Lyrna
Logo começaram a chamá-la de Marcha da Lama, um nome que Lyrna sabia que persistiria no relato histórico daquela campanha, caso restasse algum historiador para escrevê-lo. A chuva começara a cair no dia em que deram início à marcha para o interior e não parou durante as duas semanas seguintes, transformando todos os caminhos em lama mole e grudenta, prendendo pés, cascos e rodas de carroças até que o exército foi forçado a parar após ter percorrido menos de duzentos quilômetros.
— O preço, Alteza — explicou o Aspecto Caenis no conselho de capitães. — A criação de tamanha tempestade causou um desequilíbrio no ambiente.
— Quanto tempo durará? — perguntou Lyrna.
— Até que o equilíbrio seja restabelecido. Um dia, ou um mês. Não há como saber.
— Não há ninguém na sua Ordem que possa nos ajudar?
Ele encolheu os ombros, indicando que não podia fazer nada.
— A garota dos Confins era a única alma que já encontrei que possuía tal dom.
Lyrna ignorou a insinuação proposital de suas palavras, ciente de que o Aspecto ainda estava irritado por ela ter se recusado a obrigar os dotados dos Confins a entrarem para a sua Ordem. De certa forma, ela estava achando o Aspecto Caenis tão irredutível quanto o não pranteado Tendris.
— Precisamos de uma estrada, Alteza — insistiu o Conde Marven. — As estradas volarianas são famosas por serem bem construídas e imunes às intempéries. — Ele passou um dedo pelo mapa até uma linha trinta quilômetros ao norte. — Esta é usada pelos portos do norte. É um desvio de quatro dias da linha de marcha que pretendemos seguir, mas deve nos poupar semanas de avanço lento pela lama.
Embora não gostasse da ideia de abandonar a aproximação direta de Volar, Lyrna não via alternativa. Estava prestes a confirmar a ordem quando uma voz raramente ouvida falou:
— Seria um erro, Alteza.
Lorde Al Hestian estava de pé no fundo da tenda com espaços vazios de ambos os lados, uma vez que nenhum dos capitães parecia gostar de ficar perto do homem que agora era chamado de Rosa Traidora. Lyrna passara a excluí-lo daquelas reuniões, mas o desempenho impressionante de seus homens durante o que passara rapidamente a se chamar Batalha do Farol e a perda recente de tantos capitães a fizeram mudar de ideia. Afinal, ela o poupara por uma razão.
— Como assim, meu senhor? — perguntou Lyrna, vendo o Conde Marven empertigar-se. De todos os seus capitães, era ele quem parecia nutrir a maior inimizade com relação a Al Hestian, algo que ela supunha que tivera origem durante o tempo que passaram na guerra do deserto.
— A linha óbvia de marcha sempre deve ser evitada — respondeu Al Hestian. — A estrada estará patrulhada, vigiada. Notícias de nossa posição chegarão a Volar em poucos dias. Se formos enviar forças para o norte, elas devem ser apenas diversivas.
— Enquanto continuamos a chafurdar na lama — disse o Conde Marven.
— Chuva alguma dura para sempre, criada ou não pelas Trevas. E se não pudermos marchar sob ela, tampouco poderá o inimigo.
— O tempo é o verdadeiro inimigo — disse Lyrna. — Cada dia de inatividade dá mais tempo para que a Imperatriz reúna forças em Volar. — Ela se empertigou e assentiu para o Conde Marven. — Senhor da Batalha, dê ordens para que a linha de marcha do exército seja mudada de manhã. Meus senhores, ao trabalho.
Alornis estava desenhando de novo quando ela retornou à sua tenda, o lápis de carvão movendo-se de modo frenético pelo pergaminho enquanto ela se curvava sobre o cavalete. Durante o dia ela trabalhava na balista montada no carroção, o tempo todo quase sem falar, mas à noite ela desenhava. Somente quando estava trabalhando alguma animação transparecia em seu rosto, tenso de concentração e com os olhos iluminados pelas lembranças, ainda que, a julgar pela natureza dos desenhos, Lyrna achasse serem memórias que não deveriam ser remexidas. Navios e homens em chamas, marinheiros gritando enquanto se debatiam num mar tempestuoso. Página após página de horrores retratados de maneira habilidosa, produzidas num ritual noturno de autoflagelação.
— Ela pelo menos comeu algo? — perguntou Lyrna a Murel, despindo o manto ensopado de chuva.
— Apenas um pouco de mingau, Alteza. Mas Davoka teve que fazê-la comer praticamente à força.
Ela se sentou ao lado de Alornis durante algum tempo, a Senhora Artífice notando a sua presença com um aceno quase imperceptível de cabeça, o lápis de carvão continuando a se mover sem interrupção. Lyrna se consolou um pouco com o fato de que aquele esboço era diferente da costumeira carnificina executada com maestria; era uma espécie de retrato. Alornis definiu a forma básica do rosto com algumas linhas bem colocadas e então começou a detalhar os olhos, olhos escuros, apertados em julgamento e repreensão, olhos que ela conhecia bem.
— Seu irmão a ama — disse ela a Alornis, estendendo a mão para segurar a dela e sentindo-a tremer.
Alornis não olhou para ela, mantendo os olhos fixos no retrato.
— É o meu pai — sussurrou ela. — Eles tinham os mesmos olhos. Ele também me amava. Talvez, se a Fé estiver certa, ele ainda me veja. Pode ser que ele me ame mais agora, pois somos iguais, não? Ele também matou milhares com fogo uma vez. Às vezes ele sonhava com isso, quando ficou mais velho e a doença apareceu. Debatia-se na cama e gritava por perdão.
Lyrna resistiu à tentação de sacudi-la, de esbofeteá-la, de tentar forçar a volta da garota animada e gentil que conhecera em Alltor. Porém, ao olhar naqueles olhos confusos, ela soube que aquela garota havia desaparecido, consumida pelo fogo assim como tantos outros.
— Tome o seu sonífero, minha senhora — ela preferiu insistir, tirando o lápis de carvão dos dedos de Alornis com gentileza, mas de modo firme. — Temos uma marcha árdua pela frente amanhã. O sono lhe fará bem.
