Lyrna
— Não há nada que eu possa dizer para dissuadi-los dessa decisão?
Eles haviam pedido uma audiência no início daquela manhã e agora se encontravam diante dela na sala do trono, o rosto aquilino de Hera Drakil não revelando qualquer emoção, enquanto Sanesh Poltar pelo menos conseguiu fazer uma careta de pesar.
— A guerra foi vencida — disse ele, encolhendo os ombros. — As manadas de alce estão aumentando sem ninguém para caçá-las, e comem todo o capim. Precisam de nós nas planícies.
Lyrna virou-se para o chefe de guerra seordah, falando na língua dele de forma meramente passável:
— E você, irmão da floresta?
— Nós atendemos o chamado do lobo — respondeu ele. — Agora está se calando. A floresta nos chama para voltarmos para casa.
As melhores infantaria e cavalaria leves do mundo, chamara-os Vaelin, recursos que não podiam ser perdidos facilmente.
— Os nossos inimigos retornarão se não pudermos derrotá-los — disse Lyrna aos dois. — E quando o fizerem, eu posso não ser capaz de protegê-los da selvageria deles.
— Nós lutamos por esta terra — insistiu Hera Drakil. — Estamos felizes por termos feito isso. A terra do outro lado da grande água não é nossa para lutarmos por ela.
Lyrna sabia que havia algo mais por trás das palavras do homem, um leve lampejo em seus olhos que ela conhecia muito bem. Ela se recordou de como o povo da floresta ficara pouco à vontade na presença da Senhora Dahrena, da sua repugnância pelo que ela fizera por Vaelin e da grande aversão que sentiam pelo mar. Os seordah viram muita coisa quando deixaram a floresta, concluiu ela. E passaram a conhecer o medo.
— Vocês não fizeram qualquer juramento a mim — disse Lyrna. — Assim, não posso obrigá-los a serem leais. E eu seria uma tola e uma mentirosa se afirmasse que este Reino estaria livre agora sem a sua ajuda. Por favor, retornem em segurança para casa, com os meus agradecimentos, e podem ter certeza de que os seordah e os eorhil desfrutarão da amizade e da proteção do Reino Unificado para todo o sempre.
Eles a surpreenderam ao se curvarem, algo que não os vira fazer antes.
— Se os corações sombrios voltarem — disse Hera Drakil ao se endireitar —, lutaremos com a senhora novamente.
Eles partiram ao meio-dia; Lyrna observava das muralhas enquanto a grande massa de eorhil galopava para o norte, seguida pelos seordah em suas vagas formações tribais, alguns cobertos por vários adornos conseguidos durante a sua estada.
— Uma perda terrível, Alteza — comentou o Conde Marven ao seu lado. — Eles teriam feito um belo trabalho do outro lado do oceano.
— A Guarda do Reino já é três vezes mais numerosa do que eles — disse Lyrna, esforçando-se para garantir que a sua confiança não soasse forçada. — E nem todos partiram. — Ela indicou com a cabeça os seordah e os eorhil acampados perto da casa da guarda, talvez trezentos guerreiros que haviam optado por ficar. Alguns haviam formado laços firmes com a gente do Reino que encontraram na marcha, houvera até mesmo alguns casamentos; ela podia ver a esposa de Lorde Orven com a barriga cada vez maior entre os abrigos de pele de alce. Outros haviam decidido se juntar à cruzada de Lyrna em busca de justiça pelos inúmeros ultrajes testemunhados durante a campanha, e o resto possuía nada mais do que uma curiosidade básica, um desejo de ver o que havia do outro lado da grande água. A anciã eorhil, Sabedoria, tinha lugar de destaque entre esses últimos. “Penso que há sempre espaço na minha cabeça para mais conhecimento, Alteza”, dissera ela em resposta à pergunta de Lyrna.
