Alucius
— Não minta para mim, poetinha! — Darnel lhe lançou um olhar furioso, sua voz baixa e carregada de promessas terríveis, o corte recém-costurado abaixo do olho ameaçando se abrir enquanto gritava. — Eles devem ter lhe contado alguma coisa.
Alucius estendeu as mãos num gesto impotente.
— Não fizeram mais do que lamentar pela morte de um irmão na Fé, meu senhor. Embora eu tenha sentido certa satisfação do Aspecto Dendrish por finalmente se tornar o homem mais gordo de Asrael.
Darnel ergueu-se do trono, levando a mão à espada, o rosto vermelho de fúria. Ele parou quando o Comandante de Divisão Mirvek soltou uma tosse de aviso e o pai de Alucius retesou-se, aproximando-se do filho. Darnel olhou para todos eles com a mão trêmula no punho da espada. Sua fuga recente diante do Irmão Vermelho e a notícia de que o seu feudo agora se rebelara em nada ajudaram a melhorar o seu temperamento. Além disso, os crescentes desdém e deferência de Mirvek pelo seu Senhor da Batalha forneciam amplas evidências da irrelevância cada vez maior de Darnel. Restavam poucos de seus cavaleiros e não havia onde conseguir mais em seu feudo. Alucius se perguntava por que o volariano simplesmente não matava Darnel e assumia o comando, mas estava evidente que o homem era um soldado até a alma e continuaria a seguir ordens até receber uma palavra em contrário do Conselho. Darnel era o vassalo apontado e Mirvek não tinha autoridade para depô-lo, por mais inútil que o homem tivesse se tornado.
— Eles sabem onde há mais dotados — disse Darnel ao volariano, sem conseguir disfarçar o tom desesperado da voz. — Tenho certeza.
Não é tão tolo a ponto de não saber que já não tem tanta serventia, compreendeu Alucius, observando Darnel se remexer, pouco à vontade. Está tentando comprar a sua segurança com o que os Aspectos sabem.
— Os Aspectos são preciosos a todos os que ainda são livres nestas terras — afirmou o pai de Alucius. — Feri-los é instigar mais rebeliões.
— O povo dele está se rebelando de qualquer forma — observou Mirvek num tom de reflexão. — Esses seus Aspectos são intrigantes. O Aspecto guerreiro era intrigante o suficiente para que o Conselho ordenasse que fosse levado para o império no dia em que foi capturado. Poderia ser proveitoso interrogá-los.
Alucius não gostou da ênfase que o volariano colocou em “interrogá-los”.
— Se me derem mais tempo, estou certo de que eles se mostrarão mais afáveis. O Aspecto Dendrish, em particular, provavelmente revelaria todos os segredos que tem na mente por um jantar completo.
Mirvek não riu, estreitando os olhos para observá-lo. Até então, a sua atitude para com o filho de seu general escravo fora mais de desprezo vago, mas agora Alucius sabia que ele o via com uma clareza desconfortável.
— Meu interrogador mais habilidoso foi capturado pelo seu Irmão Vermelho — disse o volariano. — Ele poderia fazê-los falar em questão de segundos. Pedi um substituto, que chegará com os nossos reforços até o final da semana. Você tem até a chegada deles.
Alucius respondeu com uma mesura de gratidão, afastando-se quando o volariano o dispensou com um aceno de mão. Ele podia sentir os olhos de Darnel o seguindo ao se retirar da sala do trono, e mais uma vez se indagou por que não sentia medo.
— Bem — começou Alucius enquanto a Irmã Cresia ofegava em seu ouvido, o corpo nu sobre ele, tremendo um pouco. — Isso foi inesperado.
Ela saiu de cima dele, dando-lhe as costas e pegando a blusa.
— Não passei a vida inteira me escondendo aqui — disse Cresia. — Eu estava entediada. Não se apaixone por mim, poeta.
Ele afastou à força uma imagem do rosto de Alornis, escondendo a culpa numa risada.
— Irmã, dessa instrução eu não preciso, acredite.
A Irmã Cresia lhe lançou um olhar incisivo e levantou-se da pilha de peles que lhe servia de cama. Ela não dissera nada quando Alucius aparecera ali mais uma vez, apenas inclinou a cabeça para uma passagem lateral e o conduziu até o quarto dela, onde se despiu e aguardou nua com um olhar questionador. Alucius olhara para Vinte e Sete parado na passagem do lado de fora, o olhar vazio aparentemente fixo na bela alvenaria. O irmão e a irmã de Cresia estavam em algum lugar nas ruas acima, conseguindo informações e suprimentos, dissera ela, embora Alucius tivesse trazido o suficiente para durar até a véspera do início do inverno, quando então a falta de provisões provavelmente seria a menor das preocupações deles.
