CAPÍTULO UM

Vaelin

Dahrena chamou a sua gata guerreira de Mishara, a palavra seordah para relâmpago, e tinha grande prazer em treiná-la. Todas as manhãs ela passava uma hora ou mais na floresta, sorrindo enquanto a fera saltava, corria ou subia em árvores ao seu comando.

— Eu tinha uma gatinha quando era pequena — disse ela a Vaelin, jogando uma bola feita de couro de morsa para Mishara pegar; o animal saltou alto e a agarrou no ar com uma mordida rápida do impressionante maxilar. — Dei a ela o nome de Listras. Um dia ela sumiu e meu pai me contou que ela devia ter fugido. Mais tarde descobri que ele não teve coragem de me contar que ela havia sido esmagada pela roda de uma carroça.

Ela franziu o cenho diante do aceno vago que Vaelin fez com a cabeça, mandou Mishara para o meio das árvores com um aceno de mão e foi sentar-se ao lado dele, pegando a sua mão. Não perguntou nada; como sempre, boa parte da comunicação entre eles dava-se sem palavras.

— Na Ordem, eles nos diziam que profecias eram uma mentira, como um deus — disse Vaelin. — Que eram da alçada de Negadores iludidos que confundiam loucura com discernimento. E, ainda assim, todo esse tempo a Sétima Ordem ia atrás das próprias profecias em segredo.

— Você se lembra do que o Irmão Harlick nos contou — disse ela. — Todas as profecias são falsas.

— Você viu a parede deles.

— Imagens pintadas há anos incontáveis e visíveis agora somente porque essa gente as mantém com muita devoção. — Dahrena apertou com mais força a mão dele. — As visões de Nersus Sil Nin deram aos seordah séculos para se prepararem para a chegada dos marelim sil, mas ainda assim eles foram empurrados para a floresta. O futuro não é pintado em pedra. Nós fazemos o futuro cada vez que respiramos e damos um passo. Nossa missão é vital, você sabe. Não podemos nos distrair.

— Kiral me disse que a sua canção ressoa com uma advertência sempre que falo sobre seguir em frente. Por ora, parece que este lugar é a nossa missão.

Ela suspirou e encostou a cabeça no ombro de Vaelin.

— Bem, pelo menos está começando a degelar.

À tarde, ele passou em revista os guardas de Orven, em grande parte para assegurar o Lorde Comandante de seu apreço por tê-los colocado em prontidão marcial com tamanha diligência. No decorrer da Noite Longa ele manteve a disciplina severa e a rígida adesão à rotina que caracterizavam a Guarda Montada, as barbas que haviam crescido no gelo logo foram raspadas e a ferrugem limpa de cada peitoral.

— Como anda o treinamento? — perguntou Vaelin a Orven após examinar as fileiras e trocar gentilezas ritualísticas com os homens. Eles respondiam de bom grado, todos veteranos da marcha dos Confins e Alltor, encarando-o com um respeito implacável que ele sabia que talvez nunca desaparecesse. Ainda assim, apesar da generosa alimentação oferecida pelos seus anfitriões, muitos mantinham o aspecto abatido daqueles expostos aos piores extremos das intempéries.

— Lutar a pé é difícil para aqueles acostumados à sela, meu senhor. Mas não há alternativa. Os lonaks às vezes se juntam ao treinamento. Creio que acham divertido ou não têm muito mais o que fazer.

Vaelin olhou para onde um grupo de Senthar observava um dos membros do Povo Lobo tirar a pele de uma morsa recém-apanhada, notando que Alturk não estava entre eles, assim como não estivera durante a maior parte da Noite Longa.

— Concentre-se nos exercícios de ordem-unida — disse ele a Orven. — Você viu como os volarianos lutam, batalhões inteiros movendo-se em uníssono. Tenho certeza de que é um feito que os guardas podem igualar.

Orven empertigou-se, levando o punho ao peitoral numa continência perfeita, como de costume.

— De fato podemos, meu senhor.

Astorek encontrou-o escovando Cicatriz no pequeno estábulo que o Povo Lobo havia permitido que construísse próximo à costa. Como de costume, um bando de crianças havia se reunido para vê-lo tirar o cavalo de guerra de seu lar improvisado, aparentemente fascinadas pelo estranho animal de quatro patas, maior do que um alce, mas sem a galhada. Eles pareciam não ter inclinação à timidez ou consciência de que Vaelin pudesse não compreender a enxurrada de perguntas que faziam ao se aglomerar ao redor, passando as mãozinhas sobre o pelo de Cicatriz, ocasionalmente recuando com risinhos encantados diante das pisadas e bufadas irritadas do cavalo. Um garotinho era mais insistente do que os outros, puxando as peles de Vaelin e repetindo a mesma pergunta, franzindo o cenho, confuso.

— Ele quer saber por que você não o come.

Vaelin virou-se e deu com Astorek parado perto dali, assistindo à cena com um leve divertimento. Dois de seus lobos estavam sentados não muito longe, um macho e uma fêmea de tamanho desconcertante, o cheiro deles provocando um estremecimento de medo em Cicatriz.