— Pelo menos não precisaremos encontrar espaço para tantos cavalos — continuou o seu novo Senhor da Batalha. — Sobrecarregados como já estamos com os cavaleiros renfaelinos e com a nossa própria cavalaria. — Ele fez uma pausa, sem dúvida tomando coragem para dar um conselho indesejado. — Alteza, a frota cresce a cada dia, mas de maneira lenta. Logo, acredito que possa ser necessário enviar o exército em duas levas. A primeira transportando a elite da Guarda do Reino e os arqueiros da Senhora Reva. Eles tomarão e manterão um porto defensável enquanto a frota retorna para buscar o resto do exército.
Lyrna observou os últimos seordah desaparecerem atrás de uma elevação distante. Pensou ver uma figura solitária demorar-se por um momento. Talvez Hera Drakil, ou apenas um guerreiro olhando para um lugar que esperava jamais ver novamente.
— Há uma Condessa Marven? — perguntou Lyrna. — Uma família esperando pelo senhor em Nilsael?
— Sim, em Porto Gélido. Minha esposa e meus dois filhos.
— O senhor devia trazê-los para cá. Serão muito bem-vindos na corte.
— Eu duvido, Alteza. Minha esposa tem um… temperamento difícil. Ela exigiria um palácio próprio assim que chegasse.
— Ah. — Ela deu as costas para a paisagem quando o seordah solitário desapareceu de vista. — Não conseguiremos nada atacando em pequenos números, meu senhor. Os volarianos perderam muitos soldados, mas o seu império possui muitos mais. Cairemos sobre eles como uma leva apenas, e nisso limparemos a terra da imundície deles.
— Perdoe-me, Alteza, mas não possuímos nem mesmo metade da quantidade necessária de navios.
— Não — concordou Lyrna. — Uma situação que logo espero ver remediada.
Davoka aguardava com os cavalos no pátio do palácio.
— Está feito? — perguntou Lyrna em lonak, montando em Flecha.
— Foi como você previu — comentou Davoka, a expressão plácida contrastando com o seu tom.
— Uma pena. — Lyrna virou Flecha na direção do portão do palácio. — Vamos encontrar uma distração que seja bem-vinda.
Varinshold fervilhava de atividade ao cavalgarem pelas ruas flanqueadas por Benten e Iltis, as pessoas parando para se curvarem ou gritarem uma saudação leal antes de voltarem depressa às suas tarefas. Apesar de todo o alvoroço, pouca coisa da estrutura da cidade havia sido restaurada; algumas construções recém-concluídas erguiam-se da devastação, e essas eram apenas quartéis simples e funcionais, sem qualquer valor estético. Malcius teria chorado, soube ela ao passar os olhos pela capital, que agora era uma cidade de lona e madeira em vez de uma de pedra. Ele adorava tanto construir.
A atividade era ainda mais intensa nas docas. Varinshold era uma cidade portuária, mas tradicionalmente construíra poucos navios, a maioria das embarcações do Reino sendo produto dos estaleiros de Torre Sul e Warnsclave, onde milhares agora trabalhavam num ritmo frenético para fornecer a frota por ela exigida, ainda que nunca rápido o bastante. O inverno já se avizinhava e não mais do que uma dúzia de novos navios estava pronta; belonaves de formato tradicional. Lorde Davern, exasperado, advertira que, para erguer uma embarcação com as dimensões que Lyrna queria, seria necessário construir um estaleiro completamente novo.
— Então construa, meu senhor — disse ela, simplesmente.
A Forja da Rainha, como o estaleiro passou a ser chamado, ocupava a maior parte do cais que outrora abrigara os armazéns da cidade, um aglomerado extenso de forjas e oficinas onde artesãos habilidosos trabalhavam dia e noite em turnos de dez horas. Em sua maioria, eram antigos aprendizes, jovens o bastante para fugir dos traficantes de escravos que capturaram os seus mestres, muitos tendo de ser retirados das fileiras da Guarda do Reino, geralmente sob protesto. De acordo com as ordens estritas de Lyrna, eles não pararam para fazer mesuras quando ela entrou na Forja, embora tenha havido muitos olhares rápidos de assombro ou de admiração para saudá-la.
