CAPÍTULO QUATRO

Reva

Em outros tempos, a casa de Lorde Brahdor devia ter sido um lugar imponente. Originalmente uma fortaleza menor, sucessivas gerações a haviam transformado numa extensa mansão de três andares, que continuava para além dos portões que outrora a cercaram, o fosso defensivo tendo sido tapado há muito tempo. Pelos campos ao redor estavam espalhados estábulos, depósitos e, Reva bem sabia, um celeiro grande do outro lado de uma colina próxima. Ela fora até lá mais cedo, parando o cavalo a uma boa distância da pilha dilapidada de madeira inclinada, agora sem telhado e com as portas caídas no chão tomado de ervas daninhas.

Reva estava sozinha, após ordenar que seus guardas continuassem até Alltor sem ela, alguns quilômetros antes. Encontrou Kernmill devastada e incendiada como esperado; todas as pessoas que espionara estavam mortas, capturadas por traficantes de escravos ou haviam fugido. A casa de Lorde Brahdor ficava uns três quilômetros ao norte e estava apenas um pouco mais conservada. A construção parecia ter escapado da atenção dos volarianos, possivelmente porque a sua ruína evidente havia sido causada antes da chegada deles; as telhas de ardósia foram arrancadas dos vários telhados pelas intempéries ou por aldeões gananciosos, as paredes estavam sujas e com a tinta descascando, e cada porta aparentemente havia desaparecido.

O que você espera encontrar aqui?, perguntou-se Reva com um suspiro mental antes de desmontar e amarrar a montaria na estaca de uma cerca. Era uma égua calma, muito mais dócil do que o pobre Bufo, que acabara na panela durante os primeiros dias do cerco. Ela deixou a égua pastando no capim longo e aproximou-se da casa, olhando pelas janelas sem vidros para a escuridão bolorenta do interior. Eles se encontravam aqui?, perguntou-se. Era aqui a base para as suas tramas? Os Filhos comparecendo para se apertarem diante do senhor devoto que falava verdades tão maravilhosas, sem jamais conhecerem a verdadeira natureza da coisa que lhes mentia e provavelmente ria consigo mesma o tempo todo.

Ela foi até uma abertura sem porta e entrou nas sombras geladas da casa. Apesar da penumbra, Reva ficou impressionada com a grandiosidade do átrio, onde uma escadaria elegante descia do andar superior até um piso quadriculado de mármore fino, e o barulho de suas botas ecoou pelo lugar. Ela examinou as paredes à procura de pinturas ou emblemas, mas encontrou apenas gesso nu e nenhum sinal que indicasse o caráter de seu último ocupante. Uma breve exploração dos outros cômodos do andar térreo não rendeu mais frutos, de modo que Reva subiu a escadaria com cuidado, encontrando-a surpreendentemente firme sob os pés e provocando somente leves rangidos.

O andar superior era mais frio, com vento entrando pelas janelas arruinadas e balançando trapos que já haviam sido cortinas. Ela foi de cômodo em cômodo, encontrando apenas poeira, cacos de vasos e pedaços de mobília arruinada. Num quarto, Reva parou ao avistar uma grande mancha no chão, obscurecida em parte por um tapete embolorado; havia uma cama coberta por teias de aranha encostada na parede. Ela conhecia uma mancha de sangue o suficiente para não precisar inspecioná-la mais de perto; alguém havia morrido ali, mas não recentemente.

Estava se virando para sair quando percebeu: um odor levemente acre lhe chegou às narinas, o cheiro de uma vela que acabara de ser apagada. Reva parou, fechou os olhos, nariz e ouvidos atentos a mais pistas. Foi apenas um rangido discreto nas vigas sobre a sua cabeça, mas ainda assim pesado demais para ter sido causado por um rato. Ela abriu os olhos, ergueu a cabeça para o teto e discerniu um buraco do tamanho de uma moeda de cobre, com uma luz bruxuleante e então ficando escuro quando algo o cobriu.

Reva foi para o corredor e procurou os degraus que levavam ao terceiro andar, encontrando-os bem menos preservados do que a grande escadaria. A balaustrada havia desaparecido e faltavam vários degraus, forçando-a a saltar e agarrar-se nos patamares para conseguir subir. Havia quatro quartos de sótão no último andar, e somente um tinha porta. Reva girou a maçaneta e, vendo que estava trancada, abriu-a com um chute e desembainhou a espada antes de entrar. Havia uma pequena porém bem-arrumada pilha de cobertores próxima à janela, o quarto protegido das intempéries por algumas tábuas de madeira, seguradas no lugar com barbante. Ao lado dos cobertores havia um toco de vela, e um filete fino de fumaça subia do pavio.

Reva passou os olhos pelo resto do quarto, encontrando uma pequena pilha de livros e outra de legumes variados no canto, cenouras e batatas, bolorentas e criando raízes, algumas com pequenas marcas de mordidas. Ela foi alertada pelo som de alguém prendendo a respiração, uma arfada brusca bem acima de sua cabeça.

Reva deu um passo adiante e algo aterrissou às suas costas. Ela girou nos calcanhares, a espada descrevendo um arco preciso e se chocando com uma pequena faca, fazendo a lâmina voar para as sombras. A dona da arma olhou para ela com olhos arregalados num rosto sujo emoldurado por uma cabeleira de cachos emaranhados.

— Quem é você? — perguntou Reva.

O rosto da garota manteve a mesma expressão boquiaberta por um segundo, e então se transformou num rosnado. Ela sibilou e jogou-se sobre Reva, suas mãos como garras, unhas longas tentando arranhar o rosto da intrusa. Reva largou a espada, desviou-se do ataque e agarrou a garota pela cintura, segurando-lhe os braços enquanto ela se debatia, rosnando e cuspindo. Ela a imobilizou enquanto a garota continuava a lutar, sentindo a forma esquálida por debaixo das roupas esfarrapadas e ficando espantada com a ferocidade de alguém tão próximo da inanição. A garota acalmou-se após se debater por uns dois minutos, largando-se exausta nos braços de Reva, soltando uma lamúria de fúria impotente.