— Eles estão perto demais — disse Vaelin ao volariano, indicando os lobos com a cabeça.

Astorek inclinou a cabeça e os lobos levantaram-se ao mesmo tempo e partiram a trote na direção do gelo, a placidez costumeira desaparecendo quando começaram a saltar e tentar morder um ao outro numa dança brincalhona.

— Ele é para cavalgar — disse Vaelin, virando-se de novo para o garotinho enquanto Astorek traduzia. — Não para comer.

A resposta pareceu confundir ainda mais a criança, as pequenas feições franzindo-se numa careta de perplexidade, de modo que Vaelin o ergueu e colocou-o em cima de Cicatriz, segurando as rédeas e levando-o numa caminhada lenta em direção ao litoral. O garotinho ria e batia palmas enquanto balançava no dorso do cavalo, as outras crianças acompanhando-os com gritos que não precisavam de muita tradução: todas queriam a sua vez. Após cerca de uma hora de diversão, Astorek por fim mandou as crianças embora com algumas palavras bruscas. Embora o Povo Lobo parecesse manter os seus membros mais novos com uma disciplina relaxada, o silêncio instantâneo feito pelas crianças revelava a existência de uma autoridade subjacente que não tolerava desobediência, e elas logo partiram para encontrar outras coisas com que se divertir.

— A descrição que ele fez de você não foi totalmente exata — disse Astorek depois que as crianças foram embora. — Ele disse que você seria feroz.

— Palavras do seu profeta? Você fala como se o conhecesse.

— Às vezes sinto como se tivesse conhecido, já que ouvi as suas palavras tantas vezes. Nosso povo não registra nada por escrito, mas todos os xamãs aprendem a recitar a mensagem dele perfeitamente.

Vaelin levou Cicatriz de volta para o estábulo e prendeu um bornal no focinho do cavalo. Havia poucos grãos nas ilhas, mas raízes e frutas silvestres em abundância, colhidas nos meses de verão e preservadas durante o inverno. Pelas bufadas de satisfação e pelo corpo menos esquálido, parecia que Cicatriz achava a mistura tão apetitosa quanto qualquer bornal de cereais.

— Meus pais pediram que eu lhe perguntasse as suas intenções — disse Astorek.

— Intenções?

— O Povo Lobo tem aguardado a sua chegada desde que consegue se lembrar, sabendo que isso prenunciaria uma época de grande perigo. E, ainda assim, você passa todos os dias cuidando de seu cavalo, enquanto os seus companheiros jogam e o homenzarrão esvazia os nossos estoques de cerveja de pinho.

— Alturk é um homem… perturbado. E permanecemos aqui porque Urso Sábio advertiu que seguir adiante durante a Noite Longa significava a morte. Mas nós, é claro, somos gratos pela sua hospitalidade.

— Você fala como se pretendesse nos deixar.

— Viemos à procura de um homem em particular. A canção de Kiral nos guiará até ele. Quando ela ouvir uma melodia nítida, partiremos.

— Deixando-nos à própria sorte, qualquer que seja?

— Você dá importância demais a pinturas e histórias antigas, principalmente considerando que pode não ter nascido para esta vida.

Astorek deu uma risada amarga.

— É isso? Você nega ajuda ao meu povo porque ainda não confia em mim?

— Seu povo não precisa de ajuda, pelo que sei. Quanto a você… — Vaelin tirou o bornal de Cicatriz e coçou o seu focinho. — Ainda não sei como você veio parar aqui, nessa época, falando com perfeição a nossa língua.

— Se eu fosse um inimigo, a canção de sua caçadora não teria lhe avisado?

Barkus, aquela noite na praia, a máscara caindo num instante. Todos aqueles anos e a canção não lhe dissera nada.

— Deveria, mas sei a duras penas quão bem os servos do inimigo podem evitar ser detectados.

Vaelin colocou o bornal de lado e acomodou uma pele de lobo-marinho sobre o dorso de Cicatriz, o cavalo de guerra soltando uma bufada contente pelo aumento de calor. Então se virou para Astorek, com as sobrancelhas erguidas, esperando. O volariano abaixou o olhar, sua resposta um murmúrio relutante:

— Eu fui guiado até aqui… por um lobo.

— Meu pai era um homem rico. — O rosto de Astorek estava banhado de amarelo à luz do fogo, o olhar fixo nas chamas.

Vaelin chamara os outros para a grande morada que dividiam, para ouvir o conto do volariano, e os lonaks sentaram-se com a costumeira atenção diante da promessa de uma história interessante. Os dotados se sentaram dos dois lados de Vaelin, Orven e os seus guardas dispostos em fileiras organizadas atrás. Somente Alturk estava ausente, algo que provocou uma troca de palavras ríspidas entre Kiral e um dos Senthar, um guerreiro veterano que se remexeu pouco à vontade diante das perguntas dela. Pela expressão enojada, Vaelin deduziu que ela havia achado a resposta do lonak nem um pouco satisfatória.