Ela atravessou a cacofonia de metal retinindo e serras incessantes até o espaço cavernoso onde Alornis aguardava com Lorde Davern, e atrás deles se erguia o casco de uma embarcação que chegava a dez metros de altura. O olhar de Lyrna percorreu os andaimes que cobriam as laterais e os trabalhadores que revestiam as vigas superiores com calafeto e piche.
— Fui levada a crer que ela estava pronta para ir para a água, meu senhor — disse ela a Davern.
— São apenas os toques finais, Alteza — assegurou-lhe ele com uma mesura cansada, virando-se e estendendo a mão para o navio recém-nascido. — Entrego-lhe o Orgulho do Reino, cinquenta metros de comprimento, quinze de largura, um calado de sete metros e capaz de transportar quinhentos Guardas do Reino completamente armados pela extensão de qualquer oceano.
— E construído em apenas vinte dias por menos de cem homens — acrescentou Alornis num tom afetado.
— Então — disse Lyrna a Davern — funcionou.
— De fato, Alteza. — Ele inclinou a cabeça para Alornis. — Meu ceticismo inicial parece ter sido infundado.
Lyrna aproximou-se do navio, parando para segurar a mão de Alornis e a apertar.
— Obrigada, minha senhora. Eu a nomeio Artífice da Rainha. Agora que o navio está concluído, eu gostaria que a senhora voltasse as suas atenções para a execução da guerra. Enfrentaremos exércitos numerosos em Volaria e eu ficaria grata por quaisquer aparelhos que a senhora possa conceber que sejam capazes de equilibrar de algum modo a situação.
Ela sentiu a mão de Alornis estremecer na sua.
— Eu… conheço pouco sobre armas, Alteza.
— A senhora conhecia pouco sobre navios e ainda assim isso pareceu não importar muito. Aguardarei os seus projetos com interesse. — Lyrna soltou a mão dela e virou-se para Davern. — Quando ele será colocado na água?
— Na maré noturna, Alteza. Os mastros devem ser colocados dentro de dois dias.
— Envie cópias das plantas para os estaleiros em Warnsclave e Torre Sul. De hoje em diante nenhum outro projeto será usado.
— Sim, Alteza.
Seu olhar recaiu sobre as letras no casco. Orgulho do Reino. Adequado, mas pouco inspirador.
— E mude o nome — acrescentou ela, virando-se para ir embora. — Ele será chamado Rei Malcius. Fornecerei uma lista de títulos para os irmãos dele.
A Companhia Morta foi obrigada a acampar fora das muralhas da cidade. O Conde Marven lhes dera uma torre de vigia no promontório ao norte para protegerem, a uma boa distância dos muitos veteranos da Guarda do Reino e ex-escravos ansiosos para acertarem velhas contas. Ela encontrou Al Hestian treinando os seus homens com a costumeira gentileza.
— Levante, seu comedor de bosta imprestável! — rosnou a um jovem caído, que agarrava a barriga onde o Lorde Comandante acertara um golpe com a haste de sua alabarda. — Tem coragem para roubar, mas não o suficiente para lutar, é? Deixando-se ser derrotado por um velho aleijado. — Ele deu um chute implacável nas pernas do garoto, que continuava a se encolher. — De pé! Ou será chicoteado!
Al Hestian empertigou-se quando Lyrna aproximou-se montada em Flecha, ignorando a mesura e olhando para o jovem encolhido. Ele ergueu a cabeça para Lyrna num apelo evidente, os olhos enchendo-se de lágrimas. Pouco mais do que um garoto, percebeu ela.
— Seu Lorde Comandante lhe deu uma ordem — disse ela calmamente ao garoto, retribuindo o olhar e sabendo que ele não via bondade alguma ali.
O garoto levantou-se controlando as lágrimas e esboçou uma mesura.