— Desculpe a intrusão — disse Reva. — Meu nome é Reva. Quem é você?

— Foi Ihlsa quem mandou você?

Reva colocou mais madeira no fogo e examinou o conteúdo da panela, um velho recipiente de ferro encontrado em meio aos restos despedaçados da cozinha da mansão. A garota a seguira de bom grado depois que Reva a soltou, embora tivesse ficado num silêncio emburrado até então, sentada diante dela na frente da lareira enquanto Reva empilhava pedaços quebrados da mobília para usar como combustível. Ela enchera a panela com aveia dos seus alforjes e acrescentara um pouco de mel e canela para dar gosto, comprados de um soldado nilsaelino em Varinshold pelo preço de uma espada curta e uma adaga de um oficial volariano. Longas semanas marchando com a Cruzada da Rainha fizeram com que aprendesse muito sobre o caráter dos vários súditos do Reino, e geralmente era possível contar com os nilsaelinos para fornecerem alguns luxos pelo preço certo.

— Quem é Ihlsa? — perguntou ela, mexendo o mingau.

A garota empertigou-se um pouco, erguendo o queixo e tentando mostrar um ar de nobreza.

— Minha criada.

— O que faz de você a senhora desta casa?

— Sim. — O rosto da garota fechou-se um pouco. — Desde que minha mãe morreu.

— Você é filha de Lorde Brahdor?

A expressão da garota mudou bruscamente de tristeza para puro medo.

— Você conhece o meu pai? Ele vai voltar?

Reva sentou-se e olhou nos olhos assustados da menina.

— Como você se chama, garota?

Ela tentou algumas vezes antes de conseguir formular uma resposta, a palavra saindo num sussurro hesitante:

— E-Ellese.

— Eu tenho que lhe contar, Ellese. Seu pai morreu. Foi morto em Alltor, junto com muitos outros.

Não havia pesar no rosto da garota, apenas um alívio que transpareceu em sua postura. Ela se abraçou e abaixou a cabeça até os joelhos, o som baixo de choro saindo de trás da máscara de cabelos emaranhados. Reva não percebera até então quão jovem ela era, mas agora via que a garota não podia ter mais de dez anos, e era muito magra.

Reva serviu um pouco de mingau numa tigela de madeira e a estendeu para a garota em prantos.

— Aqui. Você precisa comer.

Os soluços pararam após um momento, o cheiro do mingau provocando um ronco audível da barriga de Ellese quando ela ergueu a cabeça e pegou a tigela.

— Obrigada — disse ela em voz baixa antes de começar a atacar o mingau de forma voraz.

— Devagar — advertiu Reva. — Se comer rápido demais de barriga vazia, você passará mal.

A garota passou a engolir mais devagar e assentiu com a cabeça.

— O Senhor Feudal o matou? — perguntou ela quando a tigela estava quase vazia.

— O que a faz perguntar isso?

— Ihlsa disse que o Senhor Feudal levaria a justiça do Pai a alguém que era… amaldiçoado.

— Como ele foi amaldiçoado?

— Aconteceu quando eu era pequena. Antes ele era gentil, pelo que me lembro. Mas ele adoeceu. Minha mãe disse que era uma febre do cérebro. Eu lembro que ela me levou até o quarto deles para que eu me despedisse. Ele havia caído num sono profundo e ela disse que ele nunca acordaria. — Ellese olhou para o mingau, raspou o que restava na tigela e a colocou de lado. — Mas acordou.

— E ele estava diferente?

— Meu pai não era mais o meu pai. Ele… machucava a minha mãe. Todas as noites. Eu podia ouvir… através das paredes. Ele a machucou durante anos. — O rosto dela se contraiu e ela começou a chorar de novo, as lágrimas escorrendo em meio à sujeira do rosto.

— Ele alguma vez… machucou você também?

A garota abaixou mais uma vez a cabeça, e os seus soluços contínuos eram toda a resposta de que Reva precisava. Passado algum tempo, ela tornou a falar, forçando as palavras a saírem:

— Ele nos mantinha trancadas quando saía, e a casa ia caindo aos pedaços à nossa volta. Um dia antes de ele partir, ele… ele a matou. Ele também tentou me matar, mas Ihlsa agarrou a minha mão e fugimos. Corremos para a floresta e nos escondemos por muito tempo. Quando voltamos, não tinha ninguém na casa… além de minha mãe. Fomos até a aldeia, mas havia soldados lá, não da Guarda do Reino ou dos homens do Senhor Feudal. Eles estavam fazendo coisas horríveis. Corremos de volta para casa e nos escondemos nas vigas. Eles vieram e roubaram coisas, quebraram o que não queriam, mas não nos encontraram. Ihlsa saía para procurar comida para nós a cada poucos dias. Um dia ela não voltou.

Reva ficou olhando enquanto ela chorava, sua cabeça tomada de imagens de uma garota tremendo de frio no escuro e encolhida no canto de um celeiro, agarrada à cenoura que roubara no dia anterior. Ela não queria comer tudo de uma vez porque talvez não houvesse nenhuma no dia seguinte.

— Ele não foi morto pelo Senhor Feudal — disse ela a Ellese. — Foi morto por um soldado a serviço da Rainha. Se serve de consolo, a morte dele não foi rápida. — Reva pegou a bolsa e retirou de dentro o estojo de pergaminho que continha o esboço que Alornis fizera do sacerdote. — Você já viu este homem aqui? — perguntou ela, estendendo o esboço a Ellese.

A garota ergueu a cabeça e passou uma manga esfarrapada pelo rosto antes de pegar o pergaminho, assentindo ao olhar para a imagem.

— Algumas vezes. Meu pai o chamava de santo amigo. Eu não gostava do jeito como ele me olhava. Minha mãe também não. Ela me levava para o andar de cima sempre que ele aparecia. Mas uma vez eu os ouvi discutindo e fui até o topo da escada para escutar. A voz do meu pai estava baixa demais para eu ouvir, mas percebi que estava diferente, que não parecia nada com ele. O outro homem falava mais alto, com raiva. Ele disse alguma coisa sobre anos de esforços desperdiçados. — Os olhos dela foram para o rosto de Reva por um segundo. — Ele ficava dizendo coisas sobre uma garota, uma garota de certa importância, acho.