— Um mercador por profissão — prosseguiu Astorek. — Como o seu pai antes dele. Nosso lar era a grande cidade portuária de Varral, onde cresci na bela casa de meu avô cercado por belas escravas e belos brinquedos. A maioria das transações comerciais de meu avô era feita com o Reino Unificado, e com frequência fazíamos o papel de anfitriões para mercadores e capitães vindos do outro lado do mar. Determinado a assegurar o seu legado, meu avô insistiu que eu aprendesse todas as principais línguas de comércio, de modo que aos doze anos eu era fluente na língua do Reino e em alpirano, e podia conversar de forma adequada nos dois principais dialetos do Extremo Ocidente. Lembro-me de ser uma criança feliz, e por que não seria? Desde que prestasse atenção nas lições durante algumas horas por dia, todos os meus caprichos eram realizados, e meu avô gostava de me mimar.

O sorriso de ternura de Astorek pelas lembranças desapareceu quando ele continuou:

— Tudo mudou quando meu avô morreu. Parece que meu pai tivera aspirações de ser um soldado na juventude, que foram rapidamente desconsideradas por meu avô, é claro, que tinha pouco interesse em assuntos militares além do comércio de armas. Todos os homens volarianos devem servir por no mínimo dois anos como Espadas Livres, mas meu avô sabia a quem subornar para negar ao filho uma chance de glória militar. E assim, conforme os anos passavam, meu pai alimentou sua mágoa e sua ambição secreta, uma ambição que pôde ser colocada em prática com a morte de meu avô.

“Volaria tende a ver soldados amadores com desdém. Os filhos dos ricos podem comprar uma patente de oficial subalterno, mas a partir daí promoções são concedidas estritamente por mérito. Contudo, meu pai também sabia a quem subornar e, pouco depois de ter assegurado a sua patente e de fornecer fundos para equipar e recrutar um batalhão completo de cavalaria Espada Livre, ele se viu rapidamente elevado à patente de comandante. Porém, a patente não foi o bastante. Sua sede de glória não havia sido saciada. Varral, como todas as cidades volarianas, possui muitas estátuas, longas fileiras de bronze em memória a heróis, antigos e novos, e meu pai queria muito um pedestal para si. Um aumento repentino nas campanhas contra os selvagens nortistas lhe forneceu a oportunidade e, como é o costume entre os ricos em Volaria, filhos em idade suficiente precisam seguir seus pais na guerra. Eu tinha treze anos.”

— Sua mãe não fez objeções? — perguntou Vaelin.

— Talvez tivesse feito, se eu a tivesse conhecido. Meu avô me contou que ela havia sido mandada embora depois que se revelou uma vadia infiel e meu pai nunca falou uma única palavra sobre ela. Mas havia uma escrava, uma velha que trabalhava na cozinha, tão velha que estava ficando senil. Certa vez ela me viu roubando bolos, como eu costumava fazer, e começou a gritar “Cria de elverah! Cria de elverah!”. Os outros escravos a arrastaram para longe depressa e nunca mais a vi. Essa foi a única vez que meu avô me castigou, trinta varadas, e após cada golpe ele me fez prometer nunca mais falar sobre a minha mãe.

— Ela era dotada — disse Dahrena. — Como você.

— Suponho que sim. Acontece o mesmo entre o Povo Lobo: somente mães com poder o passam para os filhos. Enquanto eu viajava para o norte com o batalhão de meu pai, os soldados às vezes trocavam histórias de pessoas estranhas levadas por agentes do Conselho e que nunca mais tornavam a ser vistas. Mas eles sempre falavam sobre tais assuntos em voz baixa, pois meu pai aplicava a disciplina com zelo, e chicoteou vários homens na primeira semana da marcha. Imagino que ele estivesse tentando compensar por uma ausência total de qualquer talento militar.

“Pobre de meu pai. Ele era um soldado terrível, cansava-se depressa na sela, adoecia com facilidade, negligente na obtenção de provisões suficientes para os seus homens. Quando nos juntamos ao resto do exército, os seus sonhos de glória haviam desaparecido em meio à realidade da vida de um soldado, que, pelo que eu podia ver, consistia principalmente em desconforto, comida ruim e a ameaça constante do chicote, animada somente por uma ocasional ração de vinho ou jogo de dados. Desconfio que ele havia decidido deixar a nova carreira, e talvez tivesse conseguido fazê-lo com um suborno bem aplicado se não fosse pelo General Tokrev.”

Todas as pessoas do Reino se empertigaram ao ouvir o nome, fazendo Astorek piscar, surpreso.

— Vocês conhecem esse nome?

— Ele cometeu muitos crimes na nossa terra natal — disse Vaelin. — Está morto agora.

— Ah. Uma notícia que há muito eu esperava ouvir. Sempre desconfiei que ele não estava destinado a uma vida longa, ainda que, assim como alguns dos vestidos de vermelho, houvesse rumores de que ele já era muito mais velho do que aparentava ser. Conhecíamos a sua reputação. Diziam que era um comandante de brilhantismo tático, mas também de disciplina severa. Quando nos juntamos ao exército, ele estava prestes a enforcar três oficiais por covardia, sendo um deles comandante de batalhão culpado de manifestar sentimentos derrotistas. As ordens de Tokrev eram concentrar os seus esforços nas tribos montanhesas, uma vez que apenas metade da cota de escravos para aquele ano havia sido preenchida, mas ele tinha ambições de ir além, até o norte congelado, onde as lendas falavam de tribos selvagens que viviam no gelo, supostamente muito mais ricas em sangue dotado do que qualquer outro povo do mundo.

