CAPÍTULO QUATRO

Lyrna

— A Armadilha do Ladrão — disse Lyrna, surpresa com a calma pensativa que ouviu na própria voz.

— Alteza? — Murel olhou para ela da portinhola que estava tentando manter fechada apesar do vendaval que a açoitava como um monstro invisível tentando entrar.

— Um aspecto raro do jogo longo — disse Lyrna. — Qualquer peça tomada pelo ladrão pode ser usada pelo jogador que a tomou. A armadilha envolve sacrificar ambas as peças alguns movimentos depois, dando a ilusão de fragilidade no centro do tabuleiro. Um estratagema empregado apenas pelos jogadores mais habilidosos.

E eu sou uma tola arrogante, acrescentou Lyrna mentalmente.

Começara duas horas antes, desabando numa torrente negra ensurdecedora enquanto ela observava os trinta navios da Senhora Reva aproximarem-se do litoral indistinto. Em questão de minutos o mundo para além do Rainha Lyrna havia desaparecido e Iltis a arrastara em direção à cabine enquanto marinheiros tentavam freneticamente manter o cordame no lugar. Lyrna avistou o Irmão Verin, que estava paralisado pelo pânico no convés alvoroçado, e fez um sinal para que Benten o tirasse dali.

— Esta tempestade não é natural — disse ela, virando-se para o irmão quando Iltis bateu a porta contra a fúria do exterior. — É?

— Alteza, eu… — O jovem irmão sacudiu a cabeça, suas feições tomadas pela perplexidade e pelo choque. — É sabido que alguns possuem o poder para mudar o vento, mas isso… — O irmão empalideceu diante da consternação óbvia dela, gaguejando ao se forçar a continuar: — Houve… alguma coisa, quando os navios se aproximaram da costa.

— Que coisa?

— Era tênue, mas a senti. Uma… queimação, por assim dizer. Geralmente é sentida quando outro dotado morre, como se todo o poder da pessoa emanasse dela de uma só vez.

Lyrna afastou-se dele e sentou-se no catre, perdida na enormidade de seu erro. Matei Arklev cedo demais. Se bem que duvido que ele soubesse o seu verdadeiro papel. Ela se entregou à contemplação enquanto o navio balançava e rangia à sua volta, uma vez que não havia muito mais a se fazer. A Armadilha do Ladrão leva à vitória em menos de dez movimentos adicionais, desde que o jogador aproveite a oportunidade com um ataque rápido contra o Imperador oponente.

— Lirhnah?

Ela ergueu a cabeça e encontrou Davoka parada à sua frente, a preocupação estampada no rosto. Atrás dela Murel afastou-se da portinhola, agora aberta e revelando um céu ensolarado. Pela altura do sol, ela calculou que ficara sentada em meditação silenciosa por algumas horas.

— Preciso falar com o capitão.

O comando diário do Rainha Lyrna havia sido entregue a um nilsaelino chamado Devish Larhten, um veterano magro das rotas de comércio até os Confins do Norte, que também comandara uma belonave na frota do pai de Lyrna durante a guerra alpirana. Ela o encontrou junto ao mastro principal supervisionando os reparos num pedaço do convés arrebentado por um bloco que caíra. Felizmente, esse foi o único dano considerável que haviam sofrido.

— Alteza — cumprimentou o capitão, erguendo o olhar quando a notou indo em sua direção, claramente ocupado com a sua tarefa.

— Capitão, vire este navio para o sul e prepare-se para a batalha. — Ela olhou para o oceano ao redor e viu somente quatro outros navios; o litoral havia sumido de vista. Espalhados e prontos para serem abatidos, pensou Lyrna, contendo uma onda de autocensura. Deixe para se afogar em sua culpa mais tarde. — E faça sinal para aqueles navios se aproximarem de nós.

— Tudo ao seu devido tempo, Alteza. Temos muito que…

— Faça isso agora! — gritou ela. — A frota volariana está agora ao norte de nós e não duvido que ataquem dentro de uma hora.

Larhten olhou rapidamente para Iltis, que dera um passo determinado à frente.

— Agora mesmo, Alteza — disse o capitão antes de se afastar e berrar uma torrente de ordens.

— Encontre a Senhora Alornis — disse Lyrna a Murel. — Ela deve se assegurar de que as suas máquinas estejam funcionando perfeitamente. Lorde Benten, diga a Lorde Comandante Nortah para preparar o seu regimento para a batalha, por favor.

