RELATO DE VERNIERS



No trigésimo quinto dia de nossa viagem aportamos em Marbellis, onde o capitão desembarcou com dez tripulantes, cada um carregado com uma pilha impressionante de saques acumulados de vários volarianos desafortunados nos Dentes e em Alltor.

— Um navio se alimenta de carga — grunhiu ele para mim antes de partir. Ele estava levemente mais inclinado a conversar nos últimos dias, mas ainda se recusava a trocar uma palavra sequer com Fornella. — Devo conseguir especiarias suficientes para encher metade do porão com o que apreendemos. Permaneça a bordo e fique de olho naquela sua bruxa.

Ela se juntou a mim na amurada enquanto eu olhava as docas e a cidade mais além.

— Ouvi este lugar ser descrito como o tesouro do norte do império — disse Fornella. — Devo dizer que me parece um pouco sem brilho.

Marbellis encontrava-se num estado contínuo de reconstrução desde a guerra, os vários distritos incendiados e arrasados desaparecendo lentamente à medida que o grande porto se curava. Porém, embora uma cidade pudesse ser reparada, o coração de seus cidadãos era uma história diferente. No decorrer dos anos após a guerra, muitos apelos foram feitos ao Imperador para que houvesse uma retaliação mais direta e duradoura contra os nortistas, os mais ruidosos e numerosos partindo de Marbellis.

— “Encontramos uma joia no deserto” — citei. — “E dela fizemos uma cinza calcinada.”

— Bonito — disse Fornella. — Um dos seus, imagino.

— Na verdade, foi composto por um jovem poeta em Varinshold. O filho do general que comandou o exército que quase destruiu esta cidade.

— Suponho que não tenha conseguido falar com o pai?

— Não. Ele recusou todos os pedidos para uma entrevista. O filho, no entanto, ficou feliz em conversar, desde que eu pagasse a sua cota noturna de vinho.

— Ele tinha alguma desculpa para isto? Alguma razão em particular?

Sacudi a cabeça.

— Apenas arrependimento e culpa, ainda que não tenha tomado parte no massacre. Estava determinado a salientar que o pai suprimira depressa os excessos do exército, executando com isso mais de cem homens por vários feitos terríveis.

— Tokrev também os teria executado. Escravos mortos não têm valor.

Dei as costas à amurada e segui para a cabine que dividíamos.

— Temos trabalho a fazer.

No decorrer das semanas anteriores, as nossas pesquisas em muito expandiram o meu conhecimento acerca de mitos antigos, mas até então haviam revelado poucas evidências sobre as origens do Aliado ou sobre o paradeiro do homem eterno. Havia algumas referências às maquinações de deuses sombrios ou espíritos malignos nas histórias mais antigas e fragmentárias deixadas pelos habitantes do que veio a se tornar o Império Volariano, mas separar fato de ilusão supersticiosa era simplesmente impossível. O homem eterno provou ser uma linha de investigação mais produtiva, revelando não menos do que sete versões diferentes de sua história, a maioria de Asrael e girando em torno da rejeição da Fé do desafortunado súdito. No entanto, havia outras histórias, como uma de Cumbrael que retratava o sujeito como um herege ímpio que cometera o crime máximo de queimar os Dez Livros, acabando amaldiçoado pelo Pai do Mundo a contemplar o seu pecado por toda a eternidade. Hoje, porém, minha pesquisa revelou uma lenda meldeneana que falava de um homem levado pelas ondas até as Ilhas após um naufrágio, um homem que deveria ter se afogado, mas que sobreviveu, enquanto todos os seus companheiros de tripulação haviam perecido. Ele chamava a si mesmo de Urlan e dizia que chegara à procura dos Deuses Antigos.

Ergui os olhos do pergaminho quando o som de muitas passadas no convés anunciou o sucesso do capitão na obtenção de uma carga. Fornella já havia adormecido, deitada nua no catre, como de costume. Ela parecia dormir mais com o passar dos dias e os seus cabelos tornavam-se cada vez mais grisalhos. Está envelhecendo, senhora, pensei, contemplando a sua nudez e, apesar das rugas que agora lhe marcavam o rosto, notando que ela ainda era bela. Joguei um cobertor sobre Fornella e saí.