— Quem era ela? — perguntou Cresia, com uma leve curiosidade na voz.
— Quem era quem?
— A mulher em quem você estava pensando um momento atrás. — Ela apertou o cinto da calça e sentou-se para calçar as botas.
É esse o objetivo dela?, perguntou-se Alucius. Conseguir informações através da intimidade? Ela é tão espiã quanto eu.
— Como algum homem poderia pensar em outra mulher em seus braços, minha senhora? — retorquiu ele, sentando-se.
Alucius percebeu que ela se retraiu diante do seu tom cáustico e sentiu uma pontada de arrependimento. Eu sempre as magoo, lembrou-se, pensando nos anos passados, nas garotas atraídas pelo belo poeta com um sorriso triste, nos doces abraços e nas lágrimas inevitáveis. Alornis era a única mulher que ele jamais conseguira desapontar, e nunca a havia sequer beijado.
— Se precisa que eu lhe dê informações, talvez fosse mais simples e menos demorado simplesmente perguntar — disse a Cresia.
Ela se levantou e lhe jogou a sua camisa.
— Muito bem. Quando meu irmão e minha irmã voltarem. E espero um relato completo se vamos ajudar nessa sua empreitada.
Eles fizeram uma refeição frugal de carne seca e pão com água, uma vez que o pai de Alucius não se dera ao trabalho de providenciar vinho com as provisões extras. Se Inehla e Rhelkin sentiram alguma tensão entre eles, não demonstraram, embora Alucius achasse que houvera um leve brilho de divertimento no olhar que Inehla deu à irmã.
— Como você pode ter certeza de que o exército da Rainha irá atacar na véspera do início do inverno? — perguntou Rhelkin preocupado, após a refeição.
— Não posso — admitiu Alucius. — A única certeza que posso dar é a de que enviei uma mensagem a eles para que fizessem isso.
— Como? — perguntou Cresia.
— Por pombo. Meu último, na verdade. Então não me peçam para mandar mais, por favor.
— Como um poeta tem pombos?
— Também sou um espião a serviço dos Senhores Marinhos meldeneanos. — Alucius bebericou a água, suspirando ao lembrar-se da última vez que provara um vinho decente, enquanto os outros o olhavam em silêncio. Havia sido uma garrafa da adega de seu pai, uma das mais antigas, cumbraelina, naturalmente, um vinho tinto de sabor encorpado dos vinhedos do sul. A garrafa fora agradável, mas não o suficiente para lhe dar o sono pelo qual ansiava, atormentado como estava pela dor deixada pela partida de Alornis para os Confins. Então ele procurara uma garrafa de conhaque na cozinha, desabando na cama e sendo despertado somente algumas horas mais tarde por um exército volariano.
— Então você é um traidor deste Reino — disse a Irmã Cresia, interrompendo as suas reminiscências. Alucius notou que a mão dela havia se movido para a algibeira de couro no cinto, enquanto o Irmão Rhelkin estava agora virado para Vinte e Sete, sem dúvida preparado para usar o seu dom.
— Suponho que sim — disse Alucius. Ele olhou para o seu copo d’água e estremeceu, colocando-o de lado.
Cresia continuou a encará-lo à medida que o silêncio se prolongava.
— Por quê? — perguntou ela, por fim.
— Isso não é da sua conta — falou Alucius. — O que importa é que temos o interesse comum de assegurar que esta cidade seja retomada para o Reino com o mínimo de banho de sangue. E, no momento, eu me encontro na melhor posição para atingir esse objetivo.
— Um espião não merece confiança.
— Confiança? Você fala de confiança? — Alucius riu. — Você, que viveu uma vida de mentiras? Eu me pergunto que serviço você prestou em nome da Fé. Quanto sangue derramou nas sombras ao longo dos anos?
O rato de Inehla correu pela mesa, farejando a mão de Alucius e arreganhando os dentes com um guincho alto.
— Ele sentiu o cheiro de uma mentira? — perguntou Cresia.
A irmã gorda sacudiu a cabeça, com uma expressão sombria no rosto.
— Não, só o desprezo desse aí por nós.
A fúria transpareceu no rosto de Cresia antes que ela assumisse uma expressão neutra, afastando a mão da algibeira. O rato de Inehla soltou um último guincho e voltou para a sua dona, e o Irmão Rhelkin deu as costas a Vinte e Sete.
— Como faremos isso? — perguntou Cresia a Alucius.