— O que ele disse?

— Que o mart… — A voz de Ellese foi sumindo à medida que ela se atrapalhava com a palavra.

— Martírio? — sugeriu Reva.

— Sim. Martírio. Ele disse que o martírio da garota devia ocorrer pela mão de seu tio, quando houvesse mais olhos para testemunhá-lo.

A mão de seu tio. Reva soltou um grunhido de contentamento sombrio. Eles acharam que Tio Sentes me mataria. A chegada de Vaelin fez a criatura do Aliado mudar de planos. Quanto eles o temem?

— Obrigada. — Ela tirou o esboço da mão da garota, guardou no estojo e levantou-se, recolhendo as suas coisas e afivelando a espada. — Se há mais alguma coisa que você queira levar, pegue agora.

A garota ergueu a cabeça de súbito, os olhos mais uma vez arregalados e temerosos.

— Para onde você vai me levar?

— Para Alltor. A não ser que você queira ficar aqui.

— O que aconteceu com as muralhas? — perguntou Ellese três dias depois, quando chegaram ao topo da colina a leste de Alltor. Ela estava montada na égua que Reva, a pé, puxava pelas rédeas. As pernas da garota estavam fracas demais para que ela caminhasse e a égua não era forte o suficiente para aguentar o peso das duas. No entanto, refeições regulares em muito ajudaram a levantar o ânimo de Ellese e a provocar uma torrente de perguntas.

— Elas foram quebradas — respondeu Reva.

— Pelo quê?

— Pedras grandes arremessadas por máquinas grandes.

— Onde elas estão agora?

— Foram queimadas.

— Por quem?

— Uma por mim, as outras duas por um monte de piratas.

— Por quê?

— Eles estavam muito bravos. — Reva olhou para o rio, cheio pelas chuvas de inverno, as águas escuras ocultando os barcos que transportaram as terríveis máquinas junto com sabia o Pai quantos cadáveres. — E a Rainha pediu que fizessem isso.

— Ela é muito bonita? Minha mãe foi até Varinshold uma vez. Ela disse que a Princesa Lyrna era a mulher mais linda que ela já tinha visto.

Em Warnsclave Reva vira a Rainha com os órfãos, o sorriso que ela lhes mostrava tão diferente do que mostrava a todos os outros, um sorriso de afeição verdadeira e enorme compaixão. Mais tarde, no mesmo dia, ela recebeu notícias sobre um bando de fora da lei que estava atacando refugiados a oeste e ordenou a Lorde Adal que os perseguisse, poupando um a cada três capturados, e esses foram chicoteados antes de serem forçados a servirem como carregadores. Ela também se despedira do comandante da Guarda do Norte com um sorriso naquele dia.

— Sim — disse ela a Ellese. — Ela é muito bonita.

Reva viu andaimes nas muralhas ao atravessarem o passadiço até o portão principal, amontoados em volta das brechas, onde era possível ver homens içando pedras.

— Abençoada Senhora Reva! — O sargento da Guarda da Casa no portão se ajoelhou diante dela, imitado por seus homens. — Graças ao Pai pelo seu retorno sã e salva.

— Pode me chamar apenas de senhora — disse Reva, avistando a cidade. Os escombros se foram, mas ainda restam muitas casas arruinadas. — Ou só de Reva, se lhe convier.

O sargento soltou uma risada de perplexidade ao recuar de cabeça baixa.

Ellese inclinou-se para a frente na sela e sussurrou discretamente:

— Quem é você?

— Eu lhe disse quem sou. — O olhar de Reva recaiu sobre um aglomerado de pessoas nas ruas além do portão, largando ferramentas e indo em sua direção, as vozes já erguidas num júbilo de boas-vindas. — Sargento, creio que precisarei de uma escolta até a mansão.

Veliss a cumprimentou com uma mesura formal e um abraço recatado.

— Fiquei ausente tempo demais — sussurrou Reva, sentindo as faces corarem.

— Concordo completamente, minha senhora. — Veliss virou-se para Ellese, que estava parada não muito longe delas e se contorcendo um pouco sob o escrutínio. A multidão do lado de fora da mansão era grande e barulhenta em sua aclamação. Notícias da libertação de Varinshold e do extermínio do exército volariano haviam se espalhado rapidamente por todos os cantos do Reino e a chegada de Reva pareceu servir de estopim para uma celebração geral da vitória.

— Esta é a Senhora Ellese — disse Reva, fazendo sinal para a garota se aproximar. — Herdeira da propriedade de Lorde Brahdor e agora Protegida da Senhora Governadora. Encontre aposentos adequados para ela, por favor.

— É claro. — Veliss estendeu a mão a Ellese, que se adiantou e a tomou após hesitar por um momento.

— Pensei que Lorde Sentes governasse aqui — disse a garota.

— Ele morreu. — Reva olhou para a multidão que ainda vibrava. — Declare feriado — disse ela a Veliss. — Este será para sempre o Dia da Vitória. E distribua aquele estoque escondido de vinho que você acha que eu não sei que existe.

— As muralhas — disse ela mais tarde quando ficaram sozinhas na biblioteca e Ellese dormia numa cama grande no andar de cima.

— Estão sendo reparadas em virtude do apelo popular — explicou Veliss. — O povo não se sente seguro sem elas. Providenciei a reconstrução das maiores moradias quando foi possível, mas eles queriam as muralhas restauradas, e quem sou eu para lhes negar isso?

— O tesouro?

— Vai surpreendentemente bem. Os soldados volarianos estavam repletos de bens saqueados e mandei Arentes colocar os seus homens para recolher o que pudessem antes que os nilsaelinos ou fora da lei chagassem primeiro. Ainda assim, é custoso reconstruir uma cidade e, quando isso for terminado, temos de cuidar de um feudo parcialmente devastado.