A noite caíra e o convés estava iluminado por tochas, a maioria aglomerada na proa, onde um som persistente de algo batendo em madeira podia ser ouvido. Fui até lá e encontrei o capitão de braços cruzados, o semblante severo voltado para um homem suspenso por cordas, pendurado sobre a proa. O homem era velho, mas ágil, claramente alpirano, pelo tom de pele, e trabalhava com um martelo e um cinzel na figura de proa sem maxilar, lascas de madeira voavam conforme ele apagava as cicatrizes do focinho. Notei que um bloco de madeira novo, mas ainda não esculpido, havia sido pregado no lugar para dar origem a um novo maxilar para a serpente.

— A tripulação não gosta de navegar sem um deus para acalmar as águas — grunhiu o capitão, observando o trabalho do carpinteiro. — Paguei o triplo do preço a ele para que terminasse até de manhã.

— O que ele é? — perguntei, gesticulando para a serpente. — Um deus antigo ou novo?

O capitão estreitou os olhos para mim, e era possível ver neles um leve traço de divertimento.

— Acha que o meu povo é digno de ser estudado agora, escrevinhador?

— Pode ajudar com a minha missão.

Ele encolheu os ombros e indicou com a cabeça a figura de proa.

— Não é ele, é ela. Levansis, irmã do grande deus-serpente Moesis. Embora desprezasse o irmão por sua selvageria, ela chorou quando Margentis destruiu o corpo dele e as lágrimas de Levansis mantiveram o mar calmo durante dez anos. É para ela que rezamos quando as tempestades se formam.

Meu conhecimento sobre a história meldeneana era escasso, mas eu sabia que seu panteão datava da época em que os meldeneanos colonizaram as Ilhas, cerca de seiscentos anos atrás, e, pela minha análise das ruínas encontradas lá, era evidente que as Ilhas haviam sido ocupadas muito antes disso.

— Uma deusa nova, então. O que você pode me dizer sobre os deuses antigos?

Ele desviou o olhar e notei como apertou ainda mais os braços cruzados.

— Não rezamos a eles.

— Mas o que são eles?

O capitão lançou um olhar cauteloso para os tripulantes mais próximos, dois marinheiros, ambos jovens, mas com cicatrizes ganhadas na Batalha dos Dentes, e olhando para mim com franca indignação.

— Dá azar falar dos deuses antigos no convés de um navio — disse o capitão, indo na direção da rampa. — Venha, vou deixar você me pagar uma bebida, escrevinhador. Além do mais, tenho notícias para dar.

* * *

Ele me levou até uma taverna tranquila perto do distrito dos armazéns; os frequentadores eram em sua maioria estivadores, desfrutando de um ou dois copos de vinho ao final do dia de trabalho. Mesmo levando em consideração a fadiga evidente dos outros clientes, a atmosfera era sombria a ponto de ser opressiva, e a maioria estava sentada em silêncio, contemplando o seu vinho. Nós nos sentamos junto a uma janela e o capitão acendeu o cachimbo, o fornilho cheio com a erva de cinco folhas de aroma adocicado popular no norte do império, mas que não era vista com bons olhos em outros lugares pelo seu efeito soporífero.

— Ah, essa é das boas — disse o capitão, soprando uma nuvem de fumaça. — Certa vez, levei algumas sementes para a minha esposa plantar. Nunca deu certo, o solo não é ideal. Uma pena. Eu teria feito uma fortuna.

— Os deuses antigos — falei, com a pena preparada sobre o pergaminho. — O que você sabe sobre eles?