Eles chegaram à estrada em três dias; a chuva diminuiu um pouco na terceira manhã, embora o avanço não fosse melhor para o norte. O Irmão Kehlan relatou numerosos casos de homens saindo de forma durante a marcha devido a algo chamado “pé de guarda”, uma afecção causada pela imersão constante na água e que fazia a pele se tornar uma esponja. Em pouco tempo todos os carroções estavam carregados de soldados de rosto acinzentado, seus pés enfaixados com bandagens enroladas em lona para mantê-los secos. Assim, foi com um alívio considerável que pisaram na estrada, um exemplo realmente extraordinário de construção humana que humilhava as estradas de terra típicas no Reino. Malcius, se você tivesse visto isto, pensou Lyrna, notando a curvatura suave na superfície da estrada que permitia que a chuva escoasse para as beiras, você teria esvaziado o tesouro para cobrir o Reino com tais maravilhas.
— Devemos fazer cinquenta quilômetros ou mais por dia aqui — disse o Conde Marven com um sorriso de satisfação, batendo com a bota na superfície de tijolos. — Mais, quando a chuva parar.
— Certifique-se de enviar batedores em todas as direções — disse Lyrna. Ela relutava em dizer ao Senhor da Batalha como fazer o seu trabalho, mas o conselho de Al Hestian instigara uma cautela que ainda sentia. Sem dúvida encontrariam o inimigo em algum lugar ao longo daquela estrada; a única questão era o tamanho da força.
— É claro, Alteza.
A chuva finalmente começou a diminuir três dias depois, revelando uma paisagem agradável de colinas ondulantes e vales extensos de capim luxuriante e poucos sinais de habitação, exceto por casas de campo ocasionais, todas desocupadas.
— Todo o gado foi morto e as lavouras queimadas — relatou o Irmão Sollis dois dias depois. Ele conduzira os seus irmãos num reconhecimento de longa distância, sem encontrar qualquer sinal do inimigo, mas sim amplas evidências de que a sua aproximação havia sido detectada. — Todos os poços foram contaminados com carcaças. Há alguns corpos aqui e ali, a maioria de idosos, escravos, a julgar por suas aparências.
— Já existiu alguma raça mais abominável do que esta? — disse Lorde Adal, sacudindo a cabeça. Ele conduzira a Guarda do Norte para o sul numa missão similar, retornando com notícias igualmente terríveis.
— Então não temos o que comer — disse Lyrna.
— Nossos suprimentos devem durar pelo menos até Volar, Alteza — informou o Irmão Hollun. — Onde sem dúvida encontraremos mais, assim que os nossos… assuntos forem concluídos.
— Se me permite, Alteza — disse Lorde Nortah —, eu gostaria de saber a natureza exata de nossos assuntos em Volar.
Lyrna o olhou nos olhos, deparando-se com a prontidão costumeira dele de responder ao escrutínio na mesma medida.
— Administraremos a justiça pelas ofensas cometidas no Reino — disse ela. — E garantiremos que não sejam repetidas.
— Sim, como a senhora já afirmou antes. Contudo, eu gostaria de saber como essa justiça será administrada. A senhora pretende realizar julgamentos?
— Não me lembro de quaisquer julgamentos em Alltor — disse Lorde Antesh, encarando o Lorde Comandante com um olhar severo. — E sei que não houve nenhum em Varinshold. — Ele raramente falava nos conselhos e ficava entre as próprias tropas durante a marcha. Os cumbraelinos haviam assumido um comportamento uniformemente taciturno desde a perda da Senhora Reva, do velho comandante da guarda e de tantos de seus conterrâneos. Sempre que percorria as suas fileiras, Lyrna se via recebida por acenos bruscos de cabeça ou por um ressentimento não muito discreto; ela mandara a Senhora Abençoada para a morte, e eles sabiam disso. No entanto, qualquer raiva que pudessem sentir de sua Rainha era superada em muito pelo ódio ardente que tinham dos volarianos, surgido em Alltor e em milhares de outras atrocidades inomináveis, e agora estavam tomados por uma sede descomunal de vingança. A Senhora Reva fora o elo deles com o amor e a orientação do Pai; Ele sem dúvida abençoaria todos os esforços de vingar a sua morte.
— Não houve julgamentos em Alltor — retorquiu Nortah — porque os volarianos são uma raça repugnante e pestilenta criada para a crueldade e o assassinato. Por outro lado, nós nos imaginamos um povo racional e compassivo, ou as nossas virtudes serão deixadas de lado agora?
— Coragem e fortitude também são virtudes — observou o Barão Banders. — Nosso povo espera que garantamos o seu futuro. Isso não será feito de coração mole.
— Atravessei os Confins e o Reino — disse Nortah. — Tomando mais vidas em poucos meses do que eu havia tomado em todos os meus anos na Ordem. Liderei meu regimento através de batalhas, fogo e privações porque achava que era justo e certo… e minha esposa me disse que era necessário. Mas não desejo olhar nos olhos dela quando ela se deparar com um homem que tomou parte de assassinatos indiscriminados.
Ele se virou para o Aspecto Caenis, cujos olhos permaneciam fixos no mapa, sem querer encontrar o olhar do irmão.
— E você, irmão? Está contente por a Fé ser manchada com sangue inocente?
O Aspecto não respondeu de imediato, abaixando a cabeça num momento de contemplação silenciosa. Quando por fim abriu os olhos e falou, o seu tom era pesaroso, mas também determinado:
— A Imperatriz e o seu império são meras ferramentas de um inimigo maior. Nós todos sabemos disso, apesar de frequentemente não ousarmos falar a respeito. Conhecendo a natureza desse inimigo, vejo que o único caminho para a sua derrota é empregar todas as medidas à nossa disposição. Se isso faz de nós assassinos, então aceito o nome e a culpa. Pois se fracassarmos, irmão, não haverá esposa à qual você poderá voltar.