— A Rainha fez promessas sólidas sobre os custos da reconstrução. Os Confins do Norte aparentemente produzem agora mais ouro do que vitríolo azul. Mas pode levar alguns meses para recebermos.

— Bem, não devemos passar fome, graças à Senhora Al Bera e a Lorde Darvus. Porém, será difícil no inverno. — Ela se sentou ao lado de Reva no divã perto da lareira e pegou a mão dela, seus dedos se entrelaçando numa intimidade automática.

— E o Leitor? — perguntou Reva, encostando a cabeça no ombro de Veliss.

— Envia um mensageiro toda semana com conselhos severos sobre como melhor governar o feudo de acordo com as doutrinas dos Dez Livros. Às vezes são endereçadas ao seu avô, outras ao seu bisavô, e raramente fazem muito sentido. Semana passada ele dormiu durante o próprio sermão. Não que importasse, já que a catedral estava praticamente vazia.

— Uma boa escolha, então.

— Parece que sim.

— Onde está Arentes?

— Em algum lugar perseguindo os últimos Filhos e com sorte dando um jeito num bando de fora da lei nos vales a oeste. Eles estão se tornando incômodos. A guerra tende a ajudar apenas os corações mais vis.

— O Livro da Razão, versículo seis. — Reva sorriu e lhe beijou o rosto. — Está sendo seduzida pelo amor do Pai, Honorável Senhora Conselheira?

— Não. — Veliss passou uma das mãos pelo cabelo dela, ainda mais longo agora, já que Reva não conseguia se lembrar de quando fora a última vez que o cortara. — Só fui seduzida uma vez. E para mim é mais do que suficiente.

Reva ficou tensa ao pensar na reação que suas próximas palavras receberiam, muito tentada a deixar para falar na manhã seguinte, mas ciente de que a resposta seria ainda pior se o fizesse.

— Amanhã convocarei uma assembleia geral na praça, na qual lerei o Decreto de Recrutamento da Rainha.

Veliss tirou a mão do cabelo dela, a cautela visível em seus olhos.

— Recrutamento?

— A Rainha está criando um exército ainda maior e uma frota para levá-lo às costas volarianas.

Veliss levantou-se do divã e foi até a lareira, onde agarrou a cornija.

— A guerra foi vencida.

— Não, não foi.

— Devo supor, minha Senhora Governadora, que a senhora zarpará com a Rainha e sua poderosa frota?

Reva resistiu à tentação de tocá-la, notando a brancura dos nós dos dedos dela no consolo da lareira.

— Sim.

Veliss sacudiu a cabeça.

— Isso é loucura. O seu pai, apesar de suas inúmeras maquinações, jamais teria sonhado com tamanha insensatez.

— Precisamos impedir que eles voltem. É o único jeito.

— Palavras de Lorde Al Sorna ou suas?

— Pensamos da mesma forma.

— Ou você só está ansiosa por outra guerra? Eu vejo isso, sabia? O modo como você fica impaciente para partir quando está aqui, quão entediada você está com este lugar, comigo.

Apesar de as palavras terem sido ditas com calma, havia verdade suficiente nelas para fazer Reva retrair-se.

— Você nunca irá me entediar. Se pareço impaciente, é porque não fui feita para governar. E já vi o suficiente da guerra, acredite ou não. Mas isso precisa ser feito, e preciso de sua ajuda para que seja feito do jeito certo.

— O que é recrutamento?

Reva virou-se e viu Ellese parada na porta da biblioteca, enrolada num cobertor e esfregando os olhos.

— Não conseguiu dormir?

A garota assentiu e Reva deu tapinhas no divã ao seu lado, e Ellese foi se sentar ao lado dela.

— Eu tive um sonho — respondeu ela. — Meu pai estava vivo de novo, procurando por mim na nossa casa.

— Foi só um sonho — disse Reva, afastando da testa dela o cabelo não mais emaranhado. — Sonhos não podem machucá-la.

Ellese olhou para Veliss, que ainda estava parada junto à lareira, empertigada e olhando para outro lado.

— O que é recrutamento?

Os ombros de Veliss se curvaram e ela deu um sorriso cansado à garota.

— A pior das coisas, querida. Uma barganha difícil.

— Todos os homens saudáveis entre dezessete e 45 anos devem comparecer em Alltor até o último dia do mês de Interlasur, trazendo consigo quaisquer arcos ou outras armas que possuírem. Qualquer mulher sem filhos e da mesma idade também pode ser voluntária. Todos os que servirem serão pagos como a Guarda do Reino e receberão uma pensão pelo resto de suas vidas ao término da guerra. E essa pensão será paga às viúvas, aos viúvos ou aos filhos sobreviventes de todos que sacrificarem suas vidas nesta causa.

Reva calou-se e entregou o pergaminho a Veliss, tentando não deixar óbvio demais o escrutínio que fazia da multidão. Veliss colocara um engradado no degrau mais alto da Catedral, fornecendo-lhe uma visão completa da multidão, cerca de cinco mil pessoas na praça e mais nas ruínas além. Houve alguns murmúrios, a surpresa evidente no mar de rostos à sua frente, mas na maior parte as pessoas ficaram em silêncio, a expressão predominante de expectativa. Eles aguardam as palavras da Senhora Abençoada, pensou Reva, mantendo a careta de desagrado longe do rosto.

— Nós sofremos muito — disse a eles. — Foram muitas as nossas privações e longa a nossa luta. Eu gostaria de vir até vocês com notícias de paz, gostaria de lhes dizer que as nossas batalhas acabaram e que podemos por fim descansar, mas isso faria de mim uma mentirosa. Vocês acreditaram na minha palavra quando o inimigo estava em nossas muralhas, e eu lhes imploro que acreditem de novo agora. — Ela fez uma pausa, reunindo forças, suas próprias palavras ecoando na cabeça… Isso faria de mim uma mentirosa… — E acreditem que ouvi a voz do Pai. — Ela colocou nas palavras a força que conseguiu reunir, ouvindo-as ecoar nas muralhas da cidade arrasada. — E Ele não permitirá que se desviem deste caminho. Muitos de vocês ouviram falar do chamado Décimo Primeiro Livro. Eu lhes digo agora que esse livro é uma mentira, digno apenas do seu desprezo. Mas o Pai determinou que haverá um novo livro, o Livro da Justiça, escrito pela própria mão do Pai conosco como seu poderoso instrumento!