* * *

O Capitão Larhten aconselhou que seguissem para oeste durante algum tempo, argumentando que encontrariam mais embarcações do Reino navegando mais afastados da costa. No meio da tarde eles já haviam reunido outros quarenta navios, alguns com mastros e cordames faltando, mas todos capazes de seguir em frente. Como era de se esperar, os navios meldeneanos eram os menos danificados, e Lyrna ficou feliz ao ver o Falcão Vermelho entre eles, o Senhor Marinho Ell-Nurin acenando da proa quando o navio aproximou-se. Até então somente ele o Rainha Lyrna haviam sido equipados com a máquina cuspidora de fogo de Alornis, nas quais agora depositava uma boa dose de esperança.

— Poderíamos seguir para a costa, Alteza — sugeriu o capitão a Lyrna, que estava parada na amurada com os olhos fixos no horizonte. — Recolher mais alguns desgarrados no caminho.

Ela passou os olhos pela sua frota e encontrou dois dos grandes navios de tropas presentes, assim como uma boa quantidade de meldeneanos.

— Não — disse Lyrna. — Ancore e encha um dos barcos com todos os trapos e madeira de que puder dispor, cubra-o de piche para se certificar de que faça fumaça e coloque fogo. Faça sinal aos outros navios para fazerem o mesmo.

Desta vez o nilsaelino sabia que era bom não se demorar e o barco logo foi deixado à deriva, lançando ao céu uma coluna alta e serpenteante de fumaça negra, logo acompanhada por outras dezenas quando os outros navios fizeram o mesmo.

— Um belo farol, Alteza — congratulou-a Larhten com uma mesura.

— Obrigada. — Lyrna olhou para o norte. Apesar de ser provável que atraia tanto inimigos quanto amigos.

Os volarianos surgiram quando o sol começou a se pôr, pelo menos cem mastros despontando do horizonte setentrional, e mais continuaram a aparecer sem parar. O farol de Lyrna reunira mais de trinta outros desgarrados enquanto aguardavam ancorados, mas ela sabia que seria fatal demorar-se mais.

— Içar todas as velas, capitão — disse a Larhten. — E faça sinal para o Falcão Vermelho permanecer a estibordo de nós. Os outros navios devem nos seguir.

Larhten assentiu gravemente, olhando para a frota volariana com um receio justificado porém controlado.

— O curso, Alteza?

Lyrna gargalhou ao se afastar, indo para a proa.

— Na direção do inimigo, meu senhor. O mais rápido possível.

Ela encontrou Alornis ocupada com a inspeção da máquina, suas mãos movendo-se com uma velocidade e uma agilidade que pareciam quase sobrenaturais.

— Algum dano, minha senhora?

— Tive que drenar água dos tubos. E os encaixes precisam de um leve ajuste. — Alornis ergueu uma marreta e começou a bater num tubo de cobre na parte de baixo da máquina. — Mas irá funcionar, Alteza.

— Ótimo. Vá para baixo. Lordes Iltis e Benten cuidarão da máquina.

Alornis nem mesmo ergueu os olhos, continuando a martelar enquanto os volarianos se aproximavam cada vez mais. Lyrna suspirou e virou-se para Murel.

— Há outra cota de malha na minha cabine. Busque-a para a Senhora Alornis, por favor. — Ela puxou Davoka de lado e falou em voz baixa em lonak: — Ela não deve se ferir, irmã. Prometa-me.

— Meu lugar é ao seu lado.

— Não hoje. — Lyrna agarrou o braço da lonak. — Ela é sua irmã hoje. Prometa-me.

— Você teme tanto assim a ira do irmão dela?

Lyrna baixou os olhos.

— Você sabe que não é a ira dele que temo.

Davoka assentiu com relutância, pegou a cota de malha com Murel e foi até Alornis.

— Vista isso, pequena.

Lyrna juntou-se a Lorde Nortah, que organizava um grupo de combates no convés, cinquenta de seus melhores soldados equipados com largos painéis de madeira para se protegerem das flechas.

— Meu senhor, eu gostaria de me dirigir às suas tropas.

Ele fez uma mesura e deu uma ordem brusca, e a companhia ficou em posição de sentido, batendo as botas em uníssono. Lyrna examinou os seus rostos, feliz por não encontrar medo neles e pela devoção que continuava visível em cada olhar.

— Eu disse uma vez que não mentiria para vocês — disse a eles. — E não mentirei. Estamos diante de uma luta árdua porque cometi um erro terrível. Mas também não minto quando digo que esta batalha pode ser vencida, se ficarem comigo.

O grito instantâneo de aclamação foi suficiente para convencê-la de que não era necessário dizer mais nada.

— Não poupem inimigo algum — disse Lyrna a Nortah. — Cada volariano que pisar neste convés deve ser morto antes que possa dar outro passo.

Diferente de seus soldados, Lorde Nortah concordou em voz baixa, seu rosto franzido da mesma forma cautelosa que sempre exibia na presença dela.

— Cuidarei disso, Alteza.

