Vaelin
Nós faremos um final, você e eu.
— Meu senhor?
Vaelin foi trazido de repente de volta ao presente pelas palavras de Adal e encontrou o comandante da Guarda do Norte montado ao seu lado, estreitando os olhos enquanto o olhava atentamente.
— Os meus homens encontraram alguns desgarrados três quilômetros ao norte — disse Adal. — À beira da exaustão e sem comer há dias. Parece provável que o resto não estará muito melhor.
Vaelin assentiu, dando as costas ao escrutínio do homem e olhando para oeste, onde os eorhil galopavam para realizar a manobra de cercamento que ele ordenara aquela manhã. Ficou desorientado por um momento quando os homens das planícies chegaram ao topo de uma elevação e desapareceram de vista, uma sensação cada vez mais familiar que mesclava frustração com desapontamento. Não havia canção para acompanhar a cavalgada dos eorhil, como não houve canção para guiá-lo quando Lyrna foi encontrada curada de corpo, ainda que, aparentemente, não de espírito. Tampouco houve qualquer canção para acompanhar o enforcamento dos prisioneiros volarianos executado por Orven por ordem dela, nem música alguma agora ao se virar de novo para Adal e ordenar que levasse seus homens para proteger o flanco leste.
Vaelin não viu qualquer relutância no comportamento de Adal antes de o comandante virar o cavalo e partir a galope, mas havia uma incerteza ali, até mesmo uma leve preocupação. Ele se perguntou se a animosidade da Guarda do Norte havia diminuído desde Alltor, se não havia realmente preocupação alguma pelo seu Senhor da Torre. Contudo, onde antes tais coisas podiam ser facilmente discernidas, agora havia apenas uma incerteza contínua. É isso que é viver sem um dom?
Lembrou-se daqueles breves anos em que sua canção silenciara, quando a sua recusa em escutá-la o deixara desolado e desorientado. Fora difícil não ter um leme num mar de caos e guerra. Porém, isso era muito pior, pois agora havia a gelidez, o frio glacial que entrara em seus ossos no domínio do Aliado e continuara ali naquele mundo de inúmeros caminhos, todos aparentemente tão escuros. E as palavras, é claro, aquelas palavras que o perseguiam desde o Além.
Nós faremos um final, você e eu.
Nortah aproximou-se a trote, com Dança da Neve saltando adiante, como sempre animada com a perspectiva de sangue.
— Seu lugar é com o seu regimento — disse Vaelin a ele.
— Davern os têm sob controle — retorquiu o seu irmão. — Para falar a verdade, eu ficaria grato se você pedisse à Rainha para promovê-lo no meu lugar. Ódio e sede de sangue sem limites não são tolerados por muito tempo.
— Eles precisarão de uma liderança firme e uma mão que os contenha.
Nortah ergueu uma sobrancelha.
— A Rainha partilha dessa opinião, irmão? Eu ficaria muito surpreso se fosse verdade.
Vaelin não respondeu, recordando-se da alegria que sentira naquele dia em Alltor quando o barco a transportou pelo rio, o alívio que aflorara quando ela desembarcara. A ausência da canção era uma dor física e ela pareceu oferecer um antídoto, um único ponto de certeza, queimado, mas glorioso. Como eu pude imaginar que ela tivesse tombado?, pensara, caindo de joelhos diante dela.
No entanto, à medida que os dias passavam e o amor evidente do exército pela Rainha aumentava cada vez mais, Vaelin sentia a ausência da canção com crescente intensidade. Ela é motivo de tantas perguntas. E ainda assim parece não fazer nenhuma. Ele via grandes diferenças da garota que conhecera num corredor do palácio tantos anos antes, a ambição desenfreada transformada em algo novo e mais preocupante. Ela ansiava por poder. Pelo que anseia agora?
— Meu povo se encontrou com o nosso irmão — disse Nortah. Ele sempre se referia aos dotados de Ponta de Nehrin daquela maneira, como se fossem uma nação. — A pedido da Rainha. Eles lhe disseram não, como esperado. — Ele fez uma pausa. — Você falou com ele? Desde a sua pequena revelação?
Vaelin sacudiu a cabeça, ansioso para evitar discussões sobre aquele assunto. As questões levantadas eram ainda mais preocupantes do que as que cercavam a Rainha.
