Lyrna
Levou algum tempo para encontrar o seu jardim, uma vez que as ruínas haviam sido removidas pelos escravos de Darnel para dar espaço às suas ambições arquitetônicas, deixando somente um contorno de tijolos quebrados e terra à vista onde antes flores haviam crescido. Estranhamente, o seu banco ainda estava intacto, ainda que um pouco enegrecido. Ela se sentou para olhar os resquícios arruinados do refúgio que tanto apreciara e que havia desaparecido. Foi até ali que ela levara Vaelin aquela noite, ganhando a inimizade dele com as suas intrigas desajeitadas, mas também aprendendo uma lição com o ocorrido; alguns olhos sempre viam através da máscara. Também fora ali que ela passara aquelas horas encantadoras com a Irmã Sherin após libertá-la da Fortaleza Negra, a gentileza inata e o intelecto estimulante da curandeira servindo em grande parte para dissipar o ciúme. Lyrna lembrava-se de achar a amizade uma novidade agradável, ainda que breve, e, quando Sherin zarpou para Linesh, ela parara de ir até ali. O pátio isolado não passava mais a sensação de um abrigo convidativo: era apenas um canto vazio num palácio onde uma mulher solitária cuidava de flores e planos enquanto esperava o pai morrer.
— Lir-nah!
Ela ergueu a cabeça a tempo de ter um vislumbre de uma figura alta vindo a passos largos em sua direção, antes de o abraço de Davoka lhe tirar o ar dos pulmões e arrancá-la do banco, seus pés balançando no ar enquanto era esmagada contra o peito da lonak. Lyrna ouviu as pisadas fortes de botas acompanhadas por espadas saindo de bainhas.
— Solte a Rainha, selvagem! — rosnou Iltis.
Davoka o ignorou, soltando Lyrna após um aperto esmagador e lhe segurando a cabeça com as duas mãos. Ela estava sorrindo, algo que Lyrna não conseguia se lembrar de tê-la visto fazer antes.
— Pensei que tinha perdido você, irmã — disse ela em lonak, passando os dedos pelo rosto de Lyrna, da fronte até os cachos dourado-avermelhados que cresciam rapidamente atrás. — Ele disse que você ardeu.
— E ardi. — Lyrna agarrou as mãos da lonak e as beijou, tranquilizando Iltis e Benten com um aceno de cabeça, e eles embainharam as espadas e afastaram-se com mesuras e expressões intrigadas. — Ainda ardo, irmã.
Davoka recuou, e certa relutância tensa apareceu em seu olhar antes de falar mais uma vez, mudando para a língua do Reino com facilidade.
— O Irmão Frentis…
Lyrna lhe deu as costas e Davoka calou-se diante da severidade repentina em sua expressão. Menções ao famoso Irmão Vermelho haviam sido frequentes desde que chegara na noite anterior, estando entre as primeiras ditas pelo seu Senhor da Batalha ao desembarcar nas docas, assim como numa súplica sincera da Aspecto Elera e num pedido seco de misericórdia do Irmão Sollis. Ela dera a mesma resposta a cada um deles, a mesma resposta que dava a Davoka agora:
— Minha decisão será anunciada no seu devido tempo.
— Nós lutamos juntos na floresta antes que ela fosse queimada. — prosseguiu Davoka. — Somos gorin. Ele é meu irmão, assim como você é minha irmã.
As lágrimas vermelhas da volariana, a dor lancinante quando seu cabelo pegou fogo… Lyrna fechou os olhos diante das lembranças, sentindo a brisa na pele, a pele curada e sem cicatrizes. Curada?, perguntou a si mesma. É como estou?
Na noite anterior, Lyrna presenciara Alucius ser entregue ao fogo. Ela dissera algumas palavras breves, formalmente nomeando-o Espada do Reino, o seu emblema uma pena e uma taça de vinho, pois sabia que o teria feito rir. A Senhora Alornis adiantara-se para falar também, seu rosto pálido e inexpressivo, mas com lágrimas escorrendo dos olhos quando o seu irmão colocou mãos consoladoras em seus ombros.