“Muitos de seus oficiais, inclusive meu pai, não ficaram nem um pouco felizes com esse plano. Porém, a demonstração de Tokrev foi suficiente para silenciar qualquer discordância e marchamos para o norte, sendo obrigados a enfrentar as tribos ao longo do caminho. Era uma gente feroz, acostumada a uma vida de guerreiro, e um inimigo formidável. Por sorte, também gostavam tanto de lutar entre si quanto de enfrentar os odiados invasores sulistas, de maneira que nunca tinham guerreiros suficientes para serem um sério obstáculo.

“Nosso batalhão recebeu a tarefa de patrulhar os flancos, algo complicado para o comandante mais experiente e muito além das capacidades de meu pai. Basta dizer que o nosso primeiro combate foi um desastre previsível. Meu pai nos conduziu a uma ravina estreita e fomos atacados pelo alto por arqueiros e fundeiros. Seu principal sargento teve perspicácia suficiente para ordenar uma investida que nos levou para campo aberto, mas eles estavam nos esperando do outro lado, mil selvagens ou mais descendo aos gritos das colinas ao redor para nos atacar. Vi meu pai ser derrubado sem demora do cavalo e corri na direção dele, pois, afinal de contas, apesar de todos os defeitos, ele era meu pai. Consegui chegar ao seu lado, mas o machado de um selvagem cortou a pata dianteira do meu cavalo, deixando nós dois a pé e cercados. Meu pai estava ferido, tinha um corte fundo na testa, mal percebia o que estava acontecendo, gritando de horror enquanto o seu batalhão era feito em pedaços. Os montanheses estavam rindo quando se aproximaram, riam do garoto tentando afastá-los com uma espada trêmula enquanto o seu pai tropeçava ao redor e gritava ordens a cadáveres. Aquela foi a primeira vez que aconteceu.

“Vi um grupo de cavalos sendo reunido a pouca distância de onde eu estava. Os selvagens têm poucos cavalos, então os animais eram um grande prêmio. Eu sabia que, se ao menos pudesse nos levar até um cavalo, poderíamos cavalgar para a liberdade. Sabia disso com toda a certeza. Olhei para eles, desejando que ouvissem o meu desespero… E eles vieram, todos de uma vez, escapando dos selvagens e atropelando os que nos cercavam, pisando e escoiceando. Dois pararam ao nosso lado, imóveis como se estivessem congelados. Consegui colocar meu pai na sela e cavalgamos para longe, e cada cavalo sobrevivente veio atrás de nós. Cavalgamos às cegas por uma eternidade até que eu também comecei a perder as forças e notei que sangrava, pelo nariz, pelos olhos, pela boca. Lembro-me de cair do cavalo, e então tudo ficou escuro.

“Fomos encontrados por um grupo de batedores Varitai na manhã seguinte, desacordados em meio a uma manada de cavalos sem cavaleiros. Eles nos levaram de volta ao acampamento, onde o curandeiro-escravo conseguiu despertar o meu pai com algum tipo de mistura de ervas, mas ele não era o mesmo, me encarando com olhos que viam um estranho, balbuciando coisas que somente ele podia compreender. Por mais que estivesse fora de si agora, o General Tokrev ainda assim o julgou incompetente e covarde. Como único herdeiro, fui obrigado a vê-lo ser decapitado. O general decretou que a linhagem dele não era digna de liberdade e me condenou à escravidão. Naturalmente, como a parte prejudicada, toda a riqueza de minha família agora era dele.

“A vida de um escravo raramente é fácil, mas ser um escravo em serviço militar é uma forma particular de tormento. Meus companheiros eram na maioria covardes e desertores, sujeitados a espancamento rotineiro para reprimir qualquer atitude de desafio, o menor sinal de desobediência punível com tortura prolongada e morte, um destino sofrido por três de meus companheiros durante a marcha para o norte. Éramos usados como animais de carga, carregados de fardos que teriam colocado à prova o homem mais forte, alimentados com o mínimo para permanecermos vivos. Havíamos passado de duzentos escravos a menos de cinquenta quando chegamos ao gelo.

“A gloriosa campanha do general começou com a destruição de um pequeno povoado na costa do oceano congelado. Talvez quinhentas pessoas, de estatura pequena e vestidas com peles. Deveria ter sido uma vitória fácil, mas aquela gente não era indefesa, pois de algum modo controlavam ursos. Grandes ursos brancos diferentes dos que já havíamos visto, ursos que pareciam não sentir nada quando flechas ou lanças lhes perfuravam as peles, ursos que faziam companhias inteiras em pedaços antes de serem abatidos. O general foi obrigado a sacrificar uma brigada inteira no combate, e o que se esperava ser uma vitória fácil transformou-se numa carnificina prolongada. O povoado era dele, embora muitos dos habitantes tivessem fugido para o gelo. Os poucos prisioneiros, a maioria homens e mulheres feridos que lutaram na retaguarda para ganhar tempo para que o seu povo fugisse, sentaram-se e recusaram-se a se mover, independentemente de quaisquer tormentos que lhes fossem infligidos pelos capatazes. Eles foram arrastados para dentro de jaulas, mas se recusaram a comer e morreram pouco tempo depois, sem dizer uma única palavra.

