CAPÍTULO SETE

Frentis

Ele levou as mãos à corda, enfiando os dedos na carne enquanto tentava segurá-la firme o suficiente para arrebentá-la. O homem de armadura vermelha riu e deu outro chute em sua barriga, deixando-o sem ar, a corda sufocando um grito involuntário.

— Já chega por ora — advertiu o homem com um sorriso malicioso, aproximando-se. — Ela não quer que você seja machucado.

Ele colocou a bota no peito de Frentis e o forçou para o chão, seus companheiros aproximaram-se com os grilhões.

— Ela mandou lhe dizer — prosseguiu o homem com a corda, pressionando com mais força com a bota — que você pode escolher qual dos seus amigos irá viver. Mas apenas um.

Frentis tentou chutar o homem agachado aos seus pés, mas ele se esquivou, agarrou os seus tornozelos e colocou um peso esmagador sobre eles. O outro já havia segurado os seus braços e os puxado sobre a cabeça, prendendo um grilhão no pulso direito.

— Não imagino por que ela quer você tanto assim — disse o homem sorridente, passando os olhos pelo corpo prostrado de Frentis com um calmo desinteresse —, quando ela poderia ter qualquer um de n…

Houve um estrondo repentino de vidro se estilhaçando e um virote de besta pareceu brotar da têmpora do homem sorridente, balançando a cabeça enquanto os lábios ficavam frouxos e balbuciavam algo sem sentido ao cair de cara no chão. A janela do lado oposto explodiu quando Illian a atravessou com os dois pés, caindo montada sobre o cadáver de Lemera com a espada desembainhada. Ela golpeou o homem que segurava os braços de Frentis, deixando um corte fundo em sua testa quando ele se esquivou para trás numa velocidade impressionante. Seu companheiro evitou o golpe seguinte dela, rolando e parando de pé com a espada em punho depois de dar um salto mortal perfeito para trás. Porém, os dois foram obrigados a soltar Frentis.

Ele ficou de joelhos num rodopio, a corrente presa ao pulso movendo-se num borrão como um chicote e enrolando-se nas pernas do homem mais perto dele. Frentis puxou com força, derrubou o inimigo no chão e então saltou, caindo com os dois pés na cabeça do homem, o pescoço se partindo com um estalo. Ele pegou a espada do homem e ao se virar deparou-se com Illian numa luta desesperada com o outro, a espada dela movendo-se de forma frenética enquanto ele a repelia, o rosto da garota tomado pela frustração, o homem de armadura vermelha com o mesmo sorriso enlouquecedor de seu companheiro morto. Frentis o golpeou com a corrente, fazendo-o dançar para o lado com uma velocidade que teria envergonhado até mesmo um Kuritai, mas deixando espaço suficiente para Illian desferir uma estocada em seu pescoço. O volariano aparou a espada com habilidade, mas não teve como bloquear o golpe de Frentis em sua perna, a lâmina entrando fundo o bastante para raspar no osso. O homem praguejou, mas seu rosto não revelou raiva alguma, apenas divertimento e até mesmo admiração, inclinando a cabeça para Frentis em apreciação ao mesmo tempo que a ponta da espada de Illian atravessava a sua garganta.

— Irmão! — Ela correu até Frentis, passando os olhos pelo corpo dele em busca de ferimentos.

— Não estou ferido. — Ele foi até o cadáver do homem de pescoço quebrado e encontrou uma chave para os grilhões enfiada em sua bota. — Você estava vigiando o meu quarto?

— Nós nos revezamos. Tem uma saliência confortável no telhado.

Frentis olhou para Lemera, emoldurada por uma mancha crescente de sangue escuro nos lençóis. Eu escolhi morrer livre…

— Eu sei que você não quebrou o seu juramento, irmão — disse Illian, seguindo o seu olhar. — Ela me disse que dormir ao seu lado a consolava.

Frentis vestiu a camisa e a calça e pegou as botas.

— O que está acontecendo lá fora?

— Está tudo tranquilo. Não percebi alarme algum até ouvir os sons da luta. — Illian foi até o primeiro homem que matara, agachou-se e arrancou o virote do crânio com um ruído rascante. — O que são eles?

— São chamados de Arisai. E não tenho dúvida de que há mais. — Ele pegou a sua espada e correu para a janela, percorrendo com os olhos as ruas vazias abaixo até as muralhas, onde as sentinelas caminhavam pelo parapeito. Nada, nenhuma indicação de qualquer ameaça. Você se lembrou de vasculhar os esgotos… Seu olhar recaiu sobre um bueiro com tampa de ferro na rua abaixo. Esperando. Com ordens para se certificarem de cumprir a missão de sua Imperatriz antes de tudo.

Frentis estremeceu ao perceber que agora estaria acorrentado e sua gente prestes a ser massacrada se não fosse pelo aviso dela, um aviso que ele sabia que não havia sido um erro. Ela queria que eles fracassassem. Ele olhou novamente para os cadáveres no quarto silencioso. E eles não sabem que fracassaram.

— Vá buscar Draker, Lekran e Mestre Rensial — disse ele a Illian, voltando para dentro. — E Tekrav. Seja silenciosa, mas rápida.

Ele estava sendo carregado entre Lekran e Rensial, de cabeça baixa, as correntes em seus tornozelos batendo nas pedras da rua enquanto o levavam até o bueiro de ferro à sombra do principal bordel da cidade. Diferente de Lekran e Rensial, o peitoral vermelho laqueado de Draker não cobria bem o seu corpo, obrigando-o a manter-se nas sombras ao segui-los. Frentis tinha certeza de que os Arisai estavam observando tudo atentamente; sua breve experiência o convencera dos perigos de subestimar as habilidades deles, mas também lhe fornecera uma pista sobre uma fraqueza em potencial. O modo como sorriem. Eles têm prazer com a batalha, com a matança, e o prazer pode nos tornar ávidos demais.