— Os reforços volarianos devem chegar na véspera do início do inverno. E serão recebidos nas docas pelo Comandante Mirvek, Lorde Darnel e meu pai. Duvido que algum deles faça objeção ou note se eu estiver lá. Precisarei da habilidade de sua irmã para criar distração suficiente.
— Distração do quê?
— A resistência ou derrocada desta cidade depende das habilidades de meu pai. Sem elas, Darnel e seus aliados estarão condenados.
— Não é fácil para um filho matar um pai — observou Rhelkin.
— Se duvidam da minha capacidade de fazer isso, vocês deveriam me matar agora e continuar se escondendo aqui até a Rainha Lyrna chegar — retorquiu Alucius. Ele notou a aversão do homem em seu olhar frio e viu que não se importava mais. — Precisarei que você e a Irmã Cresia resgatem os Aspectos.
— Invadir a Fortaleza Negra não é uma tarefa fácil — respondeu Cresia.
— Mas está à altura de suas habilidades, sem dúvida. Não duvido que os guardas tenham ordens para matá-los caso a cidade seja tomada, e é melhor arriscar a morte do que a aceitar cegamente.
Ele os viu trocarem olhares, chegando a um acordo com acenos silenciosos, o de Cresia o mais relutante.
— Faremos isso — disse ela. — Mas quando acabar, poeta, você não será poupado de uma prestação de contas.
— Não. — Alucius levantou-se e caminhou na direção do túnel, seguido por Vinte e Sete. — Não imagino que serei.
— Devo dizer, Aspecto, que achei o vinho bastante amargo — disse Alucius ao sentar-se ao lado dela no catre.
— Mas você o encontrou? — perguntou Elera, olhando-o fixamente.
— De fato encontrei. Mas apenas três garrafas.
A boca dela se crispou ao conter o desapontamento.
— Uma pena.
— O desapontamento sempre foi a minha sina, Aspecto. No entanto, trago notícias. Parece que temos uma nova rainha.
— Lyrna? Ela está viva?
— Com saúde, ilesa e liderando um exército para a nossa salvação neste exato momento, um exército comandado por Lorde Al Sorna, após terem derrotado o General Tokrev em Alltor.
A Aspecto Elera empertigou-se e fechou os olhos, os ombros tensos enquanto inspirava e expirava de forma controlada. Ele a vira fazer isso antes, quando sua compostura usual vacilava e o leve brilho de lágrimas surgia em seus olhos. Após alguns segundos, ela reabriu os olhos e sorriu, o mesmo sorriso calmo e franco de que Alucius sabia que sentiria muita falta.
— Notícias excelentes, Alucius — disse ela. — Obrigada por me contar. E para quando podemos esperar a chegada da Rainha?
Alucius lançou um olhar rápido para o Espada Livre do lado de fora da cela. O homem podia parecer mais burro do que uma porta e capaz de dizer somente algumas palavras na língua do Reino, mas a curta carreira de espionagem de Alucius lhe ensinara o valor de ver além das aparências.
— Tal informação está além do meu alcance, Aspecto. — Ele cruzou os braços e estendeu três dedos na direção do cotovelo, notando a compreensão no olhar de Elera, que resistia ao impulso de assentir.
— Acho que seria melhor você não poupar o vinho — disse ela num tom brusco. — Esta é uma época agitada, e o vinho sempre oferece uma fuga das preocupações, não acha?
— Bondade sua pensar no meu conforto, Aspecto. Mas se existe alguém que já bebeu o bastante, esse alguém sou eu.
O Espada Livre sacudiu as chaves com impaciência e Alucius levantou-se.
— Contudo, posso dividir duas garrafas com a senhora — disse ele. — Já que o seu conforto é da maior importância para mim.
O sorriso dela vacilou um pouco e um brilho severo apareceu em seu olhar.
— Não se deve desperdiçar vinho, Alucius.
— Não será desperdiçado. — Ele se ajoelhou, olhando-a nos olhos e vendo como Elera segurava as lágrimas. Em vez de erguer a mão para que Alucius a beijasse, como era de hábito, ela se inclinou para a frente e lhe beijou a testa, sussurrando:
— Vá, eu lhe imploro.
Ele apertou e beijou as mãos dela, levantou-se e saiu da cela. Alucius foi cuidadoso ao observar o Espada Livre enquanto o homem trancava a porta e viu apenas os olhos embotados de um bruto estúpido. Ainda assim, ficou feliz por ter dito a Cresia para matá-lo assim que ela entrasse naquela câmara.