— Sargento! — berrou Al Hestian, e um homem de ombros largos veio correndo até o seu lado e bateu continência. Lyrna o reconheceu como o cavaleiro das masmorras, o que havia chorado quando ela lhe concedeu as suas vidas. — Faça esse covarde correr até cair — disse Al Hestian. — Sem rum por uma semana.
— Esse aí se daria bem entre os lonakhim — comentou Davoka ao lado de Lyrna.
Al Hestian adiantou-se e segurou as rédeas da égua enquanto Lyrna desmontava. Ela podia ver uma nova vitalidade nele, o homem derrotado do Canto do Traidor aparentemente substituído pelo epítome de um Lorde Comandante da Guarda do Reino, o que, lembrou a si mesma, ele já fora. Contudo, as costas empertigadas e o uniforme impecável não podiam mascarar os olhos; eles ainda revelavam um homem de luto.
— Meu senhor — disse ela, gesticulando para a falésia, onde Orena e Murel estavam arrumando uma mesa e cadeiras. — Vim assistir à primeira viagem de meu novo navio. Gostaria de se juntar a mim?
Al Hestian mandou os seus homens acenderem lamparinas e pendurá-las em estacas ao longo do topo da falésia, e sentou-se rígido diante dela enquanto o sol se punha e uma brisa marítima intensa fazia o capim sussurrar.
— O que acha dos seus novos comandados, meu senhor? — perguntou Lyrna, aceitando uma taça de vinho servida por Orena.
— Um grupo variado, Alteza. Cavaleiros que buscam recuperar a honra servindo ao lado da escória do Reino. Os meus Falcões Negros teriam matado todos eles em um dia.
— Sim, se eles não tivessem sido dizimados, é claro. — Lyrna olhou para o vinho em sua taça, um escuro vinho tinto cumbraelino, o aroma adocicado, com um leve toque de hortelã e amora. — Alguma deserção?
— Duas, Alteza. Eram recrutas recentes, fora da lei estúpidos, na verdade, sem muita noção de como evitar serem capturados. Eles foram trazidos de volta com facilidade.
— E suponho que chicoteados?
— Enforcados, Alteza, na frente de todo o regimento. — Ele agradeceu com um aceno de cabeça para Orena quando ela lhe serviu a bebida. — É preciso dar exemplos.
— De fato. Eu preferiria não beber com o senhor — acrescentou Lyrna antes que ele experimentasse o vinho. Al Hestian hesitou por um momento e então abaixou a taça, seu rosto não revelando qualquer sinal de ofensa.
Benten deu as costas ao topo da falésia e apontou na direção do porto.
— Minha Rainha.
Lyrna levantou-se e fez sinal a Al Hestian para acompanhá-la. O promontório oferecia uma vista excelente das docas, onde muitas tochas cintilavam e pessoas aglomeravam-se no cais para assistir ao nascimento do poderoso navio da Rainha. A Forja fora construída com uma carreira que desembocava no porto, o interior reluzindo intensamente e banhando as águas com uma luz amarelada. Mesmo àquela distância, Lyrna ouvia o som de várias marretas atingindo os blocos que mantinham a embarcação no lugar, então o ruído sumiu de repente e foi substituído por um grande brado quando o casco imenso deslizou pela carreira até a água, seu rastro reluzindo como ouro à luz das tochas.
— É uma bela cena, não acha? — perguntou Lyrna a Al Hestian, gesticulando para que Orena trouxesse mais vinho.
Ele observou o navio por um momento, seus olhos fundos reluzindo por uma fração de segundo.
— Uma embarcação impressionante, Alteza.
— Sim. Devo confessar que não fui totalmente sincera com o senhor, Lorde Comandante. Minha missão aqui esta noite não era lhe mostrar o meu navio.
Ela o viu ficar tenso, olhando de relance para Iltis e Benten, que se encontravam um pouco afastados, de olhos firmes e mãos apoiadas no punho das espadas.