Uma figura de armadura vermelha surgiu das sombras quando se aproximaram do bueiro, e Frentis ergueu os olhos semicerrados para ela, satisfeito ao ver o sorriso receptivo.

— Nenhum problema, então? — sussurrou ele em volariano, mantendo de maneira insensata o olhar em Frentis enquanto chegavam mais perto.

— Nenhum — respondeu Lekran, e ele e Rensial largaram Frentis aos pés do Arisai.

— Pensei que ele poderia matar pelo menos um de vocês — disse o homem, sacando uma adaga e agachando-se para bater três vezes com o punho da arma na tampa do bueiro.

Lekran olhou para Frentis, o próprio sorriso agora genuíno.

— Parece que a lenda dele é bem maior do que as suas habilidades.

O Arisai grunhiu e recuou quando a tampa do bueiro foi erguida e empurrada para o lado por mãos invisíveis, fazendo sinal de forma impaciente para Lekran.

— Levem-no para baixo. Temos trabalho a fazer.

— Não — disse Lekran ao Arisai, atraindo o olhar do homem enquanto Mestre Rensial aproximava-se por trás dele. — O seu já acabou.

A adaga de Rensial reluziu pela garganta do Arisai, deixando-o de joelhos na rua, o sangue escorrendo por entre os dedos enquanto tossia uma risada de surpresa. Um Arisai colocou a cabeça para fora do bueiro, agarrando as laterais do buraco para subir, mas caindo de volta numa nuvem de sangue quando o machado de Lekran desceu sobre ele.

— Vamos, seus desgraçados preguiçosos! — gritou Draker, saindo correndo das sombras e gesticulando de modo frenético quando Tekrav apareceu no fim da rua com cerca de uma dúzia de seus carregadores, cada um rolando um barril.

Lekran levou uma corneta aos lábios e tocou uma única nota longa, e a cidade despertou ao redor deles quando os rebeldes responderam ao chamado, com tochas acesas e pessoas correndo para assumirem posições predefinidas de armas em punho.

Frentis arriscou uma olhada para a abertura vazia do bueiro e jogou a cabeça para trás quando uma faca surgiu rodopiando da escuridão, errando-o por um milímetro. Ele ouvia o chapinhar de muitos pés correndo pela água, mas nenhuma voz, nenhum sinal, na verdade, de alarme ou pânico, causando-lhe uma sensação desconfortável: Talvez eles não consigam sentir medo.

— Quanto? — perguntou Tekrav, parando o seu barril na beira do bueiro.

— Tudo — afirmou Frentis.

Tekrav girou o barril e Lekran quebrou a tampa com o seu machado, fazendo com que o óleo de lamparina jorrasse para dentro do bueiro. Viraram o barril para esvaziá-lo e em seguida fizeram o mesmo com outro, enquanto os demais carregadores passavam por eles para esvaziar os próprios barris em cada bueiro da cidade.

Frentis olhou para o telhado do armazém onde Illian agora se encontrava agitando uma tocha para confirmar que todos os bueiros estavam cercados por pelo menos uma companhia de soldados.

— Não há por que esperar — disse ele a Tekrav.

O Intendente-Mor deu um passo à frente, o rosto sombrio, mas determinado ao erguer uma tocha acesa.

— Por Lemera — disse ele.

A tocha desapareceu no buraco, criando uma coluna instantânea de chamas amarelas de pelo menos três metros de altura. O fogo baixou para um tamanho moderado após alguns segundos, e Frentis esticou-se para avaliar os resultados.

Nada. Nem um grito sequer.

Ele deixou Draker e a sua companhia vigiando o bueiro flamejante e correu com Lekran e Rensial até o próximo, onde Ivelda e metade dos Garisai estavam aglomerados em volta da abertura, observando enquanto os carregadores despejavam mais óleo de lamparina nos esgotos. Um fedor forte de óleo queimado subiu pela abertura junto com uma cortina densa de fumaça, mas o buraco permanecia sinistramente silencioso.

— Se estiverem lá embaixo, irmão, eles sabem como morrer em silêncio — disse Ivelda.

Frentis virou-se ao ouvir um grito vindo do buraco e viu um dos Garisai cambalear para trás com uma adaga cravada no ombro quando uma figura surgiu do bueiro, arremessada pelos companheiros a quase dois metros no ar em meio a uma cascata cintilante de água e óleo. Sua espada começou a reluzir ao aterrissar, abatendo um Garisai e ferindo outro antes que uma alabarda lhe perfurasse o peito. Mais dois Arisai foram arremessados do bueiro rapidamente, o óleo voando dos corpos rodopiantes enquanto golpeavam e cortavam, procurando afastar os Garisai do buraco. Um foi morto depressa, mas o outro continuou lutando, bloqueando estocadas e causando ferimentos com uma precisão mortal. Frentis avançou correndo, desviou para o lado a lâmina do Arisai e o chutou no peitoral, derrubando-o de novo na direção do bueiro. Contudo, o homem se agarrou, mantendo os braços e as pernas estendidos, e os seus companheiros esticaram as mãos para empurrá-lo de volta ao combate, fixando o rosto sorridente em Frentis num desafio direto.