Era a única casa que ele não visitara desde a queda da cidade, uma mansão parcialmente desmoronada que já fora imponente, próxima da Esquina do Vigia, à sombra de um grande e antigo carvalho. O telhado estava ainda mais dilapidado do que ele se lembrava, e todas as janelas haviam sido quebradas, avivando memórias de como Alornis se esforçara para mantê-las limpas e intactas. A casa fora poupada do fogo por algum feliz acaso, talvez devido ao seu tamanho ou aos quartos vazios, sem qualquer coisa que valesse a pena saquear, pelo menos para aqueles sem a habilidade de detectar esconderijos.
A porta estava pendurada nas dobradiças, a tinta descascada no corredor de tábuas expostas. Ele se lembrou de sua primeira visita ali, da batida falsamente confiante que ela demorou tanto para atender. “Alucius Al Hestian, minha senhora”, cumprimentara ele, curvando-se. “Antigo companheiro de seu nobre irmão.”
“Eu sei quem você é”, retorquira ela, franzindo o cenho, intrigada, abrindo a porta o suficiente para olhá-lo de cima a baixo. “O que você quer?”
Foram necessárias várias visitas até ela o deixar entrar, e ainda assim somente porque estava chovendo, indicando-lhe um banco na cozinha e o advertindo com severidade para não molhar os seus desenhos. Fora o dever que o fizera persistir, a aparência de estar seguindo à risca uma ordem real, mas foram os desenhos que o fizeram voltar na noite seguinte e aguentar a indiferença intrigada e as farpas ocasionais de Alornis. Ele nunca vira nada como aqueles desenhos, a nitidez e os sentimentos reproduzidos com tamanha parcimônia, tão irresistíveis quanto passou a considerar a sua criadora.
Alucius seguiu para a cozinha, onde ela passara a maior parte do tempo, os ladrilhos do chão adornados com cacos de louça, a mesa onde ela preparava as refeições frugais que compartilhavam virada e faltando uma perna.
“Me proteger?”, rira Alornis quando ele explicou a razão de aparecer todas as noites. Os olhos dela recaíram sobre a espada curta no cinto de Alucius, brilhando um pouco. “Desculpe, mas ela realmente não combina com você.”
“Não”, admitira ele. “Nunca combinou. Mas, graças ao seu irmão, eu sei como usá-la.”
Na verdade, ele sempre soube que ela precisava de pouca proteção. Os poucos Fiéis iludidos o suficiente para imaginá-la como alguma espécie de substituta para o irmão eram mandados embora com uma recusa implacável e irascível, e por isso o Rei jamais tivera motivo para duvidar de sua lealdade. Ela trabalhava todos os dias sob a tutela pouco agradável de Mestre Benril e passava as noites naquela casa vazia, o carvão e a ponta de prata produzindo maravilhas no pergaminho que ela passava fome para comprar. Foram os pergaminhos que compraram a tolerância de Alornis, pois ele sempre os tivera em ampla quantidade e trazia alguns quando a visitava, satisfeito em sentar e observá-la trabalhar, com uma garrafa de Sangue de Lobo sempre por perto, apesar da óbvia desaprovação dela.
“Cada palavra que ela falar a respeito do irmão e do pai devem ser registradas”, dissera-lhe Malcius no dia em que Alucius fora chamado ao palácio sob o pretexto de receber os cumprimentos da Rainha pela sua última coletânea de poemas, mas na verdade para lhe imporem um novo dever. O rosto de Malcius estivera sério ao caminharem juntos pelos jardins, um rei forçado a uma necessidade relutante. “O mesmo vale para a identidade de qualquer visitante. A sombra de Lorde Vaelin sempre foi longa demais, Alucius. É melhor que a irmã não fique sob ela, não acha?”
Ele achou que estava me transformando num espião, ponderou Alucius, olhando para a parede onde ela pendurara os seus esboços e onde agora não havia nada além da silhueta de pergaminhos na cal. Sem saber que os meldeneanos haviam chegado primeiro. Pobre Malcius. Janus teria sabido num instante.
Ele subiu a escada que rangia até o andar superior, seguido por Vinte e Sete, que saltava os vãos com ágil rapidez. Alucius parou somente por um momento diante da porta do quarto de Alornis, como fizera ao final de muitas noites de bebedeira, apenas para ouvir o leve murmúrio da respiração dela enquanto dormia. Por que eu nunca contei para ela?, perguntou-se. Palavras ditas com tanta facilidade para tantas outras, mas que eu nunca consegui dizer a ela, na única vez em que teriam sido verdadeiras.
O quarto onde ele dormira estava em grande parte intacto, a sua cama estreita ainda se encontrava junto à parede com o colchão, embora os lençóis tivessem desaparecido. Alucius afastou a cama da parede e ajoelhou-se, deslocando um fragmento de gesso e revelando um pequeno esconderijo que passara despercebido pelos volarianos que saquearam o lugar. Ele suspirou de alívio ao encontrar intacto o estreito embrulho de couro.