Ela voltou para a proa e posicionou-se na plataforma elevada, logo atrás de Alornis e da máquina. Benten e Iltis estavam perto em ambos os lados, enquanto Murel permanecia atrás, de adaga na mão. Davoka agachou-se ao lado da máquina, a lança abaixada e preparada.

— Eu deveria ir buscar algum escudo, Alteza — disse Iltis. — Tinha muitas flechas deles nos Dentes, como a senhora deve se lembrar.

— Lembro-me muito bem, meu senhor. Mas isso não será necessário.

Lyrna observou os navios volarianos chegarem ainda mais perto, a embarcação que vinha à frente a uma distância de quinhentos metros. Ela olhou para estibordo e ficou satisfeita ao avistar o Falcão Vermelho ao lado, onde um homem estava a postos em outra máquina. Lyrna só esperava que ele tivesse sido ensinado a usá-la adequadamente. Uma olhada para a popa confirmou que os outros navios em sua pequena frota seguiam numa fila estreita e organizada, cada convés apinhado de soldados e piratas.

A balista a bombordo começou a ranger quando os navios volarianos se aproximaram, disparando os seus virotes contra o cordame de uma pequena porém veloz belonave que entrara em seu caminho. A princípio, o jorro arqueado de projéteis pareceu não surtir qualquer efeito, mas eles logo foram recompensados ao verem uma figura despencar do mastro da belonave e cair com força no convés, fazendo a equipe da balista soltar um brado de comemoração no mesmo instante. Contudo, os arqueiros volarianos logo colocaram as próprias armas em jogo, e uma chuva de flechas caiu sobre o Rainha Lyrna de uma extremidade à outra. Lyrna viu uma flecha cravar-se nas tábuas a um braço de distância, mas conseguiu controlar o instinto de se encolher. O medo é um luxo hoje. Eles precisam ver uma rainha.

A balista a bombordo continuava a ranger, o tripulante que girava o mecanismo vibrava empolgado com o efeito que estava tendo contra a embarcação volariana, o seu primeiro virote atingindo com força suficiente para prender um homem ao convés. Uma dúzia ou mais de Espadas Livres que estavam muito perto uns dos outros tombaram quando os arqueiros no cordame do Rainha Lyrna se juntaram ao combate, causando destruição na belonave enquanto a embarcação tentava se afastar, coberta de cadáveres.

Um estrondo chiado atraiu a atenção de Lyrna de volta à proa, onde foi recebida com a visão de Alornis erguendo ao máximo a máquina, e um jorro de fogo foi expelido em arco na direção da embarcação volariana que se aproximava. Era um dos navios de tropas, pouco menor do que o Rainha Lyrna, os arqueiros no cordame disparando uma chuva de flechas sobre eles conforme se aproximavam a toda a velocidade. A princípio o jato de fogo de Alornis caiu no mar, levantando vapor suficiente para ocultar por um momento o navio atacante. Porém, quando o vapor se dissipou, viram o fogo envolvendo a proa do navio, do mar até a amurada. A embarcação volariana pareceu estremecer, seu curso mudando de forma abrupta como um javali ferido recuando diante da ponta de uma lança.

Alornis virou-se com um olhar furioso para os dois soldados que manuseavam o fole.

— Mexam com mais força! Preciso de mais pressão!

Ela realinhou a máquina enquanto a embarcação volariana balançava diante deles, soltando outra torrente de chamas que envolveu a lateral do navio antes de subir para se espalhar pelo convés, queimando homens e cordames, sem distinção. Corpos flamejantes começaram a saltar do navio, e um coro de gritos lhes chegou aos ouvidos em meio à fumaça que se adensava, acompanhado do fedor de carne queimada. Alornis vacilou nesse momento e tirou a mão da manivela, fazendo as chamas se apagarem, suas feições pálidas e retesadas.

Lyrna foi rapidamente para o seu lado, colocou a mão em seu ombro e a virou para si.

— Um fardo que não pode ser evitado, minha senhora — disse ela, pegando a mão de Alornis e a colocando de volta com firmeza na manivela. — Ao trabalho, por favor.

Uma flecha atingiu a máquina, a ponta de aço estilhando-se nos encaixes de ferro e a seta rodopiando para longe. Alornis mal pareceu notar, o rosto pálido ainda imóvel ao assentir e voltar ao trabalho, alterando o ângulo da máquina para lançar chamas contra as velas volarianas. Lyrna podia ver homens correndo pelo navio carregando baldes para enfrentar chamas que não se apagavam. Em pouco tempo o cordame estava pegando fogo e a tripulação começou a abandonar o navio com uma rapidez frenética, com homens deixando rastros de fogo ao caírem no mar às dezenas.

Lyrna olhou em volta à procura de outra vítima e avistou uma belonave veloz a cerca de duzentos metros a bombordo.