Frentis pegou uma tocha com um dos Garisai e a arremessou contra o peito do Arisai, avançou e pisou no homem quando as chamas o envolveram, devolvendo-o aos esgotos cheios de óleo. A coluna de fogo foi mais alta dessa vez e a lufada de calor chamuscou os pelos nos braços de Frentis, que cambaleou para trás.

Um tumulto crescente atraiu a sua atenção para as docas, onde podia ver um aglomerado de combatentes tentando conter um grupo de Arisai que saía de um dos bueiros maiores nos limites do cais. A superioridade numérica conseguiu manter os homens vermelhos afastados, mas mais deles escapavam a cada segundo, ceifando vidas com cada golpe de espada.

— Sua gente vem comigo — disse Frentis a Ivelda. — Esta será uma noite longa.

Pela manhã, Viratesk estava encoberta por uma cortina nauseabunda de fumaça preta-acinzentada, cada tijolo e ladrilho tão sujo quanto os rebeldes que vagavam pelas ruas ou se sentavam curvados de exaustão. Frentis passou por muitos aconchegados uns nos outros, alguns chorando pelo esforço da batalha que durara a noite inteira, a maioria apenas encostada nos companheiros, de olhos arregalados, olhares vazios em rostos cobertos de fuligem.

— Foram 782 mortos — relatou Trinta e Quatro. — Quatrocentos feridos.

— Quantos deles? — perguntou Lekran, passando um pano pela lâmina de seu machado. Embora estivesse ainda mais enegrecido do que todos os presentes, o machado do volariano reluzia com o brilho do polimento.

— Contamos pouco mais de cem corpos. Se bem que, a julgar pelo cheiro, muitos mais morreram nos esgotos.

— Sete para um — murmurou Draker, lançando um olhar cauteloso para Frentis. — São chances ruins, irmão.

— E quando as nossas chances foram boas? — Frentis virou-se quando Artesão se aproximou, seguido pelo único prisioneiro que haviam feito, preso por várias correntes. O Arisai sacudia a cabeça, rindo baixo e de esguelha enquanto os Varitai libertos à sua volta olhavam com expressões idênticas de pesar.

— Não vai funcionar — disse Artesão. — Não nele.

— O domínio é forte demais? — perguntou Frentis.

— O domínio sobre ele é menos restringente do que o dos Varitai. Ele é… errado. Deturpado, de mente e de corpo. Se removêssemos o domínio, libertaríamos algo terrível neste mundo.

— Então vamos arrancar o que pudermos dele e acabar com isso — disse Lekran, indicando Trinta e Quatro com a cabeça.

— Ele não vai lhe dizer nada — retorquiu Artesão. — Qualquer tormento que lhe causarem será apenas outro divertimento.

— Você pode curá-lo? — perguntou Frentis. — Reparar a sua alma deturpada?

Artesão olhou para o Arisai, suas mãos entrelaçadas, o rosto revelando o primeiro sinal de medo que Frentis já vira nele.

— Talvez — disse ele. — Mas as consequências…

— Algo sempre vem junto — disse Frentis. — Cada vez que você cura alguém, eles dão algo em troca.

Artesão assentiu, virando-se para ele com um leve sorriso.

— Se quiser que eu tente…

— Não. — Ele avançou na direção do Arisai, sacando a adaga do cinto. O divertimento do homem aumentou com a aproximação de Frentis, a gargalhada repleta de um júbilo genuíno.

— Ela disse que você provaria ser interessante — disse o homem.

— Ela lhes dá nomes? — perguntou Frentis.

O Arisai encolheu os ombros.

— Às vezes, a alguns de nós que ela se dá ao trabalho de reconhecer. Ela me chamou de Cão uma vez. Gostei bastante.

— Sabia que ela os mandou aqui para morrer?

— Então fico feliz em ter servido aos propósitos dela. — O homem encarou Frentis com olhos firmes, sem medo, até mesmo orgulhosos, mas principalmente entretidos.

— O que fizeram para deixá-lo desse jeito? — perguntou Frentis, surpreendendo a si mesmo com um arroubo súbito de pena. Artesão tinha razão: aquele homem acostumara-se a uma vida que o transformara em algo que não era mais humano.

O sorriso do Arisai tornou-se escarnecedor.

— Você não sabe? O tempo que passou nos fossos ensinou muita coisa a eles. Por gerações eles nos criaram, treinaram, tentaram diferentes domínios para fazer de nós os matadores perfeitos. Nunca funcionou. Nossos antepassados ou eram selvagens demais, ou parecidos demais com os Kuritai, mortais, mas apáticos, necessitando de supervisão constante. Não foi diferente com a minha geração, mais um fracasso. Dez mil Arisai destinados a serem executados, depois que tivessem nos cruzado com a raça adequada. Então você chegou, o nosso salvador, um exemplo brilhante das vantagens da crueldade, da disciplina e da astúcia inerentes na alma de um verdadeiro matador. Quando nos enviou para cá, ela nos disse que iríamos encontrar o nosso pai e, devo dizer, considero isso um privilégio.

— Então há pelo menos mais nove mil de vocês? — ponderou Frentis.

Por um momento, o sorriso desapareceu do rosto do Arisai, que franziu o cenho, consternado como uma criança tentando dar uma resposta a uma pergunta desagradável.

— Não tão aperfeiçoados, afinal de contas — observou Frentis, movendo-se para trás dele e apontando a adaga para a base do crânio do volariano. — O que você sabe sobre o Aliado?

Cão animou-se de novo quando a ponta da lâmina lhe tocou a pele, rindo e sacudindo a cabeça.