— Sétima Ordem ou não — prosseguiu Nortah. — Fé ou não. Ele ainda é nosso irmão.
Ele sempre soube mais, pensou Vaelin. Mais do que sempre disse. Conhecimento que poderia ser útil, ter salvado muitos, talvez até mesmo Frentis… ou Mikehl.
— Vou falar com ele — prometeu Vaelin a Nortah. Pois temos muito a discutir.
— Você não vai fazer nada… estúpido hoje, vai? — perguntou Nortah.
— Estúpido, irmão?
— Sim, irmão. — O rosto de Nortah estava sério. — Como se atirar contra um exército inteiro. Eles podem escrever todas as canções que quiserem, aquilo ainda foi idiota. Temos um lar para o qual voltar, caso ainda se lembre. A Ordem ficou para trás. Há algo pelo qual viver agora, alguém por quem viver.
Havia um peso adicional na voz dele e Vaelin sabia bem o que Nortah queria dizer. Dahrena estivera ao seu lado durante a maior parte da viagem, exceto naquele dia, pois ele lhe implorara que descansasse após os esforços dela para encontrar o seu alvo. Era estranho, mas, apesar de todo o tempo que passavam juntos, eles falavam pouco, as conversas aparentemente desnecessárias. Vaelin sabia que ela podia sentir a ausência de sua canção e temia que isso criasse uma barreira entre eles, mas Dahrena estava mais à vontade com ele agora do que nunca, e não era difícil de adivinhar o motivo. Duas almas que se encontraram no Além. Não é um elo que se rompe com facilidade.
Apesar de todo o desconforto que a compreensão desse fato causava, ele continuava grato pela companhia dela, pois era somente na presença de Dahrena que o frio parecia diminuir. Surgiu de novo naquele momento, uma dor súbita no fundo de seu ser, que costumava se manifestar quando ele cavalgava por muito tempo, ou quando se esforçava demais.
— Não farei nada estúpido, irmão — disse ele a Nortah, enrolando mais o manto em volta do peito. — Dou a minha palavra.
Seu cavalo pertencera à Guarda do Norte e, como a maioria das montarias criadas nos Confins, era de origem eorhil: alto, veloz e de temperamento plácido quando não era usado numa batalha. O Capitão Adal dissera que o seu antigo dono havia sido um homem muito prático e pouco sentimental, referindo-se ao animal simplesmente como “Cavalo”, e Vaelin ainda não havia pensado em nada melhor. Ele sentiu o animal ficar tenso ao se aproximarem do alto de uma colina no final da tarde, dilatando as narinas ao sentir um cheiro tênue demais para o nariz de Vaelin, embora ele pudesse adivinhar o significado: o suor de muitos homens amedrontados.
Vaelin os avistou quando chegou ao topo, a cavalaria nilsaelina perfilando-se de ambos os lados, espalhando-se conforme reorganizavam as fileiras em preparação para a investida. Usavam armaduras leves e os cavalos eram criados para serem rápidos em vez de fortes, e a maioria de seus cavaleiros estava armada com uma lança de mais de dois metros de comprimento. Olhavam de cara fechada para os volarianos, sem piedade ou medo. A notícia sobre a atrocidade em Warnsclave espalhara-se depressa e aqueles homens já haviam testemunhado horrores de sobra na marcha até Alltor.
Os volarianos haviam formado batalhões dispostos num quadrado, desigual e em movimento na esquerda, onde Vaelin acreditava que se encontravam os Espadas Livres, sólido na direita, onde os Varitai aguardavam o seu destino com uma indiferença rígida. Os eorhil haviam cortado o caminho de retirada atrás deles e entraram em formação em terreno plano, agrupados em seus bandos de guerra e avançando devagar. A leste, Vaelin podia ver a Guarda do Norte se posicionando com os cavalos para bloquear qualquer rota de fuga, enquanto a guarda montada de Orven aproximava-se do flanco a oeste.
— Ao seu comando, meu senhor — disse o comandante da cavalaria nilsaelina, um homem rijo com a aparência tipicamente vilanesca dos soldados de seu feudo, de cabeça raspada e exibindo cicatrizes recentes que sem dúvida ganhara em Alltor. Em comum com os seus homens, Vaelin podia ver a ansiedade do homem para se chocar com o inimigo, o modo como a sua mão enluvada apertava e soltava a haste da lança.