“Embora Tokrev não tenha tardado a enviar a Volar um relato exagerado de sua vitória, as tropas não compartilhavam de seu júbilo. O frio já estava causando mortes e o inverno ainda nem havia chegado de vez. Os Espadas Livres olhavam para a vasta extensão de gelo à sua frente com uma grande inquietação. Contudo, ninguém teve coragem de contradizer o general quando ele ordenou que avançassem, e logo me vi puxando um trenó pelo gelo ao lado de uma dúzia de outros infelizes. Todas as manhãs ao acordar víamos que havia cada vez menos de nós, até que em pouco tempo só restara eu e outros três. Os capatazes nos xingavam e batiam, mas não tinham muita opção além de aliviar a carga, deixando provisões vitais para trás porque não havia escravos suficientes para carregá-las. Barrigas começaram a roncar e ânimos a se exaltar, e o medo dos Espadas Livres aumentava a cada passo dado no gelo, medo esse que se mostrou bem justificado.

“O Povo Urso esperou o momento propício, deixando que nossas vidas e comida acabassem a cada quilômetro percorrido, até que os dias ficaram tão curtos que o exército não conseguia percorrer mais de alguns quilômetros por vez. Estranhamente, eu estava mais bem alimentado do que antes. O capataz principal havia conseguido mergulhar para a morte no fundo de uma fenda oculta no gelo, e os seus subordinados sobreviventes estavam esgotados demais pelo frio para prevenir que eu me servisse das rações dos meus companheiros escravos. Todos eles haviam perecido a essa altura, alguns devido aos espancamentos, mas a maioria havia sido levada pelo frio.

“Lembro-me do dia em que vi o general pela última vez, sozinho na frente da coluna. Ele andava de um lado para outro no gelo, pisando firme e impaciente, e me pareceu que esperava por alguma coisa. Graças às minhas forças recuperadas, eu havia começado a alimentar ideias insanas de vingança. Os capatazes cada vez mais negligentes, reduzidos a apenas dois, não notaram quando peguei uma chave de um de seus companheiros mortos, um bêbado que cometera a tolice de desmaiar após se esquecer de enrolar-se bem nas peles. Seria simples soltar os meus grilhões do trenó, correr na direção do general e passar as correntes por sobre a cabeça dele, estrangulando-o antes que os seus Kuritai pudessem reagir. Era um plano impossível, é claro. O homem tinha o dobro do meu tamanho e os seus Kuritai teriam caído sobre mim antes que eu tivesse percorrido metade da distância. Mas eu era jovem, e a esperança sempre é viva nos jovens. E a visão do cadáver decapitado de meu pai jamais desapareceu, por mais tolo que ele tivesse sido.

“Assim, enquanto o general andava de um lado para outro, enfiei a chave no fecho e me preparei para colocar o meu plano em prática. Penso com frequência no que teria acontecido se o homem sem olhos não tivesse aparecido. Provavelmente haveria mais um escravo morto no rastro do exército daquele louco através do gelo. Mas, ainda assim, em meus momentos de menos reflexão, costumo pensar no que teria sentido ao ter aquele homem à minha mercê, somente por um instante, ter consciência do medo dele quando a corrente fosse apertada em volta do seu pescoço.

“Porém, a chegada do homem sem olhos afastou todos esses pensamentos da minha cabeça. Ele não era muito diferente das pessoas que havíamos matado no litoral, vestido com peles, pequeno e de rosto largo, mas em vez de ursos ele havia trazido gatos, gatos muito grandes que saíram da neblina de ambos os lados, fazendo os poucos cavalos sobreviventes empinarem alarmados e uma quantidade considerável de Espadas Livres recuar. Muitos começaram a sacar as espadas, mas foram detidos por uma ordem do general. Para minha grande surpresa, ele começou a conversar com o homem sem olhos, não em alguma língua tribal estrangeira, mas em volariano. Ainda mais chocante foi o seu comportamento, com ombros curvados e cabeça levemente abaixada, a postura de um homem subserviente. As palavras eram baixas, mas ouvi alguns trechos da conversa em meio ao vento constante. ‘Você foi ordenado a esperar’, disse o homem sem olhos ao general. Tokrev pareceu corar, falando o tipo de jargão militar que meu pai adorava, mas raramente compreendia, sobre aproveitar iniciativas e investidas ousadas. O homem sem olhos disse que ele era um tolo. ‘Volte no próximo verão’, falou antes de lhe dar as costas. ‘Se eles lhe deixarem algo com que voltar’. Então ele desapareceu, assim como os seus gatos.