— Diga ao capitão para ir na direção daquele navio — disse ela a Murel antes de se virar de novo para Alornis. — Minha senhora, creio que a sua máquina precisa de mais combustível.

Ao anoitecer eles já haviam aberto caminho a fogo pelo meio da formação volariana, dividindo a frota deles em duas e semeando o caos e o pânico em cada marinheiro e Espada Livre, que presenciavam o espetáculo de uma dúzia de belonaves queimando na escuridão que se adensava. Mas a batalha não havia terminado. Embora tivessem perdido a coesão, os volarianos continuavam lutando, navios empreendendo ataques solitários e frequentemente suicidas, logo deixados ardendo na trilha do navio de Lyrna ou atacados pelos meldeneanos. Somente um conseguiu chegar perto o suficiente para atacar o Rainha Lyrna. O timoneiro volariano demonstrara uma habilidade considerável ao deixar a embarcação fora de alcance do engenho de Alornis e então girar a cana do leme para chocar-se contra o casco do Rainha Lyrna a estibordo, e o contingente de Varitai a bordo estendeu escadas e atravessou correndo o espaço entre os dois navios, apesar das baixas terríveis causadas pela balista e pelos arqueiros que se encontravam no alto.

A companhia de Lorde Nortah bateu-se com eles antes que tivessem percorrido mais do que alguns metros do convés, atacando com uma ferocidade disciplinada que fazia jus aos meses de treinamento. O próprio Lorde Comandante abriu um caminho sangrento pelas fileiras Varitai, desfazendo a formação deles, lutando com uma habilidade e precisão inconscientes que Lyrna não via desde os dias que passara com o Irmão Sollis. Sua gata guerreira lutava ao seu lado, matando a cada golpe que dava com as garras. Com todos os Varitai mortos ou forçados a saltar pela amurada, Nortah reuniu os seus soldados numa cunha compacta e os conduziu para o navio volariano, sobrepujando o resto da tripulação que se defendia desesperada em volta do mastro principal. Alguns evidentemente haviam tentado se render, a julgar pela quantidade de homens desarmados que Lyrna viu serem jogados ao mar.

— Alteza! — Um marinheiro chegou correndo do leme, apontando para bombordo. — O Capitão Larhten pediu para informar que há mais navios a oeste.

Lyrna olhou para dentro do crepúsculo, discernindo os contornos tênues de mastros altos. Parece que não haverá muito alívio com a escuridão. Ela olhou para leste, onde o Falcão Vermelho podia ser visto, o fogo jorrando de sua proa e envolvendo um navio de tropas volariano. Mais adiante, outras embarcações meldeneanas atacavam o restante da linha inimiga, o céu iluminado pela cascata contínua de bolas flamejantes enquanto as manganelas executavam o seu trabalho mortal.

— Diga ao capitão para virar para oeste — disse Lyrna ao marinheiro. — E faça sinal para que as embarcações do Reino nos sigam. Nossos aliados estão com as coisas sob controle.

Infelizmente, era evidente que uma mão invisível ainda exercia alguma forma de comando sobre a frota volariana e não tinha desejo algum de permitir que ela enfrentasse a nova ameaça. Uma esquadra de dez embarcações separou-se do aglomerado central de navios e partiu na direção deles a toda a velocidade. O vento estava a seu favor e eles conseguiram se posicionar diretamente no caminho do Rainha Lyrna, virando os navios para ficar de frente para a embarcação do Reino, flechas e virotes de balista cobrindo o ar entre eles ao se aproximarem. Lyrna entrelaçou as mãos e permaneceu imóvel enquanto o ar zunia ao seu redor, e um virote atravessou o seu cabelo logo abaixo da orelha. Iltis colocou o seu corpanzil na frente dela, levando o braço ao rosto como se estivesse se protegendo da chuva e soltando um grunhido quando uma flecha raspou em seu antebraço.

Lyrna virou-se para Alornis com um olhar questionador enquanto ela terminava de reabastecer a máquina.

— É tudo o que resta do óleo, Alteza — informou ela, a voz tão inexpressiva quanto o rosto.

— Não poupe nada, minha senhora — advertiu Lyrna. — Um navio em chamas causa mais impressão do que um chamuscado.

O primeiro navio volariano a ficar ao alcance da máquina era de calado consideravelmente menor do que o do Rainha Lyrna e Alornis foi obrigada a abaixar o bico da máquina quando a embarcação passou por eles, envolvendo-a por completo em chamas da proa à popa, provocando o agora familiar coro de gritos. Alornis conseguiu fazer outro disparo substancial contra a embarcação seguinte, um navio de tropas consideravelmente maior, bem equipado com balistas e arqueiros. O jato de fogo conseguiu arrancar vários do cordame, mas não antes que matassem uma dúzia ou mais de Guardas do Reino e a equipe que manuseava a balista a bombordo.