— Não posso crer que o caminho para a vitória seja macularmos tanto as nossas almas que nos tornemos indistinguíveis daqueles que enfrentamos. — Nortah olhou para o Irmão Sollis, sua voz agora cansada. — Mestre? Sem dúvida o senhor vê que a Fé nos obriga a um caminho mais razoável. A Ordem sempre procurou defender os indefesos.
— E preservar os Fiéis — retorquiu Sollis, seu tom tão determinado quanto o do Aspecto. — Se fracassarmos aqui, o mundo inteiro poderá ser arruinado. A Fé deu o seu apoio ao caminho da Rainha com pleno conhecimento da importância desta missão. Não podemos nos dar ao luxo de sermos virtuosos agora, irmão.
— E eu — disse Antesh por entre os dentes, ficando com o rosto vermelho — não vim até essas praias para deixar que a maior alma da história cumbraelina não seja vingada.
— Vingança não é justiça! — Nortah bateu com os punhos na mesa ao se inclinar para a frente. — E se Lorde Vaelin estivesse aqui…
— Ele não está — disse Lyrna, sua voz calma, mas implacável. — Eu estou. E sou a sua Rainha, meu senhor.
Ela observou o Lorde Comandante se controlar, ciente de que ele lutava para não dizer palavras insensatas. De todos nós, só ele permanece imune à atração da vingança, pensou ela. Essa compreensão lhe causou uma pontada de inveja, um anseio por uma parte dela perdida em algum lugar entre as chamas.
— O senhor é um homem bom, Lorde Nortah — disse ela. — O Reino é enriquecido pelo seu serviço. E eu lhe dou a minha palavra como sua Rainha de que este exército fará todo o possível para poupar sangue inocente. Porém, asseguro-lhe de que quando chegarmos a Volar garantirei que a cidade seja destruída até o último fragmento de pedra e a terra salgada, para que nada possa crescer entre as ruínas. Se não tem estômago para isso, o senhor tem a liberdade de deixar o seu posto e partir sem desfavorecimento.
Lorde Nortah abaixou a cabeça, rangendo os dentes ao suspirar.
— Nada de sangue inocente — disse ele, de cabeça ainda baixa. — A senhora me promete?
— A Palavra da Rainha está dada e não lhe cabe questioná-la, meu senhor — rosnou Lorde Iltis.
Nortah ergueu a cabeça e fulminou o Lorde Protetor com o olhar por um segundo antes de virá-los para os outros capitães. Lyrna se perguntou se ele achava que era único homem são num exército de almas enlouquecidas. Quando o seu olhar recaiu sobre ela, Nortah tornou a falar, sua voz a promessa seca e precisa de um homem muito perigoso:
— Pode não caber a mim questionar a sua palavra, Alteza, mas garantirei que a senhora a mantenha mesmo assim.
Outra semana de marcha os levou da agradável região das colinas para uma vasta planície empoeirada, seu único marco de interesse um rio longo que se estendia para leste num curso sinuoso quase paralelo à estrada.
— Pelo menos não seremos pegos desprevenidos — comentou o Conde Marven, olhando para a paisagem desolada. — Não daria para esconder um cavalo sequer aqui.
No dia seguinte, uma forma indistinta e irregular surgiu no horizonte enevoado, revelando-se uma estranha construção extensa adornada com múltiplos coruchéus altos. Ficava numa curva aberta do rio e tinha o tamanho de uma cidade pequena, mas sem qualquer moradia. Era constituída por uma série de estruturas piramidais dispostas em espiral, todas encimadas por torres consideráveis, a maior chegando a pelo menos sessenta metros de altura.
— Uma fortaleza? — ponderou Benten quando chegaram a menos de um quilômetro da estrutura.
— Não há muralhas defensivas — disse Iltis. — E ninguém para defendê-las, se houvesse.
Não houve qualquer sinal de resposta à aproximação deles, e não se via qualquer luz ou movimento nas estruturas variadas. Lyrna virou-se ao ouvir o som de um cavalo galopando e viu Sabedoria parar ao seu lado. Lyrna deixara Flecha no Reino, não querendo sujeitá-la aos desconfortos possivelmente mortais da travessia do oceano, e encontrou a sua nova montaria vagando perto das dunas quando desembarcaram. Era um belo garanhão de pelo totalmente negro, tão imponente que Lyrna imaginou se o animal não havia levado a Imperatriz até a praia no dia em que desencadeou a tempestade. Ela o chamara de Azeviche pela sua cor.
— Grande Rainha — disse Sabedoria, um cumprimento habitual que sempre deixava Lyrna se perguntando se não estava sendo ridicularizada. — Impressionante, não? — prosseguiu a anciã eorhil, gesticulando para a construção.
— De fato — concordou Lyrna. — Eu ficaria mais impressionada se soubesse o que era.
— Navarek Av Devos, que significa Portal dos Deuses na sua língua. O último grande templo dos deuses volarianos. O único a sobreviver à Grande Purificação. Imagino que devido ao tamanho e por ficar afastado de outros lugares.
A Guarda do Norte de Lorde Adal cavalgou adiante para inspecionar o templo e o encontrou deserto, a não ser por uma colônia de abutres, que havia feito ninho ali. Por sugestão de Marven, Lyrna concordou em deixar o exército acampar ali para passar a noite; o templo carecia de fortificações, mas ainda possuía telhados de sobra, e ela sabia que muitos de seus soldados apreciariam uma noite sob a proteção de pedras em vez de lonas frágeis. Havia espaço suficiente para cerca de metade do exército, e Marven postou os remanescentes num amplo arco defensivo ancorado no rio. O templo se estendia para além da margem, onde uma longa fileira de estátuas monstruosas abaixavam a cabeça para as águas. Eram uma combinação impossível de diversas feras: um tigre com a cabeça de um lagarto, uma grande águia com uma longa cauda escamosa. Havia também duas figuras humanas entre elas, guerreiros de músculos implausíveis ajoelhados para colocarem a mão na correnteza veloz.
— Algum tipo de deuses? — perguntou Lyrna a Sabedoria enquanto percorriam a cidade. Ela não conseguia deixar de sentir certo fascínio pela absoluta excentricidade do lugar; a construção de um edifício tão vasto sem nenhum propósito prático era tão desconcertante quanto encantadora, ao mesmo tempo que proporcionava uma apreciação da longa história do povo que Lyrna viera enfrentar. Eles nem sempre foram como são agora.