— Não era, Alteza?
— Não. — Lyrna virou-se quando Orena se aproximou, olhando-a nos olhos e virando o vinho na relva. — Foi para lhe mostrar a face de nosso inimigo.
Orena estacou e seu rosto ficou inexpressivo, mas os olhos iam até cada um deles com uma velocidade incomum.
— Lorde Vaelin notou — disse Lyrna à mulher. — Você viu o garoto que não pode ser visto, a não ser por outro dotado. Isso foi uma tolice.
Orena não se moveu, fixando o olhar em Lyrna enquanto Benten e Iltis aproximavam-se pelos lados de espadas desembainhadas e apontadas, e Davoka aproximava-se por trás dela de lança a postos.
— Orena Vardrian — prosseguiu Lyrna. — Sobrenomes seguem a linhagem feminina entre os camponeses de Asrael. O Irmão Harlick memorizou cada censo realizado neste Reino, de modo que foi fácil saber que você e Lorde Vaelin são primos, com a mesma avó, uma mulher que sem dúvida passou o seu sangue dotado para as duas filhas. O sangue maternal carrega as Trevas, mas a natureza dos dons pode variar entre gerações. Qual é o dela?
As feições de Orena sofreram um espasmo, uma variedade de expressões distorcendo o seu semblante que parecia uma máscara. Malícia, medo e divertimento transpareceram em seu rosto antes que a mais inesperada fosse adotada: tristeza, sua fronte ficando lisa e a boca formando um leve sorriso. Quando falou, sua voz era seca, embora Lyrna tenha achado a cadência horrivelmente familiar.
— Ela consegue colocar os seus pensamentos na cabeça dos outros. Um dom difícil de dominar e que ela raramente usava, uma vez que morria de medo de ser descoberta, ciente de que a sua gente a entregaria para a Quarta Ordem caso se tornasse público. Não é de espantar que ela tenha decidido fugir da fazenda e se casar com um homem rico. Ela teve bastante utilidade para o dom na hora de cortejá-lo.
— E na hora de dizer à outra criatura sua companheira e ao seu sacerdote onde me encontrar naquela noite em Alltor.
Iltis arreganhou os dentes, sua espada estremecendo um pouco ao lutar contra a fúria, embora Lyrna tenha ficado satisfeita pela disciplina dele por não se entregar à emoção.
— Uma tarefa à qual fui forçada — disse Orena. — Como a incontáveis outras.
— Mais de uma vez, sem dúvida. Suponho que os nossos inimigos estejam perfeitamente cientes de nossos preparativos.
— Eles sabem tudo o que sei.
— Então por que arriscar ser descoberta esta noite? A Senhora Davoka a tem vigiado de perto desde que Lorde Vaelin nos informou suas suspeitas. Por que escolher hoje para envenenar o vinho?
Orena não respondeu, mas Lyrna viu os olhos da mulher irem na direção de Al Hestian.
— Parece que o nosso inimigo também o teme, meu senhor — disse Lyrna ao Lorde Comandante. — Estou subitamente feliz por não tê-lo executado. — Ela tornou a olhar para Orena. — Por que o Aliado deseja a morte dele?
— Ele possui um grande talento para o comando. Um talento que será de grande utilidade quando vocês chegarem a Volaria.
— Já nos encontramos antes, não? Nas montanhas.
— Não importa. — A voz da mulher soou ainda mais sem emoção, seu olhar começou a perder o foco e ela curvou os ombros, derrotada. — Nada importa. Construa a sua frota, reúna o seu exército, leve-os para as suas mortes. Somos todos apenas peças no tabuleiro dele e, se o jogo acabar mal, ele começará outro. Morri centenas de vezes e despertei em casca após casca, em cada ocasião rezando para que dessa vez ele me deixasse em paz. Quando despertei nesta aqui e não ouvi sussurro algum da voz dele, pensei… — Ela se calou, baixando a cabeça ao se abraçar.