Não foi um brado, e sim mais um rugido, instantâneo e selvagem, que se ergueu da garganta de cada uma das pessoas presentes. Havia ódio em seus rostos agora, cada cabeça sem dúvida repleta de terríveis lembranças de entes queridos mortos e casas incendiadas, um ódio liberado pela Senhora Abençoada que falava com a voz do Pai. Nós nos banhamos com o sangue deles, pensou Reva ao ser sacudida pelo som. E mesmo assim não foi o suficiente.

Ela desceu do engradado e parou ao avistar Ellese, que enfiava a cabeça na saia de Veliss, o rostinho tenso e com lágrimas de medo enquanto tentava se esconder do urro da multidão. Reva ajoelhou-se ao lado dela e enxugou o rosto da garota.

— Está tudo bem — disse ela. — Eles só estão felizes em me ver.

* * *

Ela aguardou dois dias até Arentes retornar, cumprimentando o velho comandante da guarda com um abraço caloroso.

— Já me perdoou, meu senhor?

— Minha senhora ordena e eu obedeço — respondeu ele num tom um pouco ríspido, embora ela conseguisse detectar o vestígio de um sorriso por trás do bigode. — Além disso — continuou, gesticulando para a fila de homens acorrentados que estavam reunidos no passadiço —, capturar os seus inimigos é meu dever sagrado, do qual não me esquivo por nenhuma glória.

— Não havia glória a se ganhar. Apenas mais sangue. — Ela passou os olhos pelos prisioneiros, cerca de vinte homens extenuados em variadas condições andrajosas, alguns amedrontados e curvados de exaustão, outros a encarando com desafio e obstinação no olhar. — Os Filhos.

— Além de alguns fora da lei. Achei melhor enforcá-los diante da população, fazer deles um exemplo.

— A menos que tenham estuprado ou assassinado, vou enviá-los à Rainha. Ela quer muito fazer uso de todos os homens, mesmo daqueles que não valem nada.

— As notícias sobre o decreto se espalharam rapidamente. Nem todos ficaram felizes em ouvi-las.

— Ficarão quando ouvirem as palavras do Pai. Receio que precisarei do senhor e de seus homens amanhã. Está na hora de ver o meu feudo por inteiro.

Ele fez uma mesura calculada.

— É claro, minha senhora. — Arentes olhou com ódio para os prisioneiros. — O que você quer que façamos com os Filhos?

— A Senhora Veliss irá interrogá-los. Quando eu voltar, faremos justiça.

Ellese se agarrara a ela e chorara de novo, implorando para que a deixasse ir junto. Reva fora firme ao ordenar que ela ficasse com Veliss, mais firme do que o necessário, a julgar pelo choro mais alto da garota.

— A maternidade tem um preço — disse-lhe Veliss, segurando Ellese contra o corpete.

Não sou a mãe dela. Reva conteve-se para não dizer aquelas palavras e agachou-se para afastar o cabelo dos olhos de Ellese.

— Obedeça direito à Senhora Veliss e faça as suas lições. Voltarei logo.

Ela deixou Arentes escolher o caminho que seguiriam, aceitando o fato de ele conhecer melhor o feudo.

— Oeste e depois sul, creio eu, minha senhora — aconselhou ele. — Os habitantes do oeste são as pessoas menos devotas de Cumbrael, então podemos muito bem realizar a tarefa mais difícil primeiro.

Havia amplas evidências de atividade volariana a oeste, com uma procissão de aldeias em ruínas e ocasionais pilhas de cadáveres putrescentes em meio aos vinhedos. Em cada ocasião, Reva ordenava que parassem e enterrassem os mortos, as palavras apropriadas ditas pelo único sacerdote que os acompanhava, um sujeito magro de meia-idade escolhido por sua coragem renomada durante o cerco e sua natureza taciturna. Ela não se sentia nem um pouco disposta a sermões ultimamente. O sacerdote silencioso é o sacerdote bom, gracejou ela consigo mesma, ponderando se deveria anotar aquilo.

A devastação diminuía à medida que rumavam mais para oeste, desaparecendo por completo na região das colinas na fronteira nilsaelina. Ela soube por Veliss que aquela era uma das regiões mais prósperas de Cumbrael, o vinho sendo da melhor qualidade e as pessoas famosas por celebrações alegres e uma aderência maleável aos Dez Livros. Arentes a guiou até a maior cidade da região, essencialmente um forte extenso cercado por muralhas impressionantes que acompanhavam a configuração das encostas cobertas de vinhedos ao redor, numa faixa ininterrupta de pedra.

— É fácil perceber por que os volarianos a deixaram em paz — comentou Arentes ao cavalgarem até os portões.

— Eles teriam chegado aqui com o tempo — disse Reva. Ela esperava alguma dificuldade nos portões, afinal, era bem possível que aquela gente não fizesse ideia de quem ela era, mas encontrou a guarda da cidade já enfileirada e a passagem aberta. Um homem robusto de manto longo estava ajoelhado sob o arco do portão, de braços abertos em súplica.

— Lorde Mentari, o feitor da cidade — explicou Arentes. — É dono da maioria dos vinhedos num raio de quilômetros. Ele tinha grande estima pelo seu avô.

— Mas não por meu tio? — perguntou Reva.

— Seu tio era muito mais escrupuloso no tocante à cobrança de impostos e menos inclinado a favorecer velhos amigos.

— Que sorte, então, que eu só tenha amigos novos.

— Senhora Abençoada! — Lorde Mentari entrelaçou as mãos quando Reva se aproximou, desmontando e olhando em volta para a cidade, e achando estranho ver tantas construções intactas após semanas vendo ruínas. — A senhora traz as palavras do Pai aos nossos ouvidos indignos.