“Permanecemos acampados com o cair da noite, cada alma agora sem dúvida implorando em silêncio para que Tokrev ordenasse uma retirada de manhã. O Povo Urso acabou não lhe deixando alternativa. Os falcões-lanceiros atacaram primeiro, mergulhando do céu noturno às centenas para arrancar olhos de órbitas, rasgar rostos e cortar dedos, de modo que parecia que uma chuva vermelha caía por toda parte. Os Espadas Livres entraram em pânico e somente os Varitai e os Kuritai responderam aos toques de corneta, formando um cordão defensivo ao redor do acampamento. Houve um momento de total calmaria, a noite para além da luz das tochas apenas um vazio silencioso, mas então se ouviu o som, preenchendo a noite, o rugido de mil ursos enfurecidos.

“Eles nos atacaram por dois lados, uma cunha densa de músculos e garras, atravessando os Varitai como se fossem feitos de palha, e então saindo numa disparada destruidora pelo acampamento. Por todos os lados homens tombavam gritando, eviscerados ou decapitados por golpes de garras, os ursos subindo e descendo ao transformar os soldados numa massa sangrenta. A última vez que vi o general ele estava no meio de um grupo de Kuritai, que lutava com toda a habilidade para manter as feras afastadas enquanto ele fugia, seguido de perto por um aglomerado de Espadas Livres enlouquecidos de medo.

“Quanto a mim, eu ainda me encontrava agachado junto ao trenó, agora adornado com os restos dos meus capatazes. Tudo acontecera com tal velocidade que eu mal podia acreditar. Os ursos pareciam satisfeitos em continuar desmembrando cadáveres, mas então vi homens correrem das sombras, muitos homens com lanças, mais ursos correndo ao lado deles e o ar acima tomado pelo estrondo de asas. Num instante eu soube que continuar por mais um momento significaria a morte.

“Soltei-me e fugi para a escuridão, sem me lembrar de pegar algumas provisões, pensando apenas em escapar. Corri até os meus pulmões começarem a arder com o ar congelado, e caí somente quando as minhas pernas cederam. Permaneci deitado e imóvel por algum tempo, tentando recuperar um pouco das minhas forças, mas eu estava cansado demais e fazia muito frio. Achei que seria melhor dormir um pouco, e eu teria caído num sono eterno se não tivesse ouvido o som constante das garras de um urso sobre o gelo atrás de mim. Eu me forcei a levantar e segui em frente, cambaleando, impelido somente pelo terror, mas nem isso foi suficiente para que eu pudesse continuar fugindo e caí mais uma vez.

“Ciente de que minha causa estava perdida, forcei-me a me virar e confrontar o meu perseguidor, uma forma pesada que se aproximava em meio à escuridão, de olhos brilhantes, garras e focinho vermelhos de uma refeição recente. Os volarianos não possuem canções de morte, pois não acreditam que haja deuses ou almas elevadas para ouvi-los, mas naqueles momentos finais me vi pensando mais uma vez nos sonhos tolos de meu pai e em como eu gostaria de ter encontrado coragem para lhe perguntar sobre a minha mãe.”

Astorek calou-se e agora tinha o olhar distante, franzindo a testa, intrigado, como se estivesse se lembrando de algo que não compreendia plenamente. Vaelin conhecia bem aquela expressão, que tantas vezes já estivera em seu próprio rosto.

— O lobo — disse ele.

— Sim. — Astorek deu um leve sorriso. — O urso parou a alguns metros de mim, rosnando, com um brilho malicioso no olhar que eu só tinha visto nos olhos de homens. Ele parecia estar saboreando o momento e aproximou-se devagar até que o seu focinho ensanguentado estivesse a poucos centímetros de mim, seu hálito quente e fedorento em meu rosto… E então ele parou.

“Eu havia fechado os olhos, recusando-me a encarar aquele olhar cheio de ódio, mas quando senti o seu hálito se afastar, abri-os de novo. O urso estava encolhido, de cabeça baixa, os olhos agora iluminados por outro traço humano: medo. Não de mim, é claro, mas de algo atrás de mim. Então me virei e vi um lobo.

“Percebi duas coisas de imediato. Primeiro, ele era grande, maior do que o urso que agora se encolhia diante dele, na verdade. Segundo, os olhos. Olharam nos meus e eu soube… Ele estava me vendo, por completo, pele, ossos, coração e alma. Estava me vendo e não sentia qualquer malícia.

“Ouvi o som de algo sendo raspado e me virei para ver o urso fugindo para noite adentro a toda a velocidade, a forma branca logo engolida pela escuridão. O lobo andou à minha volta durante algum tempo, seu olhar ainda fixo em mim. Apesar de toda a estranheza e do terror, eu ainda sentia o frio intenso me envolver, o suor na minha pele agora congelado, sugando o que me restava de forças. Minha visão começou a ficar turva e eu soube que logo encontraria a morte… Então o lobo rosnou.

“Não foi uma voz que entrou na minha cabeça naquele momento e sim mais uma certeza, uma convicção implacável de que eu não podia morrer ali. Tirei forças de algum lugar para me levantar e o lobo partiu a trote em direção ao norte, parando depois de algum tempo para certificar-se de que eu o estava seguindo. Arrastei-me em seu encalço por incontáveis horas, ou possivelmente dias, pois toda a noção de tempo pareceu sumir. Se eu vacilava ou sentia um desespero crescente que me tentava a afundar no gelo onde pelo menos poderia descansar, o lobo rosnava, e eu continuava me movendo.