— Esperem pelos eorhil — ordenou Vaelin.
Ele passou a mão sobre o ombro e sacou a espada, achando estranho não encontrar consolo ao sentir o punho da arma. Antes a sensação era a de segurar algo vivo, agora era apenas um pedaço de aço e madeira, mais pesado do que se lembrava.
Um som sibilante familiar atraiu a sua atenção para o campo, encontrando o céu sobre os volarianos escurecido por flechas no ápice de seu trajeto, os eorhil agora atravessando a planície em disparada. Vaelin ergueu a espada quando os corneteiros nilsaelinos deram o sinal para que se preparassem para a investida e a abaixou quando a saraivada dos eorhil atingiu o alvo. Ele esporeou os flancos do cavalo e dispararam a galope em uníssono, fazendo a terra ribombar como um trovão.
* * *
O choque do impacto o fez balançar na sela, os relinchos ensandecidos do cavalo abafados pela cacofonia instantânea de fúria e pelo entrechoque de metal e carne. Ele se agarrou à sela pelo cepilho, sentindo algo duro percorrer a cota de malha que lhe cobria as costas. Um volariano investiu contra ele saído da multidão, de olhos arregalados e desesperado, embora sua espada permanecesse apontada e certeira. Vaelin soltou o cepilho e caiu no chão, rolando de encontro ao volariano com força suficiente para jogá-lo longe. Ficou de joelhos com muito custo, erguendo a espada para bloquear a estocada de um Espada Livre corpulento, um veterano a julgar pela idade e a naturalidade com que se esquivou para longe quando Vaelin respondeu com um golpe contra as suas pernas, espantado com a própria lentidão. O Espada Livre golpeou a lâmina de Vaelin com habilidosa eficácia, logo acima do punho da arma, arrancando-a de sua mão.
Ele olhou para a mão vazia enquanto um pensamento se repetia com um distanciamento estranho e calmo. Eu deixei a minha espada cair.
O Espada Livre aproximou-se com a espada preparada para uma estocada forte no pescoço de Vaelin, e então se contorceu numa pirueta estranhamente elegante, o sangue jorrando da cabeça quase decepada enquanto Nortah puxava as rédeas de seu cavalo alguns metros adiante, seguido por Dança da Neve, cujos dentes e garras já estavam ensanguentados.
Vaelin levantou-se e olhou ao redor. A investida os havia conduzido quase até o centro das fileiras volarianas; combates eram travados por todos os lados enquanto os nilsaelinos cravavam suas lanças e os guardas de Orven cortavam com as espadas. Uma nova tempestade de flechas caía em algum ponto a oeste, indicando que os eorhil haviam encontrado um aglomerado obstinado de resistência Varitai.
A voz de Lorde Orven soou próxima e Vaelin o viu reunindo seus homens para uma investida contra um grupo compacto de Espadas Livres, que lutavam com todo o desespero de homens condenados. Ouviu-se um relincho alto e ele viu o seu cavalo sem cavaleiro atirar-se contra os volarianos, empinando e dando coices, os dentes arreganhados ao gritar. O grupo volariano foi desfeito sem demora quando os homens de Orven chocaram-se com eles, seguidos a galope pelos nilsaelinos que se juntavam à matança.
— Nada estúpido? — perguntou Nortah, assomando sobre ele com um olhar repreensivo.
Vaelin olhou para a mão vazia, dobrando os dedos e sentindo o frio aumentar mais uma vez. Algo encostou em seu ombro, e ao se virar ele encontrou o seu cavalo, bufando alto e balançando a cabeça, com um corte no focinho.
— Cicatriz — disse Vaelin, passando uma das mãos sobre o focinho do animal. — Seu nome é Cicatriz.
— Fique parado — advertiu Dahrena quando ele se retraiu com a ardência causada pelo unguento que ela aplicava em suas costas. A queda da sela o deixara com um hematoma espetacular da cintura ao ombro, sem falar nas palavras constantemente repetidas que o atormentaram na viagem de volta a Warnsclave. Eu deixei a minha espada cair.