— Os cinquenta guardiões dos deuses. Criados a partir de todos os animais do mundo para lutar uma batalha sem fim contra os Dermos, habitantes do grande fosso de fogo debaixo da terra, os inimigos eternos de toda a humanidade.
O olhar de Lyrna foi atraído para a maior das estátuas, alguma espécie de macaco de costas largas, com uma cauda longa e serrilhada e braços tão grossos quanto troncos de árvores. A boca de Murel se crispou numa risada abafada ao olhar de Iltis para a estátua.
— Como eles conseguiram capturar a sua imagem antes que tivesse nascido, meu senhor?
Ela abriu um sorriso gracioso ao notar o olhar fulminante do Lorde Protetor e beijou-o afetuosamente no rosto antes de se afastar dançando.
— Esse é Jarvek — disse Sabedoria. — Considerado durante muito tempo o maior dos guardiões, até que o povo das sombras o tentou com um desejo ardente por uma rainha humana. Ele a levou para o seu covil nas profundezas da terra, mas, antes que pudesse saciar os seus desejos vis, ela foi resgatada pela sua irmã, Livella, a donzela guerreira que portava uma lança abençoada pelos deuses. — Sabedoria apontou para outra estátua próxima, uma figura feminina alta sobre um pedestal, empertigada e orgulhosa de lança em punho. A visão da estátua fez Murel cair novamente na gargalhada.
— Primeiro Sua Senhoria, agora a senhora — disse ela, apontando para Davoka. — Este lugar é realmente espantoso.
Davoka apenas deu um leve sorriso, lançando um olhar crítico às improváveis proporções generosas da estátua.
— Uma mulher assim passaria a vida caindo para a frente.
— Estátuas de guardiões, estátuas de heróis míticos — disse Lyrna. — Onde estão os deuses?
— Não irá encontrá-los aqui — respondeu Sabedoria. — Os deuses eram considerados tão divinos que era blasfêmia um humano tentar retratá-los. Até mesmo os seus nomes só eram conhecidos por um clero pequeno e seleto. Aqueles que queriam buscar a ajuda dos deuses faziam o pedido aos sacerdotes, que por sua vez faziam o pedido ao deus necessário. Por um preço, naturalmente.
Iltis e Benten sacaram as espadas ao ouvirem um berro súbito vindo do centro do templo, logo transformado num grito que ecoou pelas paredes de granito. Lyrna não deu atenção às objeções de Iltis e foi investigar, indo até o espaço circular no meio do templo, onde encontrou o Aspecto Caenis agachado sobre o Irmão Lucin. O idoso dotado estava deitado de costas no chão, o rosto contorcido numa careta de dor e horror, espumando pela boca.
— Ele quis muito ver como este lugar era antes de ser abandonado — explicou o Aspecto, segurando o irmão enquanto ele convulsionava.
— Uma decisão infeliz — comentou Sabedoria, apontando para um pedestal baixo de pedra ali perto. — Os deuses eram generosos, mas também sedentos.
O pedestal tinha um metro de altura, era estreito e retangular, com um semicírculo entalhado na parte superior. Junto à base havia uma mossa côncava no chão de pedra, de onde numerosos canais seguiam na direção das estruturas piramidais ao redor.
As convulsões do Irmão Lucin cessaram e o velho abriu os olhos, arregalados pelo choque do que quer que tivessem testemunhado.
Sangue, pensou Lyrna, olhando para o pedestal. A pedra havia sido limpa por séculos de vento e chuva, mas ela sabia que já fora vermelha. É sempre o sangue com essa gente. Antigamente derramado para saciar as criações de sua própria imaginação. Agora bebido para afastar o espectro da morte. Matar os seus deuses não fez com que mudassem.
Ela não sonhava desde a Batalha dos Dentes, passando todas as noites num sono profundo e tranquilo. Lyrna teria gostado de pensar nele como o sono de uma alma justa e satisfeita, mas sabia que tinha mais a ver com simples exaustão, uma vez que todo dia era muito cheio. Assim, ela levou algum tempo para perceber que os seus pés descalços não estavam realmente pisando no chão de pedra do templo, levando-a na direção do pedestal num passo lento porém constante. A pedra agora estava vermelha, como havia estado quando aquele lugar liderava a fé de tantas almas iludidas, coberta de sangue de cima a baixo, a mossa côncava transbordando com o líquido, os canais levando a oferenda até as moradas silenciosas dos deuses.
Havia uma mulher de aparência terrível ao lado do pedestal, de faca em punho. Trajava um vestido azul sujo, o corpete e a saia escuros de tão manchados, embora Lyrna pudesse ver que aquela fora um dia uma bela vestimenta, digna de uma princesa, na verdade. Porém, era o rosto da mulher que lhe chamava a atenção, em carne viva e recém-queimado, filetes tênues de fumaça ainda subindo da carne carbonizada.
— Eu estive esperando — disse a mulher queimada, fixando em Lyrna um olhar intenso, com um tom de censura na voz.
— Pelo quê? — perguntou Lyrna, perplexa.
— Por você, é claro. — A mulher gesticulou com impaciência para algo nas sombras e um jovem saiu para a luz, baixo, mas com uma aparência bela e delicada. — Seus adoradores estão ansiosos para fazerem uma oferenda.
Lyrna observou o jovem ajoelhar-se diante do pedestal, olhando-a nos olhos, o rosto inexpressivo.
— Eu mantive a minha promessa — disse Lyrna a ele, incapaz de esconder o tremor da voz. — Eu encontrei a sua mãe. Ela está viajando com o meu exército, como uma irmã da Sétima Ordem, que veio para conseguir justiça para o filho.
Fermin sorriu e seus lábios se arreganharam a um extremo impossível, revelando longas fileiras de dentes triangulares, os dentes de um tubarão.
