a pé.
Lyrna virou-se para Vaelin.
— Meu senhor, faça o favor de pedir a Sanesh Poltar o cavalo mais veloz de que os eorhil possam dispor e uma escolta para um mensageiro real. Eles irão atrás desse exército renfaelino e descobrirão sua identidade e suas intenções.
Ele fez uma mesura curta.
— Sim, Alteza.
— Providenciarei para que os corpos sejam resgatados do porto e me certificarei de que sejam entregues ao fogo com todas as devidas cerimônias, enquanto o senhor levará todos os cavaleiros que temos para ir atrás dos assassinos daquelas pessoas. E espero não ouvir mais nada a respeito de prisioneiros.