— Não parece grande coisa, não é? — perguntou ele a Vinte e Sete, colocando o embrulho na cama e desatando os nós, revelando uma pequena adaga. O punho era feito de osso de baleia sem ornamentos e a bainha de couro liso. Alucius a desembainhou, expondo uma lâmina bem-feita de quinze centímetros. — Mas — prosseguiu ele — o homem que me deu disse que o mais leve toque dela era suficiente para matar. Não instantaneamente, mas o veneno na lâmina garantirá uma morte rápida. — Ele olhou o escravo nos olhos, algo que raramente fazia, pois não havia nada para ser visto neles. — O que faria se eu tentasse apunhalá-lo com ela? Me mataria? Duvido. O mais provável é que me desarmasse, talvez quebrasse o meu pulso. Ou será que você simplesmente ficaria aí parado e morreria, certo de que eu teria outro como você ao meu lado antes do fim do dia?
Vinte e Sete o encarou e nada disse.
— Não se preocupe, meu bom amigo. — Alucius devolveu a adaga à bainha e a enfiou no cinto. — Não é para você. Além do mais, acho que me acostumei demais com a sua companhia. Nossas conversas são tão agradáveis.
Ele empurrou a cama contra a parede e deitou nela com as mãos atrás da cabeça.
— Quantas batalhas você já presenciou? Dez, vinte, cem? Eu estive numa batalha, certa vez. Bem, três vezes, se você contar a Colina Sangrenta e Marbellis, embora meu papel não tenha sido digno de nota. Não, a minha única batalha verdadeira foi na Revolta do Usurpador, no Forte Alto. A primeira grande vitória na ilustre carreira daquele que em breve será o nosso salvador. Há canções sobre ela, terríveis e horrivelmente incorretas, mas estou nelas, ou pelo menos na maioria. Alucius, o poeta guerreiro, surgiu para vingar o irmão, “sua espada como um raio de uma tempestade virtuosa”.
Ele se calou por um momento, recordando-se. Era sempre do cheiro e do som que ele melhor se lembrava, muito mais vívidos em sua mente do que as imagens, que eram apenas uma confusão tingida de vermelho. Não, era o som dos cavalos gritando, o fedor de suor, o barulho estranho que o aço fazia ao perfurar a carne, vozes pedindo para serem salvas pelo seu deus, e merda… o perfume pungente da sua própria merda.
— Eu fiz com que ele me ensinasse — disse Alucius a Vinte e Sete. — Durante a marcha. Praticávamos todas as noites. Eu melhorei, fiquei bom o suficiente para me enganar sobre ter algum tipo de chance, alguma esperança de sobreviver ao que estava por vir. Eu soube que estava errado quando Malcius ordenou o ataque. Soube num instante que eu não era um guerreiro, nenhuma alma vingadora, e sim apenas um garoto assustado com merda na calça. Lembro-me de gritar. Imagino que os outros tenham pensado que era um grito de guerra, mas era apenas medo. Quando atacamos o portão, eles tentaram barrar a nossa entrada com os corpos, dando os braços uns aos outros, gritando preces ao seu deus. No momento em que nos chocamos com eles, a força do impacto me mandou longe. Tentei levantar, mas havia muitos corpos em cima de mim. Gritei e implorei, mas ninguém me tirou de lá, então algo duro bateu na minha cabeça.
Lembrou-se da irmã gentil que tratara dele, mais tarde destinada a acabar na Fortaleza Negra por heresia e traição, tudo porque ela pregava contra a guerra. Lembrou-se do rosto do pai no dia em que ele retornou à mansão, do suspiro de alívio seguido por uma ordem brusca: “Você não vai mais sair desta casa sem o meu consentimento.” Ele assentira docilmente, entregara a espada de Linden e fora para o quarto, onde ficara a maior parte do ano.
— Eu sempre fui um covarde, sabia? — disse Alucius. — E quanto mais aprendo sobre este mundo, mais acho que é o único caminho sensato a seguir nesta vida, na maior parte do tempo. Em Marbellis, eu fiquei parado e assisti à cidade arder, e então vi meu pai enforcar cem homens por incendiá-la. Fiquei ao lado dele durante o cerco, mesmo quando ele liderou um ataque para selar uma brecha nas defesas. Não me borrei dessa vez, mas estava muito bêbado. Quando as muralhas caíram, eu corri quando ele correu. Darnel estava lá, por mais estranho que pareça, tão aterrorizado quanto o resto de nós. Lembro que ele teve de enfrentar os próprios homens para chegar ao navio que nos tirou de lá em segurança, e quando zarpamos, olhei para o seu rosto e vi que ele era tão covarde quanto eu.