A faca da mulher queimada reluziu e a garganta de Fermin foi aberta, o sangue jorrando numa torrente, escorrendo pelas laterais do pedestal e enchendo a concavidade. A mulher queimada empurrou o corpo para o lado e tornou a gesticular, e outra figura adiantou-se. Ele era mais alto, corpulento, o rosto marcado por cicatrizes revelando uma vida difícil, embora o seu sorriso fosse o mesmo que lhe surgira nos lábios quando o dardo da balista o atravessou pelas costas. O dardo ainda estava lá, a ponta de aço saindo pelo peito, raspando na pedra ao se ajoelhar.
— Você teve uma escolha. — Lyrna soube que as palavras eram uma mentira assim que deixaram os lábios. No entanto, Harvin pareceu achar a desonestidade dela engraçada, pois gargalhou quando a faca reluziu de novo. — Eu não fiz isso — insistiu ela quando a mulher queimada empurrou o corpo para longe e tornou a gesticular. — Eles me serviram de livre-arbítrio.
— Como deviam — disse a mulher queimada. — Mortais vivem apenas para servir os seus deuses.
Furelah apareceu em seguida, curvando-se para Lyrna com uma adaga em cada mão, o rosto e os cabelos molhados de água do mar, as órbitas vazias, a carne em volta delas parcialmente apodrecida. Pouco antes de a faca lhe abrir a garganta, um pequeno caranguejo saiu do círculo negro de seu olho, batendo as pinças para Lyrna como se a acusasse.
Ela desviou o olhar da cena, mas foi em vão. O templo agora estava cheio. Havia uma fila longa de pessoas; ela conhecia algumas, mas não a maioria. O arqueiro meldeneano que despencara do cordame nos Dentes, a seordah que morrera em Varinshold e tantos outros. Eorhil, nilsaelinos, cumbraelinos, como Furelah, todos pingando água salgada, suas carnes parcialmente levadas pelo mar…
— EU NÃO TIVE ESCOLHA! — gritou Lyrna para a mulher queimada, calando-se ao ver a figura agora ajoelhada diante do pedestal.
— Escolha? — perguntou Malcius. Sua cabeça estava inclinada num ângulo obsceno, embora o rosto fosse gentil, o sorriso cheio de afeição e solidariedade. — Escolhas não são da alçada daqueles que ousam governar. O mundo é seu para fazer o que quiser dele, minha irmã. Como eu sempre soube que seria. Não acha que teria sido mais bondoso me matar mais cedo, antes de eu assumir o trono? Isso não lhe ocorreu? Uma pequena gota de veneno na minha taça de vinho? Teria sido tão mais fácil.
— Não — disse ela num sussurro. — Você era o meu irmão… Certa vez fiz algo terrível por você.
— Você me deixou livre para presidir a destruição de meu Reino, o assassinato de minha esposa e de meus filhos.
Ele ergueu os braços quando a mulher queimada se aproximou. A faca dessa vez não reluziu, e a mulher a pressionou contra a carne dele com uma suavidade delicada, até mesmo afetuosa, aninhando a cabeça de Malcius em seu peito com a outra mão.
— Não dê as costas agora, Lyrna — disse Malcius quando a lâmina foi passada pela sua garganta. — Pois os deuses estão sempre sedentos…
Ela despertou com as sacudidas gentis de Murel, que ficou visivelmente sobressaltada com o olhar arregalado de Lyrna.
— O Senhor da Batalha tem uma mensagem para a senhora, Alteza — disse ela. — Um exército volariano se aproxima pelo leste.
Ela encontrou o Conde Marven nos degraus do templo, a planície mais além repleta de soldados entrando em formação e cavaleiros galopando até as suas companhias, uma nuvem espessa de poeira erguendo-se e encobrindo o sol matutino.
— O Irmão Sollis estima que sejam sessenta mil, Alteza — relatou o Senhor da Batalha. — Quase todos Espadas Livres, o que é incomum. Porém, estão se aproximando de forma ordenada.
Sessenta mil. Pouco mais da metade do nosso exército. Talvez a Imperatriz esteja fazendo uma aposta arriscada para deter o nosso avanço?
— Não se arrisque, meu senhor — disse ela a Marven. — Não podemos nos dar ao luxo de ter baixas significativas.
— A batalha sempre é um risco, Alteza. Mas estou convencido de que a questão estará resolvida ao meio-dia. — Ele fez uma mesura e foi até o seu cavalo, partindo a galope e logo desaparecendo em meio aos homens e à poeira.
Lyrna olhou para a torre mais alta do templo. Ficou tentada a se poupar do espetáculo da batalha, uma vez que o sonho acabara com qualquer desejo de presenciar mais derramamento de sangue, mas parecia uma atitude covarde desviar o olhar de seu exército agora.
— Minha senhora, veja se consegue encontrar uma luneta — disse ela a Murel, seguindo para a torre.
Foi desgastante subir a torre; suas pernas doíam com o esforço ao se forçar a subir os degraus estreitos sem diminuir o ritmo, seguida de perto por Iltis e Benten, que ofegavam. Era difícil não se distrair com a decoração interna da torre. Cada superfície, incluindo os degraus sob os seus pés, era adornada por alguma antiga escrita volariana, os símbolos nos níveis inferiores entalhados com uma precisão e elegância delicadas que desapareciam quanto mais alto Lyrna subia, de modo que quando chegou ao topo os símbolos eram uma confusão de marcas aleatórias, aparentemente gravadas ao acaso por alguma mão febril. Ela decidiu perguntar a Sabedoria o significado de tudo aquilo quando houvesse tempo.
O topo da torre consistia num espigão com ameias que se erguia de uma plataforma plana de granito de uns quatro metros de diâmetro. Tal como os degraus, a plataforma estava adornada por mais escritos, tão confusos que Lyrna soube que estava olhando para a obra de uma alma enlouquecida. Não havia balaustrada ou qualquer espécie de abrigo na plataforma, e um vento forte e cortante jogou os cabelos de Lyrna de um lado para outro assim que ela deixou a escada. Benten avançou para olhar por sobre a beirada desprotegida e recuou rapidamente com o rosto um pouco pálido.
— É melhor ficar perto do centro, Alteza — aconselhou ele.