— Alucius Al Hestian… — começara ela, vacilara e então continuara com a voz embargada — … será chamado de… herói por muitos. Um poeta por outros e… — ela parou para dar um leve sorriso — afeiçoado demais ao vinho por alguns. Irei chamá-lo sempre… simplesmente de meu amigo.
Lakrhil Al Hestian tivera permissão para comparecer, assistindo com um olhar vazio e calado em seus grilhões. Ele não fez nenhum discurso e olhou fixamente com olhos secos as chamas se erguerem. Lyrna permitiu que ele permanecesse até a pira virar brasas e então ordenou que fosse levado de volta às masmorras, agora repletas de outros traidores aguardando a justiça da Rainha.
Justiça. Ela vira a fumaça envolver a pira, ocultando o rosto de Alucius e lhe poupando da visão das chamas consumindo a sua carne. Que justiça eu teria lhe mostrado, velho amigo? Espião, traidor do Reino, e agora herói da libertação de Varinshold. Meu pai teria feito um espetáculo de clemência, teria lhe coberto de títulos e ouro e então, após um intervalo decente, iria se assegurar de que um de seus talentos ocultos providenciasse uma morte apropriadamente acidental. Eu teria sido muito mais cruel, Alucius. Eu teria feito você me seguir, testemunhar minha aplicação da justiça plena contra os nossos inimigos e, por isso, sei que você teria me odiado.
As nuvens no alto deviam ter se aberto, pois Lyrna sentiu uma onda de calor na cabeça, o seu cabelo recém-crescido sem dúvida uma bela visão ao reluzir, a sensação agradável e livre da agonia causadora de lágrimas da qual se lembrava de seus dias a bordo do Sabre do Mar. Curada?, perguntou-se novamente. É possível refazer a máscara, mas o rosto por baixo dela continua o mesmo.
Ela abriu os olhos e seu olhar recaiu sobre algo, uma florzinha amarela que brotava por entre duas lajes estilhaçadas. Lyrna agachou-se e estendeu a mão para tocar as pétalas.
— Invernália — disse ela. — Sempre o sinal mais claro da mudança das estações. O gelo e a neve estão chegando, irmã, trazendo privações, mas também descanso, pois frota alguma cruzará o oceano enquanto ocorrerem as tempestades de inverno.
— Acha que eles virão de novo? — perguntou Davoka. — Quando o oceano ficar calmo?
— Tenho certeza que sim. Esta guerra está longe de terminar.
— Então você precisará de cada espada, de cada aliado.
Lyrna olhou de novo para a invernália, resistindo à tentação de arrancá-la e decidindo plantar um novo jardim ali no seu devido tempo, um sem muros. Ela se levantou, olhou Davoka nos olhos e falou em lonak formal:
— Serva da Montanha, preciso de sua lança. Irá empunhá-la a serviço da minha causa? Pense bem antes de responder, pois a nossa estrada é longa e não prometo um retorno à Montanha.
A resposta de Davoka não revelou qualquer sinal de hesitação.
— A minha lança é sua, irmã. Agora e sempre.
Lyrna agradeceu com um aceno de cabeça e fez sinal para que Iltis e Benten se aproximassem.
— Então é melhor você conhecer os seus irmãos. Tente não matar Lorde Iltis. O jeito dele pode ser um tanto provocador.
* * *
Karlin Al Jervin estava o mais empertigado que suas costas curvadas permitiam. Lyrna lembrava-se dele como um sujeito alegre e barrigudo com uma careca reluzente, menos inclinado à subserviência do que muitos de seus companheiros nobres, e alguém que não se demorava na corte por mais tempo do que exigiam seus negócios. Contudo, a escravidão e o trabalho forçado pareciam ter lhe privado tanto do humor quanto da barriga. Suas faces e olhos estavam encovados, embora encarasse o olhar de Lyrna com admirável compostura. Sua filha, no entanto, estava menos acostumada à realeza e se remexia diante do trono, a uma distância considerável do pai. A Senhora Illian vestia uma roupa de caçador, calça de zibelina e uma blusa leve de algodão, manchada de marrom e verde para ocultá-la na floresta, o cabelo cortado de modo a não lhe cair nos olhos. Havia uma adaga embainhada presa ao seu tornozelo e outra em seu pulso. Apesar do traje marcial, ela ainda parecia muito jovem ao se contorcer sob o escrutínio dos presentes e evitar os olhares do pai. Atrás dela se encontravam o Irmão Comandante Sollis e Davoka, enquanto Lorde Al Jervin estava sozinho.