Lyrna virou-se e viu os últimos vestígios de fogo pingarem do bico da máquina; Alornis encontrou o seu olhar e pediu desculpas com uma mesura. Lyrna a encaminhou para a balista agora silenciosa.

Apesar das chamas que ainda consumiam suas cordas e velas, o navio de tropas volariano manteve o curso, com um batalhão inteiro de Espadas Livres reunido no convés. Lyrna estava prestes a ordenar que Nortah trouxesse o resto do seu regimento, mas viu que o Lorde Comandante havia antecipado essa necessidade, os soldados correndo para entrar em formação com extraordinária precisão apesar do tumulto que havia por todos os lados.

A balista a bombordo voltou à vida; Alornis mirava enquanto Davoka girava a manivela. Lyrna acompanhou o voo de um virote que atravessou o espaço entre as duas embarcações e ceifou a vida de um oficial Espada Livre volariano que tivera a insensatez de permanecer de pé junto à amurada, sem dúvida como exemplo aos seus homens. Ela esperava que tivessem aprendido bem a lição.

— Alteza! — Era Larhten, chamando do leme e apontando para algo além do navio volariano. Lyrna piscou para afastar a ardência nos olhos e tentou avistar algo em meio à fumaça. O Rei Malcius, percebeu ela quando a vista ficou desimpedida. Que apropriado o meu irmão vir para me salvar.

O Rei Malcius vinha a toda a velocidade, seus arqueiros disparando uma saraivada de flechas incendiárias contra o navio de tropas volariano antes de chocar-se com estrondo contra o casco a estibordo. As fogueiras que agora apinhavam o mar pintaram o espetáculo subsequente com sombras bruxuleantes. A cena de um bando de homens cobertos de metal correndo do Rei Malcius para atacar os Espadas Livres parecia de algum modo surreal, como algo saído de um sonho, ou de um pesadelo.

O olhar de Lyrna logo foi atraído pela visão de um homem corpulento lançando-se contra o grupo mais compacto de volarianos, sua maça subindo e descendo com mortal eficácia. Ao seu lado havia uma figura mais alta e mais esguia brandindo uma espada longa. Ela assistiu enquanto os dois juntos abriram caminho a golpes pelo navio, seus cavaleiros seguindo numa massa entrechocante de aço, rechaçando os Espadas Livres para trás com tal fervor assassino que a maioria preferiu a duvidosa segurança do mar a permanecer no navio e lutar. Quando o Rainha Lyrna enfim parou ao lado do navio de tropas, as duas figuras se encontravam na amurada a bombordo, onde removeram os elmos e a cumprimentaram com uma mesura.

— Boa noite, meus senhores! — gritou ela ao Senhor Feudal Arendil e ao seu avô.

— Perdoe-me, Alteza — gritou Banders em resposta, o rosto largo coberto de suor —, mas iremos desembarcar logo? Mais uma semana no mar e meus cavaleiros provavelmente irão me enforcar!

Lyrna virou-se para contemplar a cena, o céu agora negro e a única iluminação vindo dos vários navios em chamas. O tumulto do combate havia cessado, embora ela ainda pudesse ouvir homens gritando em algum lugar, vozes pedindo ajuda em volariano misturadas com o estranho som gorgolejante que acompanhava um navio afundando.

— De fato, meu senhor! — gritou ela a Banders. — Já passou da hora de desembarcarmos!

O navio se encontrava sobre a areia como uma grande fera ferida, os mastros cortados e boa parte da madeira removida das laterais do casco, expondo a trama complexa de vigas que de algum modo conseguira mantê-lo intacto. Foi Benten quem o reconheceu como o Senhor Feudal Sentes; o seu olhar de marinheiro experiente era capaz de discernir as leves diferenças que distinguiam um navio de outro.

— Parece estar muito para dentro da praia para que pudesse ser levado pela maré — disse ele. — É espantoso que ainda esteja inteiro.

A curta viagem até a baía revelara apenas cinco dos trinta navios que navegavam com a Senhora Reva, todos severamente danificados e mal se mantendo à tona, embora suas cargas preciosas de tropas e suprimentos estivessem em sua maioria intactas. Com o Sentes chegavam a seis, mas o navio não podia ser considerado em condições de navegar. Ao todo, pouco mais de dois terços da Frota da Rainha haviam sobrevivido à tempestade, apesar de as baixas terem sido severas e a batalha com os volarianos tivesse ceifado outras mil vidas. Embora Lyrna visse o rubor da vitória em muitos rostos, ela sabia que a batalha na verdade não fora decisiva, e o Senhor Marinho Ell-Nurin estimava que haviam capturado ou afundado no máximo metade da frota volariana.