“Paramos quando o fogo verde começou a ondular no céu. Sem saber o que era, finalmente caí de joelhos, achando que era uma visão de morte, ou de loucura. Talvez eu já tivesse morrido e todos os meus tutores estivessem enganados. Havia algo nos esperando do outro lado do arco da vida. A essa altura eu já não sentia medo algum, assim como quase todas as outras sensações, entorpecido como estava. Naquele momento havia apenas aceitação, um sentimento de uma jornada completa.

“E o lobo uivou.”

Astorek fechou os olhos e Vaelin sentiu a mão de Dahrena entrelaçar-se com a sua, consciente de que ela também estava se lembrando do uivo do lobo, daquela noite na floresta quando os seordah atenderam ao chamado dele para a guerra. Vaelin sabia que Astorek não podia descrever como foi a sensação, o som que parecia anular tudo, exceto o âmago daqueles privilegiados, ou amaldiçoados, por ouvi-lo.

— Eu teria chorado — disse o jovem xamã, reabrindo os olhos para encarar a sua plateia com um sorriso melancólico — se as minhas lágrimas não tivessem congelado nos olhos. O uivo do lobo cessou e ele me encarou uma última vez, e então partiu, saltando sobre o gelo. Olhei para o fogo no céu durante algum tempo e então me deitei para dormir. Matador de Baleia deve ter me encontrado poucos minutos depois, pois eu ainda estava vivo ao amanhecer.

— E você permaneceu aqui desde então? — perguntou Vaelin. — Nunca tentou voltar para casa?

— Para que casa eu voltaria? Tudo o que eu tinha havia desaparecido. Além do mais, quando eles retornaram no verão seguinte, compreendi muito bem a torpeza do meu antigo povo. Ficamos sabendo sobre a grande batalha do Povo Urso com o Povo Gato, que eles haviam fugido para o oeste em busca de presas mais fáceis. O Povo Lobo não lamentou vê-los partir do gelo, pois eles haviam adotado costumes insensatos. Porém, embora o Povo Urso tivesse conquistado uma vitória, suas baixas significavam que não podiam resistir a outra expedição volariana, ainda mais porque os volarianos haviam aprendido bem a lição e voltaram melhor equipados e em número muito maior. Quando terminaram com o Povo Urso, eles vieram atrás de nós.

“Muitas Asas me ensinara muito, e eu era um aluno bastante determinado. Ela esperava me proteger do conflito, mas eu queria retribuir a bondade deles. Matamos muitos volarianos juntos, meus lobos e os falcões dela, atacando onde eles eram mais vulneráveis, fugindo antes que pudessem revidar. Nós os atacamos durante meses, até que a linha de marcha deles tornou-se uma mancha vermelha no gelo. Mas sempre havia mais, e, embora eu o procurasse, nunca mais encontrei o rastro de Tokrev. Eles pararam de vir há dois invernos. Pensamos que finalmente os havíamos convencido a nos deixar em paz, mas parece que eles atravessaram a grande água para atormentar o seu povo, e sentimos muito por isso.”

Vaelin olhou para Kiral, que assentiu lentamente. Ela não está ouvindo mentiras… Assim como não ouvi mentiras ditas por Barkus.

— Eles virão de novo — prosseguiu Astorek, olhando fixamente para Vaelin. — Em números ainda maiores. Mas agora temos você, Sombra do Corvo.

A cabana que Alturk escolhera para isolar-se era precária, pouco mais do que um barraco inclinado numa pequena clareira afastada do povoado principal. A porta cedeu facilmente sob a bota de Vaelin, liberando o odor fétido de um homem sujo que se entregara à bebida. O corpo volumoso de Alturk estava deitado numa cama de peles, roncando alto, cercado pelos cantis de dente de morsa que os anfitriões usavam para armazenar cerveja de pinho, todos vazios. O adormecido Alturk não deu qualquer sinal de ter notado a intrusão, algo que mudou de forma brusca quando Vaelin esvaziou uma tigela cheia de água gelada sobre a cabeça desgrenhada do lonak.

A explosão de fúria foi instantânea, e o homem levantou-se de um pulo, com o porrete de guerra na mão e os dentes arreganhados. Ele parou ao avistar Vaelin na entrada da cabana, uma expressão confusa passando pelo rosto molhado.

— Escolheu morrer agora, merim her? — perguntou ele, sibilando.

Sorbeh Khin — disse Vaelin, a expressão lonak para um desafio formal. — Você não está mais em condições de liderar os Senthar. Eles são meus agora. Se quiser ficar com eles, lute comigo. — Ele deu meia-volta e foi para a clareira, onde os Senthar aguardavam, assistindo a tudo com expressões de grave compreensão. Kiral havia explicado os motivos de Vaelin e, para a sua surpresa, ninguém fizera objeção.

— Cães traiçoeiros — rosnou Alturk para eles ao sair da cabana, e em seguida começou a gritar em lonak numa diatribe breve porém veemente que pareceu não comover ninguém.