Alucius virou-se para Vinte e Sete, fez sinal para que ele se aproximasse e falou calmamente:
— Preciso que você se lembre de uma coisa.
Ele falou por pouco tempo, palavras que não haviam sido ensaiadas, mas que vinham com naturalidade. Quando terminou, ordenou que Vinte e Sete as repetisse, e o escravo o fez com uma imitação desconcertante e precisa da voz de Alucius. Meu sotaque é tão afetado assim?, perguntou-se quando o escravo se calou.
— Muito bem — disse ele, então deu instruções cuidadosas sobre quando e a quem as suas palavras deveriam ser repetidas. — Vou dormir agora — disse a Vinte e Sete. — Acorde-me com o oitavo sino, por favor.
Ele ficou satisfeito ao encontrar Darnel a cavalo nas docas, cercado por seus poucos cavaleiros remanescentes a pé. O Senhor Feudal sempre se preocupava em ficar acima daqueles à sua volta e insistia em cavalgar sempre que deixava o palácio. Um batalhão inteiro de Espadas Livres estava atrás de Mirvek, em formação ao longo do cais, aguardando para saudar quaisquer luminares que se aproximavam na imensa belonave que surgia no horizonte. Alucius soube por seu pai que os comboios de suprimentos volarianos haviam sido alvos frequentes de ataques nas últimas semanas, com os meldeneanos sem dúvida felizes em ver a pirataria tão lucrativa na guerra quanto em tempos de paz. Entretanto, um navio com o tamanho e o poder do monstro que velejava na direção deles certamente podia esperar permanecer imune às atenções dos piratas.
Alucius passara a manhã na expectativa de alguma grande comoção, que homens corressem para assumir as posições cuidadosamente planejadas por seu pai enquanto o exército de Lyrna surgia na planície ao sul. Mas não houve alarme, nenhuma corneta de aviso para cortar o ar matutino e nenhum exército para sujar a região ao redor da cidade.
Se ela pudesse vir, teria vindo, sabia Alucius. Nem que fosse apenas para me enforcar. Ele se esmerara para evitá-la desde a guerra, uma vez que o escrutínio dela era sempre intenso demais, e os seus encontros ficaram limitados a cerimônias ocasionais no palácio. Houve ocasiões em que ela enviara mensageiros pedindo a sua presença no almoço, mas Alucius sempre recusara, temendo o que a perspicácia dela pudesse descobrir. Eu sei o que você fez, Lyrna.
Começara no dia em que ele retornara de Marbellis e ela comparecera às docas para receber os poucos sobreviventes do outrora grande exército de seu pai. O sorriso dela era perfeito: grave, encorajador, livre de julgamento ou repreensão. Mas Alucius viu, apenas por um instante, enquanto ela observava um Guarda do Reino que perdera uma perna ser carregado para fora do navio. Culpa.
Todas as peças se encaixaram mais tarde, com uma compreensão instantânea, quando ele soube que o seu novo Rei havia regressado em segurança para o Reino e Vaelin havia sido capturado pelos alpiranos. Ele estava no palácio quando Malcius, de olhos claros e emaciado sob a barba, colocou a coroa na cabeça e os nobres reunidos se curvaram… e o rosto de Lyrna revelou um vislumbre da mesma expressão que ele vira naquele dia nas docas.
Eu sei o que você fez.
Alucius sempre se espantara com a velocidade com que os meldeneanos o encontraram. Bebidas, mulheres e os poemas ocasionais haviam sido as suas principais distrações nos dois anos desde Marbellis, o álcool o deixando um tanto incauto com as palavras, palavras que alguns poderiam considerar insubordinação. O meldeneano se sentara ao seu lado certa noite em sua taverna favorita, assim considerada porque o primeiro copo sempre era de graça para veteranos, uma despesa pequena, já que eles eram poucos. O meldeneano estava vestido como marinheiro, como convinha à sua nacionalidade, e a princípio falou num tom sem refinamento. Ele pagou o vinho de Alucius, confessando ser iletrado ao ouvir sobre a sua ocupação, mas fez muitas perguntas sobre a guerra. O homem regressou na noite seguinte, pagando por menos vinho, mas fazendo mais perguntas, e na noite depois dessa. A cada encontro Alucius notava que o seu sotaque não estava tão grosseiro quanto antes e que as suas perguntas estavam minuciosas, especialmente no que dizia respeito ao Rei e à sua irmã.