— Só a promessa que ela nos fez em nome dele no dia em que nos tirou das masmorras. “Todos os seus sonhos se tornarão realidade”. Esperamos por muito tempo e tínhamos muitos sonhos. Caso a veja de novo, pai, diga-lhe por favor que eu…

Frentis enfiou a adaga até o punho, e Cão, o Arisai, arqueou as costas e convulsionou antes de desabar morto no chão.

— Direi a ela — assegurou-lhe Frentis.

Por quê?

A pergunta a alcança sem aviso, fazendo com que seu dedo escorregue mais uma vez e outra mancha de sangue se espalhe pelo tecido esticado. Ela olha para a agulha fincada no dedo e compreende friamente; a carne é como o gelo, desprovida de dor. O bordado é medíocre, tentativas desajeitadas de uma criança de imitar habilidades adultas. É tentador culpar a casca e os seus dedos dormentes, mas ela nunca conseguiu dominar aquela arte em particular. A lembrança é tênue, assim como todas as suas recordações da infância, mas certa vez houve uma mulher. Uma mulher bondosa, com um rosto de uma beleza felina, que sabia costurar com uma habilidade surpreendente, adornando os seus tecidos com uma clareza e uma arte que se igualavam às pinturas mais belas. Elas se sentavam e costuravam juntas, a mulher guiava as suas mãozinhas, dava-lhe um beijo quando fazia algo certo, apenas ria com os erros frequentes que cometia. Ela tem certeza de que essa lembrança é real, embora por alguma razão os seus pensamentos sempre se distanciem do nome da mulher, ou de seu destino. Sempre mudam, tornando-se mais sombrios, e ela se vê na cama, choramingando enquanto olha para a porta do quarto…

Um rangido de cordas e engrenagens atrai o seu olhar para o terraço. Tenho que receber uma visitante ilustre, meu amado, diz a ele. Uma Imperatriz não deve negligenciar os seus deveres.

Por quê? O pensamento é implacável, irresistível em sua exigência.

Você sabe por que, amado, ela lhe diz.

Imagens rodopiam e tomam forma em sua mente, outro presente precioso capturado pela visão dele: chamas brotando dos esgotos de Viratesk, os Arisai lutando, matando e morrendo com toda a fúria que ela esperava. Um, em chamas da cabeça aos pés, gira numa confusão de fogo, ainda matando e gargalhando mesmo quando as flechas o atingem.

Sei que você tem mais nove mil, ele lhe diz. Onde eles estão?

Suas mãos apertam o bordado ao ser tomada pelo deleite, a maravilhosa retomada da intimidade que haviam perdido. Fora desse modo durante a viagem que fizeram juntos, a mistura jubilante de amor e ódio, cada assassinato derrubando os muros entre eles. Ela percebe que o seu coração está palpitando, cada vez mais depressa, como um animal atacando as barras de sua jaula. Até então ela achara que aquela casca era capaz de sentir apenas as coisas mais rudimentares, mas ele, é claro que somente ele, é capaz de revivê-la.

A gôndola para do lado de fora do terraço e ela olha para a sua convidada. Ela sente o sobressalto dele ao avistá-la, fazendo-a se perguntar se o ciúme poderá fazer com que jogue aquela coisinha linda do alto da torre. Contudo, uma nota da canção quando a garota olha para Lieza lhe informa que tais suspeitas são infundadas.

Deixe-a em paz!, grita ele em sua mente. Toque nela e você nunca me verá de novo. Eu juro.

Ela resiste ao impulso de se perder no ódio dele e permite que o seu coração se acalme, tentando transmitir um frio desinteresse em sua resposta. Quanto mais cedo você vier me ver, maior será a chance de ela sobreviver.

Ela estremece um pouco, sentindo a ligação retomada entre eles ser forçada enquanto ele domina a própria raiva. Quando ele retorna, os seus pensamentos são de uma aceitação relutante. Os Arisai, insiste ele. Onde eles estão?

Posso lhe dizer onde eles não estão. Ela percebe que tem de abafar um risinho. Nova Kethia.

— Idiotas — disse Draker, observando a coluna volariana com um olhar experiente. — Não estão nem fazendo o reconhecimento dos flancos.

— E por que fariam? — perguntou Frentis. — Não estão esperando nada mais do que uma marcha da vitória quando chegarem a Viratesk.

— Pouco mais de quatro mil — disse Trinta e Quatro, devolvendo a luneta a Frentis. — Somente um batalhão de Varitai e alguns Kuritai. O resto é uma mistura de mercenários Espadas Livres e recrutados de Nova Kethia. Pelos meus cálculos, o grosso da força militar que resta nesta província.

— Idiotas — repetiu Draker, sacudindo a cabeça.

A região a oeste de Viratesk era em grande parte desprovida das elevações e florestas que Frentis sempre achara tão úteis. No entanto, o reconhecimento feito por Mestre Rensial ao longo da estrada costeira até Nova Kethia identificara uma depressão vasta na terra cultivada dez quilômetros a oeste, não profunda o suficiente para ser chamada de vale, mas a elevação na extremidade sul era alta o bastante para ocultar o grosso de seu exército. A altura das plantações era outra vantagem, altas o suficiente para ocultar os arqueiros e seca o bastante para pegar fogo com a primeira chama. A cavalaria na vanguarda da coluna volariana evidentemente não levara em consideração a faixa de cem metros de largura e um quilômetro e meio de comprimento de terreno estéril e enegrecido paralela à estrada, resultado de uma manhã gasta com queimadas cuidadosas. Os muitos lavradores no exército haviam informado que tais aceiros eram uma característica comum da agricultura volariana e que era improvável que chamassem a atenção daqueles que nunca haviam trabalhado na terra.