— Sua lenda já não cresceu o bastante? — prosseguiu Dahrena, aplicando o unguento sobre a pele dele, movendo os dedos em círculos tensos e firmes. — Precisa atacar cada exército que encontra? E, agora, aparentemente com um cavalo comandando pelas Trevas.
— Acho que não — gemeu ele, suspirando aliviado quando Dahrena levantou-se e foi até o pequeno baú onde guardava os diversos potes e caixas com os seus curativos. — Desconfio que o meu novo cavalo apenas goste de lutar.
Vaelin ocupara um porão na única estrutura que ficara de pé em Warnsclave; a casa do capitão do porto, que parecia uma fortaleza, ficava na base do molhe, construída inteiramente de granito e resistente demais para ser derrubada com facilidade. A Rainha e o seu séquito ocuparam os andares, enquanto o exército acampara entre as ruínas, as fileiras aumentando à medida que mais pessoas chegavam das terras ao redor.
— Como o dono dele — murmurou Dahrena, fazendo-o retrair-se de novo.
Aquelas eram as primeiras palavras ásperas que trocavam desde Alltor, causando um receio de que o elo deles pudesse não ser tão imune a abalos, afinal de contas. A batalha fora breve, o que não era de espantar dada a vantagem que tinham sobre os volarianos, que fugiram depois de menos de quinze minutos de combate, o tempo que foi necessário para matar os Varitai. Os Espadas Livres sobreviventes correram em todas as direções e logo foram perseguidos pelos eorhil, enquanto os nilsaelinos davam cabo dos feridos e se engajavam na consagrada atividade militar de saquear os mortos. Para sua surpresa, Vaelin foi recebido com um respeito grave ao percorrer o campo, com soldados fazendo mesuras e erguendo lanças em saudação. Eles preferem não ver?, ponderou ele. Preferem acreditar num homem de coragem insensata e num cavalo guiado pelas Trevas do que num tolo enfraquecido que não consegue ficar na sela e deixa a espada cair?
— Hoje eu quase morri — disse ele a Dahrena num tom seco e pensativo. Ela não se virou, mas se empertigou. — Sei que perdi a minha canção — prosseguiu Vaelin. — Quando você me trouxe de volta. Sem ela… Eu deixei a minha espada cair, Dahrena.
Ela se virou com o rosto franzido de irritação.
— É pena de si mesmo que escuto, meu senhor?
— Não. — Ele sacudiu a cabeça. — Apenas palavras sinceras…
— Bem, eu tenho algumas palavras sinceras para você. — Ela se aproximou de Vaelin, ajoelhou-se e agarrou suas mãos, os dedos pequenos e esguios fechando-se sobre os dele. — Uma vez eu vi um garoto lutar feito um selvagem para capturar uma flâmula em algum jogo terrível. Achei cruel na ocasião, e ainda acho, na verdade. Mas o garoto que vi aquele dia não ouviu uma nota sequer de sua canção, ou eu a teria sentido. Você sempre foi mais do que o seu dom. — Dahrena apertou as mãos dele com mais força. — Um dom não é um músculo, um osso ou uma habilidade que foi desenvolvida desde a infância, uma habilidade que não posso acreditar que tenha sido perdida em apenas algumas semanas.
Ela ergueu o olhar e a irritação desaparecera ao se levantar, soltando as mãos de Vaelin para segurar sua cabeça, puxando-o para perto.
— Nós dois ainda temos muito que fazer, Vaelin. E acredito que o objetivo da Rainha seria alcançado com mais facilidade com você ao lado dela. — Ela se afastou, sorrindo para ele, passando a mão macia e quente da testa ao queixo de Vaelin antes de beijá-lo nos lábios. — Por acaso você encontrou uma chave para esta porta?
Mais tarde ela estava deitada com a cabeça apoiada no peito de Vaelin, o seu corpo pequeno e perfeito pressionado contra o dele, acabando com qualquer vestígio do frio. Começara em Alltor, com eles mal trocando uma palavra naquela primeira noite. Não houve preâmbulo, apenas silêncio e uma necessidade fremente ao se aninharem no escuro, atraídos por algo a que nenhum dos dois sentiu qualquer inclinação de resistir.
— A Rainha me odeia — sussurrou ela, sua respiração eriçando os pelos do peito dele. — Ela se esforça para esconder isso, mas posso sentir.