— Eles são traidores — dissera Alucius, um pouco alto demais, pelo modo como o homem se retraíra e gesticulara para que ele falasse mais baixo. — A família inteira — prosseguira ele, ciente de que estava bêbado demais e não se importando. — Janus enviou o meu irmão para morrer na Martishe, ordenou que meu pai matasse milhares por nada. Abandonou meu amigo aos alpiranos. Ela fez isso, não Janus. Foi ela.
O meldeneano assentiu lentamente.
— Nós sabemos — disse ele. — Mas gostaríamos de saber mais.
Eles lhe ofereceram dinheiro, que Alucius recusou, orgulhoso de si mesmo por estar sóbrio quando o fez.
— Apenas me diga o que vocês querem.
Ele descobriu que a espionagem era uma ocupação absurdamente fácil. Poucas pessoas veem mais do que desejam ver, concluiu, após aceitar um convite para ler poemas para um bando de esposas de mercadores, cheias de fofocas e repletas de informações sobre as novas rotas comerciais que os seus maridos haviam sido obrigados a criar desde a guerra. Elas viram um belo e jovem poeta, herói trágico de uma guerra trágica, abater-se visivelmente com os próprios poemas, e se mostraram muito solícitas quando ele perguntou a respeito de prováveis oportunidades de investimento. “Para o meu pai, a senhora compreende. Ele precisa de algo com que se ocupar atualmente. Tempos de paz são uma provação para um militar.”
Ele ia a tavernas frequentadas pela Guarda do Reino, onde era bem recebido entre os veteranos que haviam estado em Linesh com Vaelin, todos cínicos amargurados e faladores quando cheios de cerveja. Deixou que soubessem que estava disponível para encomendas, compondo poemas de amor para jovens nobres apaixonados e tributos para os funerais de homens abastados, ganhando com isso acesso aos ricos e poderosos. Seu contato meldeneano estava feliz com o seu trabalho e forneceu os pombos para tornar mais rápida a entrega de informações e a adaga, caso ele fosse descoberto.
— Não sou assassino — dissera Alucius ao homem, olhando a adaga com aversão.
— É para você — disse o meldeneano com um sorriso antes de sair da taverna.
Alucius nunca mais o viu. Na semana seguinte, foi chamado pelo Rei e recebeu a ordem de espionar Alornis, quando então viu o seu entusiasmo pela nova ocupação começar a esmorecer. Ficar com ela diminuiu a sua raiva, tornou menos aguda a dor da traição. Ele continuou a recolher informações, a maioria fofocas mercantis de pouco valor, despachando os pássaros e sabendo que, caso incluísse o seu pedido de desistência entre as mensagens, o provável era que os meldeneanos lhe oferecessem uma lâmina em vez de uma aposentadoria. No final das contas, os volarianos tornaram redundantes tais preocupações.
Alucius estava com Vinte e Sete a uns dez metros atrás de seu pai, que havia se posicionado fora do círculo de cavaleiros bajuladores de Darnel.
— Um monstro impressionante, não? — perguntou ele, indo se colocar à esquerda do pai.
Lakrhil Al Hestian assentiu à medida que o navio se aproximava e Alucius avistou duas embarcações menores que vinham logo atrás.
— Aparentemente é o navio-irmão do Despeito da Tempestade — disse seu pai. — Esqueci o nome. Mirvek acredita que é um sinal de que o Conselho Governante continua a ter fé em sua liderança, enviando mais reforços do que o esperado.
Alucius lembrava-se do Despeito da Tempestade como um monstro sombrio que ficara ancorado no porto durante dias até que o General Tokrev zarpou para Alltor, para nunca mais retornar. Discernindo os detalhes conforme o segundo navio se aproximava, ele ficou espantado pela similaridade entre as duas embarcações; mesmo para navios construídos seguindo o mesmo modelo, a semelhança era surpreendente, embora os volarianos fossem um povo que prezava muito a uniformidade.
— Os seus preparativos estão concluídos? — perguntou Alucius. — Tudo pronto para sangrar o exército de Lorde Vaelin?
— Ainda não — grunhiu o seu pai. — Os Espadas Livres são preguiçosos quando não estão saqueando, e os Varitai não são de muita serventia em trabalhos braçais. Dê-lhes uma pá e eles ficam apenas olhando para ela. Contudo, parece que logo teremos mais mãos para completar a tarefa.
— Você poderia ter defendido Marbellis? Se tivesse tido tantos homens para usar?
Lakrhil virou-se para ele com uma expressão intrigada; havia um entendimento tácito de que Marbellis era um assunto que nenhum dos dois queria discutir.