— Você não dá mais ouvidos às ordens da Montanha — disse Kiral a ele. — Está se tornando varnish. Este homem está lhe dando uma chance de provar o contrário.

Alturk não disse nada, consentindo apenas em olhar com desprezo para ela antes de encarar fixamente Vaelin, apertando com força o porrete de guerra.

— Onde está a sua arma?

Vaelin estendeu as mãos, mostrando que não havia adaga em seu cinto, nem espada em suas costas.

— Por que eu precisaria de uma arma? Você não oferece qualquer ameaça.

Alturk olhou furioso para ele por mais um momento, e então começou a gargalhar, jogando a cabeça para trás e fazendo o seu divertimento ecoar pelas árvores ao largar o porrete.

— Eu deveria lhe agradecer — disse ele quando finalmente parou de rir. — Nem todo homem consegue tornar os seus sonhos realidade.

Ele avançou sobre Vaelin correndo agachado. O tempo passado entre o Povo Lobo ajudara em muito a recuperar a sua constituição física e, apesar de toda a cerveja de pinho na barriga, a velocidade do lonak era impressionante, deixando apenas uma fração de segundo para Vaelin desviar-se da investida e desferir um soco em seu maxilar. Alturk grunhiu de dor, mas não vacilou, respondendo com um rápido soco giratório. Vaelin bloqueou com os dois braços e enfiou o cotovelo no rosto exposto do lonak, seguindo com uma série de socos no rosto e na barriga, esquivando-se dos contragolpes de Alturk enquanto o fazia recuar, acertando cada soco com precisão… até que ele segurou um com a mão e deu um murro na têmpora de Vaelin.

Ele cambaleou para trás com o impacto, o mundo subitamente um borrão enquanto lutava para assumir uma postura de combate. Porém, Alturk não lhe deu a oportunidade, dando uma rasteira e atingindo outro soco em seu rosto. O mundo desapareceu por um momento e Vaelin só conseguia ver uma sombra vaga, cercada por estrelas cintilantes…

— Você — disse Alturk entre dentes, erguendo o punho pesado para dar outro golpe. — Você fez do meu filho um varnish. Eu o vejo todas as noites, vejo-o morrer todas as noites, por causa de você, merim her.

— Eu poupei um garoto — retorquiu Vaelin, cuspindo sangue e sentindo seu olho esquerdo fechar-se com o inchaço. — Você matou um homem… um homem que fez as próprias escolhas. — Ele então viu, um lampejo de algo nos olhos do lonak, um espasmo de expressão no rosto marcado. — Você sabia — disse Vaelin, compreendendo. — Sabia que ele o havia traído muito antes de matá-lo.

Alturk rosnou de novo, levando o punho ainda mais para trás. Vaelin pigarreou e cuspiu sangue nos olhos do lonak, conseguindo tempo suficiente para girar e chutá-lo na lateral da cabeça. Ele se ergueu depressa quando Alturk cambaleou para trás, correndo e dando uma cabeçada no diafragma do lonak, levantando a cabeça em seguida e o atingindo no maxilar. Vaelin complementou com mais socos no rosto, e Alturk se encolhia a cada golpe, agitando os braços à medida que tentava repelir o ataque. Vaelin por fim o deixou de joelhos com um gancho de direita no queixo.

Vaelin parou, o peito arfando, sangue escorrendo dos punhos e pingando no chão da floresta.

— Nishak me contou — disse Alturk numa voz apática e cansada, erguendo os olhos para ele, o sangue escorrendo de vários cortes. — Eu… não dei ouvidos. — Ele abaixou a cabeça, encolhendo-se, resignado. — Não peço a faca.

Kiral surgiu ao lado de Vaelin com o porrete de guerra de Alturk na mão.

— Atinja em cheio — disse ela, oferecendo a arma a Vaelin. — Ele ao menos merece um fim rápido.

Kiral se calou de repente e empertigou-se, voltando o olhar para o sul. Pela expressão de dor em seu rosto, Vaelin sabia que a canção da lonak devia estar emitindo uma nota poderosa. No entanto, desta vez ele não precisou perguntar o significado, pois pôde ouvir outro aviso, atravessando o gelo e a floresta, inegável e implacável. Os Senthar remexeram-se pouco à vontade e trocaram olhares temerosos, pois o uivo de nenhum lobo já soara tão alto.

Vaelin virou-se para Alturk quando o uivo cessou e o encontrou de pé; a postura de derrota havia desaparecido de seus ombros e havia uma certeza ardente em seu olhar.

— Vou precisar disso — disse ele, indicando o porrete de guerra.

Vaelin olhou para Kiral, esperando que ela fizesse alguma objeção, mas a expressão da lonak foi de grave consentimento, ainda que relutante.

— Urso Sábio possui algumas habilidades de cura — disse ele a Alturk. — Ele pode dar pontos em seus cortes.

Alturk apenas grunhiu.

— Se eu estivesse sóbrio, você estaria morto agora.

Vaelin deu uma leve risada e jogou o porrete de guerra para as mãos do lonak.

— Eu sei.