— Bem, eles são antigos, para começo de conversa. — Ele soltou uma risada incomum, algo que atribuí ao conteúdo do cachimbo. A demonstração de hilaridade fez com que algumas cabeças se levantassem nas mesas ao redor, e algumas pessoas franziram o rosto em desaprovação, fazendo com que eu me perguntasse que notícias sombrias haviam causado aquele estado.

— Eles estavam lá quando desembarcamos nas Ilhas — prosseguiu o capitão, tornando a atrair a minha atenção. — Os deuses antigos, em pedra, tão naturais que parece que vão se mexer se tocá-los.

— Você os viu?

Ele deu uma baforada no cachimbo e assentiu.

— Privilégio de capitão. Quando consegue o próprio navio, você vai até as cavernas e presta homenagem aos deuses antigos. Parece ser a coisa educada a se fazer, já que eles estavam lá primeiro. E há histórias de sobra a respeito dos destinos terríveis que aguardavam os capitães que não fizeram a peregrinação.

— Então são estátuas encontradas séculos atrás.

— Mais do que estátuas, escrevinhador. — O olhar do capitão ficou sombrio ao lembrar. — Uma estátua não faz você suar assim que coloca os olhos nela, não faz a sua cabeça doer quando você chega perto, nem coloca imagens na sua cabeça quando você se curva para tocar o pé dela.

Minha pena parou no meio do caminho e segurei um suspiro. Eu já havia visto o suficiente àquela altura para compreender que aquilo que antes eu achava ser superstição era bastante real, mas ainda assim o ceticismo inerente se fazia sentir.

— Imagens em sua cabeça? — perguntei num tom passivo.

— Só por um segundo. Eu toquei o pé dela e… vi as Ilhas, mas não as nossas Ilhas. Havia uma cidade, onde hoje fica a nossa capital. Mas muito bela, de mármore reluzente de ponta a ponta, o porto repleto de navios, mais longos do que os nossos e conduzidos principalmente por remadores. E não eram piratas, isso eu podia ver. Nenhum marinheiro carregava uma arma. Qualquer que fosse a época, era uma época de paz.

Ele se calou, o rosto agora toldado por lembranças ao tirar o cachimbo dos lábios, mal se movendo quando lhe fiz uma pergunta:

— O pé dela? Os deuses antigos são mulheres?

— Uma é. Os outros dois são homens. Um é um sujeito grande e barbado, o outro é mais novo e mais belo de rosto. Não toquei em nenhum deles, pois as visões que transmitem são apenas para os olhos mais corajosos. Porém, dizem que o Escudo tocou nos três, o único homem a fazer isso.

— Há uma história, sobre um homem que não podia morrer. Conta que ele chegou às Ilhas em busca dos deuses antigos.

O capitão soltou uma gargalhada e voltou ao cachimbo.

— Urlan. Minha velha avó costumava me contar essa história.

— A versão que tenho diz que ele os ofendeu ao pedir uma dádiva impossível, então eles o amaldiçoaram a andar pelo fundo do oceano para todo o sempre.

O capitão franziu o cenho, a fumaça subiu e seus olhos começaram a ficar levemente embotados.

— A história da minha avó era diferente, mas histórias antigas costumam mudar dependendo de quem as conta. Ela dizia que Urlan fora expulso das Ilhas, deixado à deriva num barco e advertido a jamais retornar. E não porque ele havia ofendido os deuses antigos, mas porque, ao ouvir as palavras dele, o povo passou a temer alguém tão jovem que sabia tanto.

Ele me observou anotar a história, apagou o cachimbo e guardou o que sobrara da erva numa algibeira.

— Hora de eu dar as minhas notícias, escrevinhador — disse ele.

— Mais notícias graves da guerra, presumo? — perguntei, olhando em volta para os presentes de rosto taciturno.

— Não, de Alpira. — Notei que o embotamento havia desaparecido de seus olhos e ele me encarou com um olhar firme e pesaroso. — O Imperador Aluran morreu há uma semana. Antes de falecer, ele nomeou como sucessora a Senhora Emeren Nasur Ailers, a ser para sempre conhecida como Imperatriz Emeren I.