— Não — respondeu ele. Algo deve ter transparecido na expressão de Alucius, algum vestígio de suas intenções, pois seu pai inclinou-se para ele e sussurrou: — Você não deveria estar aqui, Alucius. E ainda não conseguiu uma única informação útil com os Aspectos. — Ele olhou rapidamente para Darnel. — Não posso protegê-lo para sempre.
O olhar de Alucius foi atraído para a sua casa roubada, onde avistou a sacada em que fazia o desjejum e contava os navios todas as manhãs. Ela estava lá, como pedido, uma figura pequena e gorda encostada na balaustrada, com o olhar fixo em Darnel, ou melhor, no cavalo do Senhor Feudal.
— Está tudo bem — disse Alucius ao pai. — Você não precisará fazer isso.
O cavalo de Darnel soltou uma bufada alta, balançando e sacudindo a cabeça.
— Calma, calma — tranquilizou-o o Senhor Feudal, passando a mão no pescoço do animal.
Alucius ficou aliviado ao ver que Darnel não estava usando armadura, apenas sedas finas e um manto longo. Ele levou a mão à adaga enfiada atrás do cinto, escondida debaixo do manto, sem tirar os olhos do cavalo de Darnel. O animal bufou de novo, soltando um relincho alto, arregalando os olhos de pânico ao empinar. Foi repentino demais para Darnel segurar com mais força as rédeas, e derrubou-o da sela. Livre de seu cavaleiro, o grande cavalo de guerra girou e golpeou com os cascos o cavaleiro mais próximo, as ferraduras retinindo no peitoral do homem ao derrubá-lo. O animal girou sobre as patas dianteiras, dispersando os cavaleiros restantes com coices furiosos enquanto Darnel afastava-se de quatro pelo chão, os olhos arregalados de pânico. O cavalo interrompeu o ataque aos cavaleiros e virou-se de novo, os olhos tresloucados fixando-se em Vinte e Sete antes de investir com um grito agudo. A expressão do escravo de elite permaneceu tão tranquila como sempre ao tentar atirar-se para longe do caminho do cavalo, mostrando-se lento demais por uma fração de segundo quando o flanco do animal chocou-se com o seu ombro, fazendo-o girar para o chão, desacordado.
Alucius sacou a adaga da bainha e correu na direção de Darnel, que agora se levantava, bem longe de qualquer proteção. Use a estocada mais curta possível, dissera-lhe Vaelin havia tantos anos, quando ele se imaginava um herói. É a lâmina veloz que tira sangue.
Algum instinto nascido das batalhas devia ter soado na mente de Darnel, pois ele se virou no momento em que Alucius desferiu uma estocada contra as suas costas, a lâmina perfurando o seu manto e ficando enroscada nas dobras do tecido. Darnel rosnou e tentou acertar um soco no rosto de Alucius. Ele se abaixou para desviar do golpe, arrancando a adaga do manto e golpeando o braço de Darnel, ciente de que mesmo o menor corte seria suficiente. O Senhor Feudal afastou-se para o lado e a sua espada saiu da bainha num borrão. Alucius sentiu uma grande queimação percorrer o seu peito, o choque fazendo com que caísse de joelhos, e Darnel assomou sobre ele com a espada erguida. Sua expressão era de um triunfo feroz, sorrindo largamente na expectativa do abate.
— Você acha que vai me matar, poetinha? — riu ele.
— Não — respondeu Alucius, sentindo o sangue lhe banhar o peito ao olhar por sobre o ombro de Darnel. — Mas imagino que ele irá.
Darnel girou sobre os calcanhares, mas tarde demais. Lakrhil Al Hestian trespassou o pescoço do Senhor Feudal com o cravo que saía de sua manga direita. Darnel levou alguns segundos para morrer, cuspindo sangue e chorando pendurado no cravo, os olhos esbugalhados e os lábios balbuciando incoerências antes de finalmente tombar no chão. Alucius ainda conseguiu pensar que não demorara o bastante.
Uma mão fria pareceu envolvê-lo por todos os lados ao desabar; ele sentiu seu pai ampará-lo e sorriu para o rosto lívido.
— Os Aspectos — disse ele. — Vá para a Fortaleza Negra…
— Alucius! — Seu pai o sacudiu, a voz um grito tomado de fúria. — ALUCIUS!
Alucius percebeu que havia um grande clamor em algum lugar, embora sua visão estivesse turva demais para distinguir a origem; homens gritavam alarmados, avivando lembranças de Forte Alto. Ele achou estranho que o céu acima da cabeça de seu pai parecesse estar repleto de tiras pretas, como as flechas na Colina Sangrenta, outra lembrança indesejável. Ele fechou os olhos, deixando tudo isso de lado e preenchendo a mente com o rosto de Alornis enquanto o que restava de seu sangue se esvaía.