Reva olhou de testa franzida para o semblante de olhos arregalados do homem, esperando ver algum brilho de maquinação, mas o seu assombro parecia completamente genuíno.

— Todos os ouvidos são dignos das palavras do Pai — disse Reva. — Mas ele não exige que o senhor se ajoelhe, e eu também não.

O lorde robusto levantou-se, embora suas costas permanecessem curvadas de forma servil.

— A história de sua vitória já é uma lenda — comentou ele de forma efusiva. — A gratidão de nosso humilde lar é imensurável.

— Fico feliz em saber, meu senhor. — Ela ergueu o estojo de pergaminho onde estava guardado o decreto da Rainha. — Pois trago o modo como ela pode ser expressa.

Foram necessários dois dias para reunir a população da região ao redor para ouvir as palavras da Senhora Abençoada, dois dias aguentando o banquete que Mentari organizou em sua homenagem e ouvindo uma série de petições, que era de longe a sua ocupação menos favorita. Reva julgou apenas os casos mais claros e ordenou que Arentes anotasse os outros para enviá-los a Veliss. Apesar do conforto e da segurança aparentes desfrutados por aquelas pessoas, as petições tornavam evidente o fato de que a guerra não precisava chegar até a porta de alguém para causar mal. Havia reclamações em abundância sobre refugiados do leste roubando alimentos e gado ou ocupando terras que não lhes pertenciam, e ainda que os exércitos de Tokrev não tivessem marchado até ali, o mesmo não podia ser dito de seus traficantes de escravos, e mães chorosas contavam histórias de filhos e filhas levados em ataques. Apesar de toda a tristeza daquela gente, Reva sentia um alívio sombrio com aquelas histórias, uma vez que a sua tarefa era facilitada pelo talento dos volarianos para despertar o ódio em cada alma que tocavam.

Ela leu o decreto ao entardecer do segundo dia, no pórtico da casa de Mentari, enquanto a população se aglomerava no espaço abaixo, uma avenida larga que circundava uma elegante fonte de bronze. Dessa vez os murmúrios foram mais altos quando ela terminou, e as expressões da multidão não tão arrebatadas. Porém, apesar do desconforto evidente, não houve manifestações aparentes de discordância ou gritos de desaprovação, e inúmeras almas devotas deram voz à sua aprovação quando a Senhora Abençoada contou a sua mentira.

— Um décimo primeiro livro — sussurrou Lorde Mentari quando ela desceu, a multidão ainda vibrando. — E pensar que vivi para ver tal coisa.

— A época em que vivemos está mudando, meu senhor. — Reva pegou o livro que Arentes lhe estendera e conferiu as notas que Veliss fornecera sobre aquela região. — Minha Conselheira Honorável calcula a sua cota com um mínimo de dois mil homens com idade para lutar, levando em consideração os problemas recentes e o censo realizado há cinco anos. Tenho certeza de que o Pai lhe sorrirá caso ela seja excedida.

Foi necessária boa parte de um mês para percorrerem todo o feudo, cidade após cidade, aldeia após aldeia, algumas repletas de refugiados, outras quase vazias, visto que muitos dos habitantes haviam fugido antes do esperado ataque volariano. Reva percebeu que a sua mentira era recebida de mais boa vontade nos lugares onde abundavam os desalojados, muitos dos quais haviam experimentado em primeira mão a natureza do inimigo. Mesmo em lugares onde ninguém havia sido prejudicado pela guerra existiam muitos ouvidos dispostos às palavras da Senhora Abençoada, embora nem todos estivessem tão abertos à mensagem do Pai.

— Tenho quatro filhos e a Rainha quer três deles — disse uma mulher corpulenta numa aldeia a sudoeste da terra dos rios. As pessoas daquela área eram famosas por sua robustez, ganhando a vida com as armadilhas para enguias que usavam na miríade de canais que circundavam os seus lares, em povoados em geral limitados a poucas casas e raramente acompanhados por uma igreja. A mulher olhava irritada para Reva enquanto os aldeões reunidos concordavam aos murmúrios, embora alguns estivessem visivelmente intimidados por Arentes e os seus cinquenta guardas. A mulher corpulenta, contudo, não lhes dava a menor atenção. — Como uma família vai se alimentar sem mãos para remar os barcos e puxar as armadilhas?

— Ninguém passará fome — assegurou-lhe Reva. — Quaisquer alimentos adicionais que sejam necessários serão fornecidos de graça pela Casa Mustor e pela Rainha.

— Ouvi promessas da sua Casa antes — retorquiu a mulher. — Quando meu marido foi levado de arrasto e teve a garganta cortada por aqueles asraelinos desgraçados. Agora você quer que a gente lute por eles.

— O feudo foi salvo por mãos asraelinas — disse Reva. — E por nilsaelinos, por gente dos Confins do Norte, pelos seordah e pelos eorhil. Em Varinshold, lutei ao lado de meldeneanos e renfaelinos. A velha era acabou. Agora lutamos uns pelos outros.

A mulher apontou um dedo para Reva, sua voz tornando-se um rugido alto e raivoso:

— Você luta por eles, garota. Eu não conheço eles, nunca vi esses… volaranos de que você fala, e qualquer mentiroso pode dizer que fala com a voz do Pai.

Os guardas ficaram alertas de imediato e o seu sargento adiantou-se com a espada parcialmente desembainhada até Reva lhe gritar para parar.

— Ela está cometendo uma blasfêmia e traição, minha senhora — disse o sargento, o rosto rígido de fúria ao fulminar com o olhar a mulher na multidão, que agora se encontrava sozinha após os outros aldeões terem recuado, qualquer solidariedade que havia antes esquecida de forma abrupta. Apesar da falta de apoio, a mulher não cedeu, encarando Reva sem nenhum sinal de medo ou arrependimento nas feições curtidas quando o sargento continuou a falar: — Você não estava em Alltor. Não viu o que a Senhora Abençoada fez por nós. Se não fosse por ela, você, os seus filhos e esta aldeia hoje seriam apenas cinzas e ossos. Você deve tudo a ela, assim como todos nós.