— Alguns devem conseguir passar — disse Frentis a Illian e Draker. — Se estiverem em desvantagem, recuem e formem um círculo defensivo. — Ele olhou Illian nos olhos e falou com grave autoridade: — A questão será decidida nos flancos, então não há necessidade de coragem excessiva.

Ele a viu conter uma careta aborrecida e forçar-se a balançar a cabeça.

— É claro, irmão.

Ele os deixou agachados entre os talos altos de trigo e seguiu para o abrigo da elevação, onde Mestre Rensial aguardava com o contingente montado. Os volarianos não viam muito motivo para ensinar os seus escravos a cavalgarem, mas alguns eram familiarizados com cavalos de suas vidas anteriores, a maioria gente do Reino e alguns alpiranos, suficientes para formar uma companhia de cavalaria leve com cerca de trezentos cavaleiros. Outros mil soldados de infantaria estavam agachados um pouco mais para trás, principalmente aqueles que não possuíam armas decentes, embora alguns usassem as espadas e adagas tiradas dos Arisai mortos. O grosso da infantaria estava com Lekran e Ivelda no flanco esquerdo, pronto para seguir atrás dos Garisai no ataque quando chegasse a hora.

Frentis montou num garanhão capturado na região das colinas, bem treinado como a maioria dos animais da cavalaria volariana, mas sem a velocidade e a agressividade de uma montaria da Ordem. Ainda assim, Mestre Rensial se empenhara em treinar tanto cavaleiros quanto cavalos, de modo que ele estava confiante de que o animal não iria refugar quando tivesse que investir. Frentis bateu com os calcanhares nos flancos do garanhão e saiu a trote até o topo da elevação. Os volarianos sem dúvida o veriam delineado contra o horizonte, mas pouco importava agora que a companhia principal houvesse chegado ao fim do aceiro. Frentis desembainhou a espada e a ergueu acima da cabeça e os arqueiros no trigal levantaram-se com os arcos preparados ao sinal. Ele viu um cavaleiro na frente da coluna virar o cavalo e acenar freneticamente para o corneteiro, tarde demais.

Mais de quatrocentas flechas deixaram o trigal e caíram sobre o centro da coluna volariana, provocando um tumulto de gritos alarmados e toques dissonantes de corneta. No entanto, fora o caos inicial, o efeito da saraivada foi mínimo, matando apenas uma dúzia de soldados antes que os oficiais conseguissem organizá-los de forma razoável. Como de costume, os Varitai foram os primeiros a se posicionar, e três batalhões assumiram uma formação defensiva dentro de um minuto. Frentis ficou satisfeito ao ver que haviam sido colocados no centro da coluna, o que significava que os flancos seriam defendidos principalmente por Espadas Livres e recrutas recentes. Draker estava certo, concluiu ele. Esses homens são comandados por tolos.

Os arqueiros seguiram disparando sem cessar enquanto a fileira volariana tomava forma, e as flechas continuaram a cair enquanto um coro de cornetas soava o sinal para um avanço geral. Frentis não precisou dar outras ordens, já que os arqueiros haviam sido bem-treinados para o que fazer a seguir. Embora o trigo estivesse seco o bastante para pegar fogo, Frentis tomara a precaução de espalhar vários fardos de gravetos embebidos em óleo pelo campo, fornecendo alvos para os arqueiros e suas flechas incendiárias, provocando um flamejar instantâneo. Eles tinham ordens expressas de disparar tais flechas e então correr para o aceiro, embora alguns continuassem a disparar mesmo enquanto recuavam para longe do campo coberto pela fumaça. O inferno teve início quase que de imediato, uma muralha brilhante de chamas estendendo-se ao longo da fileira que avançava e criando uma cortina de fumaça preta que fez tudo desaparecer de vista.

Frentis virou-se e fez um sinal com a cabeça para Mestre Rensial, então saiu a galope. Eles haviam aberto a fogo uma avenida larga pelo trigal, dos dois lados do aceiro principal, larga o suficiente para permitir a investida de uma companhia inteira de cavalaria, rapidamente seguida por mil soldados de infantaria. Ainda assim, a fumaça densa tornou a cavalgada enervante, e seu cavalo soltou um relincho de protesto pela proximidade das chamas. Frentis bateu de novo com os calcanhares nos flancos do animal, fazendo-o começar um galope mais rápido e saíram da fumaça, deparando-se com dois cavaleiros volarianos assustados. Ele passou por entre os dois, golpeando à esquerda e à direita, ouvindo gritos simultâneos de dor antes de disparar em frente.

A confusão era total agora, e a fumaça descia e subia ao capricho do vento. Quando se dissipava, ele abatia qualquer volariano ao alcance; quando se adensava, ele cavalgava adiante, sua única indicação do andamento da batalha vindo dos gritos de dor e fúria por todos os lados. Frentis tinha vislumbres ocasionais de Mestre Rensial, que matava com a típica destreza, o cavalo aparentemente dançando enquanto ele mal tocava nas rédeas, deixando perplexos aqueles insensatos o bastante para desafiarem um homem que Frentis sabia ser o melhor guerreiro montado do mundo.