Lyrna descartara depressa a monstruosidade extravagante que Darnel chamara de trono em favor de uma cadeira confortável de encosto reto recuperada de uma das casas de mercadores abandonadas, e sentiu-se grata pela profundidade da almofada sob o traseiro real. Ela vinha ouvindo petições havia cerca de quatro horas e estava estupefata com a pequenez reinante das pessoas afortunadas o suficiente para terem sobrevivido a tão selvagem ocupação. As pessoas apareciam com reclamações de roubo contra vizinhos desaparecidos, reivindicações de herança por propriedade que agora eram apenas cinzas, apelos para restituição de posições de nobreza e um sem-número de outras trivialidades que esgotava a sua paciência com o passar das horas. Porém, nem todas as reivindicações eram triviais ou resolvidas com facilidade.
— Irmão Sollis — disse Lyrna. — Você precisa admitir que Lorde Al Jervin levanta várias questões válidas. Tudo isso é muito incomum.
— Perdoe-me, Alteza — retorquiu o Irmão Comandante com sua costumeira voz rascante —, mas duvido que qualquer coisa neste Reino possa agora ser chamada de “comum”.
— Meu conhecimento a respeito da história de sua Ordem não é dos mais vastos, mas creio que nunca houve uma irmã da Sexta Ordem. E os recrutas geralmente não são aceitos muito mais novos? As circunstâncias podem ter nos forçado a esquecer alguns costumes em face das necessidades, mas esse é de fato um passo radical.
— Há prescrições nas doutrinas da Ordem que permitem recrutas mais velhos, Alteza. Mestre Rensial, por exemplo, veio a nós como um ex-capitão da cavalaria da Guarda do Reino. Quanto ao gênero da Senhora Illian, a guerra forneceu amplas evidências de que os nossos costumes a esse respeito podem precisar ser modificados.
— As nossas leis serão deixadas de lado agora, Alteza? — perguntou Al Jervin, mais uma vez olhando furioso para Illian. — A Sexta Ordem não pode simplesmente levar a filha de um homem.
— Eles não estão me levando! — retorquiu Illian com veemência, e então corou e baixou os olhos quando Lyrna virou-se para ela. — Perdão, Alteza.
— Senhora Illian, é de fato seu desejo juntar-se à Sexta Ordem? — perguntou Lyrna.
A garota respirou fundo e ergueu a cabeça, falando num tom claro e determinado:
— É, Alteza.
— Apesar das objeções de seu pai? De seus medos fundamentados quanto à sua segurança?
Illian olhou para Al Jervin com uma expressão pesarosa no rosto, a voz baixa:
— Eu amo meu pai, Alteza. Pensei por tanto tempo que ele estava morto que encontrá-lo vivo quando a cidade caiu foi maravilhoso. Mas não sou a filha que ele perdeu, nem posso ser. Fui moldada pela guerra em outra coisa, um papel que, acredito, me foi conferido pelos Finados.
— Ela é uma criança! — exclamou Al Jervin, seu rosto ficando vermelho. — Pelas leis deste Reino, a posição e a condição dela são decididas por mim até a sua maioridade. — Ele estremeceu um pouco quando Lyrna lhe olhou nos olhos, recusando-se a desviar o olhar, mas acrescentando “Alteza” com um sussurro forçado.