Lyrna olhou para leste e viu duas grandes muralhas de poeira aproximando-se uma da outra na planície. A cortina de vez em quando se levantava e revelava os regimentos em marcha, fornecendo algumas indicações sobre o modo como Marven organizara os soldados. Ele posicionara uma linha compacta de Guardas do Reino à sua esquerda, perto do rio, o que evitaria qualquer flanqueamento naquela direção. O centro era mantido por uma mistura da infantaria nilsaelina e da Guarda do Reino, enquanto o grosso da cavalaria movia-se em paralelo às fileiras deles no flanco direito. Atrás do contingente principal havia mais quatro regimentos de infantaria e os cavaleiros renfaelinos, embora apenas dois terços estivessem montados, o restante sendo obrigado a sofrer a indignidade de marchar para a batalha.
— Que visão, Alteza — disse Iltis com um raro sorriso.
Lyrna tivera a sua dose de batalhas, mas somente como participante, e ver uma se desenrolar a tal distância lhe causou uma estranha sensação de culpa, como se fosse uma espectadora de algum espetáculo sangrento.
— De fato, meu senhor — disse ela, forçando um sorriso. — Que visão.
Murel apareceu ao lado de Lyrna, curvada e sem fôlego.
— Com os cumprimentos do Irmão Hollun, Alteza — ofegou ela, oferecendo uma luneta. Lyrna pegou o instrumento, estendeu-o e voltou a lente para o exército volariano. Passaram-se vários momentos até a poeira assentar o bastante para que ela pudesse discerni-los e ver que suas fileiras estavam bem organizadas, os batalhões de Espadas Livres marchando num ritmo constante. Assim como Marven, o comandante volariano percebera a sensatez de ancorar o flanco esquerdo no rio, com a maioria da cavalaria no direito. No entanto, Lyrna podia ver que a linha deles estava bem espalhada, a infantaria movendo-se apenas em fileiras duplas de modo a formar uma frente larga o suficiente para igualar-se à do inimigo. Ela ergueu a luneta, a poeira movendo-se o bastante para que pudesse enxergar a retaguarda deles.
— Nenhuma reserva — murmurou ela. Ela pretende nos sangrar? Desperdiçar as vidas de um exército inteiro para reduzir o número de nossos soldados? Aquela parecia uma estratégia medíocre mesmo para uma mente insana. Por que não reunir forças suficientes para nos enfrentar em igual número mais adiante na estrada?
Marven parou o exército a trezentos metros dos volarianos, e arqueiros cumbraelinos avançaram para formar três fileiras compactas na frente da linha. A tempestade a deixara com somente um terço dos que haviam zarpado por ordem da Senhora Abençoada. Porém, os cadáveres repletos de flechas que Lyrna vira em Alltor haviam fornecido amplas evidências do que até mesmo um número pequeno de arqueiros podia fazer, e ela tinha mais de três mil. Somadas aos arqueiros, havia as doze balistas montadas em carroções, que agora eram empurrados para a frente. Lyrna inspecionou cada uma com a luneta para certificar-se de que Alornis não havia conseguido de alguma forma escapar dos cuidados de Davoka, e soltou um leve suspiro de alívio com a sua ausência. Ela dera à lonak instruções estritas de amarrar as mãos e os pés da Senhora Artífice caso ela tentasse ir para a batalha, e esperava que isso não tivesse sido necessário.
Uma agitação tomou conta das fileiras vagas dos arqueiros quando a linha volariana chegou a duzentos metros de distância, a luneta avistando homens com os arcos preparados e erguidos para o alto, cada um com várias flechas fincadas no solo em volta dos pés. Eles dispararam como um só, a chuva de flechas densa o suficiente para que Lyrna pudesse discernir a trajetória das setas, uma nuvem escura e arqueada formando-se entre os arqueiros e os volarianos. A linha inimiga pareceu reluzir sob o peso do ataque, o centro sendo o mais castigado.
As balistas logo se juntaram aos disparos, e pelo menos vinte homens tombaram com a primeira saraivada; as fileiras dos batalhões centrais diminuíam a cada passo. Lyrna viu um batalhão ser dizimado, deixando uma dezena ou mais de mortos e feridos a cada dez metros, até que inevitavelmente começou a se deslocar mais devagar, os homens em marcha vacilando enquanto os companheiros morriam ao seu redor. Ela viu um oficial virar o cavalo de um lado para outro, na retaguarda, agitando a espada e gritando ordens inaudíveis até que um virote de balista atravessou o seu peitoral com força suficiente para arrancá-lo da sela. O batalhão diminuiu ainda mais de velocidade, parou e então se desfez, os homens largando as armas e dando meia-volta para fugir, curvados debaixo da interminável chuva mortal.
Lyrna não conseguiu ouvir o grito que devia ter sido dado pelos cumbraelinos, mas sabia que seria uma expressão selvagem de vingança ainda não saciada por completo. Eles dispararam numa investida espontânea, largando os arcos e sacando espadas e machados, correndo na direção da brecha na fileira volariana. Não sendo homem de perder uma oportunidade, Marven deu o sinal para um avanço imediato, e a Guarda do Reino inteira correu adiante, a cavalaria à direita saindo em disparada ao mesmo tempo. Lyrna viu o ataque cumbraelino atingir o alvo antes que a nuvem de poeira ficasse densa demais para que se pudesse enxergar. Ela teve um vislumbre do centro volariano fragmentando-se sob a fúria da investida, mas em pouco tempo o campo inteiro transformou-se numa massa de poeira rodopiante e de sombras vagas e tremeluzentes de homens em combate.
— Bem, esse foi um espetáculo de merda — comentou Iltis.
— Alteza.
Lyrna virou-se ao ouvir o chamado baixo porém insistente de Murel, vendo-a apontar para algo ao norte: outra nuvem de poeira na margem oposta do rio. Lyrna apontou a luneta para a base da nuvem e avistou um aglomerado de cavaleiros avançando a galope.
— Cavalaria — murmurou ela, observando os cavaleiros aproximarem-se, notando que usavam armaduras vermelhas em vez do preto volariano de costume. Era uma força de tamanho considerável, mais de cinco mil, pelos seus cálculos. A Imperatriz envia os seus Arisai, ponderou, lembrando-se da descrição que o Irmão Frentis dera de uma de suas visões oníricas. Por que não os enviou com o exército?