Enquanto eu posso apenas suspeitar, pensou Vaelin.
— Não infringimos nenhuma lei, nem insultamos ninguém — disse ele. — E até mesmo uma rainha tem direito aos próprios sentimentos.
— Você e ela, quando eram jovens, vocês…?
Ele soltou uma leve risada.
— Não, isso nunca poderia ter acontecido. — O sorriso desapareceu quando o rosto de Linden Al Hestian veio à sua mente; tantos anos depois e a culpa ainda o afligia.
— Ela ama você — continuou Dahrena. — Não é possível que você não veja isso.
— Vejo apenas a Rainha que tenho o dever de seguir. — Será melhor para todos se eu não vir mais nada. — O que os seordah dizem sobre ela?
Ele a sentiu ficar tensa, mexendo a cabeça sobre o seu peito.
— Nada. Digo, nada para mim. Mas não sei o que dizem uns para os outros.
Vaelin sabia que a atitude dos seordah com os dois sofrera uma transformação severa desde Alltor, e uma profunda cautela tomara o lugar da afeição que sentiam por Dahrena e do respeito relutante que haviam começado a demonstrar por ele.
— O que é? — perguntou Vaelin. — Por que eles nos temem tanto?
Ela permaneceu em silêncio durante um longo tempo, então se ergueu e apoiou o queixo nas mãos, o rosto oculto pela escuridão, mas os olhos refletindo a luz que vinha de uma pequena abertura na parede do porão.
— Assim como os Fiéis, os seordah não veem a morte como uma maldição. Mas acreditam que, quando uma alma deixa o corpo, ela não vai para um mundo além deste, mas sim para um lugar oculto, um mundo que existe em cada sombra e em cada canto, invisível e irreconhecível a olhos vivos. Nesse mundo, você leva consigo cada lição aprendida enquanto estava vivo, cada truque de caçador ou habilidade de guerreiro, cada migalha de conhecimento, e embarca numa grande e eterna caçada, mas livre de medo ou incerteza, sem os fardos carregados durante a vida, restando apenas a caçada. Talvez você às vezes os tenha visto na floresta, estendendo a mão para o buraco escuro no tronco de uma árvore ou para a sombra lançada por uma rocha, à espera de uma mensagem sussurrada de uma alma querida que foi para a caçada.
— Quando me trouxe de volta, você me privou de um dom — disse ele.
— Do maior dos dons.
— Devia falar com eles, contar a verdade sobre o que aconteceu.
— Eu contei. Não adiantou. Aos olhos deles, eu sou uma transgressora e você não deveria estar andando sobre esta terra. Eu os perdi.
Vaelin a abraçou quando ela baixou de novo a cabeça, passando as mãos por seus ombros e sentindo a tristeza dela.
— Então por que eles continuam aqui? — perguntou ele.
A resposta de Dahrena foi baixa, sussurrada entre lágrimas:
— Eles fazem o que fazemos: atendem ao chamado do lobo.
A espada de Reva chocou-se com o lado machucado do corpo dele, provocando um gemido dolorido. Ela saltou com agilidade para trás quando Vaelin respondeu com um golpe ascendente desajeitado, em seguida avançando agachada e desferindo uma estocada contra o peito dele. Vaelin se esquivou, desviando para cima a espada de madeira de Reva e mirando um golpe lateral nas pernas dela, que as atingiu em cheio quando ela demorou demais para bloquear.
— Melhor — disse Reva. — Não acha?
Vaelin foi até o cepo onde estava o seu cantil e tomou longos goles. O céu estava nublado naquele dia e o ar gelado, prenunciando a chegada do outono e a perspectiva de uma marcha nada fácil até Varinshold. Eles já estavam em Warnsclave havia três dias, esperando que a frota meldeneana aparecesse. A situação dos suprimentos fora abrandada pelas provisões de Lorde Al Bera, mas os estoques ainda eram insuficientes para prover o deslocamento para o norte, ainda mais se considerando o número crescente de recrutas. Mais de mil pessoas rumaram para a cidade arruinada desde que eles ali chegaram, forçando o acréscimo de ainda mais companhias ao regimento de Nortah. Tudo indicava que os volarianos não haviam sido tão eficientes para conseguir escravos quanto imaginado, embora batedores trouxessem diariamente evidências de sua proficiência em massacres, histórias reveladoras de uma aldeia arrasada após a outra, cada uma bem suprida de cadáveres putrescentes.