— A Senhora Davoka me contou muitas coisas sobre a sua filha, meu senhor — disse Lyrna. — Ao que tudo indica, ela serviu com grande distinção na luta pela libertação deste Reino. Ela se encontra diante de mim agora como a autora de muitas mortes merecidas de nossos inimigos. De acordo com as doutrinas da Sexta Ordem, uma súdita de bom caráter se responsabiliza por ela e o Irmão Sollis está disposto aceitá-la, deixando de lado costumes antigos e os testes usuais em reconhecimento de suas habilidades e coragem evidentes. Como uma irmã, ela sem dúvida realizará serviços ainda maiores ao Reino e à Fé. Enquanto que você, meu senhor, aparentemente passou a guerra inteira entalhando objetos de arte fátuos para o traidor Darnel.
Al Jervin retraiu-se, mas conseguiu controlar o tom da voz ao responder:
— Ouvi rumores de que Vossa Alteza também tinha sido feita escrava pelos nossos inimigos. Sendo assim, tenho certeza de que a senhora conhece bem a vergonha de realizar um ato odioso para sobreviver.
Iltis empertigou-se, deu um passo adiante e falou num tom ameaçador.
— Cuidado com a língua, meu senhor.
Al Jervin rangeu os dentes e fez uma pausa antes de continuar, com a voz rouca e quase embargada:
— Alteza, não me sobrou casa, nem riquezas, nem orgulho. Minha filha é tudo o que me resta. Eu peço que a senhora siga suas leis e evite que ela siga esse caminho insensato.
Isso não é orgulho ferido, concluiu Lyrna. Ele simplesmente quer mantê-la viva. Um bom homem, e um construtor com habilidades que serão muito necessárias quando alcançarmos a paz. Ela olhou de novo para Illian, observando-a revelar dentes brancos perfeitos ao sorrir para um aceno de cabeça encorajador dado por Davoka. Bela, mas um falcão também é belo, e por ora tenho mais necessidade de falcões do que de construtores.
— Senhora Illian — disse Lyrna, gesticulando para um dos três escribas presentes para registrar formalmente um Pronunciamento Real. — Pela Palavra da Rainha, eu retiro a sua posição e revogo a autoridade de seu pai. Como súdita livre deste Reino, a senhora pode escolher qualquer caminho que por lei lhe esteja aberto.
Ela ficara surpresa ao encontrar a Câmara do Conselho praticamente intacta, embora houvesse uma brecha considerável na parede oeste, e a tapeçaria que a cobria balançasse à brisa. Num rompimento com as tradições, Lyrna pedira que os dois Aspectos sobreviventes comparecessem ao Conselho, formalmente nomeando a Aspecto Elera Ministra das Obras Reais e a Dendrish Ministro da Justiça. Tanto seu pai quanto o seu irmão jamais haviam nomeado um Aspecto para um cargo oficial e houve considerável apreensão entre os outros membros do Conselho.
Nunca lhes ceda um centímetro a mais do que precisar, dissera o seu pai certa vez sobre a Fé. Eu os uni à Coroa para conquistar o Reino, mas, se pudesse, eu os separaria de mim como um membro necrosado. No entanto, Lyrna tinha a sensação de que o tempo ensinara uma lição diferente. Os sermões do Aspecto Tendris contra a tolerância de seu irmão pelas crenças Negadoras ajudaram em muito a enfraquecer o Reino, mas o poder do Aspecto fora limitado pela proximidade das outras Ordens com a Coroa. Seu erro não foi se unir a eles, pai. Foi não se unir o suficiente.
— Tal como em Warnsclave, mais pessoas chegam a cada dia — relatou o Irmão Hollun, sentado à esquerda de Lyrna. — A população civil de Varinshold agora é de mais de cinquenta mil pessoas. Podemos esperar que esse número dobre em um mês.
— Podemos alimentar tantos? — perguntou Vaelin.
— Com um racionamento cuidadoso — explicou o Irmão Hollun. — E com o abastecimento constante de nossos amigos alpiranos e o fornecimento de produtos nilsaelinos por parte do Senhor Feudal Darvus. Os meses de inverno serão difíceis, mas ninguém deverá passar fome.
— Como está o exército, meu senhor? — perguntou Lyrna a Vaelin.
— Com os nossos novos recrutas, os cavaleiros do Barão Banders e os populares, teremos oitenta mil homens e mulheres em armas antes do fim do ano.