A mulher não tirou os olhos de Reva.

— Então é melhor me enforcar, senhora. Pois os meus filhos não são seus para levar, pela palavra do Pai ou não.

Os olhos de Reva percorreram a multidão, avistando três jovens mais ao fundo, dois deles visivelmente intimidados pelas circunstâncias, de cabeças baixas e sem dúvida rezando para que o confronto terminasse, mas o mais alto olhava para a mulher corpulenta com um ressentimento palpável.

— Seus filhos não podem falar por si mesmos? — perguntou Reva à mulher. — Tanto os Dez Livros quanto a Lei do Feudo decretam a maioridade aos dezessete anos. Se os seus filhos forem adultos, que eles façam a escolha.

— Meus filhos conhecem os seus deveres… — começou a mulher, mas se calou quando o mais alto dos três ergueu a mão e abriu caminho em meio à multidão.

— Allern Varesh, minha senhora — disse ele com uma mesura. — Ofereço os meus serviços conforme o Decreto da Rainha.

— Pare com isso! — rosnou a mulher, adiantando-se para esbofetear a cabeça do jovem e então voltando a olhar para Reva com raiva. — Ele não é seu para levar!

Reva estava prestes a simplesmente ignorá-la e agradecer o jovem por sua lealdade, mas parou ao ver as lágrimas nos olhos da mulher, como ela se colocou diante do filho para protegê-lo. Reva desceu do carroção e aproximou-se da mulher, parando diante dela.

— Seu nome?

A mulher rangeu os dentes e enxugou os olhos com dedos grossos.

— Realla Varesh.

— Você perdeu muito, Realla Varesh. E me dói pedir mais. — Ela apontou para Allern, que ainda estava ajoelhado. — Portanto, em reconhecimento pelo seu sacrifício, a cota desta aldeia será considerada preenchida por completo pelos serviços deste homem.

A mulher se curvou e levou as mãos ao rosto. Pela reação de choque do filho e da multidão, Reva deduziu que provavelmente era a primeira vez que alguma alma viva a vira chorar.

— Lorde Arentes — disse Reva.

— Minha senhora!

— Este jovem tem altura suficiente para um guarda, não acha?

Arentes lançou um olhar rápido de avaliação a Allern.

— Praticamente, minha senhora.

— Muito bem. Allern Varesh, você agora faz parte da Guarda da Casa da Senhora Governadora Reva Mustor. — Ela olhou de novo para a mãe do homem, que soluçava. — Você tem uma hora para se despedir. Lorde Arentes lhe encontrará um cavalo.

Ela retornou a Alltor seguida por quinhentos homens e cinquenta mulheres, todos voluntários dispostos a marchar ao comando da Senhora Abençoada. Podiam ter sido mil, mas não havia provisões nem cavalos de carga suficientes para tantos. As terras ao sul de Alltor foram as que renderam mais recrutas e ouvidos dispostos à sua mentira, após terem sofrido tanto nas mãos dos saqueadores volarianos. Os habitantes daquela região haviam travado a própria guerra entre os afluentes e as margens arborizadas do Ferrofrio, então estavam de posse de uma quantidade considerável de armas apreendidas. De acordo com Arentes, a região sempre fora o centro da arqueria cumbraelina; os primeiros arcos longos haviam sido feitos dos teixos que proliferavam na floresta densa. Em virtude da ameaça volariana, companhias havia muito desmanteladas, outrora a espinha dorsal da força militar cumbraelina, haviam sido restauradas sob o comando de capitães veteranos, que durante meses participaram de um jogo mortal de perseguições entre as árvores até a libertação de Alltor.

Reva ordenou que as companhias permanecessem em formação e se fortalecessem antes de se reunirem em Alltor na primavera. Apesar de todo o fervor do comprometimento deles, ela os achava inquietantes, de olhares firmes e aspecto taciturno. Os vários corpos putrescentes de volarianos capturados pendurados na floresta eram evidência de uma sede por vingança longe de estar saciada. O que eles causarão quando atravessarmos o oceano?, perguntou-se Reva, procurando em vão na memória por uma passagem em qualquer um dos Dez Livros que ajudasse com pensamentos vingativos.

Ellese a recebeu com muita alegria, envolvendo sua cintura com braços finos enquanto reclamava das lições intermináveis de Veliss.

— Ela me faz ler todas as manhãs e todas as noites. E escrever também.

— São habilidades muito importantes — disse Reva, soltando com gentileza os braços da garota. — Ainda assim, também tenho algumas coisas para lhe ensinar, no devido tempo.

Ellese franziu o rosto, agora não mais emaciado, embora ainda houvesse um aspecto levemente encovado nos olhos.

— Que coisas?

— Habilidades com o arco e a faca. Com a espada também, quando você for mais velha. Apenas se você quiser.

— Eu quero. — Ela pulou de excitação, agarrando a mão de Reva e a puxando na direção da mansão. — Ensine-me agora!

Reva notou a expressão séria no rosto de Veliss e fez a garota parar.

— Amanhã — disse ela. — Tenho outra tarefa hoje.

— Ainda não tem nenhum nome para mim?

O sacerdote de nariz quebrado lançou um olhar cansado para ela e sacudiu a cabeça. Eles estavam enfileirados no passadiço, doze homens esfarrapados, sujos do cativeiro nos porões da mansão, alguns cambaleando um pouco, uma vez que os efeitos das diversas misturas herbáceas de Veliss podiam durar dias. As anotações que ela acumulara durante os interrogatórios eram detalhadas, quase quinhentas páginas de nomes, datas, encontros, assassinatos, suficientes para expor a Igreja do Pai do Mundo como um ninho de traidores, do Leitor ao Bispo, talvez suficientes para destruí-la por completo.

— Ele realmente achou que podia fazer isso? — perguntou Reva ao sacerdote sem nome. — Destruir a Casa Mustor e governar o feudo em nome do Pai?

O sacerdote ergueu a cabeça e engoliu em seco enquanto reunia coragem.