— Não — disse ele a Reva. — Na verdade, hoje estou pior.
Ele jogou o cantil de lado e investiu contra Reva, desferindo uma série de estocadas e golpes rápidos, a espada de madeira movendo-se num borrão. Ela se esquivou e aparou com uma fluidez muito superior à das suas primeiras lições; Vaelin sabia que habilidades desenvolvidas em batalha sempre faziam a diferença. Também sabia que Reva o estava poupando, permitindo que acertasse golpes que ela poderia ter bloqueado sem dificuldade e respondendo apenas com uma fração da velocidade que poderia ter empregado.
— É inútil — murmurou Vaelin, parando em meio a outro ataque.
— Ora, vamos — zombou ela. — Está desistindo?
Você me ama demais, pensou ele com um suspiro mental. Tem medo de me ver morrer de novo. Vaelin olhou para o campo no sopé da colina onde estavam praticando, o exército trabalhando sob a supervisão de oficiais e sargentos, recrutas novos e velhos sendo transformados no instrumento mortal de justiça da Rainha. Podia vê-la percorrendo o acampamento em seu cavalo branco, o manto negro esvoaçando ao vento, provocando saudações e exortações por onde quer que passasse.
— Você… — Reva parara ao seu lado, falando com um tom hesitante.
— O quê?
— A Rainha. — Os olhos de Reva acompanharam o cavalo de Lyrna ao trotar em direção às novas companhias de Nortah, as pessoas caindo de joelhos quando a Rainha parou. — O que fizeram com ela. Você não se pergunta o que isso pode significar?
— A cura dela?
— Não. Não a cura. O que foi feito antes. Sofrer o que ela sofreu… Curada ou não, as cicatrizes são fundas.
— Tão fundas quanto as suas, irmã?
— Talvez mais fundas. É isso que me preocupa. As minhas mãos estão vermelhas, assim como as suas. Não alego inocência e responderei ao Pai quando chegar a minha hora. Mas ela… Às vezes penso que ela queimaria o mundo inteiro se isso fosse significar a morte do último volariano. E mesmo assim ela não ficaria satisfeita.
— Você não anseia por justiça?
— Por justiça, sim. E por deixar meu povo seguro mais uma vez. Para fazer isso, irei lutar a guerra dela e libertar a sua cidade. Mas não será suficiente, não é? O que você dirá quando ela lhe ordenar que a siga através do oceano?
Sem canção. Sem orientação. Apenas uma incerteza cada vez mais silenciosa.
— Obrigado pelo exercício, minha senhora — disse Vaelin, virando-se para fazer uma mesura. — Mas acho que preciso de um tutor menos caridoso.
A espada de freixo de Davern desviou a apara de Vaelin e estalou nas suas costelas desprotegidas, deixando-o sem ar e curvado. Davern afastou-se enquanto Vaelin engasgava tomando fôlego e olhando-o furioso.
— Quem mandou parar, sargento?
O ex-construtor de barcos franziu a testa por um momento, mas a expressão transformou-se rapidamente num sorriso cheio de dentes brilhantes, e ele avançou para desferir uma estocada no nariz de Vaelin. Ele se contorceu, a espada de freixo o errando por um centímetro, agarrou o braço do sargento e o arremessou por sobre o ombro. Davern recuperou-se depressa, levantando-se de um pulo e rodando para desferir um golpe giratório nas pernas de Vaelin. Madeiras estalaram quando Vaelin bloqueou a investida e então respondeu com uma série de golpes segurando a espada com as duas mãos e visando o peito e a cabeça, fazendo o sargento recuar e bloquear cada espadada, alheios aos gritos dos espectadores.
Três dias já haviam se passado e Vaelin ainda não acertara um golpe, atraindo uma multidão maior a cada luta de exercício. Davern, como esperado, não precisou de muita persuasão para lutar com o Senhor da Batalha, o seu deleite evidente ficando ainda maior quando as habilidades reduzidas de Vaelin tornaram-se aparentes. Teria sido fácil fazer aquilo longe dos olhares do exército, mas Vaelin resistiu à tentação, encontrando no escrutínio de tantos olhos críticos um estímulo útil para se esforçar ainda mais.