— O rio é fundo demais para ser vadeado num raio de quilômetros — disse Benten. — Mesmo que tenham barcos, a batalha terá terminado antes de conseguir fazer a travessia. Os arqueiros os farão em pedaços.
Lyrna sentiu uma inquietação crescente no peito à medida que os cavaleiros de armadura vermelha se aproximavam, o curso deles ficando cada vez mais evidente ao chegarem mais perto. Ela esperara uma tentativa contra o flanco do exército, presumindo que possuíam algum meio de atravessar o rio, mas em vez disso os cavaleiros cavalgavam diretamente para o templo, na direção dela.
— Quantos guardas o Conde Marven nos deixou? — perguntou ela a Iltis.
— Dois regimentos, Alteza. O Décimo Segundo e as Adagas da Rainha.
Lyrna aproximou-se da beira da plataforma e olhou para o templo abaixo. Lorde Nortah claramente avistara os cavaleiros e estava posicionando a própria companhia de arqueiros na margem do rio. Como se sentisse o olhar dela, ele olhou para cima e gesticulou perplexo para a cavalaria que se aproximava.
Por que atacariam apenas para ficar dando voltas na outra margem do rio? O rio…
Lyrna voltou a luneta para a correnteza veloz e viu apenas a água agitada, cinzenta pelos sedimentos. Foi quando abaixou a luneta que notou algo estranho nas águas, como a correnteza parecia um pouco mais veloz perto do templo, as águas levemente mais claras.
— Há alguma coisa debaixo d’água — sussurrou ela, sabendo que era tarde demais.
A companhia de cavaleiros que vinha à frente galopou na direção da margem oposta e entrou no rio sem diminuir o passo, os cavalos afundando não mais do que meio metro na água, deixando-a espumosa enquanto continuavam a investir. Antes que Iltis agarrasse a sua mão e a puxasse para a escada, Lyrna teve um vislumbre de um dos homens de armadura vermelha, que tinha um sorriso radiante ao chegar perto da margem sul, rindo da parca saraivada dos arqueiros de Lorde Nortah.
Davoka estava esperando na base da escada, o rosto sombrio e a lança já ensanguentada. Alornis estava ao seu lado, olhando lívida e imóvel para a carnificina que acontecia no templo. O barulho era quase ensurdecedor, o choque de metais misturado com os gritos dos moribundos, os berros de desafio dos que ainda lutavam e as gargalhadas dos homens que haviam chegado para matá-la.
Ao deixar a escada, Lyrna viu uma das Adagas da Rainha, um sujeito enorme que empunhava um machado e gritava de fúria a cada golpe enquanto o seu oponente de armadura vermelha esquivava-se e fazia repetidos cortes precisos em seu rosto. Para além deles, o templo estava envolto num tumulto de combate e metal rodopiante, Lorde Nortah mal visível em meio ao turbilhão, matando um Arisai e puxando uma das Adagas para perto, berrando ao tentar reunir uma formação defensiva. Apesar de sua habilidade, Lyrna podia ver que a sobrevivência dele devia-se em muito à Dança da Neve, a gata guerreira um borrão de garras e dentes ao abater um inimigo após o outro, aparentemente alheia aos ferimentos que lhe causavam nos flancos.
— Precisamos… — começou ela, dando um passo adiante.
— NÃO! — O punho considerável do Lorde Protetor fechou-se sobre o seu braço, fazendo Lorde Nortah desaparecer de vista enquanto ela era arrastada para longe.
— Lorde Nortah! — protestou Lyrna, tentando se soltar.
— Morrerá aqui defendendo a senhora, Alteza. — Iltis a empurrou contra uma parede quando um Arisai surgiu de um canto, soltando uma gargalhada de satisfação ao desferir uma estocada contra o Lorde Protetor com uma espada de lâmina estreita. Iltis contorceu-se para o lado e a ponta da lâmina do Arisai estilhaçou-se na pedra, embora ainda tivesse aço de sobra para bloquear o contragolpe alto de Iltis, mas velocidade insuficiente para esquivar-se da lança que Davoka cravou em sua virilha. Iltis empurrou o cadáver para o lado e segurou de novo o braço de Lyrna.
— Os cavalos estão amarrados na extremidade oeste do acampamento — disse ele. — Se eu tombar, Alteza, não se demore.
Mais dois Arisai apareceram para lhes bloquear o caminho, e Davoka e Iltis os atacaram no mesmo instante. Aquela parte do templo era composta principalmente de passagens estreitas que descreviam um caminho complexo entre as várias estruturas piramidais, limitando os movimentos dos combatentes, embora isso parecesse favorecer Iltis. O lorde corpulento prendeu o punho de sua espada no de um oponente, empurrando-o para baixo com o seu peso e acertando uma joelhada em seu peito, deixando-o sem ar, batendo então com a cabeça desprotegida do volariano na parede repetidas vezes até o crânio rachar como um ovo.
O que atacara Davoka conseguiu aparar as estocadas precisas da lonak com aparente facilidade, soltando uma gargalhada que morreu em sua garganta quando Lyrna arremessou uma adaga em seu pescoço. Um choque de aço às suas costas a fez se virar e ela viu Benten, de costas contra uma parede, a espada movendo-se numa velocidade frenética enquanto tentava repelir dois Arisai. Murel, agachada ao lado de Lyrna, soltou um grito de fúria e lançou-se sobre o inimigo mais próximo, cravando a sua adaga no braço do homem. O Arisai afastou o braço antes que ela pudesse recuperar a lâmina para outro golpe e deu um soco no rosto da dama que a fez cambalear para trás, depois avançou na direção dela com um sorriso largo no rosto e então tombando ao ter o pescoço perfurado pela espada de Benten. O outro Arisai jazia morto aos seus pés, mas o jovem lorde estava com uma das mãos sobre um ferimento na lateral do corpo, e o sangue escorria por entre os seus dedos.