— Precisamos de mais. — Lyrna virou-se para o Lorde Comandante Travick. — Amanhã redigirei um decreto de recrutamento. Todos os súditos do Reino com idade para lutar entrarão para a Guarda do Reino. Treine-os com afinco, meu senhor. — Ela olhou para Reva. — O decreto se estenderá a todos os feudos, minha senhora. Espero que a senhora não faça qualquer objeção.
A Senhora Governadora manteve uma expressão neutra, mas Lyrna percebeu que ela estava elaborando com cuidado a sua resposta.
— De minha parte, não, Alteza — falou Reva após um momento. — E da parte de muitos de meu povo que sofreram nas mãos volarianas. Contudo, há alguns cantos de Cumbrael intocados pela guerra onde antigos ressentimentos ainda persistem.
— Ressentimentos que espero serem dissipados pelas palavras da Senhora Abençoada — disse Lyrna. — Talvez a senhora devesse retornar a casa durante algum tempo, Senhora Reva. Deixar que o seu povo a veja, ouça a história de seus feitos, pois são muito inspiradores.
O aceno de consentimento de Reva foi imediato e não havia qualquer rancor em sua voz.
— Como Vossa Alteza ordenar.
Nunca o menor lampejo de deslealdade vindo desta, ponderou Lyrna. Então por que ela me causa tamanha inquietação?
Ela deixou a questão de lado para consideração posterior e virou-se para o Escudo.
— Lorde Almirante Ell-Nestra, informe-nos o tamanho das forças sob o seu comando, por favor.
Como era o seu costume ultimamente, o perpétuo sorriso enviesado do Escudo desapareceu ao se dirigir a Lyrna, os seus olhos encontrando os dela apenas por um segundo.
— Pouco mais de oitocentos navios de calados variados, Alteza. Capturamos um número considerável de navios mercantis volarianos, mas os mares estão ficando cada vez mais vazios com a chegada das tempestades de inverno.
— Uma força de tamanho decente para repelir qualquer invasão — comentou o Conde Marven. — Tripulada pelos melhores marinheiros do mundo. Além do mais, desta vez estamos prevenidos.
— Quantos soldados os seus oitocentos navios poderiam transportar? — perguntou Lyrna a Ell-Nestra.
O Escudo franziu o cenho, intrigado, seu tom cauteloso ao responder:
— Se usarmos todas as embarcações volarianas, talvez quarenta mil, Alteza. E certamente sem qualquer conforto.
— O conforto é um luxo há muito esquecido, meu senhor. — Ela calculou por um momento, sentindo o silêncio se adensar. Eles sabem o que você planeja. E temem isso. — Seu homem está aqui? — perguntou ela a Vaelin, que assentiu e ordenou ao Guarda do Reino na porta que deixasse o construtor de navios entrar. O Sargento Davern marchou até o centro da câmara, bateu continência e fez uma mesura formal, aparentemente nem um pouco nervoso com sua solene audiência.
— Meu Senhor da Batalha me disse que você constrói navios, sargento — disse Lyrna.
— De fato, Alteza. — Ele lhe deu um sorriso que teria envergonhado o Escudo por sua confiança inata. — Entrei para a Guilda dos Armadores aos dezesseis anos. O mais jovem a conseguir isso, pelo que me contaram.
— Bastante impressionante. Preciso de um navio capaz de transportar quinhentos soldados através do oceano até Volaria. Você o projetará e o construirá de tal maneira que seja facilmente duplicado e construído por mãos inexperientes.
Davern empalideceu, enquanto os outros capitães à mesa se remexeram pouco à vontade, exceto, notou Lyrna, por Vaelin, que não demonstrou estar nem um pouco surpreso.
— Tal tarefa é… imensa, Alteza — começou o sargento. — Exigirá muito trabalho, sem falar em madeira…
— O Irmão Hollun compilou uma lista de súditos sobreviventes com habilidades e experiência adequadas — disse Lyrna. — Eles serão colocados à sua disposição. Quanto à madeira, não se preocupe, pois ela será fornecida. Eu o nomeio… — Ela ponderou por um momento. — Davern Al Jurahl, Mestre do Estaleiro da Rainha. Parabéns, meu senhor. Aguardarei seus projetos pela manhã.