Os volarianos se mostraram um grupo variado; alguns fugiam assim que avistavam Frentis, outros imediatamente corriam para confrontá-lo. Quando a fumaça se adensou mais uma vez, ele se viu atacado por um Kuritai montado, aparentemente não afetado pela visão comprometida, investindo contra ele num belo garanhão dois palmos mais alto do que o seu. Frentis girou na sela quando o Kuritai se aproximou e desferiu um golpe descendente com a espada que se cravou no pescoço de seu garanhão. Ele saltou para longe quando o animal gritou e empinou numa fonte de sangue, aterrissando com destreza e arremessando a sua faca contra o Kuritai. A lâmina atingiu o alvo e entrou no rosto do escravo de elite logo acima do maxilar, mas isso não foi o suficiente para deter o ataque.

Frentis rolou e tentou golpear as patas do cavalo quando o animal passou correndo por ele. O Kuritai, porém, era um cavaleiro muito habilidoso e mudou o curso do animal no último momento para evitar a lâmina. Frentis arremessou outra faca quando o homem virou para uma segunda investida, e o dardo de aço cravou-se na anca do animal, fazendo-o empinar. Frentis avançou correndo, pulou e golpeou com a espada, a lâmina da Ordem atravessando o avambraço no pulso do Kuritai. O homem caiu da sela, rolou e ficou de pé, girando para encarar Frentis com a espada apontada para ele, o sangue jorrando do toco da mão decepada. Frentis ouviu um rosnado familiar às suas costas e caiu de joelhos, e Retalhador e Dente Negro saltaram por cima dele e atacaram o Kuritai com precisão coordenada, a cadela abocanhando as pernas do homem enquanto seu companheiro rasgava a garganta.

Ele não precisou esperar para ver o espetáculo, correndo em meio à fumaça em busca de mais oponentes. Seus ouvidos logo foram assaltados por um grande brado seguido do estrépito de inúmeras armas se entrechocando, e ele seguiu o som até se deparar com a sua infantaria desfazendo um batalhão de Espadas Livres. Eles evidentemente haviam investido de frente contra a linha inimiga, dado o modo como cederam e se romperam no centro, golpeando e cortando com seus machados e foices, cada rosto iluminado por uma fúria desesperada.

Os Espadas Livres tentaram resistir durante algum tempo, amontoados de acordo com as ordens berradas pelos oficiais, e muitos escravos libertos tombaram diante de suas espadas curtas, mas a fileira havia sido rompida e, ao contrário daqueles que enfrentavam, eles ainda pensavam em vidas longas e famílias. Após mais alguns momentos de resistência frenética eles começaram a ceder, homens davam meia-volta e corriam em direção à fumaça, a princípio sozinhos ou em duplas, depois às dezenas. Um deles correu na direção de Frentis, derrapando até parar de olhos arregalados e cair sentado no chão, a espada aparentemente já largada. Frentis parou e encarou o homem, notando o horror estampado no rosto trêmulo, as súplicas ininteligíveis que lhe brotavam dos lábios, e apontou com severidade para oeste. O Espada Livre olhou boquiaberto para ele por mais um segundo e então se levantou e saiu correndo, ainda implorando por misericórdia.

— Em formação! — gritou Frentis para a sua gente liberta, enquanto alguns ainda apunhalavam os volarianos mortos. — Recolham armas e entrem em formação!

Com a quantidade certa de gritos e empurrões, ele conseguiu restabelecer certa ordem; os que haviam sido designados como sargentos recobraram a razão ao vê-lo e posicionaram as suas companhias numa linha ofensiva, muitos agora armados com espadas e lanças de cavalaria.

— Continuem alinhados até saírem da fumaça — ordenou Frentis, virando-se e andando na direção do centro volariano. A linha manteve-se coesa até ouvirem os sons de mais combate, e a sede de sangue ainda não saciada fez com que os libertos bradassem ao dispararem numa investida espontânea. Sabendo que não dariam ouvidos a outras ordens, Frentis correu com eles, a fumaça se dissipou e revelou uma muralha sólida de Varitai, os rostos impassíveis encarando-os por cima de lanças apontadas em sua direção.

Ele saltou no último momento, sua espada desviou uma lança erguida e suas botas se chocaram com o peitoral do Varitai, arremessando o homem para trás. Frentis aterrissou fora da linha volariana e se virou, matando depressa dois Varitai, sua espada encontrando brechas nas armaduras com precisão mortal. Os libertos aproveitaram a oportunidade, amontoando-se na lacuna numa massa compacta de homens e mulheres que golpeavam sem parar. Porém, o pânico conveniente que tomara conta dos Espadas Livres não estava presente ali, e os Varitai recuaram em resposta a um toque estridente de corneta para entrarem em outra formação defensiva vinte metros para trás. Frentis podia ver duas figuras no centro do círculo cada vez menor de Varitai, um homem corpulento com uma corneta nos lábios, um sargento veterano, a julgar pela armadura, e uma figura mais esguia com o elmo emplumado de um oficial subalterno.

— Parem! — Frentis ergueu a espada quando os libertos se preparavam para outra investida. Todos agora estavam tomados pela fúria, cada rosto coberto de fuligem sedento por mais sangue, armas ensanguentadas em cada mão, tremendo de expectativa.

— Nós podemos com eles, irmão! — gritou com voz rouca uma mulher na língua do Reino, uma adaga numa das mãos e uma espada curta na outra, ambas vermelhas das pontas aos punhos. Levou um momento para Frentis reconhecer aquela figura ofegante e de rosto enegrecido como Lissel, a ex-fabricante de velas de Rhansmill.

— Vocês já fizeram o suficiente por hoje, dona — disse a ela. E temos baixas a compensar, acrescentou ele mentalmente. — Você encontrará a Irmã Illian e Artesão na elevação. Traga-os aqui, por favor.