— Você teve amplas oportunidades para me matar no Sabre do Mar — disse Lyrna. — Durante a batalha, teria sido fácil com tantas flechas voando, tanta fumaça para ocultar o feito. Por que você não me matou?
Orena deu uma risada melancólica, baixa e que logo se perdeu no vento.
— A senhora fez de mim uma dama. Era a… minha Rainha. E… — Ela fez uma pausa para sorrir. — E havia Harvin. É terrível viver por tanto tempo sem nunca tocar o coração de outra pessoa. E pensar que eu conseguiria isso com ele, um fora da lei comum mais burro do que um vira-lata.
— Espera que eu acredite nisso? — Lyrna sentiu a raiva aumentar e lutou para mantê-la sob controle. A tentativa daquela coisa de manipulá-la era perigosa, provocando-a para que se vingasse de modo apressado. — Uma criatura como você é imune ao amor.
— Se acha tão sábia, minha Rainha, mas ainda é uma criança. Vi muitas coisas serem feitas em nome do amor, coisas maravilhosas e horrendas, e sempre achei tudo muito divertido. Há um pedaço da minha alma que gostaria que a senhora estivesse certa, que eu tivesse permanecido imune ao toque desse sentimento, pois então a minha tristeza não teria sido tão grande. Acho que foi assim que ele me encontrou de novo, ouvindo o meu desespero quando adentrou o vazio, chamando-o de volta ao seu serviço.
— Um chamado que você poderia ter recusado.
— Ele me prendeu a si há muito tempo, fundiu a minha alma na dele, arrancando qualquer vontade de resistir. É como ele nos escolhe, aquelas almas mais adequadas aos seus propósitos, aqueles com malícia suficiente para se igualar à dele e fraquezas suficientes para serem moldados.
Ela caiu de joelhos e olhou por sobre o ombro para onde Davoka se encontrava agora, com uma garrafinha de vidro na mão.
— Você precisa saber — disse Orena, virando-se de novo para Lyrna — que a mente desta casca está perturbada. Foi arruinada pelo estupro e pelo estrangulamento que quase a matou na noite em que a cidade caiu, salva apenas pelo seu dom, que destruiu a mente do homem que a atacou, mas deixou a dela esgotada e facilmente arrebatada.
— Ela terá o melhor dos cuidados — destacou Lyrna. — E prometi a Lorde Vaelin que lhe devolveria a sua prima.
Orena assentiu e arregaçou a manga, erguendo a mão com a palma estendida.
— Desta vez não haverá perdão. Os meus fracassos tornaram-se muito frequentes, a minha alma maculada demais por sentimentos. Desta vez ele vai me reduzir a nada, destruindo até mesmo a memória de que um dia já vivi. Um destino que acredito que me é bastante apropriado. — Seu rosto estava fechado, determinado, o medo bem controlado, contrastando muito com a garota que implorara e chorara sob a Montanha. — Estou pronta, minha Rainha.
Anos mais tarde, restariam poucos vivos na Companhia Morta para se lembrarem do grito que cortou o promontório naquela noite. Porém, os que sobreviveriam, apesar de calejados por muitos horrores, ainda seriam capazes de estremecer ao se recordarem do som, lembrando-se dele como um presságio do que estava por vir.
A fúria plena do inverno chegou cedo aquele ano, a chuva forte dando lugar à neve com uma rapidez indesejada, os tetos de lona de Varinshold vergando-se sob o seu peso. Lyrna havia ordenado que se estocasse lenha, mas a intensidade do frio pegou muitos de surpresa e houve alguns que pereceram em suas garras, principalmente os idosos e os enfermos. Outros foram encontrados do lado de fora das muralhas da cidade, sem roupas quentes, os rostos congelados geralmente serenos, aceitando o destino. A invasão privara muitos de suas famílias e os deixara vulneráveis ao desespero, mãos preciosas entregues a um pesar que não tinha fim.