— Quem quer que os estivesse comandando teve sensatez suficiente para recuar sob a proteção da noite — concluiu ele. — Um de nossos navios de reconhecimento relatou ter avistado velas no horizonte ao sul.

Lyrna pegou o primeiro barco para a praia, calando todos os protestos com um olhar intenso e silencioso. O momento para cautela havia acabado na tempestade. Apesar de toda a aclamação com que foi recebida pelos navios ao redor enquanto o barco seguia a caminho da costa, ela sabia que a moral ainda despencaria como uma pedra quando a realidade da situação em que se encontravam ficasse aparente. Eles precisam ver uma rainha.

Foi acompanhada pelo Lorde Comandante Nortah e uma companhia inteira de Adagas da Rainha. O Irmão Sollis levou para o norte um aglomerado de barcos repletos com o que restava da Sexta Ordem, enquanto o Conde Marven levou os seus melhores nilsaelinos para proteger as rotas de aproximação ao sul. Eles foram obrigados a remar em meio a diversos cadáveres, e Lyrna ficou surpresa ao ver que a maioria era de volarianos, balançando nas ondas com flechas cravadas nas armaduras.

A maré estava baixa e as ondas não estavam se quebrando na praia quando pararam na areia, e Lyrna saltou do barco antes que Iltis pudesse fazer objeção. Ela o ouviu abafar um xingamento ao pular atrás dela na água que lhe chegava até a cintura. Lyrna seguiu pelo mar na direção do navio, passando os olhos pelo casco parcialmente arruinado e dando com vários rostos a encarando, embora agora não houvesse vozes aclamadoras, e a maioria simplesmente estivesse pálida de exaustão. Ela notou um amontado escuro de corpos volarianos na praia, cerca de duzentos homens e cavalos cobertos de flechas.

— Pensaram que éramos alvo fácil — gritou uma voz do alto do Sentes, e o olhar de Lyrna encontrou um homem robusto parado numa das fendas no casco do navio, segurando um arco longo e olhando para baixo na direção dela com uma gravidade que contrastava com o costumeiro respeito cauteloso que os soldados cumbraelinos demonstravam para com ela. — Provamos que estavam errados.

Lyrna olhou para ele e continuou o encarando até ele acrescentar um “Alteza” numa voz seca.

— Lorde Antesh — disse ela. — Onde está Senhora Reva?

Ele ficou visivelmente abatido ao ouvir suas palavras, baixou a cabeça e fechou os olhos com força.

— Suponho que a senhora também não tenha notícias dela, Alteza?

Lyrna virou-se e viu a primeira leva de tropas desembarcar, as Adagas da Rainha espalhando-se para vasculhar as dunas, enquanto um regimento da Guarda do Reino tirava os barcos da água, seguido por mais, numa maré aparentemente interminável.

— Lorde Antesh. — Ela virou-se de novo para o arqueiro e encontrou um homem agora nitidamente tomado pelo pesar. — Lorde Antesh!

Ele se empertigou com o grito, e um espasmo de raiva tomou conta de seu rosto antes de se forçar a uma expressão mais neutra.

— Alteza.

— Eu o nomeio Lorde Comandante do Exército Cumbraelino da Rainha. Remova os seus soldados deste navio e prossiga para o interior além da praia. Haverá um conselho de capitães esta noite e vou precisar do número exato de suas tropas.

Ela seguiu em frente sem esperar uma resposta de confirmação. Eles seguiam a Senhora Abençoada, ela sabia. Não posso deixar nenhuma dúvida de que agora precisam me seguir.

A mulher devia ter sido muito bela quando viva, dotada da flexibilidade de uma dançarina e de feições delicadas como porcelana. Contudo, como Lyrna a essa altura havia testemunhado muitas vezes, a morte parecia sempre privar o corpo da beleza, descorando a pele e tornando as feições um eco flácido da alma que já fizera aqueles lábios carnudos sorrirem. O Irmão Sollis havia descoberto mais corpos nas dunas não muito longe dali; escravos, a julgar pelas roupas, todos com a garganta cortada. Entretanto, a mulher que já fora bela não mostrava sinais de qualquer ferimento, apesar do sangue seco que manchava a pele em volta dos olhos e do nariz.