— Meu senhor! — Lyrna correu na direção dele e se viu contida por Murel. O olho da garota estava se fechando pelo inchaço e ela parecia um pouco tonta, mas ainda teve forças suficientes para evitar que Lyrna corresse para o lado de Benten quando mais três Arisai surgiram e um deles olhou rapidamente para o lorde ferido antes de lhe abrir a garganta com um golpe rápido e eficiente.
— Lirhnah! — A mão de Davoka agarrou o seu ombro e a puxou dali, o mundo tornando-se um borrão de combate frenético. Iltis ia à frente, tentando encontrar um caminho pelo labirinto de pedra, agora apinhado de cadáveres a cada esquina. Davoka protegia a retaguarda, parando para golpear com a lança qualquer Arisai que ficasse ao alcance. Ao lado de Lyrna, Murel segurava a mão de Alornis, o rosto da Senhora Artífice pouco revelando se ela tinha conhecimento do horror ao redor.
Iltis soltou um grito de frustração ao se deparar mais uma vez com o caminho bloqueado, abaixando-se sob uma espada e desferindo um contragolpe que deixou o seu atacante dando risinhos enquanto olhava para os dedos decepados. O Lord Protetor olhou ao redor, suas feições revelando um pânico que Lyrna achava que ele não fosse capaz de sentir. Foi o medo dele que a fez se recompor, afastando a visão de Benten, o sangue jorrando pelo pescoço aberto e encharcando o chão do templo. Os deuses estão sempre sedentos…
— Para o centro, meu senhor — disse ela a Iltis. — Pelo menos há aliados lá.
Ele hesitou por um momento e então fez uma mesura curta.
— Peço perdão pelo meu fracasso…
— O tempo está contra nós, meu senhor. — Uma das Adagas da Rainha jazia ali perto, uma mulher esbelta de cabelos escuros, sua machadinha aninhada nos braços como se agarrasse um bebê amado. Lyrna agachou-se para recolher a arma e fez sinal com a cabeça para que Iltis prosseguisse.
Eles foram obrigados a abrir caminho lutando até os defensores sobreviventes de Lorde Nortah, talvez cinquenta deles num círculo compacto no centro do templo, cercados por uma muralha crescente de mortos. Iltis matou um Arisai pelas costas e desferiu grandes golpes de ambos os lados segurando a espada com as duas mãos, abrindo passagem suficiente para que Lyrna e Murel atravessassem com Alornis entre elas. Iltis tentou segui-las, mas caiu quando um Arisai lhe chutou as pernas, outros se aproximaram para dar cabo dele, mas Davoka aterrissou no meio dos guerreiros, a lança girando e arrancando olhos e mãos estendidas. Ela parou para levantar Iltis e o Lorde Protetor abriu caminho em meio à multidão de homens de armadura vermelha, seguido de perto pela lonak, a lança ainda girando.
Lyrna foi colocada depressa no meio da formação, onde encontrou Dança da Neve caída de lado, com pedaços de carne rasgada presos nas garras, o pelo coberto de sangue, assim como o chão de pedra debaixo da gata. Apesar dos ferimentos, os grandes olhos amarelos ergueram-se para Lyrna tão brilhantes quanto antes. Ela até mesmo ronronou baixo quando Alornis ajoelhou-se e passou a mão pela sua cabeça.
Lyrna ergueu a cabeça quando a cacofonia cessou de súbito, o entrechoque de armas desaparecendo e deixando somente os gemidos dos feridos. Havia Arisai por todos os lados, mas eles pareciam ter recuado um pouco. Muitos estavam feridos, alguns gravemente, sem olhos ou de pé com talhos no rosto ou com sangue escorrendo em abundância de buracos das armaduras, mas todos estavam sorrindo, não em zombaria, ou de crueldade, mas de alegria.
É para isso que foram criados, pensou Lyrna, percorrendo com os olhos o mar de rostos felizes. Uma nova raça nascida para ter prazer com a matança. O volariano criado à perfeição.
As Adagas da Rainha estavam ao seu redor, respirando fundo em arfadas irregulares, tensos para o próximo ataque. A maioria tinha ferimentos ensanguentados, alguns os olhos arregalados de choque ou pesar. Mas, ainda assim, não de medo, percebeu Lyrna, notando como as fileiras deles se fechavam à sua volta, muitos lançando olhares furtivos como se temessem a desaprovação dela. A Imperatriz criou algo abominável, concluiu. Eu criei algo grandioso.
— Parece que nós os deixamos felizes — disse ela, levantando-se do lado da gata de guerra. Lyrna ergueu a machadinha acima da cabeça, a lâmina ensanguentada evidência de que a sua dona morrera lutando, assim como ela pretendia fazer. — Fiquem comigo e os faremos chorar!
As Adagas da Rainha urraram em uníssono, um brado selvagem de desafio e sede de sangue, agitando as armas na direção dos Arisai e fazendo provocações repletas de obscenidades.
— Vou fazer você comer as próprias bolas, seu risonho de merda! — gritou um homem robusto, que segurava uma alabarda, ao Arisai mais próximo, que pareceu achar isso ainda mais engraçado.
Lyrna encontrou o olhar de Lorde Nortah e viu a determinação sombria em sua expressão. Ele olhou para Dança da Neve, que agora estava de olhos fechados, e um espasmo de fúria e pesar passou pelo seu rosto antes de se empertigar.
— Vamos tirar a Rainha daqui! — gritou ele aos seus soldados. — Formação de ataque!
A resposta foi imediata, as Adagas da Rainha movendo-se com uma precisão natural resultante de meses de treinamento, assumindo uma formação de cunha dentro de poucos segundos. Nortah ergueu a espada, preparando-se para dar a ordem para avançar, mas então parou ao ver uma agitação nas fileiras de Arisai. A multidão abriu caminho e revelou uma figura alta, de armadura vermelha tal como eles, mas o seu rosto era o de um homem muito mais velho, as feições longas e magras, lábios finos e olhos azul-claros. Além disso, diferente dos Arisai, ele não sorria.
Lyrna viu Nortah baixar o braço da espada ao olhar boquiaberto para o homem alto, o rosto tomado pela perplexidade.
— Aspecto?