Apesar do frio e das privações, o trabalho continuava, a Forja produzia armas numa velocidade furiosa e os construtores de Davern haviam entregado à Rainha mais três navios em menos de um mês, o ritmo de construção sendo acelerado à medida que se acostumavam com as novas técnicas.
— A senhora devia esquecer o ouro dos Confins, Alteza — aconselhara Davern um dia com o seu sorriso costumeiro. — Quando a guerra acabar, esta terra enriquecerá só com a construção de navios.
Na verdade, Lyrna com frequência desejava poder esquecer-se do ouro. O Senhor da Torre em exercício, Ultin, era um correspondente frequente com os seus pedidos de mais mineiros, e os escribas do Senhor Feudal Darvus eram escrupulosos na contagem e pesagem de cada lingote que chegava a Porto Gélido, a ponto de atrasar o envio subsequente aos mercadores alpiranos. Se Vossa Alteza enviasse mais escribas, escrevera o velho em resposta à repreensão formulada por Lyrna de forma amigável, tenho certeza de que o fluxo do ouro seria retomado com toda a velocidade. Ela resistiu à tentação de despachar Lorde Adal com um decreto formal desfazendo o acordo de Darvus com Vaelin e colocando o comércio do ouro sob o controle da Coroa. Entretanto, como o seu Ministro da Justiça sempre fazia questão de lembrá-la, ela já havia exercido a Palavra da Rainha com uma frequência que fazia o seu pai parecer o modelo de um governo de não intervenção, e odiaria ganhar a reputação de colocar de lado leis inconvenientes.
O Aspecto Dendrish assumira a tarefa não invejável de ouvir petições, incomodando-a somente com os casos da maior importância ou complexidade. Ele também fora obrigado a reconstituir um sistema de tribunais numa terra agora severamente desprovida de advogados ou magistrados, obtendo a permissão de Lyrna para uma reorganização completa da máquina judiciária do Reino.
— Três Juízes Superiores? — perguntou Lyrna ao ler o plano dele. — O papel de juiz mais graduado não deveria ser seu, Aspecto?
— Poder demais delegado a um único oficial frequentemente é uma receita para a corrupção, Alteza.
Lyrna franziu a testa de forma jocosa. Apesar de possivelmente ser o homem menos agradável que ela já conhecera, fora o felizmente falecido Darnel, o Aspecto ganhara depressa uma reputação de grande discernimento e rígida imparcialidade, relatando cada tentativa de suborno e decretando punições sumárias ao transgressor.
— O senhor se sente corrompido pelos seus deveres? — perguntou ela.
— Não ficarei neste cargo para sempre. — Havia um peso em suas palavras que a fizeram parar para pensar, considerando a palidez da pele do Aspecto e a gordura que desaparecia rapidamente. Lyrna já notara como as palavras dele costumavam ser pontuadas por um leve ofegar, e ele parava para tossir com uma frequência desconcertante.
— Três juízes — disse ela, voltando ao documento. — Suponho que para garantir que as suas decisões não cheguem a um impasse?
— Exato, Alteza. Todas as decisões estarão sujeitas à sua aprovação, naturalmente.
— Além disso, notei que não há menção à Fé no seu código corrigido de transgressões criminais.
— A Fé diz respeito à alma e ao Além. A lei diz respeito apenas ao Reino e aos seus súditos.
— Muito bem. Precisarei de tempo para pensar bem a respeito disso.
— Obrigado, Alteza. — Ele se curvou, tentando conter sem sucesso uma tosse com um lenço rendado, que estava manchado de vermelho quando o afastou da boca. — Perdoe-me.
— Perdoo. Também ordeno que o senhor vá ver o Irmão Kehlan imediatamente e siga qualquer instrução que ele lhe der.
O Aspecto assentiu com relutância quando ela largou o documento.
— Nem meu irmão nem meu pai tentaram uma mudança tão radical nas leis do Reino.