Davern permaneceu num silêncio estupefato por mais um momento e então fez uma mesura hesitante e saiu da câmara.
— Creio que isso conclui os assuntos de hoje — disse Lyrna, levantando-se.
Como esperado, foi o Conde Marven quem falou; o comandante nilsaelino era corajoso, sem sombra de dúvida, mas também aconselhava cautela sem a menor cerimônia.
— Alteza, se me permite?
Ela parou, erguendo uma sobrancelha quando o conde vacilou e então se forçou a continuar:
— Para que não haja qualquer mal-entendido, é intenção de Vossa Alteza invadir o Império Volariano?
— Minha intenção é vencer esta guerra, meu senhor. Pelos meios mais rápidos.
— Atravessar o oceano com tantos… Devo expressar as minhas dúvidas quanto à praticidade de tal coisa.
— Por quê? Os volarianos conseguiram.
— Com anos de preparação — observou o Escudo. — E sem sair de um Reino tão arrasado quanto este.
— Um Reino que já realizou milagres. — Ela examinou o rosto deles, encontrando dúvidas na maioria, embora mais uma vez apenas Vaelin não demonstrasse sinais de inquietação. — Meus senhores, este Conselho não é uma câmara de debates. Peço conselhos conforme acho necessário e dou ordens de acordo. E ordeno que uma frota seja construída para levar a nossa justiça ao Império Volariano, pois quando os nossos assuntos por lá estiverem terminados, eles nunca mais sonharão em voltar a esta terra, a não ser em seus pesadelos.
Lyrna fez uma pausa, aguardando mais objeções, mas encontrou apenas aceitação cautelosa.
— Eu agradeço os seus conselhos. E agora, ao trabalho.
* * *
Lakrhil Al Hestian não se levantou quando Lyrna entrou em sua cela, meramente olhando para ela com olhos vazios, encolhido num canto sobre a pedra nua, com grilhões nos punhos e nos tornozelos. Iltis soltou um grunhido irritado pela grosseria, mas Lyrna o conteve com um aceno de mão.
— Vigie a porta, meu senhor, por favor.
Iltis arreganhou os dentes para Al Hestian num rosnado de desprezo antes de sair da cela, deixando a pesada porta entreaberta e posicionando-se de costas para a entrada.
— Eles chamam esta cela de Canto do Traidor — disse Lyrna a Al Hestian, indo até a única janela, uma fenda estreita na grossa parede de pedra através da qual era possível vislumbrar um pedaço do céu. Havia marcas indistintas na pedra, alguma inscrição antiga riscada muito tempo atrás por mãos desesperadas. — Ocupada pela última vez por Artis Al Sendahl na véspera de sua execução — prosseguiu ela, virando-se para Al Hestian. — O fato de os nossos inimigos terem deixado nossas masmorras intactas apesar de toda a destruição que causaram nesta cidade diz muito sobre eles.
Al Hestian encolheu discretamente os ombros, seus grilhões provocando um retinido abafado.
— Artis Al Sendahl não teve um julgamento — continuou Lyrna. — Simplesmente acordou uma manhã e encontrou dois guardas em sua porta segurando uma Ordem do Rei. Uma semana depois ele estava morto.
— Enquanto me são concedidos apenas dois dias — disse Al Hestian, sua voz rouca e apática. — E também nenhum julgamento.
— Então que este seja o seu julgamento, meu senhor. — Lyrna ergueu as mãos, gesticulando para as paredes ao redor. — E eu tanto testemunha quanto juíza, ansiosa pelo seu testemunho.
— Meu testemunho é redundante. Os meus motivos evidentes. — Ele desviou o olhar de Lyrna e apoiou a cabeça na parede. — Não farei qualquer defesa ou apelo por misericórdia, exceto para que a questão seja resolvida o mais depressa possível.