Ele andou ao redor do círculo quase perfeito de Varitai, olhando através da fumaça que se dissipava e confirmando a derrota do flanco esquerdo volariano. Espadas Livres corriam para todos os lados e os Garisai avançavam de forma ordenada na direção dos Varitai, liderados por Ivelda e Lekran. Frentis ergueu a mão para fazê-los parar e virou-se rapidamente para contar os Varitai remanescentes. Trezentos. O dobro da quantidade que já se encontrava em seu exército.

— Irmão. — Illian parou ao seu lado de besta em punho. Frentis viu a bandagem na testa dela, o ferimento pouco abaixo de onde começavam os cabelos e ainda sangrando. — Kuritai — disse ela, encolhendo os ombros.

Ele assentiu e virou-se de novo para os Varitai.

— Aguarde a minha ordem. — Ele se aproximou do círculo de soldados-escravos, o olhar fixo nas duas figuras no centro. O sargento corpulento ficou imóvel e empertigou-se, encarando Frentis, o rosto grisalho exibindo uma atitude severa de desafio que ele não conseguiu deixar de admirar. O oficial ao seu lado tinha no máximo metade da idade do sargento e era consideravelmente menos desafiador, seus olhos percorrendo sem cessar os libertos ao redor, o rosto lívido de terror.

— Você está sozinho! — gritou Frentis para o homem corpulento através das fileiras de Varitai imóveis. — Seus oficiais estão mortos ou correndo de volta para Nova Kethia! Se quiser se juntar a eles, ordene a estes homens que deponham as armas!

O rosto do sargento crispou-se numa careta de aversão e ele cuspiu no chão, e disse apenas uma palavra, cheia de desprezo:

— Escravo!

O virote de Illian entrou no peitoral do sargento logo à esquerda do esterno. Àquela distância, não foi difícil penetrar a armadura e o osso até encontrar o coração.

— E você, Honorável Cidadão? — gritou Frentis ao jovem oficial, que agora olhava boquiaberto para o sargento morto, as lágrimas que escorriam de seus olhos fazendo com que parecesse apenas uma criança perdida em meio a um campo de estranhos perigosos. Após um momento ele se controlou o suficiente para retirar a corneta do corpo do sargento. O toque que deu soou vacilante e agudo, mas claro o suficiente. Os Varitai largaram as armas ao mesmo tempo e permaneceram nas fileiras, cada rosto demonstrando tanta emoção quanto uma pedra.

— Você pode curar tantos assim? — perguntou Frentis a Artesão quando o curandeiro apareceu com os seus Varitai libertos.

Artesão deu uma risada baixa, percorrendo as fileiras ordenadas dos soldados-escravos com o seu agora habitual sorriso triste.

— Você fala como se eu tivesse escolha, irmão.

Nova Kethia queimava. Colunas altas de fumaça subiam das ruas apinhadas de gente, a maioria dos incêndios aparentemente concentrada ao redor das docas, onde era possível ver alguns navios afastando-se do porto. Todos estavam com os cascos baixos na água, um deles tão carregado que soçobrou ao chegar à entrada do porto, e figuras minúsculas feito formigas correram pelo casco enquanto a embarcação rolava nas ondas. Ao sul, uma longa fila de pessoas saía pelos portões da cidade, e a luneta de Frentis confirmou que a maioria estava vestida de cinza, curvadas e sobrecarregadas com vários objetos de seus lares, arrastando crianças chorosas, a confusão e o medo em cada rosto.

— Eles podiam ter esperado até chegarmos aqui — resmungou Draker.

— Uma batalha a menos para lutar — disse Frentis. Eles haviam acampado em meio a várias ruínas num planalto baixo a pouco menos de um quilômetro e meio a leste da cidade; Trinta e Quatro informara que naquele lugar se erguera a Velha Kethia, destruída séculos antes na Era do Forjamento. O ex-escravo retornou do reconhecimento do terreno no final da tarde, após ele e Mestre Rensial terem sido enviados à frente pela manhã.

— Parece que a notícia de nossa vitória teve um efeito dramático — relatou Trinta e Quatro. — O governador elaborou um plano para executar todos os escravos em vez de permitir que caíssem em nossas mãos. Uma vez que há dois escravos para cada habitante livre da cidade, essa estratégia provou ser insensata. Os tumultos estão ocorrendo há três dias. Milhares morreram, mais fugiram.

— Os escravos controlam a cidade? — perguntou Frentis.

— Somente um quadrante. — Trinta e Quatro apontou para um distrito que parecia ainda mais envolto em fumaça do que os outros. — Visto que não têm armas, suas baixas são grandes. Avançamos com cuidado até conseguir entrar em contato com os líderes deles. — Ele se virou para Frentis com um sorriso. — Parece que eles ouviram muitas coisas sobre o Irmão Vermelho e estão ansiosos pela sua chegada.

— Uma batalha a menos — murmurou Draker, levantando-se.

— Por que fizeram isso?

O corpo estava pendurado num poste na praça principal de Nova Kethia, os pés reduzidos a tocos carbonizados, a barriga aberta e o rosto congelado num grito de agonia. Apesar de toda a mutilação que o cadáver sofrera, Frentis ainda conseguiu reconhecer as feições. Sofrerei cada tormento por mil anos, dissera Varek. Pelo estado dele, Frentis duvidava que tivesse durado mais do que uma hora.