O Irmão Lucin era o membro da Sétima Ordem mais velho que Lyrna encontrara até então, magricela e quase completamente careca, exceto por um tufo de cabelo branco que brotava do topo da cabeça como uma erva daninha esquecida. Ele andou em volta do corpo da mulher durante algum tempo, franzindo o cenho, concentrado, de vez em quando murmurando consigo mesmo. Durante a sua busca infrutífera por evidências, Lyrna entrevistara várias pessoas presas por suspeita de prática das Trevas e descobrira que todas eram charlatãs ou vítimas de acusações maliciosas. Uma dessas pessoas, um jovem charmoso, mas aterrorizado, explicara de bom grado como enganava viúvas ricas e as fazia gastarem dinheiro ou joias ao afirmar que se comunicava com parentes mortos havia muito tempo, e dera uma demonstração não muito diferente da realizada naquele momento pelo Irmão Lucin. Em reconhecimento de sua honestidade, Lyrna convencera o seu pai a comutar a sentença do charlatão para dez anos na Guarda do Reino.

— Isso vai levar quanto tempo? — perguntou ela ao Aspecto Caenis, sem conseguir manter o tom de desconfiança longe da voz.

— Todos os lugares possuem uma história, Alteza — respondeu ele. — O Irmão Lucin é obrigado a vasculhar um emaranhado de imagens para encontrar o evento certo.

— Argh! — gritou o irmão idoso, o rosto contorcido numa careta tanto de aversão quanto de medo.

— Irmão? — perguntou Caenis, aproximando-se.

O Irmão Lucin o afastou com um aceno irritado de seus braços ossudos.

— Eu a senti — disse ele, lançando um olhar acusador a Lyrna, como se ela o tivesse conduzido até uma armadilha. — A coisa dentro dela. Você está tentando me matar?

— Olhe essa boca, irmão — rosnou Iltis, com um olhar de aviso.

O Irmão Lucin mal olhou para ele.

— O passado é real — disse ele a Lyrna. — Não uma confusão de sombras. Ele possui poder.

— Perdão se eu o coloquei em perigo, irmão — retorquiu Lyrna, percebendo que não adiantaria de muita coisa insistir no uso de etiqueta com aquele homem. — Mas as nossas atuais circunstâncias exigem que corramos todos os riscos. — Ela indicou o cadáver com um aceno de cabeça. — Era ela?

O irmão olhou para a morta com palpável relutância, afastando-se como se esperasse que ela pudesse voltar à vida de repente.

— Havia soldados com ela. Eles a chamavam de Imperatriz. Ela tinha um dom poderoso, pude sentir isso, que emanou dela de uma só vez para fazer com que o vento obedecesse à sua vontade.

— Então ela está morta — disse o Conde Marven. — Ela deu a vida para nos destruir. O inimigo está sem líder agora.

O Irmão Lucin lançou um olhar fulminante ao Senhor da Batalha.

— Esta era apenas uma casca, escolhida pelo seu dom. Podem estar certos de que ela já despertou em outra.

— Por que matar os escravos? — questionou Marven.

— Testemunhas — respondeu Lyrna, olhando de novo para o rosto da morta. Onde ela encontrou você? Você já teve um nome? — Poucos ou nenhum volariano sabe qual é a verdadeira natureza de sua nova Imperatriz. Levem os corpos para as piras. Duvido que tenham algo mais a nos contar.

* * *

— O fingimento não nos servirá de nada agora — disse Lyrna aos capitães sobreviventes de seu exército e sua frota, reunidos na elevação para além da praia, onde as tropas ainda desembarcavam, a areia salpicada de piras flamejantes para os mortos. — Sofremos um golpe doloroso. A Senhora Reva está desaparecida e é muito provável que esteja morta, assim como o Lorde Almirante Ell-Nestra. Perdemos um quinto de nosso exército devido a um erro de julgamento meu. Assim, sou obrigada a perguntar se há alguém aqui que não esteja mais disposto a seguir minhas ordens.

Lyrna examinou o rosto deles e viu que a maioria estava claramente perplexa pela pergunta. Os meldeneanos a encaravam com a mesma certeza que marcara a atitude deles desde os Dentes, onde, ela sabia, muitos acreditaram que os deuses a haviam imbuído com alguma forma de discernimento divino. Longe de diminuir a sua fé, os eventos da noite anterior pareciam tê-la consolidado; quem além dos deuses poderia obter uma vitória a partir de uma derrota tão certa?

De forma semelhante, o Senhor Feudal Arendil e o Barão Banders também não exibiam sinais de desconfiança, assim como Sabedoria, que comparecera para falar em nome do pequeno contingente de eorhil e seordah. As únicas expressões nítidas de inquietação vinham do Lorde Comandante Nortah, o que era típico, e de Lorde Antesh, ainda evidentemente tomado pelo pesar. Porém, assim como os outros, ele permaneceu calado.

— Muito bem — disse Lyrna, assentindo para o Conde Marven. — Senhor da Batalha, a nossa posição tática, por favor.

— Estabelecemos um perímetro que se estende por um quilômetro e meio para o interior, Alteza. O Irmão Sollis designou a Ordem para fazer reconhecimento mais distante, e até o momento não há relatos de forças inimigas significativas por perto, apesar de termos encontrado algumas patrulhas montadas. Teremos uma ideia melhor quando os cavalos restantes forem trazidos para terra firme.