Ele estava melhorando, podia sentir; o frio agora não era tão intenso. Contudo, a sensação da espada em sua mão ainda era estranha, a outrora sublime maestria substituída por uma eficiência habilidosa. Quanto era a canção?, perguntava-se continuamente. Quanto preciso dela?
Davern abaixou-se para evitar outro golpe, movendo-se para o lado e desferindo uma estocada precisa que conseguiu atravessar a guarda de Vaelin e atingi-lo no lábio superior, arrancando sangue e fazendo-o cambalear para trás.
— Perdão, meu senhor — disse Davern, atingindo a perna direita de Vaelin com a espada e derrubando-o no chão, desviando o débil contragolpe e erguendo a arma para um golpe final sem dúvida doloroso. — Mas o senhor disse para não me conter.
— Já basta! — Alornis estava avançando, com o rosto vermelho de fúria. Ela empurrou o sorridente Davern para o lado e ajoelhou-se perto de Vaelin, levando um pano limpo ao lábio ensanguentado. — A luta acabou — disse ela ao sargento. — Volte para o seu regimento.
— A senhora sua irmã agora está no comando aqui, meu senhor? — perguntou Davern a Vaelin. — Talvez devesse estar.
— Sargento. — A voz era baixa, mas o sorriso debochado de Davern desapareceu no mesmo instante. Nortah estava ali perto, passando os olhos pelos soldados que assistiam, a maioria combatentes livres do próprio regimento, todos tratando de encontrar rapidamente outro lugar para passar o tempo. Dança da Neve afastou-se de Nortah para empurrar o ombro de Vaelin com o focinho, ronronando com insistência até ele se levantar.
— O seu homem é um bruto — disse Alornis a Nortah, continuando a estancar o sangue que escorria do lábio de Vaelin.
— Só estava seguindo as ordens de Sua Senhoria, professor — retorquiu Davern a Nortah. Apesar de demonstrar não sentir qualquer medo com relação a Vaelin, sua atitude com Nortah era sempre visivelmente mais respeitosa.
— De fato ele estava — disse Vaelin, fazendo uma pausa para cuspir um muco vermelho no chão. — E muito bem, aliás.
Nortah olhou rapidamente para Davern.
— Vá tratar dos piquetes — ordenou ele com calma.
O sargento fez uma mesura e partiu depressa.
— Mil coisas podem acontecer numa batalha — disse Nortah a Vaelin. — Você está dando importância demais a uma espada caída.
— Guerras não são vencidas com espadas caídas, irmão. — Vaelin tirou o pano de Alornis e foi até a árvore onde amarrara Cicatriz.
— O Irmão Kehlan devia cuidar disso — gritou ela às suas costas, mas ele apenas acenou e montou no cavalo.
Não foi difícil encontrar Caenis. O contingente da Sétima Ordem, que agora chegava a quatro irmãos e duas irmãs, estava alojado numa ruína coberta por uma lona, próxima do porto, um pouco afastada do resto do exército, que continuava a encará-los com franca desconfiança. Caenis estava sentado com os outros, falando em voz baixa, mas com veemência, cada um deles escutando com muita atenção. Eram todos mais novos do que o seu irmão. A dádiva da juventude proporcionava uma chance maior de sobrevivência à investida volariana, uma vez que os jovens adaptavam-se melhor aos rigores da batalha, ou atraíam mais a atenção dos traficantes de escravos. Um jovem havia claramente sofrido algum tratamento cruel, sentado sem camisa enquanto ouvia Caenis, suas costas marcadas por chicotadas recentes, em carne viva e vermelhas à luz do entardecer.
— A guerra não é mais da alçada apenas da Sexta Ordem — Caenis estava dizendo. — Agora todos os Fiéis são convocados para juntarem-se a esse conflito. Agora todos nós somos guerreiros. Não podemos mais nos dar ao luxo de nos escondermos.
Ele se calou quando Vaelin surgiu das sombras, os outros se virando para encará-lo numa mistura do assombro costumeiro com um respeito grave.
— Irmão — chamou Vaelin. — Gostaria de falar com você.