O Vice-Tesoureiro de Nova Kethia, um homem de preto com rosto contraído, perplexo e aterrorizado em igual medida por continuar vivo, teve que tossir várias vezes antes de encontrar a voz para falar.

— Ordens da Imperatriz — falou ele, o tom vacilante, apesar do esforço para controlá-lo. — Chegaram antes dele.

Não gostou do que ele me disse, concluiu Frentis, tendo uma estranha sensação de desapontamento. Varek parecera tão determinado que teria sido interessante ver até onde a sua busca por vingança o levaria. Mas ele era um dos milhares de cadáveres espalhados pela cidade, inchando ao sol e atraindo nuvens de moscas que voavam em meio ao fedor crescente. Milhares de histórias interrompidas antes do final.

Levara um dia e uma noite de luta dura para capturarem a cidade, com Frentis conduzindo a infantaria num avanço lento porém inexorável até as docas, onde Lekran e Ivelda assumiram o comando dos rebeldes sobreviventes. Eles foram obrigados a lutar de rua em rua, seus oponentes uma mistura de Espadas Livres e moradores, capazes de resistir furiosamente agora que os seus lares corriam o risco de ser destruídos. Contudo, eram muito poucos e desorganizados demais para serem bem-sucedidos, suas barricadas construções precárias erguidas por mãos não acostumadas ao trabalho. Frentis logo adotou uma tática de capturar os telhados ao redor e atacar os defensores do alto, forçando-os a recuar ao mesmo tempo que as barricadas eram destruídas. Eles formaram uma espécie de resistência final nas docas, algumas centenas encolhidas atrás de barris e caixas, recusando todos os chamados para que se rendessem. Foram os Varitai libertos de Artesão que terminaram aquilo, simplesmente derrubando os barris e avançando para subjugar os defensores a golpes de porrete.

O que restara do governador fora amarrado à base do poste; ao contrário de Varek, o seu rosto estava realmente irreconhecível. O homem havia sido um general antes de entrar para a política, e escolhera morrer nos degraus da mansão do governador com alguns guardas leais. Infelizmente, a sua atitude heroica não lhe assegurou uma morte rápida, e a grande turba de escravos acabou com qualquer resistência ao invadir a mansão no ataque final, mas tiveram presença de espírito suficiente para garantir que o governador fosse capturado vivo. Após testemunhar os horrores causados pelas tentativas do governador de matar a população de escravos, Frentis não teve a menor intenção de interferir no castigo prolongado e engenhoso do homem.

— A Imperatriz é um monstro — acrescentou o Vice-Tesoureiro, com um leve tom de adulação esperançosa na voz.

— Ela é volariana — retorquiu Frentis. — Como o único oficial imperial remanescente nesta cidade, preciso que você atue como o contato com a população livre que sobreviveu. Você os encontrará nas docas, onde estão sendo vigiados. Informe-lhes que, como súditos livres do Reino Unificado, eles desfrutam da proteção da Coroa e que eu garanto pessoalmente a segurança de todos aqueles inocentes de tomarem parte nas atrocidades cometidas aqui. Contudo, todas as propriedades que possuíam estão confiscadas pela Coroa como espólios de guerra. Pela Palavra da Rainha, a escravidão a partir de agora está abolida desta província e qualquer pessoa que for pega praticando-a estará sujeita à execução sumária.

Ele se afastou enquanto Draker levava o homem de preto na direção das docas.

— Vamos, não chore, meu camarada. Não sabe a sorte que tem de testemunhar um novo amanhecer no Reino Unificado Maior.

Caminhando pelas ruas, todas repletas de corpos e dos incontáveis escombros de uma cidade destruída, Frentis se viu recordando-se de um sonho, ou o que ele agora sabia ser o início de sua ligação com uma alma que o Vice-Tesoureiro achava monstruosa. Eu teria sido terrível, dissera a mulher enquanto olhavam para um litoral tomado de cadáveres. Porém, por mais terrível que o destino me fizesse, eu não sou ele.

Ele parou ao avistar uma mãe com a filha, aninhadas na morte do lado de fora de uma padaria. Os olhos da garotinha estavam abertos, a cabeça perto da cabeça da mãe, a boca levemente entreaberta como se congelada em alguma espécie de pergunta final. Ao ver os ferimentos nos braços da mãe, sem dúvida infligidos ao tentar proteger a garota do frenesi de lâminas que as mataram, Frentis não conseguiu deixar de ter a sensação de que ele e a Imperatriz estavam conspirando para tornar aquele mar de morte uma realidade.

— Irmão? — Era Illian, que o encarava com uma expressão que beirava o espanto. Ele sentiu a umidade nas faces e enxugou depressa as lágrimas.

— O que é, irmã?

— Os Garisai encontraram algumas centenas de pessoas vestidas de cinza nas galerias abaixo do quadrante dos mercadores. Os escravos da cidade estão querendo ir atrás deles. A coisa pode ficar feia. — Ela forçou um sorriso incerto, ainda o olhando nos olhos. Frentis voltou a atenção para o corte da testa dela. Trinta e Quatro fizera o serviço tipicamente preciso de suturá-lo, mas a cicatriz seria funda, e longa. — Pelo menos parou de coçar — disse Illian, levando os dedos ao ferimento.

Não há incerteza nela, concluiu ele. Todas essas mortes e ela continua inabalada. Illian tinha razão, a Ordem é o melhor lugar para ela.

— Estarei lá daqui a pouco — disse Frentis. — Diga a Draker para formar um grupo com as pessoas livres para recolher esses corpos. Serão pagas em pão. Não devemos esperar que trabalhem por nada.