Lyrna conhecia aquele homem desde a infância e nunca sentira por ele qualquer afeição, talvez por encontrar um reflexo nítido demais em sua franca ambição. Porém, seus filhos, com quem ela brincara quando criança, nunca deixaram de amá-lo, apesar de todos os seus defeitos.
— Alucius será honrado para sempre neste Reino — disse ela. — Sua casa livrou-se em parte da desonra pelo sacrifício dele.
— Um filho morto não precisa de honra. E eu tenho dois para encarar no Além se a senhora me fizer o favor de me mandar para lá.
O olhar de Lyrna recaiu mais uma vez sobre as marcas na parede, onde encontrou duas palavras legíveis, suficientes para adivinhar o significado do resto. A morte é apenas uma passagem para o Além… O Catecismo da Fé, sobre o qual tanto havia sido construído, e também destruído. Para ela sempre foram palavras vazias que não lhe interessavam, pois havia muita sabedoria genuína para ser lida.
— Não tenho misericórdia para o senhor — disse ela. — Apenas mais punições. Lorde Iltis!
O Lorde Protetor retornou, permanecendo em prontidão quando ela apontou para os grilhões nos tornozelos de Al Hestian.
— Remova-os e traga-o.
Os antigos cavaleiros e caçadores de Darnel estavam no pátio do lado de fora das galerias cavernosas que serviam de masmorras para a cidade. Eram quase quarenta homens, de quem haviam sido tiradas todas as armaduras e bens, exceto por uma roupa esfarrapada, cercados por todos os lados pela Guarda do Norte de Lorde Adal, escolhidos pela força de sua disciplina; a Guarda do Reino provavelmente cometeria um massacre se ficasse diante daqueles que os haviam traído no primeiro encontro fatídico com os volarianos. Lyrna conduziu Al Hestian até um passadiço com vista para os prisioneiros reunidos, notando que a maioria estava intimidada demais para encará-la, embora alguns olhassem para cima numa súplica silenciosa.
— Creio que o senhor conhece esses homens, não? — perguntou Lyrna.
Al Hestian olhou para os prisioneiros, sua máscara impassível inalterada.
— Não bem o suficiente para lamentar suas mortes, se for a intenção de Vossa Alteza me fazer testemunhar o seu assassinato.
Lyrna afastou-se dele e aproximou-se da beirada do passadiço, erguendo a voz.
— Vocês todos são culpados de traição e merecem ser executados sumariamente. Muitos sem dúvida alegarão lealdade em sua defesa, que prestaram serviços devido a um juramento que os prendia por toda a vida. Digo-lhes agora que isso não é uma defesa. Um juramento feito a um louco traiçoeiro não tem valor algum e é abandonado por homens de discernimento ou de verdadeira honra cavalheiresca. Vocês provaram que são desprovidos de ambas as coisas. — Ela fez uma pausa e olhou para Al Hestian, que encontrou o seu olhar com uma compreensão sombria. — Contudo — prosseguiu Lyrna —, a Fé nos ensina o valor do perdão para atos pelos quais haja verdadeiro arrependimento. E este Reino necessita de todas as mãos capazes de erguer uma espada. Somente por esses motivos eu lhes ofereço uma oportunidade de fazer um novo juramento, um juramento à sua Rainha. Jurem que me servirão e eu pouparei suas vidas. Mas saibam que sua sentença não será comutada. Vocês estão condenados e permanecerão condenados até o dia em que a batalha lhes tomar a vida. Vocês serão a Companhia Morta. Se alguém não deseja fazer esse juramento, que fale agora.
Ela aguardou, vendo-os estremecer e se curvarem de alívio. Um homem, um sujeito grande de peito largo e porte de cavaleiro, chorava abertamente, enquanto ao seu lado um homem magro, provavelmente um caçador, estremecia, com urina lhe escorrendo pelas pernas. Lyrna esperou por um minuto inteiro, mas nenhuma voz foi erguida.
— Meu senhor. — Ela se virou para Al Hestian, gesticulando para os homens abaixo. — Sua companhia o aguarda, caso a aceite.