Eles caminhavam ao longo do molhe à medida que a noite caía, uma lua crescente surgindo de trás de uma nuvem intermitente. Caenis nada disse, esperando que Vaelin falasse, talvez perfeitamente ciente de qual seria a primeira palavra dita.
— Mikehl — disse Vaelin quando chegaram ao final do molhe.
A maré noturna havia afastado o mar do molhe, de modo que parecia que estavam no alto de um pico elevado fustigado por uma brisa forte, as ondas que se quebravam suavemente mal podendo ser vistas abaixo. Vaelin olhou atentamente para o rosto de Caenis quando este nada respondeu, vendo ali o que esperara ver. Culpa.
— Antes de eu zarpar para os Confins, o Aspecto Grealin me assegurou de que não havia tomado parte naquilo — prosseguiu Vaelin. — E colocou toda a culpa no Irmão Harlick, que na verdade admitiu a sua participação, embora não nos termos mais claros. Por acaso há algo que você gostaria de acrescentar à história, irmão?
A expressão de Caenis não mudou e sua voz soou apática quando respondeu:
— Meu Aspecto me ordenou que mantivesse você a salvo. Fiz o que me foi ordenado.
— Os homens que mataram Mikehl falaram de um outro, alguém que acho que encontraram na floresta naquela noite. Alguém que temiam.
— Eles estavam esperando um irmão que Harlick conhecia, alguém cúmplice de seu plano. Eu o encontrei, matei-o e tomei o seu lugar. Os assassinos contratados pelo pai de Nortah não podiam ser mortos tão facilmente, então eu os enviei na direção errada, uma direção que eu esperava que fosse levá-los para longe de qualquer irmão. Porém, Mikehl sempre foi muito lento e se perdia com muita facilidade.
Vaelin lhe deu as costas e encarou o mar. O vento estava ficando mais forte e as ondas reluziam brancas sob o pálido luar. Ao longe ele pôde ver uma forma negra no horizonte, logo seguida por muitas outras.
— Nosso Lorde Almirante cumpre as suas promessas — comentou ele.
Caenis olhou para os navios que se aproximavam.
— Esta guerra reuniu alguns aliados estranhos.
— E com isso revelou muitas coisas.
— Naquele dia em que você nos encontrou… As minhas palavras foram injustas. Eu havia perdido tantos homens, presenciado tantas mortes inesperadas. Parecia que os Finados haviam nos abandonado, que a sua falta de Fé havia feito com que eles nos condenassem. Foi tolice, irmão.
— Irmão — repetiu Vaelin em voz baixa. — Nós nos chamamos assim há tanto tempo que eu me pergunto se a palavra ainda possui significado. Tanto foi escondido, tantas mentiras foram ditas. Naquele primeiro dia, nas galerias, Grealin deu tapas no seu ombro e você se retraiu. Eu achei que você estava com medo dos ratos imaginários dele, mas ele estava cumprimentando-o. Você não estava se juntando à Sexta Ordem, estava se apresentando ao seu Aspecto.
— É como perseveramos, como continuamos a servir à Fé. Pelo menos até agora. Com a morte do Aspecto Grealin, cabe a mim o fardo de reconstruir essa Ordem. Seria mais fácil com a sua ajuda.
— Os dotados dos Confins não querem fazer parte da sua Ordem. Cara e Marken nem mesmo são da Fé, e duvido que Lorkan reuniria a vontade necessária para crer em algo.
— Tal como você, irmão. — As palavras de Caenis foram ditas de forma afável, mas Vaelin ouviu nitidamente a reprovação nelas.
— Eu não perdi a minha fé. Ela murchou e morreu diante da verdade.
— E essa grande verdade ganhará esta guerra, irmão? Olhe ao seu redor e veja quantos sofreram. Sua verdade irá sustentá-los nos meses e anos por vir?
— Seu dom fará isso? Ainda não sei que tipo de poder você possui, e se devo comandar este exército, eu gostaria muito de saber.
Caenis o encarou em silêncio com um olhar firme, sem piscar. Vaelin levou a mão à faca de caça em seu cinto, agarrou o punho com força, pronto para sacá-la e cravá-la no olho de seu irmão… Ele exalou lentamente, soltando a faca e notando que sua mão tremia.
— Agora você sabe, irmão — disse Caenis antes de se virar e se afastar.