— Uma empreitada sagrada, abençoada pelo Pai.

— Bênçãos garantidas por um miserável a serviço de uma criatura das Trevas. — Reva recuou e ergueu a voz, olhando para cada rosto. — Vocês são tolos, tão enfurnados nos Dez Livros que não conseguem nem mesmo ver a verdade contida neles. O Pai não abençoa engodos e assassinatos, o Pai não auxilia aqueles que torturam crianças para fins vis.

Ela se calou ao ser tomada por aquela sensação, a mesma fúria que a possuíra durante o cerco, a fúria que a fizera cortar as gargantas de traficantes de escravos e as cabeças de prisioneiros. O sacerdote sem nome estremeceu, engolindo em seco de novo ao sufocar um vômito causado pelo terror. Arentes estava de pé atrás da fileira agrilhoada, com uma companhia inteira da Guarda da Casa de espadas desembainhadas, cada um deles encarando os traidores com uma expressão sinistra de avidez.

Nós todos somos matadores agora, lembrou a si mesma. Banhados em sangue e com mais sangue pela frente. O olhar dela recaiu sobre uma figura no fim da fila, um homem rijo, diferente dos outros por estar disposto a olhá-la nos olhos, o semblante estranhamente reverente. Shindall, recordou-se Reva. O estalajadeiro que a colocara na estrada para o Forte Alto. Ver o seu rosto é o único agradecimento de que preciso.

Reva tirou do cinto um pergaminho, erguendo-o para que eles pudessem ver o selo e a assinatura não muito firme.

— Por ordem do Santo Leitor, você todos estão excomungados da Igreja do Pai do Mundo. Estão proibidos de ler ou recitar qualquer um dos Dez Livros, já que provaram ser indignos do amor do Pai. — Ela olhou mais uma vez para o sacerdote de nariz quebrado. — E eu sei o seu nome, uma vez que o Pai não o quer, Mestre Jorent.

Reva os viu fechar os olhos e abaixar a cabeça, alguns sussurrando preces, um ou dois chorando com manchas nas calças, tal como os prisioneiros volarianos antes de serem conduzidos até o bloco, embora não tivessem orado, apenas implorado.

— Lorde Arentes — disse Reva. — Remova os grilhões. Deixe-os ir.

* * *

Veliss não deu voz a qualquer repreensão, somente à perplexidade.

— Eles tramaram contra a sua Casa uma vez. O que os impedirá de fazer isso de novo?

— Uma trama precisa de segredo, nomes ocultos, rostos escondidos. Agora as sombras lhes foram negadas.

— E você negou justiça a si mesma.

— Não, apenas vingança. O Pai sempre foi muito claro ao dizer que não eram a mesma coisa.

Os vários contingentes de recrutados começaram a chegar um mês depois, ainda que o início do inverno não encorajasse a marcha. Com o frio cada vez mais intenso, Reva ordenou a suspensão do trabalho nas muralhas e que todo o esforço fosse redirecionado para a reconstrução da cidade, onde barracas e oleados seriam substituídos por paredes e telhados. O racionamento foi retomado quando a neve bloqueou as passagens pelas montanhas até Nilsael e impediu que o abastecimento que vinha da costa sul continuasse.

Reva começava cada dia com as lições de Ellese, a princípio com a faca, tendo encontrado um punhal de lâmina longa adequado à mão pequena da garota. Apesar de todo o entusiasmo, ela era uma aluna desajeitada, propensa a quedas frequentes e joelhos arranhados, mas, ao contrário de todas as outras tarefas que lhe eram dadas, suas lições com Reva nunca arrancavam lágrimas, ainda que a sua paixão por perguntas continuasse inalterada.

— Você tinha a minha idade quando aprendeu a fazer isso?

— Eu comecei mais nova. Não pule quando der uma estocada. Vai perder o equilíbrio.

— Quem lhe ensinou?

— Um homem muito mau.

— Por que ele era mau?

— Ele queria que eu fizesse coisas ruins.

— Que coisas ruins?

— Coisas demais para listar. Olhe para mim, não para os seus pés.

Reva a deixou praticando no gramado e juntou-se a Veliss na varanda, onde a mulher estava enrolada em peles para se proteger do ar gelado e segurava um pergaminho selado.

— Então chegou?

Veliss assentiu e lhe entregou o pergaminho, mas manteve o olhar em Ellese, que continuava com a sua dança desajeitada no gramado.

— Ela não leva muito jeito para isso.

— Ela aprenderá, com nós duas.

— Por que ficou com ela? Você poderia ter encontrado um lar decente para a menina em algum lugar. Cumbrael está repleto de mães enlutadas desejosas de filhos.

Reva olhou para Ellese, que bloqueava uma estocada desferida por um inimigo invisível.

— Ela não fugiu. Quando entrei na casa dela, ela tentou me apunhalar, e mesmo depois de eu tirar a sua faca ela não fugiu. — Ela se virou de novo para Veliss. — Eu gostaria que você providenciasse os papéis da adoção.

— Tem certeza? Ela é muito nova.

— Ela é nobre de nascimento e tem uma mente astuta. Com você para orientá-la, ela se dará bem. E precisamos garantir o futuro.

O olhar de Veliss recaiu sobre o pergaminho, demorando-se no selo da Rainha.

— Eu nunca lhe pedi uma promessa, mas peço uma agora. O que quer que aconteça do outro lado do oceano, prometa que não morrerá e que voltará para mim.

Reva desenrolou o pergaminho e viu que havia sido escrito pela Rainha de próprio punho, a mensagem cheia de caloroso apreço pelo seu cumprimento diligente do decreto, terminando com uma ordem elaborada de modo cortês para que levasse as suas forças para Torre Sul até o último dia de illnasur. Quando o inverno ainda não terá acabado, percebeu Reva. Ela pretende zarpar antes da chegada da primavera.

— Reva — sussurrou Veliss com a voz embargada.

Reva apertou a mão dela e lhe beijou o rosto, contando outra mentira:

— Eu prometo.