Lakrhil Al Hestian continuou impassível durante algum tempo, e então respondeu com uma mesura discreta.
— Muito bem — disse Lyrna. — Além desses desgraçados, nossas patrulhas relataram que o interior encontra-se tristemente apinhado de criminosos, uma escória que está atacando aqueles que fogem dos volarianos. Estupradores e assassinos serão executados, é claro, mas o restante eu enviarei ao senhor. — Ela se aproximou dele e falou em voz baixa: — O senhor está vivo graças aos seus filhos. E saiba que não serei tão bondosa quanto meu pai caso o senhor traia este Reino de novo.
Lyrna voltou para o palácio ao entardecer, após passar o dia entre os refugiados recém-chegados, onde encontrou a mistura usual de nobres esfarrapados e plebeus desalojados, cada um com o próprio épico de infortúnios e sobrevivência. No entanto, assim como em Warnsclave, havia pouquíssimas crianças, e essas em sua maioria eram órfãs. Ela ordenou que fossem reunidas e levadas para os aposentos designados para as crianças aos cuidados do Irmão Innis, onde passou o resto da noite.
Era fantástico observar como o ânimo das crianças havia retornado tão depressa, enquanto corriam à sua volta, rindo e brincando ruidosamente, embora houvesse algumas sentadas separadas das outras, com olhos assombrados por horrores que não as abandonavam. Lyrna passou a maior parte do tempo com as crianças silenciosas, falando com gentileza e tentando fazer com que se expressassem, geralmente apenas com mínimo sucesso, apesar de um garotinho ter subido em seu colo e adormecido de imediato no momento em que ela abriu os braços para ele. Lyrna permaneceu sentada com ele à medida que a noite caía e as outras crianças iam para a cama, e acordou em algum momento após a meia-noite com uma sacudida gentil de Murel.
— A Senhora Davoka pediu a sua presença no pátio, Alteza.
Lyrna deitou o menino com cuidado numa das muitas camas vazias.
— Onde está Orena? — perguntou ela enquanto atravessavam os corredores.
— Ela pediu que a perdoasse, Alteza. A visão das crianças sempre a perturba, de modo que tomei o seu lugar.
Corações gentis geralmente ficam bem escondidos, pensou Lyrna.
No pátio ela encontrou Davoka abraçando uma figura esguia ao lado de um pônei robusto e sem sela, ladeada por dois guerreiros eorhil que assistiam com óbvia desconfiança.
— Lirhnah! — gritou-lhe Davoka. — Minha outra irmã veio com a palavra da Mahlessa.
Kiral não demonstrava nenhum vestígio da confusão deixada pela cura da Mahlessa sob a Montanha, sorrindo timidamente quando Lyrna se aproximou. A cicatriz havia curado bem, mas ainda era uma visão sinistra, uma linha funda que ia do queixo à testa, provocando lembranças desagradáveis da noite em que Lyrna lhe dera a marca.
— Serva da Montanha — cumprimentou Lyrna em lonak.
— Rainha. — Kiral a surpreendeu com um abraço caloroso. — E também irmã.
— Qual é a mensagem da Mahlessa?
— Ela não envia mensagem alguma, Rainha, apenas dois presentes. — Kiral ergueu um pequeno frasco de vidro contendo um líquido viscoso e escuro. — Ela acredita que isso será de serventia para você, e passou para mim o conhecimento para produzir mais.
Lyrna hesitou antes de aceitar o frasco, lembrando-se dos gritos da coisa que possuíra aquela garota quando uma única gota tocara a sua pele.
— Como deve ser usado? — perguntou ela.
— Ela disse que é uma chave para grilhões invisíveis e que a senhora saberia como melhor usá-lo.
Lyrna entregou o frasco a Murel com estritas instruções para que fosse mantido a salvo e que não fosse aberto sob nenhuma condição.
— E o outro presente? — perguntou ela a Kiral.
— Apenas eu mesma. — Ela olhou para o pátio ao redor com um olhar indagador. — Procuro alguém que perdeu a sua canção, para que ele possa ouvir a minha.