— Os que sobraram — interrompeu o Barão Banders. — Um terço de nossas montarias adoeceu e morreu nos navios. Cavalos não lidam bem com a vida no mar.

— Esta região é repleta de terras cultivadas — disse Lyrna. — Sem dúvida logo encontraremos substitutos. Até que isso aconteça, receio que qualquer cavaleiro sem cavalo terá de lutar a pé, meu senhor.

— Isso lhes dará algo de que reclamar — murmurou Banders, baixo o suficiente para Lyrna ignorar sem problemas.

— A frota volariana? — perguntou ela ao Senhor Marinho Ell-Nurin.

— Ainda nenhum sinal dela, Alteza. Mas duvido que tenham ido longe. Provavelmente estão lambendo as feridas e esperando reforços.

— Então não vamos lhes dar o prazer disso. Eu o nomeio Lorde Almirante Ell-Nurin. Os cargueiros e os navios de tropas regressarão para o Reino o mais depressa possível para buscar mais suprimentos e reforços. O senhor pegará todas as belonaves que temos e atacará o inimigo sem cessar.

— Assim o farei, Alteza. Ajudaria os nossos esforços se a Senhora Alornis nos acompanhasse. Precisamos de mais combustível para as máquinas dela e os meus companheiros não estão conseguindo acertar a mistura.

— A Senhora Artífice está indisposta. Façam o melhor que puderem. — Ela parou e fez questão de encontrar o olhar de todos os presentes, certificando-se de que não vissem qualquer incerteza em seus olhos. — O exército deve estar totalmente reunido até amanhã. Assim que estiver, marchamos para Volar. A Imperatriz deles sem dúvida estará se deleitando com a sua vitória imaginária. Pretendo desenganá-la dessa ideia quanto antes.

— Reva está morta, não?

Alornis não conseguia olhá-la nos olhos, e estava sentada, apática, no catre da tenda do Irmão Kehlan. Ela não demonstrava qualquer sinal de que os gemidos e gritos ocasionais dos feridos a incomodassem, mantendo uma expressão tão impassível quanto a exibida durante a batalha.

— O navio dela naufragou na tempestade — disse Lyrna. — Encontramos alguns sobreviventes, mas nenhum tinha qualquer notícia dela. Sei que a senhora era próxima da Senhora Governadora e também lamento pela perda dela. Seu espírito, assim como a sua espada, farão muita falta.

— Eu sempre quis perguntar a ela sobre o cerco, o que ela fez. Mas não consegui. Eu vi como aquilo a atormentava. Costumava me perguntar como uma alma tão bondosa podia fazer o que dizem que ela fez em Alltor, pois aquela não era a Reva que eu conhecia. Agora… — Ela olhou para as próprias mãos, os dedos ágeis movendo-se como aranhas pálidas. — Agora duvido que ela me reconhecesse.

Lyrna estendeu a mão para afastar uma mecha de cabelo da testa de Alornis e ficou perturbada pelo frio da pele dela.

— Minha senhora, há milhares de pessoas vivas graças à senhora.

— E milhares mortas.

Irmão Kehlan foi para o lado de Alornis segurando uma taça de algo quente e de aroma adocicado.

— Um sonífero, minha senhora.

— Não quero dormir — disse ela. — Posso acabar sonhando.

— Não haverá sonhos. — Ele sorriu, colocando a taça nas mãos de Alornis. — Eu prometo.

Lyrna acompanhou o curandeiro quando ele se afastou. Apesar das muitas horas de trabalho incessante, ele permanecia alerta, aparentemente indiferente ao fedor que permeava a tenda e ao sangue que manchava o seu manto.

— Pode ajudá-la? — perguntou Lyrna.

— Posso ajudá-la a dormir, Alteza. Posso lhe dar vários remédios para acalmar uma mente perturbada. Isso pode fazer com que ela volte a um tipo de estado normal durante algum tempo. Mas já vi isso antes, a enfermidade do espírito que surge naqueles forçados além dos limites. Uma vez que se manifesta, jamais desaparece de fato. Aconselho que ela seja mandada de volta ao Reino o mais breve possível.

— Não! — Alornis havia se levantado do catre e avançou na direção deles, as feições antes plácidas agora rígidas com uma recusa determinada. — Não. Vou ficar aqui. — Suas palavras saíram um pouco arrastadas e ela cambaleou. Lyrna correu para ampará-la. — Temos mais fogueiras para acendermos juntas, Alteza — sussurrou ela a Lyrna quando a Rainha a deitava no catre, observando-a adormecer, ainda murmurando —, tantas fogueiras bonitas.