O Aspecto Dendrish ofegou, seus olhos levemente úmidos ao responder:
— Tudo mudou neste Reino, mais do que eu gostaria. Mas desejos não tornam uma terra adequada para se viver.
— É baseada numa máquina volariana — disse Alornis, o braço esguio girando o molinete na parte traseira do engenho, fazendo engrenagens retinir e braços cruzados em diagonal recuarem. De fato lembrava uma das balistas com que os volarianos adornavam os seus navios, mas era consideravelmente maior, com uma pesada caixa de ferro afixada sobre o corpo principal. Ficava sobre uma base larga de ferro, mas com uma abertura côncava através da qual passava a haste de sustentação, permitindo que o mecanismo inteiro fosse girado com uma rapidez surpreendente, apesar do tamanho.
Lyrna juntou-se ao seu Senhor da Batalha no principal campo de treinamento da Guarda do Reino para assistir ao teste da primeira invenção de sua Senhora Artífice. A planície extensa que abrigara a Feira de Verão estava quase toda coberta pela neve agora, e tropas de recrutados se exercitavam entre os montes para além da fileira de alvos colocados a distâncias variadas do dispositivo. Cada alvo consistia em quatro peitorais volarianos dispostos num quadrado, uma vez que Alornis garantira que o dispositivo tinha poder suficiente para perfurar as armaduras.
— Qual é o alcance, minha senhora? — perguntou o Conde Marven.
— Uma balista volariana consegue disparar a até duzentos metros — informou Alornis, prendendo no lugar a corda grossa do mecanismo e afastando-se. — Tenho esperança de que vamos conseguir superar essa marca. Eles usam madeira para os braços das balistas, nós usamos metal. — Ela levou um momento para alinhar o engenho e então bateu com a palma da mão numa alavanca. Os braços arqueados deslocaram-se para frente num borrão e o virote foi disparado rápido demais para que Lyrna pudesse acompanhar a sua trajetória, embora o tinido metálico que se ouviu indicasse que um dos alvos mais distantes fora acertado.
— Quase trezentos metros — disse o Conde Marven com uma gargalhada, fazendo uma mesura a Alornis. — Muito bem, minha senhora. Um feito extraordinário.
— Obrigada, meu senhor. Mas ainda não terminei. O projeto original volariano tornava a recarga lenta, levando mais de um minuto para disparar dois virotes. Porém, lembro-me de quando vi um moedor de grãos, o que me deu uma ideia peculiar. — Alornis segurou o molinete de novo e começou a girá-lo, os braços sendo puxados para trás enquanto as engrenagens rangiam. — Tudo é uma questão de alinhar as engrenagens — explicou ela, gemendo um pouco com o esforço. — As engrenagens puxam a corda para trás até certo ponto, e então a caixa no topo dispara um novo virote. — O engenho fez um ruído baixo enquanto ela continuava a girar o molinete. — E a engrenagem seguinte solta a corda.
Os braços deslocaram-se de novo, acertando mais uma vez o alvo mais distante.
— Tudo o que se precisa fazer é continuar a girar o molinete — prosseguiu Alornis, ajustando a mira do engenho, de modo que o virote seguinte voou na direção de um alvo diferente. — Até que os virotes acabem, quando então uma nova caixa pode ser colocada no lugar da vazia.
Ela continuou a manusear o engenho, disparando virotes em trajetórias variadas até que todos os alvos tivessem sido acertados. Quando o último virote voou, ela se afastou de sua criação, suando um pouco apesar do frio.
— Ainda preciso cuidar de alguns detalhes — disse Alornis, arfando um pouco. — Ela tende a emperrar se não for lubrificada com frequência, e acho que posso melhorar o formato das cabeças dos virotes.
— Dê-me uma centena dessas máquinas, Alteza — disse o Conde Marven, seu tom agora completamente sério —, e poderemos medir forças com qualquer exército que os volarianos levarem a campo.
Lyrna avançou e deu um abraço delicado em Alornis, beijando-a na testa.
— O que mais pode me mostrar, minha senhora?